PRIMEIRAS BATIDAS...
“Recife, a capital do Brega!”. Este bordão já não é novidade há um bom tempo, desde que figuras como o cantor Reginaldo Rossi despontaram Pernambuco afora levando as sonoridades ultrarromânticas dos becos, bares e bordeis da Veneza Brasileira, exalando sensualidade, libido efervescente e tonalidades rubras de desencantos amorosos. De uns anos para cá, porém, um novo estilo surgido das periferias, chamado de “brega funk”, tem ecoado em cada canto do Recife, seja nas festas das elites que se reúnem no bairro de Boa Viagem, seja nos Altos povoados pela periferia que cortam a cidade. Se antes o impacto dos hits massivos de axé baiano chegava a tomar conta de muitas das folias de Pernambuco, em 2019, artistas como Shevchenko & Elloco1 e MC GW2 tornaram-se os donos dos hits do carnaval na capital pernambucana. Com letras que exalam sexualização e o ethos da periferia, o brega funk torna-se não apenas um instrumento que amplifica as vozes da periferia e demarca as identidades locais, mas também um artefato cultural constituidor de subjetividades diversas.
Entendido como um subgênero da música brega (SOARES, 2017), o brega funk tem se desenhado como uma manifestação que articula aspectos sonoros, visuais e culturais em torno de uma estética que, apesar de compor-se de processos interconectados com outros gêneros musicais, apresenta-se com singularidades muito próprias da periferia recifense. Acreditamos que o som, o ritmo, as batidas, dentre outros, são elementos que desenham o espaço e mediam estratégias de convivência. De acordo com Fontanella (2005, p. 12), “[...] [o brega] é uma música para ser ouvida nas rádios popularescas, nos programas locais de auditório, nos shows e bailes de periferia ou animando o consumo de bebidas alcóolicas ao fim das tardes nos bares”, fazendo transpirar as formas de socialização intensas da capital pernambucana.
Seja em compassos rítmicos descontruídos nas alternâncias do teclado eletrônico e as batidas rápidas e sintetizadas, nas narrativas antes subalternas que ganham visibilidades, ou mesmo nas gestualidades libidinosas tributárias da profusão desse fenômeno da música pernambucana, tem sido observado um crescimento da circulação e consequente aumento do consumo deste elemento cultural como fruto de uma sensibilidade cultural própria da conjuntura recifense. Quando falamos de sensibilidade cultural, queremos dar relevo à ambiência que se abre para reelaborar práticas sociais a partir de códigos já conhecidos e negociados no contemporâneo. Criam-se espaços que podem reificar determinadas noções culturais, mas que também podem tencionar condutas e visões conservadoras de mundo. Nesse sentido, a sensibilidade cultural fala de uma certa “[...] predisposição coletiva para certas práticas culturais” (OLALQUIAGA, 1998, p. 16) que, via de regra, são mediadas pela emergência de nosso fenômeno no caldo cultural, que em nosso debate é representado pelo brega funk.
As negociações sociais existentes na fase de crescimento da representatividade do brega funk pernambucano podem ser exemplificadas pelas interdições e pela marginalidade que este fenômeno experimentou (SANTOS, LOPES, SOARES, 2018). Contudo, no ano de 2017, um projeto de lei que caracterizava a música brega como “expressão cultural Pernambucana” foi proposto e aprovado na Assembleia Legislativa de Pernambuco (Lei n. 16.044/2017) garantindo ao gênero musical possibilidades de ocupação de espaço em eventos financiados por órgão públicos. No entanto, as negociações quanto ao brega funk não se encerram na esfera legal, antes se difratam na existência dos sujeitos que partilham desse fenômeno, dialogando com questões de identidade, gênero, classe, raça ou outras categorias que concorrem na constituição do sujeito.
Assim objetivamos, neste texto, por meio dos aportes teóricos dos Estudos Culturais e dos Estudos de Gênero, identificar as representações de gênero em três músicas hits do carnaval 2019 em Recife: “Tome na Pepeka”, “Tome empurradão” e “Louca e Descarada”. Aqui também pretendemos um breve enamoramento e encontro com a Cartografia, entendendo que na temática proposta “[...] encontram-se pessoas, mas também movimentos, ideias, acontecimentos, entidades” (DELEUZE, PARNET, 1998, p. 14).
Compreendemos gênero como a construção social das masculinidades e das feminilidades, um eixo “organizador do social” (SCOTT, 1995), uma lente para enxergar o mundo de uma perspectiva que problematiza os binarismos e os lugares fixos atribuídos a homens e as mulheres. Nessa perspectiva, gênero “[...] engloba todas as formas de construção social, cultural e linguística implicadas com os processos que diferenciam mulheres de homens”, segundo Meyer (2003, p. 16), “[...] incluindo aqueles processos que produzem seus corpos, distinguindo-os e separando-os como corpos dotados de sexo, gênero e sexualidade”.
Cabe indicar que este texto se inscreve em uma perspectiva pós-estruturalista de reflexão e análise das problematizações sobre as quais lançamos luz, sem o intuito de buscar uma verdade em torno da temática, muito menos conclusões que não abram possibilidades e brechas (ou, poderíamos dizer, vazamentos permitidos e desejados). Nosso desejo é lançar questionamentos em torno dos processos de naturalização de posições fixas ou modos únicos de “ser homem” e “ser mulher” que aparecem de maneira contínua e regular nestas canções – obviamente, sem ignorar, jamais, que estas são produções culturais inscritas em um contexto social mais amplo. Desejamos colocar em suspensão a apresentação de uma suposta realidade naturalizada por meio dessas representações de gênero nas mídias, sinalizando para sua construção cultural.
Segundo Guacira Lopes Louro (2007, p. 237), “[...] quando ‘recheamos’ nossos textos de questões, provocamos um deslizamento na fonte de autoridade e instigamos ou convidamos o/a leitor/a formular respostas às indagações feitas”. Assim, indagamos: de que mulher tratam os/as cantores/as do brega funk recifense? Onde posicionam suas masculinidades cantadas em verso? Que homem se apresenta disposto e louvado nestas músicas? Como as narrativas sobre homens e mulheres são sinalizadas ali? Sabemos que muitos outros questionamentos poderiam ser produzidos nessa direção, desse modo, lançamos alguns na tentativa de construir com os/as leitores/as algumas reflexões (des)naturalizantes que nos ajudem a pensar em como artefatos culturais, reproduzidos de modo (quase) inocente em nosso cotidiano, contribuem para reiterar lugares fixos de gênero, silenciando as múltiplas e potentes formas de ser e estar homem e mulher nesse mundo.
Destacamos que, para empreendermos a nossa análise, dialogamos com Tomquist (2011) ao entender os artefatos culturais como “[...] criadores e recriadores de significados sociais para as coisas, os sujeitos e as instituições, através dos quais os (e nos) constituiremos” (p. 231), sendo potentes na [re]produção de práticas sociais contemporâneas. Assim, pretendemos realizar uma bricolage dos elementos metodológicos, dos tecidos teóricos escolhidos para a composição deste véu cartográfico e das análises das músicas propostas, reafirmando que nossa forma de escrever é política e que está “[...] articulada, intimamente, à forma como se pensa e se conhece” (LOURO, 2007, p. 236). Mergulhamos, portanto, nesse universo do brega, não somente como pesquisadores/as, mas como consumidores/as desse produto, trazendo incrustado na pele as batidas erotizadas desse gênero musical.
DANÇANDO BREGA AO SOM DOS ESTUDOS DE GÊNERO E DOS ESTUDOS CULTURAIS
Consideramos importante, antes de prosseguir, ressaltar a mudança que tem se efetuado no brega recifense nos últimos anos. Se no auge do chamado brega romântico, datado do começo dos anos 2000, esse era encabeçado por bandas cujas cantoras eram as protagonistas das canções e das performances nos palcos, com o chamado brega funk esses elementos se inverteram, tendo os homens como protagonistas. Nesse movimento, há um certo esquecimento das antigas bandas que estouravam nas rádios e programas de auditórios regionais – muitas delas já não existem mais na cena – como a banda Metade, Sedutora, Menina Veneno, Bregueço, Brega.com, Kitara, entre muitas outras.
Poderíamos, desde já, problematizar algumas questões, utilizando-nos da ideia de Michel Foucault (2010), que entende a problematização como “[...] o conjunto das práticas discursivas ou não discursivas que faz alguma coisa entrar no jogo do verdadeiro e do falso e o constitui como objeto para o pensamento” (p. 242). Por que as mulheres do brega recifense perderam espaço para os homens? Como se construiu a ideia do brega romântico associado às cantoras de brega e a ideia de brega funk para os homens? O que diferencia um do outro e que faz com que certos sujeitos entrem na norma, no permitido, na ordem do discurso e outros não?
Tais elementos, por sua importância e complexidade, em nosso ponto de vista, demandaria uma pesquisa específica, o que não é nosso objetivo por agora. Desse modo, não pretendemos, neste texto, incluir tais problematizações, nos atendo às representações de gênero percebidas no presente do brega recifense, especialmente, como dito reiteradas vezes, no brega funk da atualidade.
A primeira canção hit do carnaval 2019, em Pernambuco, chama-se “Tome na Pepeka3” e se desenvolve nestes curtos versos:
Eu viciado em putaria, ela quer namorar comigo
Calma bebê, eu não quero compromisso
Depois que perdeu o cabaço olha o que ela tá dizendo
Depois que perdeu o cabaço olha o que ela tá dizendo
Se eu engravidar a culpa é sua, não é minha
Foi você quem jogou na pepeka
Vou falar a verdade
Vou contar pras minhas amigas
Que o Gabriel comeu minha tcheca
Tomo, tomo, tomo, tomo, tomo, tomo na pepeka
Tomo, tomo, tomo, tomo, tomo, tomo na pepeka
Tomo, tomo, tomo, tomo, tomo, tomo na pepeka
Tomo, tomo, tomo, tomo, tomo, tomo na pepeka
O Gabriel do Borel que comeu a minha tcheca
O Gabriel do Borel que comeu a minha tcheca
(Mc Lucy, BielXcamoso, Shevchenko & Elloco, 2019)
Já de início, podemos perceber o reforço de uma identidade masculina marcada por enunciação de liberdade sexual (“Eu viciado em putaria”) e a não demonstração de afeto, em contraste com a idealização de compromisso presente no ideário de feminilidade tanto na música quanto na sociedade (“Ela quer namorar comigo. Calma, bebê, eu não quero compromisso!”). Percebemos aí práticas de significação e de representação que envolvem relações de poder, determinando valorações e exclusões/inclusões nas identidades (WOORWARD, 2014; SILVA, 2014). Percebemos, ainda, marcações binárias de gênero que posicionam homens e mulheres em lugares sociais distintos que, de tão fixos, supostamente naturalizam uma construção universal para cada sexo, sem deixar brechas para vivências de masculinidade e de feminilidade que escapem a esse padrão. Contudo, gênero é uma construção social e, segundo Butler (2018), ele é performativo, sendo “[...] fabricações manufaturadas e sustentadas por signos corpóreos e outros meios discursivos (p. 235).
Portanto, as representações de feminilidade ligadas ao romantismo e ao corpo como propriedade do homem, em constante objetificação, presentes na música anteriormente descrita, constituem processos de subjetivação e reprodução de identidades construídas no meio destes discursos (HALL, 2000). Ademais, sendo o gênero uma construção cultural, uma performance, suas expressões podem ser múltiplas, diferentes, cambiantes e, nessa direção, podem ser vivenciadas de modos distintos do padrão binário desejado e ensinado por diversas instituições e reiterado por artefatos culturais como a música. Cabe destacar aqui que, em nossa análise, gênero possui uma dimensão educativa que se constrói e se reitera ao longo de nossas vidas, nos ensinando sobre as formas “aceitáveis” e “adequadas” de masculinidades e feminilidades em nossa cultura. Fazemos esta leitura com base em uma perspectiva política demarcada, visto que “[...] identidades de gênero e sexuais, quando conceituadas na ótica dos Estudos Culturais ou na perspectiva pós-estruturalista, admitem e supõem deslizamentos e, dificilmente, podem ‘encaixarse’ com exclusividade num único registro” (LOURO, 2007, p. 215).
Ao posicionar os homens em um local de liberação sexual e as mulheres no romantismo, a música reforça a produção relacional das identidades que se consolidam pelo ato de exclusão de determinadas características que existem no/a outro/a, ganhando sentido “[...] por meio da linguagem e dos sistemas simbólicos pelos quais elas são representadas” (WOODWARD, 2014, p. 08). Produzindo-se por meio de uma diferença sustentada na exclusão de determinados símbolos, os modos de ser homem e os modos de ser mulher almejam uma tentativa de naturalização, mesmo em meio às disputas próprias no campo cultural. Ainda segundo a autora, “[...] o corpo é um dos locais envolvidos no estabelecimento das fronteiras que definem quem nós somos, servindo de fundamento para a identidade – por exemplo, para a identidade sexual” (WOODWARD, 2014, p. 15), evidenciando as composições que se dão no corpo e em tudo o que nele se manifesta, sendo também uma construção com diferentes marcas históricas, sociais, étnicas, econômicas e culturais (GOELLNER, 2003).
Falando especificamente sobre a representação do homem na música “Tome na Pepeka” – especialmente se compreendermos o conceito de “representação” como um momento dentro do “circuito da cultural” “[...] no qual os significados são produzidos, e circulam, através de diversos processos e práticas” (WORTMANN, 2001, p. 156)–, percebemos a (re)produção de uma masculinidade encarada como hegemônica, um padrão normativo que incorpora, dentro de determinados contextos regionais, geracionais, raciais, classistas e étnicos, o que há de mais honrado de ser um homem (CONNEL, MESSERSCHMIDT, 2013). No cenário nordestino, a representação de masculinidade hegemônica é reiterada cotidianamente a partir de múltiplas práticas culturais. Reiteradas, por exemplo, no ideal do “cabra macho” tão comum em nossa região. Discursivamente delineada como um modelo a ser alcançado, a “masculinidade hegemônica” é perseguida com doses de valoração, tornando-se uma posição histórica a ser perseguida nos processos pedagógicos que ocorrem em diversos espaços da sociedade, como nas igrejas, nas escolas e na mídia. Segundo os autores:
[...] as masculinidades hegemônicas podem ser construídas de forma que não correspondam verdadeiramente à vida de nenhum homem real. Mesmo assim esses modelos expressam, em vários sentidos, ideais, fantasias e desejos muito difundidos. Eles oferecem modelos de relações com as mulheres e soluções aos problemas das relações de gênero. Ademais, eles se articulam livremente com a constituição práticas das masculinidades como formas de viver as circunstâncias locais cotidianas (CONNEL, MESSERSCHMIDT, 2013, p. 253).
Por mais que na agenda comunicacional se agencie de forma acintosa como essa narrativa de papeis se reifica no brega, também é possível perceber tensões que ora deslocam a mulher do papel romantizado, mas que ainda assim a desenham como objeto sexual, como é possível perceber na matéria publicada no Jornal do Comércio de 8 de março de 20054, destacado por Fontanella (2005), em que se questiona a voz da mulher que tem força de falar o que quer, mas ainda o faz vinculado às questões do desejo e da satisfação do homem. Cabe indicar que, no âmbito da música, tanto a reprodução dos lugares fixos para mulheres e homens quanto os escapes possíveis não se limitam ao estilo musical que estamos analisando, mas também em outros como o funk carioca, o sertanejo universitário e o forró eletrônico, apenas para citar ritmos comuns em nossos tempos.
Na segunda canção “Tome empurradão”, de Shevchenko & Elloco ,com participação de Mc Balakinha5, mais alguns versos de demonstração clara de masculinidade hegemônica ressaltam em meio às batidas do brega funk com o reforço de uma identidade masculina marcada por afirmações de poder e virilidade (“Sou safadinho, safado / Cachorro e safadão / Quando eu tava no pique / Ela sentiu a pressão” e “Quero ver se tu aguenta a pegada do ladrão / Eu por baixo de você e tu por cima é mó tesão”). Segundo Connell (1995, p. 189):
No gênero, a prática social se dirige aos corpos. Através desta lógica, as masculinidades são corporificadas, sem deixar de ser sociais. Nós vivenciamos as masculinidades (em parte) por tensões musculares, posturas, habilidades físicas, formas de nos movimentar e assim por diante.
Dessa forma, performatizando uma masculinidade que se apresenta como hegemônica, é importante a afirmação do “pique”, da “pressão”, demonstrando um homem com energia, com vigor, que corporifica a força que deles é esperada, principalmente /inclusive no ato sexual. Para esses homens não é delegada a possibilidade da sutileza, da sensibilidade e do romantismo, daí o destaque para as posições sexuais que valorizam o homem e a “pegada do ladrão” que, na gíria recifense, diz respeito ao que temos enunciado neste texto como destreza, força, malandragem.
Na canção analisada, à mulher é destinada a função de objeto sexual ao livre desfrute do homem que canta “Senta no pau, senta no pau que te machuca”. Como se vibrasse e se deliciasse com o fato de a mulher ser machucada – indicando também para uma masculinidade agressiva e potente que, inclusive, pode contribuir com a educação de homens que naturalizam a violência contra a mulher, que é, em nosso país e em diversos cantos do mundo, um grave problema social, de segurança e de saúde pública – a frase em questão denuncia as relações de dominação típicas da masculinidade hegemônica. De acordo com Zago (2009):
Masculinidades roteirizadas pela cultura na qual se materializam, supostamente avessas às quebras e às rupturas, elas investem poderosamente numa matriz excludente e dependente que as diferencie das feminilidades. Essas masculinidades constroem por fronteiras e limites, produzem uma série de outras características que vai lhe servir como referência tanto para a afirmação de sua identidade, quanto para a clareza de suas diferenças (p. 143).
É importante para a normatização dos corpos masculinos e femininos representados nos artefatos culturais que eles sejam inteligíveis, fáceis de serem lidos, prontamente percebidos e interpretados, para que se destaquem como padrão a ser ensinado e, assim, seguido por homens e mulheres com características supostamente universais. Gêneros inteligíveis, portanto, para Butler (2003, p. 38), “[...] são aqueles que, em certo sentido, instituem e mantém relações de coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo”. Dessa forma, a representação destes corpos inteligíveis funciona como maneira de se destacar o que é o corpo abjeto, excluído, que precisa ser corrigido, o que é estranho. Nas canções de brega funk já descritas, o homem destacase pelo seu vigor e potência sexual e a mulher está a seu serviço, como repositório de seus desejos, das suas vontades, representação dos tradicionais lugares de gênero reforçados em nossa cultura e ensinados por meio de diversas instâncias e artefatos culturais. Caso não haja correspondência entre os sujeitos e as expectativas de gênero – e de sexualidade – produzidas em meio às relações de poder, a marginalização e repulsa se manifesta em forma de abjeção. De acordo com Miskolci (2017, p. 45):
A partir da ideia de abjeção, compreendemos a dinâmica coletiva que gera a injúria e a violência contra aqueles e aquelas que explicitam a instabilidade dos gêneros e, das formas as mais diversas, encarnam a diferença, o que não se anula na familiaridade do óbvio ou na reconfortante mesmice em que descansa o olhar cotidiano.
Não queremos aqui dizer que não haja resistências em meio a essas representações universais de homem e de mulher que vazam, inclusive, entre outras canções e outros artefatos culturais midiáticos da cena recifense, mas destacamos que no recorte escolhido para este texto – as três canções hits do carnaval de Pernambuco – o que é apresentado harmoniza uma cultura centrada na liberdade sexual do homem em detrimento destes mesmos direitos para as mulheres.
De acordo com Steinberg (1997), tais artefatos midiáticos atuam como “[...] pedagogias culturais”, conformando comportamentos e inscrevendo significados. Compreendemos as pedagogias culturais como os investimentos educativos que ocorrem em diferentes espaços – entre eles, a escola – e por meio de diversos artefatos (CAMOZZATO, COSTA, 2013), com o intuito de interpelar, constituir e subjetivar indivíduos e grupos. E, portanto, um alargamento da noção de pedagogia para entender que intensos processos educativos ocorrem no âmbito da cultura, na vida cotidiana, sendo reiterada de modo (quase) sutil e naturalizado. Entendendo que a sexualidade é um dispositivo histórico (FOUCAULT, 2009), percebemos nas periferias do Recife um partilhamento de significados que reproduzem o machismo e a objetificação do corpo da mulher (assim mesmo, no singular, com referência ao ser/estar mulher como uma experiência universal, na contramão da compreensão performativa e de construção cultural de gênero, como já explicitamos), traduzidos nas canções, lançando luz aos efeitos na sociedade e à pedagogização dos sujeitos mediados pelos artefatos culturais.
Objetivando o atendimento de determinadas expectativas sociais, as pedagogias culturais que se espalham por meio de múltiplos artefatos midiáticos da contemporaneidade (re)produzem e (re)negociam significados, ensinam comportamentos considerados adequados, impulsionam hábitos e modos de vida, sendo potentes no (re)posicionamento dos sujeitos. Para Camozzato e Costa (2013), uma “vontade de pedagogia” atravessa nosso cotidiano, visto que “[...] em cada sociedade há interesses muito díspares competindo para tentar dar uma ou outras direções às pessoas, estabelecendo relações de domínio” (p. 28). Ainda segundo a autora, “[...] pedagogias proliferam e são acionadas para refletir e aprimorar o desempenho das práticas de educação, aumentar suas chances de sucesso e as possibilidades de tornar os sujeitos educados e governáveis” (p. 30).
Um outro elemento percebido na música “Tome empurradão” é um efeito muito característico não somente da periferia do Recife, mas de outros espaços correlatos: a ostentação. Como símbolo de status e de poder, a posse de um carro apresenta-se no imaginário dos homens que utilizam deste artifício para conquistar mais garotas: “Arrastei ela pro meu carro / Dei um trato e um amasso, e um amasso / Ela gemeu no meu ouvido me chamando de Safado / Haha, tá ligado, né?”. Mais uma vez, parece ser importante para este homem a afirmação da sua virilidade. Interessa-nos aqui a constante afirmação do “eu” nestas músicas. Nos trechos já mencionados: [eu] viciado em putaria; [eu] não quero compromisso; [eu] arrastei; [eu] dei um trato, pois a identidade de macho é uma prática, como diz Butler (2018), uma “prática significante” em um conjunto de regras e “[...] que se insere nos atos disseminados e corriqueiros da vida linguística” (p. 249).
Podemos operar um deslocamento da reflexão de Vargas e Carvalho (2016) a respeito do funk ostentação em direção a características percebidas também no brega funk recifense. Pensando o funk ostentação como uma pedagogia cultural, Vargas e Carvalho compreendem que que ele se configura como mais uma forma de produção de subjetividades entre os/as jovens na contemporaneidade, apontando para organizações generificadas em suas práticas sociais:
As músicas relacionadas ao funk ostentação traçam, em sua maioria, narrativas acerca dos “benefícios” que o acúmulo de bens e de patrimônio proporciona aos homens jovens: a companhia de belas mulheres e a elevação de um status frente aos demais. O mesmo estilo musical apresenta músicas que descrevem os desejos femininos como unicamente relacionados à vaidade e à beleza. Nas canções, esses desejos são atendidos, de um modo geral, por homens que pagam às mulheres o que elas querem (VARGAS; CARVALHO, 2016, p. 241).
No terceiro hit do carnaval de Pernambuco 2019, “Louca Descarada” do Mc GW temos, mais uma vez, a sexualização do corpo feminino nos versos: “Eu te falei que ela é louca e descarada / Rouba sua brisa com o poder dessa quicada / Essa menina tem um mistério / Quando ela empina, o bagulho fica sério”. Fazendo referência ao movimento sexual da mulher (“quicada”), suas danças (“Quica ali, senta aqui, mas não para de dançar”) e ao ato desta mulher se embriagar (“Chama as amigas, enche a cara, mexe e não para”) a música cita a mulher que se apresenta livre sexualmente como “louca” e “descarada”. No dicionário online, Michaelis o significado de “descarado” é apresentando como: aquele que não demonstra vergonha ou pudor, desavergonhado, imprudente, sem-vergonha; que demonstra cinismo, caradurismo, desfaçatez; atrevido, cínico, debochado.6
A canção aponta para o lugar que a mulher tem em uma cultura que a silencia e a aborta na manifestação da sua sexualidade. Enquanto, nas três canções, o homem é livre para expressar seus desejos, suas preferências sexuais, seu desprendimento de compromissos e romances, à mulher é destinado não somente o silêncio de suas vontades, mas quando estas se revelam, essa mulher é encarada como “sem-vergonha”, “louca” ou “despudorada”, qualidades indesejáveis para uma mulher em uma cultura machista como a nossa. Estas diferenciações são operadas repetidamente em locais diversos, pois as “[...] instituições sociais, os símbolos, as normas, os conhecimentos, as leis, as doutrinas e as políticas de uma sociedade são constituídas e atravessadas por representações e pressupostos de feminino e de masculino” (MEYER, 2004, p. 16), sendo, segundo a autora, implicados não somente na sua produção, mas também na manutenção ou ressignificação, evidenciando o exercício de poder que se manifesta de forma capilarizada e dispersa na sociedade, objetivando a condução de condutas, uma ação sobre a ação dos outros (FOUCAULT, 1995).
Em outros termos, as mesmas características comportamentais são esperadas e valorizadas nos homens e indesejáveis às mulheres, reforçando o argumento de que haveria uma forma única de ser homem e outra de ser mulher, marcadas por diferenças fixas. Nessa direção, indagamos: qual seria a função da representação nos artefatos culturais? O que estes ensinam? Que tipo de pedagogia exercem? Refletindo sobre isto, lançamos mão das palavras de Guacira Lopes Louro (2004), que:
[...] entende a representação não como um reflexo ou um espelho da realidade, mas como sua constituidora. Nesta perspectiva, não cabe perguntar se uma representação ‘corresponde’ ou não ao ‘real’, mas, ao invés disso, como as representações produzem sentidos, quais são seus efeitos sobre os sujeitos, como elas constroem o ‘real’ (p. 99).
Em arranjos de poder, percebemos essas representações midiáticas de gênero como pedagogias culturais que moldam as subjetividades, constroem identidades e comportamentos que favorecem normatizações, rejeitando como abjetos – ou loucos e descarados – os corpos, os sujeitos, as identidades que fogem a estas regras hegemônicas que atuam de maneira naturalizada, ousando, tentando encarcerar as diversas formas de ser e estar no mundo – ainda que saibamos a existência dos focos de resistência e os vazamentos por dentro da cultura. Parafraseando Silva (1996), Louro (2004) destaca que:
[...] os modos como os grupos sociais são representados podem nos indicar o quanto esses grupos exercitam o poder, podem nos apontar quem é, mais frequentemente, ‘objeto’ ou ‘sujeito da representação’. Em outras palavras, podem nos apontar quem utiliza o poder para representar o outro e quem é apenas representado” (p. 102).
Dessa forma, imersos em relações de poder, determinados grupos sociais são apresentados como se fossem parte do cenário de uma realidade naturalmente concebida, a-histórica, não mediada por forças, não constituída por meio de arranjos de poder e de interesses. Ao projetarem-se, no entanto, nestes mesmos artefatos culturais, se posicionam em locais de vantagem, utilizam de suas vozes – ou microfones – para exercitarem práticas de hegemonização, segregando e subalternizando – e, portanto, educando – outros grupos/sujeitos/identidades conforme convém. Pensando as representações nos objetos midiáticos, Tornquist (2011, p. 227) argumenta que “[...] os objetos não possuem um significado em si. É na cultura que adquirem sentidos – no entanto, este processo não é tranquilo, há uma intensa luta/disputa nessa atribuição de significados”, provocando-nos a pensar (e problematizar) as tentativas de naturalização de gênero no exercício do poder de representação que se estabelecem cotidianamente.
Sintomas como os esboçados nessas últimas páginas não têm espaço apenas na análise das canções elencadas aqui ou em outras canções do brega funk.Ferreira Júnior (2018), ao analisar nuances da representação da cantora de brega pernambucano Michelle Melo, a “Madonna do Brega”, associa elementos de representação sensual e sexualizada da mulher com referências da e na música pop em décadas anteriores, em uma lembrança que a história nas marcações e representações da mulher se remasteriza em nossa cultura como se naturalizando uma performance.
ENCERRANDO O SHOW
Nestas linhas pudemos acompanhar um pouco a atual cena do brega recifense. Talvez você – você mesmo – que estiver lendo e que, por ventura, não conheça o ritmo, não tenha ideia da potência e amplitude do brega funk em Recife, que está presente nas festas da high society emergente pernambucana – e até mesmo dos/as herdeiros/as da aristocracia do estado -, nos becos e vielas da periferia e nas caixinhas bluetooth vendidas no centro da cidade.
Atuando como uma pedagogia cultural na educação dos sujeitos, essas mídias trazem as representações de gênero que não se isolam, mas que compreendem um contexto de cultura mais amplo. Ao apresentar homens dotados de virilidade, potência sexual, esperteza e força, em contraposição às mulheres que, ora são enredadas em teias que as concebem ainda a espera de compromisso e romance, ora tidas como desavergonhadas e loucas por manifestarem seus desejos sexuais, os artefatos culturais – aqui, as músicas do brega funk – revelam-se potentes para reflexões e debates em torno da constituição de identidades e das possibilidades dos Estudos Culturais de se debruçarem ainda mais nas relações entre mídia, cultura e educação.
Ao pensarmos nas construções culturais destas ferramentas e na sua historicidade, podemos ir além e adentrar um campo extremamente delicado e permeado de interesses das representações culturais, problematizando os discursos que ditam a ordem, a norma e que tentam, repetidamente, naturalizar certos comportamentos, gerando uma série de opressões àqueles/as que se distanciam e furam as paredes de concreto que se posicionam ao nosso redor. Com as reflexões que trouxemos aqui, apostamos na potencialidade de reflexões sobre os artefatos culturais como artefatos pedagógicos que, ao mesmo tempo, reiteram, escancaram, silenciam, invisibilizam, problematizam, constroem – e, portanto, educam sobre – formas de ser e estar como sujeitos de gênero nesse momento histórico.