INTRODUÇÃO
O objetivo central do artigo é refletir acerca das disputas referentes ao currículo nas políticas educacionais para a educação especial brasileira.
Para tanto consultamos 39 trabalhos acadêmicos dedicados ao debate curricular da educação especial, com data de publicação entre 2005 e 2018.1 Os recortes temporais assumidos nos trabalhos examinados variam, mas há um predomínio de análises das políticas mais recentes. As produções em tela referiram 30 documentos entre parâmetros, diretrizes e publicações de caráter orientador do Ministério da Educação. Entretanto, nem todos os documentos aludidos representam propostas curriculares explícitas, constituindo-se como subsídios para a organização e funcionamento da educação especial, resoluções, pareceres, decretos, notas técnicas e portarias. A leitura da produção acadêmica selecionada possibilitou evidenciar direcionamentos curriculares pertinentes à organização da educação especial no Brasil apreendidos aqui como eixos de análise: a natureza substitutiva/não substitutiva, as perspectivas segregada/integrada/inclusiva e os enfoques assistencial/clínico/educacional.
Recorremos também, nos limites desse trabalho, à análise de 10 documentos representativos da política educacional brasileira que contém direcionamentos curriculares entre as décadas de 1980 e a segunda década do presente século. A análise documental foi baseada na busca de significados sociais aos discursos políticos mediante a apreensão dos conceitos mobilizados (FAIRCLOUGH, 2001). Da análise extraímos duas categorias para compreender as proposições curriculares para a educação especial brasileira que correspondem a dois períodos: o currículo individualizado, relativo aos anos 1970 e 1980 e a individualização do currículo, cujo período situa-se entre os anos 1990 e o momento atual.
Ao analisar direcionamentos de políticas públicas no bojo das relações que permeiam a sociedade capitalista e o Estado moderno, estamos tratando das ações destinadas a frações da classe trabalhadora que necessitam de educação, saúde, e assistência de caráter público. Com tal pressuposto, e compreendendo os debates acerca do currículo no âmbito das disputas educacionais a partir de sua acepção como construção social (GOODSON, 1997), estabelecemos parâmetros analíticos para compreender as proposições para a educação especial no Brasil.
DIRECIONAMENTOS CURRICULARES PARA A EDUCAÇÃO ESPECIAL: NATUREZA, PERSPECTIVA E ENFOQUE
Para desenvolver os eixos analíticos do presente estudo, partimos dos antecedentes históricos ao debate currículo e educação especial, situados no período anterior à criação do Centro Nacional de Educação Especial (CENESP). Na gênese da atenção aos sujeitos identificados como deficientes no Brasil localizamos registros de um enfoque constituído por direcionamentos assistenciais, clínicos e reabilitatórios. Bueno (1993) e Jannuzzi (2012) oferecem dados importantes acerca do trabalho desenvolvido nos "pavilhões” vinculados a instituições do campo da saúde com práticas que estão na origem da educação especial brasileira e que geraram "medidas educacionais” (JANNUZZI; CAIADO, 2013). Tais ações contribuíram para a constituição de uma perspectiva de educação especial segregada, que permanece na oferta de educação especial de enfoque educacional, mas não escolar, nas instituições mantidas pela Sociedade Pestallozzi (RAFANTE, 2011), e pela Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE).
A criação do Cenesp junto ao Ministério de Educação e Cultura em 1973, nascedouro da educação especial como política pública, indicava "expansão e melhoria do atendimento aos excepcionais” (BRASIL, 1973). Tomando esse marco histórico como referência, exploraremos a articulação entre produções acadêmicas selecionadas e documentos representativos da política de educação especial para apreender as proposições curriculares mediante duas categorias: o currículo individualizado e a individualização do currículo.
O CURRÍCULO INDIVIDUALIZADO
A educação especial na década de 1970 nas instituições privado-assistenciais incorporou um trabalho educacional matizado pela influência de uma psicologia comportamental. Configuram-se, majoritariamente, uma perspectiva segregada e uma natureza substitutiva em relação ao ensino regular no país. Ressaltamos que essa atuação não tomou as feições daquilo que conhecemos como forma escolar (VINCENT; LAHIRE; THIN, 2001). Contudo, tais direcionamentos já se encontravam em disputa na forma de políticas integracionistas. A educação especial no período passa também a ser organizada sistematicamente nas redes públicas de ensino em classes especiais e salas de recursos por área de deficiência, com enfoque educacional e uma perspectiva de integração. Todavia, sem romper com os enfoques assistenciais e terapêuticos, na forma segregada e substitutiva das instituições privadas. Localizamos análise do Plano Nacional de Educação Especial (BRASIL, 1977) em Santos (2017) que afirma que em tal documento
O currículo é influenciado pela área da psicologia que legitima o tratamento diferenciado considerando os aspectos biológicos dos estudantes com deficiência. O currículo se traduz em manuais elaborados por especialistas em determinadas deficiências [...]; pode-se inferir que a escolarização levava em conta o tipo de deficiência. O plano traçado para a educação especial legitimava a "elaboração de propostas curriculares e respectivos manuais de orientação para o ensino de excepcionais de 1º grau, na forma de modelo de currículos por desempenho sob o enfoque sistêmico” (SANTOS, 2017, p. 76).
Ao analisar a Proposta Curricular para Deficientes Mentais Educáveis (BRASIL, 1979), Buytendorp (2006) ressalta que os currículos estavam voltados à adaptação pedagógica mediante a "especialização de procedimentos didáticos” propondo um currículo especial nas classes comuns. Para a autora
Os referenciais currículares destinavam-se à organização curricular para o ensino dos alunos com deficiência, destacando sempre o seu caráter individualizado, [...] que enfatiza a educação como desenvolvimento do indivíduo de dentro para fora, e em que o papel da escola é o de oferecer os estímulos e as condições ambientais que propiciem o desabrochar das potencialidades de cada um (BUYTENDORP, 2006, p. 36).
Santos (2017) e Buytendorp (2006) destacam na década de 1970 a influência da psicologia na proposição de currículos específicos por área de deficiência, baseados em enfoque sistêmico. Indicam uma abordagem por desempenho com oferta de estímulos e condições ambientais para o desenvolvimento das potencialidades individuais.
Não localizamos na produção acadêmica analisada documentos da década de 1980. Assumimos mencionar dentre as publicações do Cenesp o documento Subsídios para a organização e funcionamento de serviços de educação especial: área da deficiência mental (BRASIL, 1984), que define
A Educação Especial, em suas linhas gerais, persegue os mesmos objetivos da educação comum, visando proporcionar aos excepcionais condições que favoreçam a sua integração na sociedade, desenvolvendo alternativas de atendimento diferenciado, metodologias especiais, promovendo e utilizando recursos humanos especializados (BRASIL, 1984, p. 7).
Destacamos a reiteração da educação especial com os mesmos objetivos da educação geral pressupondo atendimento diferenciado orientado pelos princípios de normalização, integração e individualização (BRASIL, 1984). No que concerne ao atendimento na classe regular observamos a defesa de material didático comum mediante uso adaptado dos mesmos: "O currículo e o material didático para esses educandos deverão ser os mesmos da escola regular, devidamente adaptados visando à integração instrucional e social do educando [...] na classe comum” (BRASIL, 1984, p. 17). Também localizamos no documento referência ao apoio especializado ao professor da classe comum para a "adoção de métodos e processos especializados ou adaptados à aprendizagem especial” (BRASIL, 1984, p. 18).
Em termos do planejamento do atendimento ofertado observamos uma flexibilidade de lócus: classe comum, classe especial, sala de recursos, escola especial, atendimento itinerante (BRASIL, 1984) e a preocupação com a ampliação do acesso à educação, particularmente nas redes estaduais de ensino. Percebemos a persistência da influência da psicologia nos encaminhamentos pedagógicos e a adaptação curricular como central para uma abordagem individualizada na classe comum.
Ao sistematizar nossas análises nos eixos propostos - natureza, perspectiva e enfoque do currículo da educação especial - sinalizamos que as décadas de 1970 e 1980 podem ser pensadas como permeadas pelas disputas entre a natureza substitutiva e não substitutiva, embora os elementos conflitivos estivessem em grande medida obscurecidos pela própria organização de um sistema educacional em expansão. A perspectiva que orientava as proposições curriculares para a educação especial nas duas décadas reflete a disputa entre segregação e integração, aglutinando de forma conflitiva posições políticas por dentro da organização da educação especial. Já o enfoque educacional ganha força nos discursos propositivos, embora com grande influência da psicologia em suas perspectivas comportamental e construtivista e da herança do modelo clínico com a reiteração de uma abordagem individualizada. Em especial, na década de 1980 a proposição para os estudantes da educação especial na classe comum baseava-se nos mesmos objetivos da "educação comum”, ainda que prevendo adaptações.
A INDIVIDUALIZAÇÃO DO CURRÍCULO
Nos anos 1990 o documento Política Nacional de Educação Especial (BRASIL, 1994) indicava "currículos adaptados às necessidades dos alunos”, "implantação de programas diversificados” e "enriquecimento e aprofundamento curricular para os alunos com altas habilidades” (BRASIL, 1994).2
As políticas de municipalização do ensino fundamental foram fortalecidas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais que contavam com documento específico para as questões curriculares da educação especial. A educação dos "alunos com necessidades educacionais especiais” deveria contemplar as "diferenças individuais” (BRASIL, 1998, p. 18), e "requerer um tratamento diversificado dentro do mesmo currículo” (p. 24). Essas indicações sugeriam recursos e métodos diversificados para o trabalho pedagógico com a criação de alternativas nos processos de aprendizagem, o que supunha continuidade em relação ao período anterior. Contudo, indicava também a restrição de conteúdos e objetivos: "eliminação de conteúdos básicos do currículo” (BRASIL, 1998, p. 38) e "eliminação de objetivos básicos - quando extrapolam as condições do aluno para atingi-lo, temporária ou permanentemente” (BRASIL, 1998, p. 39). Tal orientação guarda relação com as propostas curriculares por área de deficiência e não desafia as possibilidades sociais do desenvolvimento humano, ficando restrita às condições individuais imediatas de cada sujeito. Adaptações e flexibilizações curriculares ganharam espaço respaldando uma perspectiva integrada, um enfoque educacional e escolar. A flexibilização curricular também favorecia a persistência da perspectiva segregada convivendo com políticas pautadas em princípios de integração. 3
Mantém-se a disputa pela natureza substitutiva/não substitutiva da educação especial e ganha força o conflito segregado/integrado/inclusivo. Com isso se tornam mais evidentes os embates no âmbito do enfoque educacional e escolar. Propõe-se um mesmo currículo, embora os objetivos educacionais recomendados aos estudantes da educação especial na classe comum pudessem ser diferenciados mediante a previsão de eliminação de objetivos e conteúdos básicos (BRASIL, 1998). Com isso, podemos pensar que a ênfase da individualização sofre modificações, baseada menos nas deficiências e mais nas diferenças individuais.
A educação especial ganha força como "modalidade de educação escolar” nas Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica (BRASIL, 2001a)4, enfatizando-a como um "processo educacional definido por uma proposta pedagógica” (BRASIL, 2001a). Tem destaque o "atendimento [...] realizado em classes comuns do ensino regular”, o que reitera o enfoque educacional e escolar, a perspectiva integrada ou inclusiva. Orientações curriculares propostas mediante
flexibilizações e adaptações curriculares que considerem o significado prático e instrumental dos conteúdos básicos, metodologias de ensino e recursos didáticos diferenciados e processos de avaliação adequados ao desenvolvimento dos alunos que apresentam necessidades educacionais especiais (BRASIL, 2001a).
Se por um lado as metodologias e recursos diferençados ampliavam as possibilidades de desenvolvimento do currículo escolar, por outro as flexibilizações e adaptações curriculares que levassem em conta o "significado prático e instrumental dos conteúdos básicos” podem ter norteado o processo ensino e aprendizagem para um empobrecimento curricular e um rebaixamento das exigências escolares em contexto escolar de universalização da Educação Básica. Os princípios de flexibilização e adaptação curriculares são tratados como estratégias para
assegurar a acessibilidade aos alunos que apresentem necessidades educacionais especiais, mediante a eliminação de barreiras arquitetônicas urbanísticas, na edificação - incluindo instalações, equipamentos e mobiliário - e nos transportes escolares, bem como de barreiras nas comunicações, provendo as escolas dos recursos humanos e materiais necessários (BRASIL, 2001b, p. 16).
A organização dos atendimentos articulando a flexibilização do lócus com diferentes condições previstas para o trabalho pedagógico pressupõe um escalonamento hierárquico na relação com o conhecimento desde o significado prático e instrumental dos conteúdos básicos na classe comum, o sentido complementar e/ou suplementar do currículo, mediante o uso de materiais e equipamentos específicos na sala de recursos, até a possibilidade de um currículo funcional na escola especial (BRASIL, 2001b). Os diferentes lócus propostos coexistiam desde a década de 1970, porém ganhava força a ideia da educação escolar e da classe comum.
O Documento subsidiário à política de inclusão (BRASIL, 2005)5 mantém a defesa de flexibilizar a organização e funcionamento da escola para atender à demanda diversificada dos alunos, sustentada mediante os conceitos de "diversificação pedagógica”, "pedagogias diferenciadas”, "individualização do currículo”, "individualização dos percursos de formação” e "planejamento flexível” (BRASIL, 2005). Ressaltamos que a flexibilidade curricular está proposta para ser viabilizada por meio de adequações e adaptações curriculares (BRASIL, 2005).
O documento Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (Brasil, 2008), a Resolução 4/2009 e o Parecer 13/2009, além do Decreto 6571/2008, revogado pelo Decreto 7.611/2011, e o documento orientador Educação especial na perspectiva da inclusão escolar: a escola comum inclusiva (ROPOLI et al., 2010) são as referências de análise para o último período de proposições políticas para a educação especial no Brasil.6 Tais documentos estão organizados por um enfoque educacional e escolar, uma perspectiva inclusiva e pela natureza não substitutiva.
No primeiro documento localizamos que a modalidade em foco "realiza o atendimento educacional especializado” (BRASIL, 2008), criando uma identidade entre os termos educação especial e atendimento educacional especializado (AEE).
Já a Resolução 4/2009 esclarece a função do AEE
Art. 2º. O AEE tem como função complementar ou suplementar a formação do aluno por meio da disponibilização de serviços, recursos de acessibilidade e estratégias que eliminem as barreiras para sua plena participação na sociedade e desenvolvimento de sua aprendizagem. Parágrafo único. Para fins destas Diretrizes, consideram-se recursos de acessibilidade na educação aqueles que asseguram condições de acesso ao currículo dos alunos com deficiência ou mobilidade reduzida, promovendo a utilização dos materiais didáticos e pedagógicos, dos espaços, dos mobiliários e equipamentos, dos sistemas de comunicação e informação, dos transportes e dos demais serviços (BRASIL, 2009).
O AEE deve ser realizado prioritariamente na sala de recursos multifuncional, é afirmado como "não substitutivo” e "articulado com a proposta pedagógica do ensino comum”. Consubstancia-se nas funções "complementar” e "suplementar”, a primeira materializada por meio da "disponibilização de serviços, recursos de acessibilidade e estratégias que eliminem as barreiras” e a segunda por meio de "enriquecimento curricular” (BRASIL, 2009).
O documento Escola comum inclusiva contém detalhamento referente ao trabalho do AEE como adequação de recursos, equipamentos e apoios para eliminação de barreiras "que impedem o aluno de ter acesso ao que lhe é ensinado na sua turma da escola comum [...] segundo suas capacidades” (ROPOLI et al., 2010, p. 23). Localizamos também neste documento um esforço em promover um esclarecimento acerca do uso do termo adaptação:
Ao contrário do que se pensa e se faz, as práticas escolares inclusivas não implicam um ensino adaptado para alguns alunos, mas sim um ensino diferente para todos, em que os alunos tenham condições de aprender, segundo suas próprias capacidades, sem discriminações e adaptações [...] Currículos adaptados e ensino adaptado negam a aprendizagem diferenciada e individualizada (ROPOLI et al., 2010, p. 15).
O texto revela que a defesa da adequação curricular no trabalho do AEE é feita em conjunto com uma refutação da ideia de adaptação curricular. Entretanto, no decreto nº 7.611/2011, "adaptações razoáveis” são aquelas que assegurariam o respeito às necessidades individuais.
Art. 1o. O dever do Estado com a educação das pessoas público-alvo da educação especial será efetivado de acordo com as seguintes diretrizes:
[...]
IV. garantia de ensino fundamental gratuito e compulsório, asseguradas adaptações razoáveis de acordo com as necessidades individuais (BRASIL, 2011).
Aqui "adaptações razoáveis” encontra-se em consonância com a ideia de adequações de recursos, apoios e equipamentos para a eliminação de barreiras.
Outro ponto a destacar é a defesa da diferenciação e individualização curricular, mediante "um ensino diferente para todos, em que os alunos tenham condições de aprender, segundo suas próprias capacidades”. Alega-se um currículo escolar comum em relação ao qual "é o aluno que se adapta ao currículo, quando se admitem e se valorizam as diversas formas e os diferentes níveis de conhecimento de cada um” (ROPOLI et al., 2010, p. 15). Portanto, o debate curricular na educação especial mantém a individualização como uma questão, embora essa agora sofra uma mudança de enfoque.
Se nas décadas de 1970 e 1980 a proposição era de "currículo individualizado” com ênfase nos diagnósticos, na década de 1990 temos uma transição desse pensamento para as "diferenças individuais”, e nos anos 2000 a proposição é alterada para "individualização do currículo”. Na perspectiva inclusiva toma forma de uma individualização dos percursos formativos, o que Freitas (2002) trata criticamente como "trilhas diferenciadas” e que tem como resultado uma "aprendizagem individualizada” que se configura como "diferenciada de aluno para aluno” (ROPOLI et al., 2010, p. 16).
Observamos que ganha força nesse último período os termos acessibilidade curricular e acesso ao currículo, que segundo Hass (2016, p. 17) seriam "os atuais descritores da política de educação especial brasileira”.
Recuperamos na Resolução 4/2009 a ideia de "disponibilização de recursos de acessibilidade”, compreendidos como "aqueles que asseguram condições de acesso ao currículo” (BRASIL, 2009). Essa ideia foi originalmente proposta no documento Parâmetros Curriculares Nacionais: adaptações curriculares (BRASIL, 1998) no capítulo das "Adaptações Curriculares” em seu item "Adaptações de acesso ao currículo” no qual consta:
criar condições físicas, ambientais e materiais para o aluno na sua unidade escolar de atendimento;
propiciar os melhores níveis de comunicação e interação com as pessoas com as quais convive na comunidade escolar;
favorecer a participação nas atividades escolares;
propiciar o mobiliário específico necessário;
fornecer ou atuar para a aquisição dos equipamentos e recursos materiais específicos necessários;
adaptar materiais de uso comum em sala de aula;
adotar sistemas de comunicação alternativos para os alunos impedidos de comunicação oral (no processo de ensino, aprendizagem e na avaliação) (BRASIL, 1998, p. 44).
Observamos que as adaptações de acesso ao currículo tratadas na década de 1990 servem de fundamento para a proposição dos objetivos do AEE, conforme o Decreto 7.611/2011, em seu artigo 3º:
prover condições de acesso, participação e aprendizagem no ensino regular e garantir serviços de apoio especializados de acordo com as necessidades individuais dos estudantes;
garantir a transversalidade das ações da educação especial no ensino regular;
fomentar o desenvolvimento de recursos didáticos e pedagógicos que eliminem as barreiras no processo de ensino e aprendizagem; e
assegurar condições para a continuidade de estudos nos demais níveis, etapas e modalidades de ensino (BRASIL, 2011).
As formulações políticas que advogam a individualização do currículo são marcadas pela defesa da natureza não substitutiva da educação especial, uma perspectiva inclusiva e um enfoque educacional e escolar. Observamos que um grande contingente de trabalhos mobilizam para esse debate diferentes conceitos presentes nos documentos representativos da política de educação especial, a saber: adaptação, adequação, flexibilização, diferenciação, diversificação, individualização.7 Sobre esses conceitos Floro (2016), Effgen (2012) e Correia (2016) indicam que não há uma distinção clara entre eles. Mais ao final do período indicam a premência do conceito de acessibilidade (SANTOS, 2017; HASS, 2016; CORREIA, 2016; OLIVA, 2016).
Oliva (2016) analisa como o termo adaptações presente nas orientações curriculares da década de 1990 foi substituído pelo termo adequações no início dos anos 2000, sugerindo o segundo termo como mais afeito às práticas inclusivas, embora o uso dos dois termos seja encontrado de forma indiscriminada na literatura do campo específico. Scherer (2015) indica outro deslocamento conceitual, de adaptação para a flexibilização curricular. Já Rodrigues (2013) refere adaptação curricular como acesso ao currículo.
Nas produções consultadas as ideias mais presentes sobre adaptação curricular a relacionam como: 1) vinculada a limites/diferenças individuais; 2) resposta às necessidades de aprendizagem de cada aluno; 3) necessária para a efetivação de uma "educação escolar inclusiva”; 4) ações de ajustes curriculares.
Contudo, algumas compreensões manifestam-se de forma diferenciada ao ponto 3, adaptação curricular como necessária para a efetivação de uma "educação escolar inclusiva”: Boer (2012, p. 23) considera que "adaptação curricular tem a ver com os conceitos da antiga escola, dividida e segregadora, nos termos de adaptar alguma coisa; neste caso, o currículo, para que possa atender aos alunos com deficiência”. Por outro lado, Monteiro (2015) ressalta que o conceito de adaptação curricular esteve muito ligado às propostas educacionais relacionadas à perspectiva da integração. Tais análises indicam a manutenção dos conceitos no discurso político sendo apropriados de diferentes formas.
Já sobre o ponto 4, ações de ajustes curriculares, a ideia mais presente afirma um currículo escolar comum, contudo, localizamos diferentes ênfases em relação aos "ajustes” como: temporalização, modulações ou graduações e recursos, os quais favoreceriam a produção de um "currículo aberto”, "a participação de todos”, a "permanência escolar”. Como contraponto a esse debate Bezerra e Araújo (2011), Leite, Borelli e Martins (2013) e Rodrigues (2013) destacam que as adaptações curriculares podem ser produtoras de empobrecimento curricular.
O discurso político do período pós 2008 refuta a adaptação curricular, operando com a adequação dos recursos. Admite a ideia de flexibilização dos processos escolares. Afirma fortemente as ideias de diferenciação e individualização, mediante o processo de acessibilidade, aglutinados na formulação de individualização do currículo. Como contraponto à atual defesa do acesso individualizado ao currículo, Araújo e Bezerra (2011) desenvolvem análise baseada na abordagem histórico-cultural, reivindicando a importância da mediação pedagógica para a apropriação da cultura historicamente produzida pela humanidade.
A produção de conhecimento em educação especial, em relação ao currículo, volta-se ao debate das formas, dos métodos, na defesa de um currículo escolar comum e da eliminação de barreiras à aprendizagem. Entretanto, o "comum” é pouco problematizado, ainda que venha sofrendo ataques e restrições via a proposição da BNCC, da Reforma do Ensino Médio e do movimento Escola Sem Partido. Tal postura analítica pode significar uma apropriação da escola mediante abstração das relações sociais, negligenciando suas características contraditórias e históricas e referendando um posicionamento político de não disputar um modelo de escola.
A "individualização do currículo”, entretanto, revela uma opção por um modelo de escola afeita ao enfoque das condições individuais do aluno, via o desenvolvimento de habilidades e competências pensadas por um viés meritocrático, em regime de equidade (BANCO MUNDIAL, 2011). Nessa proposição, as políticas educacionais de matiz neoliberal tem reafirmado a gestão gerencial das aprendizagens (RANSON, 2001). No caso da educação especial brasileira na escola comum opera-se um deslocamento dos registros sobre os diagnósticos para as condições individuais de aprendizagem de cada estudante.
A constituição da perspectiva inclusiva para a educação especial guarda íntima relação com os processos de universalização do ensino que, no Brasil, traduziu-se em massificação. Bruno (2011, p. 551) compreende que tal processo "diz respeito à redução da educação às exigências estritas do mercado de trabalho tanto no que se refere aos conhecimentos por eles requeridos quanto à imposição da disciplina necessária às formas de organização do trabalho e de vida contemporâneos”. Portanto, uma escola que responde à formação de subjetividades para a conservação ideológica da sociedade capitalista e às necessidades do mundo produtivo, voltadas ao trabalho simples (NEVES, 2010).
Consideramos urgente refletir acerca de uma perspectiva educacional escolar para a educação especial que incorpore, mediante uma crítica social e histórica, dois objetivos apontados por Duarte (2018): o desenvolvimento pleno das potencialidades dos alunos e o enriquecimento de suas necessidades culturais. Segundo Duarte (2018, p. 140),
Quanto às potencialidades, trata-se de uma visão processual e dialética da individualidade humana. O professor tem diante de si um aluno, seja ele criança, adolescente, jovem ou adulto, que é um ser com potencialidades ainda não plenamente desenvolvidas, ou seja, um ser com possibilidades de desenvolvimento a serem exploradas pela educação. [...] A questão das possibilidades, no que se refere ao desenvolvimento dos indivíduos, se apresenta numa relação dialética entre o indivíduo e as circunstâncias socioculturais, ou seja, numa ininterrupta dinâmica entre subjetividade e objetividade. [...] O currículo escolar, nessa perspectiva, deve ser pensado como um processo de apropriação do conhecimento que explore as melhores potencialidades de desenvolvimento dos indivíduos e, simultaneamente as melhores potencialidades humanizadoras da cultura. Isso remete à questão do enriquecimento das necessidades dos alunos.
Tal perspectiva pressupõe um antagonismo a uma compreensão de "individualização do currículo”. A educação escolar corresponde à possibilidade de apropriação da cultura humana mediante a forma escolar e pressupõe como objetivo elevar a formação cultural dos estudantes para compreender a realidade social. Na sociedade capitalista tal tarefa implica pensar dialeticamente as contradições e mediações desse processo e continuar lutando por uma educação pública, universal, laica e gratuita.
CONSIDERAÇÕES FINAIS: O QUE PERMANECE EM DISPUTA?
A partir das análises desenvolvidas chegamos à compreensão de que as proposições políticas e as produções acadêmicas consultadas organizam-se predominantemente em torno da natureza não substitutiva da educação especial, da perspectiva inclusiva e de um enfoque educacional escolar, constituídos, entretanto, por alguns elementos de disputa.
Ao retomar os eixos analíticos propostos notamos consenso em relação à natureza não substitutiva do currículo de educação especial, em parte apropriada como naturalizada uma vez que a relação não substituição/substituição é tratada nas produções consultadas e no discurso político como se representasse períodos em um processo histórico evolutivo que considera o substitutivo no passado. Porém, serviços de educação especial substitutivos permanecem em funcionamento no país. Agrega-se a isso o conflito público/privado que constitui tais serviços, mantendo viva a disputa, haja vista a recente proposição de alterações à política de educação especial.8 Por outro lado, alguns trabalhos tomam a legislação como baliza formal para afirmar a não substituição, obscurecendo sua condição de prática social.
Já nos embates quanto à perspectiva segregada/integrada/inclusiva percebemos tanto na documentação representativa da política educacional como nos trabalhos consultados uma prevalência em torno da perspectiva inclusiva. Localizamos, contudo, disputas sobre a forma como tal perspectiva se realiza, materializadas no debate conceitual que a sustenta.
Tanto as proposições políticas como as produções acadêmicas consultadas organizam-se em torno de um enfoque educacional e escolar, na defesa de um currículo comum que deve ser acessado individualmente, no qual apreendemos nas formulações políticas do período estudado um deslocamento do "currículo individualizado” para a "individualização do currículo”.