INTRODUÇÃO
A busca pelo conhecimento da verdade atravessa a história humana. Dos relatos míticos da antiguidade aos elaborados ensaios filosóficos contemporâneos encontramos, ao seu modo, buscas pela verdade. O mito hebraico/cristão da criação apresentado no livro do Gênesis assinala que o ser humano, desejando ser como seu criador, come do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal (Gn 3.5). Já na mitologia Grega a sabedoria, o conhecimento, toma forma de deusa a quem os seres humanos em sua condição mortal deveriam prestar culto (FERRY, 2012).
No curso da história, a filosofia em seu desenvolvimento e outras áreas do conhecimento se debruçaram sobre essa questão. A filosofia, sobretudo, foi a propulsora no processo de desvelamento da verdade através da reflexão, superando, em parte, as ideias míticas sobre a origem da vida e do conhecimento. O espanto com a realidade e a insatisfação com as respostas já conhecidas sobre ela levaram os gregos à conclusão de que “os acontecimentos humanos e as ações dos seres humanos podem ser conhecidos pela razão humana, e que a própria razão é capaz de conhecer-se a si mesma” (CHAUÍ, 2003, p. 25).
Neste momento as concepções oriundas desse meio de produção do conhecimento estavam atreladas à contemplação e à reflexão sobre a realidade. Embora não existisse a produção do conhecimento por meio de métodos precisos, esse momento da história foi fundamental para a solidificação do ser humano como criatura dotada de razão, pela qual se pode conhecer as coisas.
Essa busca racional pelo conhecimento da verdade que acompanha o ser humano, influenciada pelos diversos contextos sociais, religiosos e antropológicos, foi sendo transformada, seguindo aos anseios e aspirações de cada tempo. Do saber mitológico, passando pelas reflexões teológicas e filosóficas, até o campo científico, essa busca foi sendo sistematizada de diversas formas.
No campo mitológico, o heroísmo epopeico dos homens e a intervenção dos deuses fortaleciam a ideia de que o caminho e a sorte dos mortais eram regidos pela ação de deuses que, do seu olimpo, no caso dos deuses gregos, observavam, puniam, presenteavam e intervinham no destino dos homens, sobretudo, dos seus prediletos. O conhecimento estava nas mãos dos deuses: a chama da vida, o fogo que aquece, as paixões que direcionam os seres humanos e, até mesmo, o destino traçado pela trama da vida e da morte (ARANHA, 1993).
Com o surgimento da filosofia grega, a partir dos denominados filósofos da natureza, especificamente de Tales de Mileto (Séc. VII-VI a.C.), considerado pai da filosofia baseada na physis, ao assentar o seu pensamento nas bases de que da água se originariam todas as coisas, a arché, princípio, sustentáculo e fim de todas as coisas, o filósofo em pauta inaugura uma condição de compreensão do mundo, das organizações e das relações entre o ser humano, o mundo e o conhecimento. Não mais a elocubração mítica, mas a observação do mundo que se descortina aos olhos do ser humano.
Na visão de Reale; Antiseri (2004, p.30) a physis não pode ser compreendida no sentido moderno de natureza, mas no sentido original da realidade primeira e fundamental. A respeito da compreensão da água como origem de todas as coisas, os autores esclarecem que ela “deve ser pensada em termos totalizantes, como a arché de tudo o que existe, sendo a forma líquida da qual bebemos apenas uma das suas manifestações” (REALE; ANTISERI, 2004, p.31).
Em Tales, a água como arché não tem caráter mítico. O raciocínio proposto pelo filósofo está baseado no logos, a partir da compreensão observacional e racional do mundo. O logos, em Tales, ganha o status de lente de observação e compreensão do mundo.
Em Parmênides (Séc. VI-V a.C) o logos e a physis estão em continuidade; nele a physis ganha o status de ontologia do ser. O ser e o logos estão imbricados: “pensar é o mesmo que ser e isso em função de que o pensamento existe. Porque sem o ser, no qual é expresso, não encontrarás o pensar, com efeito, fora do ser nada mais ele é ou será” (REALE; ANTISERI, 2004, p. 51).
Para Parmênides, o ser e o pensar só existem se o fazem concomitantemente. Do mesmo modo afirma que só é possível chegar à verdade pelo caminho da razão, fugindo daquilo que engana. Os sentidos, nesse caso, devem ser compreendidos como algo que pode turvar o entendimento em relação ao caminho em busca da verdade.
É importante destacar que aqui não há a criação de um dualismo entre os sentidos e o conhecimento, antes, almeja alertar sobre aquilo que ele chamou de opiniões falazes que podem ser emitidas somente pela utilização dos sentidos e sem a reflexão, chegando a uma não verdade.
Para outro filósofo, Heráclito (Séc. VI-V a.C.), o logos aparece como o princípio subjacente e organizador de tudo aquilo que existe. Segundo esse filósofo, o logos apresenta-se como a própria lei suprema que cria, rege e sustenta a vida em sua constante fluidez.
A respeito dessa superioridade do logos em relação a tudo o que existe, Heráclito o aponta como razão e palavra desde o interior da pessoa humana, que transcende toda a materialidade da existência e deveria ser contemplado por todos os homens.
Assim, o pensamento a respeito do logos, dada sua importância para a compreensão do homem, das coisas existentes e do próprio pensamento, acompanha o desenvolvimento da filosofia.
Essa concepção do logos como regente da vida, do pensamento e da razão humana, é adotada pela teologia cristã e essa figura é associada a Cristo, como o logos da verdade. Tal ideia é defendida no prólogo do evangelho de João (Jo 1.1) e mais tarde corroborada por Justino (1995), segundo o qual o logos é a verdade, e está associado a Cristo e tudo o que veio antes dele, de algum modo, tem uma semente da verdade, mas não a possui por completo, dado que ele é a verdade em plenitude. Esse status de verdade delimitou a Igreja católica apostólica romana como detentora da verdade suprema das coisas. Posição esta que perdurou ao longo dos séculos.
Na modernidade, com o filósofo francês René Descartes (1596-1650), o modo de conhecer a realidade ganha um método próprio que pode conduzir o ser pensante para longe do erro e da ilusão sobre a realidade. A partir dele instaura-se uma nova era, levando o ser humano a se apropriar da natureza e da realidade por meio da razão. Levando em consideração a abrangência do processo de desenvolvimento humano em busca do conhecimento, estabelece-se, como recorte, a influência de Descartes nesta seara.
Assim, temos como objetivo nesta pesquisa discutir sobre a contribuição de Descartes na fundamentação do sistema científico moderno e o impacto de suas ideias na educação.
Esse recorte se orienta pelo fato de que a concepção predominante no desenvolvimento da ciência moderna e contemporânea pauta-se, sobretudo, pelos princípios antropocêntricos da alquimia moderna, que está, por sua vez, amparada, sobretudo, em Descartes.
Diante disso, optamos (passamos a usar, aqui, a primeira pessoa do plural) por realizar este estudo, de natureza exegético-hermenêutica, lançando mão da abordagem qualitativa, por meio de discussões amparadas em autores que discutem essa temática, assim como nas obras do filósofo investigado, a fim de alcançar o objetivo proposto para este artigo. O itinerário assumido consiste em conduzir a reflexão sem nos apegar ao desenho cronológico de formação e amadurecimento do método cartesiano, antes, nos pautamos nos dados que auxiliam na construção do escopo necessário para responder à questão de pesquisa aqui lançada, qual seja: Qual a contribuição de Descartes na fundamentação do sistema científico moderno e o impacto de suas ideias na educação?
Descartes em seu contexto: rebeldia e rupturas
O contexto no qual viveu René Descartes é marcado por um processo de ruptura com o pensamento vigente. Ele não apenas rejeitou o modo aristotélico e tomista de concepção da realidade, como formulou novos critérios científicos que fossem capazes de contemplar todas as ciências na produção do conhecimento através da razão.
O cenário das ideias que fundamentaram o pensamento filosófico de Descartes nasce no contexto de transformação do modo de compreensão dos estudos da natureza e da matematização do mundo, com Galileu Galilei (1564-1642), por meio da chamada validação empírica, que é a confirmação de hipóteses por experimentos e medidas, sendo a natureza sensível substituída por uma natureza idealizada segundo as leis da matemática (GLEISER, 2006). Nesse aspecto, “trata-se de uma revolução que substituiu a física qualitativa por uma física quantitativa, que substituiu uma Natureza por outra, uma ciência por outra, o método de autoridade pelo recurso à razão e à experiência” (JAPIASSU, 1994).
A ruptura com o teocentrismo, as crenças, as superstições e com as explicações míticas e dogmáticas, foi incentivada pelo paradigma da racionalidade, segundo o qual, “[...] chega-se à certeza, por intermédio da razão, princípio absoluto do conhecimento humano” (MARCONI; LAKATOS, 2011, p.50).
Em referência a esse momento da história, Cottingham (1989, p.15) aponta que “[...] a transição da perspectiva medieval para a perspectiva moderna sobre o mundo, foi um assunto demorado, gradual e extraordinariamente complexo”. Contudo, se é possível afirmar sobre a existência de uma geração que possa representar a centralidade dessa transição, ela é a geração de Galileu (1564-1642), Francis Bacon (1561-1626) e René Descartes (1596-1650).
Para Châtelet (1994, p. 51), “a grande revolução da física, começada no século XVI e continuada no século XVII, corresponde à elaboração do sistema de Galileu e à administração desse sistema por René Descartes”. Dito isso, podemos compreender a importância das ideias deste filósofo francês para a ciência moderna.
A proposta de Descartes, com o seu modo de pensar o mundo e a Ciência, é uma demonstração de uma nova percepção da realidade. Uma ruptura com o mundo feudal do pensamento e o lançamento das bases de uma sociedade pautada na dúvida, na experimentação e no método, tendo em vista a necessidade de erradicar da construção do pensamento qualquer possibilidade de engano diante da verdade investigada.
Tomando parte nesse movimento, em Descartes, o ser humano deseja imprimir a sua marca no mundo. “Ele já não se contenta com a posição a ele relegada pela teologia medieval. Isso vai levar à modificação da estrutura lógica espaço temporal pela qual os seres humanos percebem e explicam o mundo” (GRÜN, 2012, p.25).
Descartes e um novo modo de pensar a Ciência
Para Descartes, o conhecimento deve ser produzido a partir da minuciosa investigação do objeto que está sendo estudado. Aqui é importante destacar que essa ideia traz as características da compreensão do modo de se chegar à verdade proposto por Parmênides no diálogo com a deusa, partindo do princípio da razão e examinando as coisas. Os caminhos da verdade são “1- verdade absoluta; 2 o das opiniões falazes (a doxa falaz), ou seja, o caminho da falseabilidade e do erro; 3 por fim, um caminho que se poderia chamar como da opinião plausível” (REALE; ANTISERI, 2004, p.55).
O primeiro caminho, o da verdade absoluta, que o ser é e não pode não ser; o não ser não é e não pode ser de modo algum. Aqui poderia assinalar a incipiência do princípio de não contradição como bússola para o conhecimento verdadeiro.
O segundo caminho é o da razão, senda do dia, ao passo que a senda da noite é o caminho dos sentidos, um caminho que pode conduzir ao erro. Já o terceiro caminho é o das aparências plausíveis. Ele discute sobre o ser e o não ser. Essa lógica é aplicada a partir do grande princípio da verdade, pois o primeiro caminho era válido para o ser, mas em relação às coisas apresenta fragilidades, visto que para Parmênides, mesmo aquilo que não é está incluído no ser algo e não pode assentar-se em juízo de valor; isso não poderia ser aplicado a todas as coisas.
A compreensão de busca pela verdade em Descartes está amparada na razão que ofereça a possibilidade de aplicação de critérios de dúvida e de falseabilidade àquilo que está sendo estudado. Em sua visão, a Ciência tem como ponto de partida e deve ser desenvolvida racionalmente através de dois pontos chamados por ele de intuição e dedução. Esses pontos seriam necessários para alcançar o status de racionalidade. Organizados racional e sistematicamente, a imediatez seria característica da primeira, e a mediatez da segunda.
A intuição implica uma visão mental, sendo ela condição fundamental para a compreensão e o entendimento daquilo que está sendo investigado. Em relação à dedução, esta opera com os princípios da intuição, identificando-os em uma relação de decomposição e composição do objeto estudado (DESCARTES, 1975).
Esse processo deve ser, em sua visão, alcançado pela aplicação de um método. Este método consiste na ordem e organização das coisas e objetos sobre os quais se deve proporcionar a penetração da inteligência para descobrir uma verdade, ou refutá-la, eliminando a possibilidade de ilusão sobre a verdade do objeto
[...] há algum tempo eu me apercebi de que, desde os meus primeiros anos, recebera muitas falsas opiniões como verdadeiras, e de que aquilo que depois eu fundei em princípios tão mal assegurados não pode ser senão mui duvidoso e incerto; de modo que me era necessário tentar seriamente, uma vez em minha vida, desfazer-me de todas as opiniões a que até então dera crédito, e começar tudo novamente desde os fundamentos, se quisesse estabelecer algo de firme e de constante nas ciências (DESCARTES, 1986, p. 17).
A concepção metodológica de Descartes consiste no desejo de estabelecer um método que seja capaz de ser aplicado em todas as ciências e que possibilite, em primeiro lugar, a ele próprio, e aos demais, alcançar a verdade, desfazendo-se, inclusive, de tudo aquilo que outrora fora dado como verdade pelo sistema vigente, mas que, na sua concepção, não se sustentava.
É válido destacar que o filósofo não julga que somente ele tenha a verdade, ou que outros jamais possam encontrá-la, o que ele sugere é que sem método o indivíduo pode cair nas cegueiras do espírito que conduzem à ilusão de tratar como verdade aquilo que não é. Vale mais que nunca pensar em procurar a verdade em alguma coisa que fazê-lo sem método: é certíssimo, pois, que “os estudos feitos desordenadamente e as meditações confusas obscurecem a luz natural e cegam os espíritos” (DESCARTES, 1975, p.23).
Ele afirma a necessidade de utilização do método para a condução da racionalidade em direção à verdade. É possível, assim, percebermos que nele há o desejo de encontrar verdades que não sejam frutos de especulação ou de domínio de apenas um grupo detentor de um certo saber em determinada área, mas um método capaz de universalizar a verdade cientifica.
A ideia de desconstrução apresentada por Descartes, a base do método por ele criado, é representativo também da desconstrução do pensamento e da concepção de conhecimento da verdade que vigorava até então. A certeza da realidade e do seu conhecimento está na racionalidade humana, no ser pensante que conhece a realidade claramente. O eu pensante torna-se critério para a existência.
Acentuamos aqui a busca pela verdade a partir da razão, um caminho defendido pelos filósofos da physis representados, em particular por Parmênides. Sobretudo, é importante destacar que o ser e o logos estão imbricados. Essa ideia é retomada por Descartes, acentuando que a existência do ser ontológico só pode ser afirmada como verdadeira a partir da ideia do cogito.
O eu pensante em Descartes firma-se na ideia de que a partir da racionalidade, é possível duvidar de tudo e colocar todas as coisas em suspensão de análise e juízo. A única coisa que não pode ser colocada em juízo nesse momento é a sua existência, visto que o fato de ele estar pensando faz dele um ser que existe.
O cogito, ergo sum (penso, medito, reflexiono, logo existo) é o retrato da valorização do intelecto, do entendimento e da razão. A partir disto “o novo objeto principal da filosofia será o sujeito cognoscente. Descartes havia centrado a interrogação filosófica sobre o homem, considerado segundo a ordem da consciência, sendo esta a medida e forma do ser” (JAPIASSU, 1994, p. 20). Ademais, nessa concepção ganha destaque o caráter absoluto e racional de que a partir do esforço do cogito é possível conhecer todas as coisas e, por meio do método, assinalá-las como verdadeiras ou não.
Ao duvidar que eu duvido ou ao pensar que eu penso, penso, necessariamente. Pois, duvidar é também pensar. Entretanto, ao pensar que amo, posso me enganar quanto às coisas que eu penso, ou seja, quanto ao conteúdo de meu pensamento, mas não posso me enganar sobre o fato de eu pensar e de pensar sobre algo (SALES, 2013, p.133).
Para Descartes, o primeiro grande ponto para as demais certezas é a prova da existência do ser que pensa e que é capaz de conhecer todas as coisas por meio do intelecto. Dado que o pensamento, a dúvida e o engano existem no eu pensante que, por meio da comprovação do pensamento, indubitavelmente existe, é possível lhe conferir atributos. A isto Descartes chama de res cogitans. Em sua visão a res cogitans é mais fácil de ser conhecida que o corpo, denominado de res extensa, pois, mesmo que o pensamento ocorra de forma equivocada, não há como não estar pensado.
Já em relação a res extensa, esta seria um atributo do corpo que possui características visíveis, confirmáveis pelos sentidos, mas que, por sua fragilidade, podem enganar:
Coisas ‘extensas’, [...], são o assunto da física cartesiana. São definidas como o que quer que tenha dimensões espaciais e, portanto, possam ser quantificadas ou medidas em termos de tamanho, figura e movimento. O corpo (e todos os seus órgãos, incluindo o cérebro) é, nesse sentido, claramente ‘extenso (COTTINGHAM, 1989, p.34).
Ao receber o atributo de extensão, compreende-se que a res extensa ocupa um lugar no espaço. Enquanto isso é atribuído ao intelecto a faculdade de pensar e de não ocupar um espaço como é o caso do corpo. À res cogitans e à res extensa são atribuídas características que as diferenciam, mas a existência é atribuída a ambas, não como duas coisas que se complementam para formar uma terceira, mas como duas substâncias que se mostram unidas, sendo ao mesmo tempo um ponto de convergência e um ponto de divergência. Deste modo, Descartes descreve
mas julguei que foram essas meditações, mais do que os pensamentos que requerem menos atenção, que a levaram a encontrar obscuridade na noção que temos da união deles, não me parecendo que o espírito humano seja capaz de conceber bem distintamente, e ao mesmo tempo, a distinção entre o corpo e a alma e a sua união; isto por que é necessário, para tanto, concebê-los como uma única coisa, e conjuntamente concebê-los com duas, o que se contraria (DESCARTES, 1979, p.302).
O esforço deve ser um movimento do cogito em busca do conhecimento da verdade, duvidar de tudo aquilo que pode enganar. Duvidar de todas as coisas, menos da sua existência, pois esta é comprovada pelo cogito pensante: “rejeitar como absolutamente falso tudo aquilo em que pudesse imaginar a menor dúvida, a fim de ver se, após isso, não restaria algo em meu crédito, que fosse inteiramente indubitável” (DESCARTES, 1994, p.66).
É imprescindível estruturar as etapas desse método por intermédio de parâmetros que possam ser bem compreendidos. Nas palavras de Descartes, seu método pode ser conceituado como “[...] regras certas e fáceis cuja exata observação fará que qualquer um nunca tome nada de falso por verdadeiro, que, sem despender inutilmente nenhum esforço de inteligência, alcance, com um crescimento gradual e contínuo de ciência” (DESCARTES, 1975, p.24) O filósofo observa que, através das regras do método, não tomaremos “absolutamente nada de falso por verdadeiro” e chegaremos “ao conhecimento de tudo” (DESCARTES, 1975, p.24).
Neste sentido, é possível acenar para a compreensão de que Descartes não procura apenas um método para a dirigir o espírito em direção ao conhecimento, mas, principalmente, um método para instruí-lo e que lhe permita descobrir o caminho do conhecimento verdadeiro de tudo aquilo que se pusesse a investigar (GUENANCIA,1991). O método tem, nessa compreensão, a função de guiar o espírito no exercício da intuição e da dedução. Ele não ensina como chegar a estas operações, o seu exercício é natural, elas manifestam o poder de julgar bem, de distinguir o verdadeiro do falso (BEYSSADSE, 1999).
A partir dessa ideia, é possível notar que, na visão cartesiana, o seu método constitui-se em um conjunto de regras que devem ser rigorosamente seguidas por todos aqueles que se disponham a estudar algo, tendo como função a condução do espírito para livrá-los de caírem em ilusões a respeito da verdade.
A primeira consiste em “nunca aceitar como verdadeira alguma coisa que eu não conhecesse evidentemente como tal: isto é, evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção” (DESCARTES, 1986, p.56). Segundo essa regra é necessário investigar se existem evidências reais e indubitáveis acerca do fenômeno em tela. Ela age como em um processo de filtragem da informação. Tem por obrigação impedir que, por meio da precipitação, algo duvidoso seja incluído no juízo antes do entendimento ter atingido a sua completa evidência.
A segunda regra do método, denominada análise, consiste em “[...] dividir cada uma das dificuldades que havia de serem examinadas em tantas quantas fossem possíveis para melhor resolver” (DESCARTES, 1986, p.57). Essa etapa sugere que as coisas sejam separadas ao mínimo possível para que delas se conheça o máximo. Isso implica a absoluta determinação do problema a ser investigado além de separar o verdadeiro do falso, visto que na realidade complexa elas se dão paralelamente.
O terceiro momento do método consiste na síntese. Segundo Descartes, tal etapa tem como objetivo “[...] conduzir por ordem os meus pensamentos, começando pelos mais simples e mais fáceis de conhecer para subir pouco a pouco, gradualmente até o conhecimento dos mais compostos” (DESCARTES, 1986, p.57).
Nesta etapa do processo, o caminho é feito inversamente à análise. Se no passo anterior o objetivo era separar o problema, ou objeto de estudo em partes mínimas, o que se pede agora é que se reconstrua a fim de observar em conjunto o que está sendo estudado. Ainda sobre esse momento do processo, é válido ressaltar que a ordem relatada se refere à ordem do intelecto e não dos objetos estudados.
Por fim, a quarta e última regra, consiste na enumeração e revisão de todos os passos realizados no processo. Nas palavras de Descartes (1986 p. 58), é preciso “[...] fazer sempre enumerações tão íntegras e revisões tão precisas que tivesse a certeza de nada omitir”. Nesse sentido, a enumeração tem o papel de refazer intelectualmente os processos para certificar-se de que nada foi excluído ou anexado indevidamente. O objetivo é dar fidedignidade e repetividade ao processo, ou seja, permitir que qualquer outra pessoa utilizando do mesmo método possa alcançar os mesmos resultados.
Para Descartes, o método é fundamental para buscar a verdade. Ainda segundo ele, o método proposto, aplicado com a rigorosidade dos passos elencados anteriormente, tem por objetivo conduzir a razão na busca do verdadeiro conhecimento.
Com a aplicação de um raciocínio preciso e minucioso a todas as questões da Filosofia e aceitando-se como verdade apenas as ideias que se apresentassem claras a esse raciocínio, distintas e sem contradições internas. A racionalidade crítica disciplinada superaria a informação nada confiável sobre o mundo, proporcionada pelos sentidos ou a imaginação. Usando esse método, Descartes seria o novo Aristóteles, descobrindo uma nova Ciência que introduziria o Homem numa nova era de conhecimento pragmático, sabedoria e bem-estar (TARNAS, 2011, p.299)
Descartes acreditava que seu sistema científico poderia proporcionar uma vida melhor por meio da reta utilização da razão e a libertação das paixões que obstruem o caminho da perfeição do ser humano. A convivência e aceitação somente de verdades livres de ilusões ou contradições daria ao ser humano a liberdade diante das ilusões do mundo, sobretudo, do mundo regido pelas crenças e pela manipulação daqueles que dominavam esse sistema de pensamento.
O conhecimento da verdade através do método, coloca o ser humano em lugar de destaque diante da natureza que pode ser por ele investigada e conhecida sistematicamente e o põe em vantagem em relação ao modo mítico e meramente especulativo, pois o mundo se desvela diante do ser humano por meio do uso da razão. As coisas não se apresentam mais de forma velada e obscura, é possível conhecê-las e fazer com que outros as conheçam do mesmo modo, sem interferências de pré-conceitos ou meras elocubrações.
A verdade pode ser alcançada por aqueles que levarem o espírito na direção da investigação da realidade. Em sua visão, o alcance da perfeição humana está justamente em buscar a verdade e livrar-se de tudo aquilo que impede o ser humano de alcançar.
Nesse percurso de busca da verdade, o filósofo francês assinala que quando o ser humano, utilizando sistematicamente o método, cai em um erro, ele o faz por utilizar-se de pontos de partida equivocados ou experiências mal compreendidas, ou mal fundamentadas, pois a razão humana em seu exercício, amparada na verificação sistemática, não se equivoca.
Embora reconheça que a possibilidade humana de conhecer seja limitada como limitado é o ser humano, “sempre que aplicar a sua mente ao conhecimento de alguma coisa, ou a encontrará completamente, ou aperceber-se-á, pelo menos, de que ela depende de uma experiencia que não está em seu poder” (DESCARTES, 1975, p. 52). Assim, o ser humano torna-se o validador do conhecimento científico e filosófico, por meio da sua razão.
O homem entregue a si mesmo não é mais este ser perdido [...] deverá recusar a autoridade dos Antigos e encontrar seu caminho com suas próprias forças, vale dizer, dominar o discurso e atingir a verdade nas ciências graças a este verdadeiro ‘guia dos perdidos’ dos novos tempos que é o método, repousando na intuição racional (JAPIASSU, 1994, p.102).
Ainda sobre as contribuições de Descartes para o desenvolvimento do sistema científico moderno, acreditamos que o seu método e a sua forma de produção do conhecimento deram uma grande contribuição para a evolução da ciência, contudo, não raro, autores e pesquisadores, sobretudo do campo da Educação Ambiental, outorgam-lhe, e ao seu método. a responsabilidade pela fragmentação das ciências e as hiperespecializações.
Descartes e a Educação
A organização do sistema educacional moderno corresponde a uma lógica de pensamento e se orienta por concepções que marcam e instruem acerca do papel e do lugar do ser humano no mundo e de sua relação com outras formas de vida.
Embora Descartes nunca tenha escrito nenhuma obra especificamente sobre a educação, o seu método de análise de busca da verdade, como já mencionado, tornou-se basilar para a organização científica e escolar. A partir de uma leitura em seus escritos, é possível encontrar em suas obras menções diretas sobre essa temática. “A primeira menção está na “Regra II” das Regras para a Direção do Espírito; a segunda na “Parte I” do Discurso do Método; a terceira nas “Respostas” de Descartes às “Segundas Objeções”; e a quarta se concentra no prefácio escrito por Descartes à obra “Princípios da Filosofia””
Na Regra II para a Direção do Espírito, o filósofo menciona a educação no sentido de dizer que é mais valioso nunca ter estudado nada do que se ocupar de objetos de tal modo difíceis que, sem distinguirem o falso do verdadeiro, os homens se vejam conduzidos a tomar como certo o que é, na verdade, duvidoso (DESCARTES, 1975, p.15). Na mesma obra, Descartes critica o modo escolástico de ensino, mas ressalta que, embora não seja o melhor, acaba sendo válido por elevar o espírito das crianças ao pensamento. Ainda sobre isto, reforça: “e nós próprios nos regozijamos de termos sido outrora educados desta maneira nas escolas” (DESCARTES, 1975, p.16).
Na parte I do Discurso do Método, Descartes descreve o seu processo escolar e a utilidade das disciplinas que teve que cursar no decorrer do período. Cada uma delas válida, mas insuficientes para que ele chegasse à verdade das coisas. Encontramos aí mais uma vez a sua crítica ao sistema escolástico de ensino (DESCARTES, 1986). Lembremos que Descartes estudou no colégio jesuíta Royal Henry-Le Grand, instalado no castelo de La Flèche, doação de Henrique IV à Companhia de Jesus.
Nas respostas às segundas objeções, Descartes defende o seu modo de escrever por meio de meditações que, para ele, constituem aquela via mais verdadeira e mais apropriada ao ensino, isto é, a via que, ao contrário da síntese, dá inteira satisfação aos que desejam aprender, porque ensina o método pelo qual a coisa foi descoberta (DESCARTES, 1999), um método que, contudo, se utiliza da síntese como reconstrução e construção do pensamento novo.
Por fim, a quarta menção está no prefácio escrito por Descartes à obra Princípios da Filosofia: “para deixar bem explícita a finalidade que tive publicando [os Princípios], desejaria explicar aqui a ordem que me parece que deva ser seguida para uma pessoa se instruir” (DESCARTES, 1989, p. 116).
A intenção com a escrita deste prefácio é indicar aos leitores o caminho a ser seguido na construção do pensamento que leve à verdade. Diferentemente das outras obras, Descartes não se utiliza da menção à educação para confrontar o seu pensamento ao modo escolástico de ensinar. Chama a atenção que paulatinamente ele vai se afastando do modo escolástico ou da necessidade de apontar o ensino escolástico como incapaz de fazer o indivíduo chegar à verdade. Vimos, aqui, que não há menção de Descartes sobre o modo de organização didática escolar.
É interessante destacar que autores apontem que a fragmentação do ensino está amparada no pensamento filosófico e antropológico de Descartes. Na visão de Moraes (1997) a ciência moderna carrega do modelo cartesiano a separação do todo em partes, a fragmentação do conhecimento, a visão da natureza e do corpo humano como uma máquina, e a exclusão da emoção e predomínio da razão. Para Leff (2002) a crise ambiental tem estreita relação com o paradigma newtoniano-cartesiano que tem perpetuado um pensamento fragmentado e mecânico dos fenômenos do universo.
Autores como Grün (2012) apresentam em sua visão que nessa epistemologia “[...] existe um observador que vê a natureza como quem olha uma fotografia. Existe um “eu” que pensa e uma coisa que é pensada; esta coisa é o mundo transformado em objeto. O sujeito autônomo está fora da natureza” (GRÜN, 2012, p. 46). Já Carvalho (2012), atribui ao modelo cartesiano a fragmentação das áreas do conhecimento e a separação entre o ser humano e o meio. “A racionalidade moderna separou rigorosamente o sujeito cognoscitivo e o objeto do conhecimento” (CARVALHO, 2012, p. 116), de outro modo, afirma que “a percepção de que o conhecimento disciplinar - despedaçado, compartimentalizado, fragmentado especializado - reduziu a complexidade do real” (CARVALHO, 2012, p. 120).
Não pretendemos aqui desmerecer as reflexões e trabalhos dos autores apresentados, objetivamos refletir se esse teria sido o propósito de Descartes para a concepção científica que ele lançara, ou se a fragmentação apontada pelos pesquisadores acima mencionados é fruto daqueles que se utilizaram do método proposto pelo filósofo, mas não o percebendo na sua totalidade.
Ao que parece, a separação entre as ciências, que hoje podemos denominar de áreas do conhecimento não era o intuito que Descartes concebia como necessário à aplicação do método, ou ainda, algo que fosse condição para encontrar a verdade.
É preciso acreditar que todas as ciências estão de tal modo conexas entre si que é muitíssimo mais fácil aprendê-las todas ao mesmo tempo do que separar uma só que seja das outras. Portanto se alguém quiser investigar a sério a verdade das coisas, não deve escolher uma ciência particular: estão todas unidas entre si e dependentes umas das outras (DESCARTES, 1975, p.13)
A visão de Descartes é de que no processo de construção do conhecimento e da busca metódica pela verdade, não há que pensar uma ciência em separada. Aquele que deseja buscar a verdade, deve fazê-lo tendo em mente que as ciências possuem conexão entre si. A apreensão dos saberes deve ser feita levando isso em consideração.
Ainda mais: é possível levar a reflexão ao quarto passo descrito no método que, na visão de Leopoldo e Silva (1993, p. 32) “o preceito da enumeração pode ser visto em parte como síntese, já que percorre em sentido inverso o caminho feito pela análise, numa recuperação da visão de totalidade do conjunto”. Essa reflexão aponta que, mesmo na aplicação do método, com a separação do objeto ao menor grau possível e necessário para a sua compreensão, não há a intenção de deixá-lo daquela forma. Ao realizar o processo inverso o pesquisador deve, ao menos sistematicamente, refazer o objeto que está sendo investigado, reconstruindo-o em uma síntese, fato que é comumente esquecido quando se atribui a Descartes a responsabilidade pela fragmentação do conhecimento.
A partir disso, compreendemos que não havia em Descartes o desejo de separação, fragmentação e hiperespecialização do campo científico. Aliás, a fragmentação da ciência e, consequentemente do homem, a encontramos em Augusto Comte e sua classificação da ciência (COMTE, 1996)
CONSIDERAÇÕES
A busca pela verdade esteve presente ao longo da história. Dos mitos ao pensamento filosófico e deste à ciência, os meios de busca pela verdade perpassaram os mais diversos caminhos. A partir de Descartes, com o lançamento das bases da ciência moderna surge a compreensão da necessidade de um método que fosse capaz de dar à ciência o status de detentora da verdade e dos meios de alcançá-la.
A ruptura com o modelo filosófico especulativo e escolástico se fez paulatinamente, mas de modo enfático. A criação do método que tornasse viável e fiável para a condução na busca pela verdade foi fator decisivo para o desenvolvimento do sistema científico pautado na possibilidade de repetição e verificação dos resultados.
Na sistematização do método, contado os quatro passos da regra para se chegar à verdade, instaura-se a compreensão de que por meio dele é possível investigar toda e qualquer realidade a qual se possa verificar. Destaca-se ainda que as substâncias res cogitans e res extensa devem ser compreendidas como modos de manifestação do ser humano, mas promover um dualismo reducionista.
Ao apresentar a dúvida metódica como uma característica deste método, Descartes traz para o cogito a responsabilidade de dar validade a existência. Duvidar de tudo, menos da existência do cogito, visto que a capacidade de pensar dá a ele a condição de existência.
O contributo de Descartes para esse cenário é inegável, pois após as suas reflexões a ciência toma rumos diferentes. Como dito, Descartes não se dedicou a tecer reflexões diretamente para o sistema escolar, contudo, apregoam ao seu método a base para a (des)organização do ensino, a partir da fragmentação do conhecimento.
Autores tecem críticas ao sistema escolar e formativo cada vez mais fragmentando e hiper especializado, atribuindo a culpa a Descartes e ao seu método, contudo, como apresentado, em sua teoria e método não há fundamento para a separação das partes sem que haja também a junção dessas partes ao todo.
O quarto passo do seu método consiste em verificar todo o percurso realizado, valendo-se das partes fragmentadas para conhecer o todo ao qual elas fazem parte. Deste modo, levantamos alguns questionamentos para reflexão e caminhos para estudos posteriores. Será que ao fragmentar as partes do ensino, das ciências e do modo de pensar, sem devolvê-los ao seu todo, estaríamos fazendo uso do método cartesiano ou o estaríamos deturpando? Se Descartes não se dedicou a escrever sobre a educação, como a escola se apropriou desse método para sua organização curricular? Estes são alguns questionamentos que surgiram ao longo desta pesquisa e ficam como luzeiros para que em outros momentos ou por outros pesquisadores sejam respondidas.