INTRODUÇÃO
O artigo objetiva analisar a trajetória da professora Loide Bonfim e os seus desdobramentos no trabalho missionário e na área da saúde e educação, na Reserva Indígena de Dourados (RID) no século XX. Essa análise só foi possível de ser realizada com as contribuições da Nova História Cultural, “[...] que passou a lidar com novos objetos de estudo: mentalidades, valores, crenças, mitos, representações coletivas traduzidas na arte, literatura, formas institucionais.” (PESAVENTO, 1995a, p. 12-13). Ainda partilhando dessas contribuições da Nova História Cultural, convém lembrar que essa estendeu o campo de abordagens dos historiadores para novos horizontes, pois os acontecimentos presentes na vida cotidiana e as personalidades esquecidas nas análises históricas começaram a ser estudados. Nesse sentido, passou a buscar a “[...] investigação da composição social e da vida cotidiana de operários, criados, mulheres, grupos étnicos e congêneres.” (HUNT, 1992, p. 2).
Dito isso, nesse artigo abordamos a trajetória de Loide Bonfim, uma das mulheres que atuou na Reserva Indígena de Dourados (1938-1984) e que, assim como outras, deixou suas marcas na história dessa Reserva e da Missão Evangélica Caiuá, na educação escolar e não escolar, na evangelização e na saúde dos povos indígenas. Desse modo, apoiando-se em Perrot (2008, p. 15-16), nos debruçamos sobre a trajetória histórica de uma mulher ativa, como bem pontua essa autora:
A história das mulheres mudou. Em seus objetos, em seus pontos de vista. Partiu de uma história de corpo e dos papéis desempenhados na vida privada para chegar a uma história das mulheres no espaço público da cidade, do trabalho, da política, da guerra, da criação. Partiu de uma história das mulheres vítimas para chegar a uma história das mulheres ativas, nas múltiplas interações que provocam as mudanças.
Sendo assim, a nossa intenção nesse artigo é tratar a trajetória dessa mulher comum, buscando dar visibilidade a mulheres, que, como essa, atuaram em lugares longínquos, situados no meio rural e distantes dos grandes centros urbanos, já na primeira metade do século XX, contribuindo assim, com uma história das mulheres ativas, conforme aponta Perrot (2008).
O recorte temporal deste estudo situa-se entre os anos 1938 a 1984. Esse delineamento se justifica pelo fato de 1938 ser o ano de chegada de Loide Bonfim na Reserva Indígena de Dourados, para compor a equipe missionária e atuar como professora. E, 1984, por ter sido o ano em que Loide Bonfim, se aposenta e deixa suas atividades nessa Reserva e na Missão Evangélica Caiuá. Assim, “toda reflexão metodológica enraíza-se, com efeito, numa prática histórica particular, num espaço de trabalho específico.” (CHARTIER, 1991, p. 178).
Há que se ressaltar que, a trajetória de Loide Bonfim tratada nesse artigo, fez parte da vinda dos missionários para Dourados e esteve relacionada a evangelização dos indígenas, mas também, por ser um local promissor para a expansão do protestantismo na região. “O Distrito de Dourados funcionaria, assim, como um ponto de irradiação do protestantismo para todo o Sul do Antigo Mato Grosso.” (GONÇALVES, 2009, p. 186). Neste espaço, tiveram como objetivo a evangelização, mas também os demais trabalhos sociais, econômicos e políticos desenvolvidos pelos protestantes metodistas e presbiterianos, a fim de instituir a Igreja Protestante em espaços geográficos, como Dourados, onde ainda não havia se estabelecido uma religião cristã. A Missão Evangélica Caiuá surgiu após a criação da Associação Evangélica de Catequese dos Índios do Brasil (AECI) em São Paulo no ano de 1928, “[...] constituída de representantes de corporações evangélicas, reconhecidas pela Aliança Evangelica Brasileira [...].”1 Nesse contexto, a catequese pensada pela Associação Evangélica de Catequese dos Índios do Brasil consistiu no estabelecimento de escolas de alfabetização, instrução cristã, instrução de higiene e agricultura, oferecendo às populações indígenas toda a assistência física, intelectual, social, moral e espiritual que for possível.” (EXPOSITOR CRISTÃO, 6 ago. 1940, p. 7). Os trabalhos missionários pretenderam inserir novos hábitos, comportamentos, religião, conhecimentos e nova cultura entre os indígenas, a do não indígena.
Para o desenvolvimento dessa análise, recorreram-se aos periódicos protestantes O Puritano (presbiteriano, circulou entre 1899 e julho de 1958), O Estandarte (presbiteriano, presbiteriano independente, desde 1893) e Expositor Cristão (metodista, com início em 1886), que divulgaram matérias sobre os trabalhos missionários desenvolvidos por Loide Bonfim na Missão Evangélica Caiuá e na Reserva Indígena. Isso posto, “[...] transformar um jornal ou revista em fonte histórica é uma operação de escolha e seleção feita pelo historiador e que supõe seu tratamento teórico e metodológico.” (CRUZ, PEIXOTO, 2007, p. 258). Cabe contextualizar que a Imprensa está relacionada com as constituições de linguagens e representações de determinados grupos sociais, que precisam ser analisadas relacionando-as com as relações sociais, culturais, econômicas, políticas e históricas do período estudado. Além disso, usamos também as fotografias como fonte neste estudo.
As fontes mobilizadas foram analisadas com base nos pressupostos da Nova História Cultural. Assim, recorremos a Michel de Certeau (2014), com o seu conceito de tática, e a Roger Chartier (1991), para as análises sobre representação e apropriação. Usamos também referências bibliográficas ligadas à história, à história da educação, à história das mulheres e à história da educação da mulher.
Sobre a organização deste estudo, o artigo divide-se em duas seções. Na primeira abordamos a história de vida de Loide Bonfim e sua chegada na Missão Evangélica Caiuá em Dourados. Na segunda seção, tratamos dos trabalhos desenvolvidos por Loide Bonfim na Reserva Indígena de Dourados, na educação escolar e não escolar, no processo de evangelização e na área da saúde dos indígenas.
LOIDE BONFIM: HISTÓRIA DE VIDA E SUA CHEGADA NA MISSÃO EVANGÉLICA CAIUÁ EM DOURADOS
Natural de Caetité, Bahia, Loide Bonfim Andrade nasceu em 25 de dezembro de 1919, e ainda criança, mudou-se com seus pais e irmãos para São Paulo, devido às condições de saúde do seu pai, Alexandre Soares Bonfim, que adoeceu gravemente, e precisou buscar recursos médicos na cidade. Diante do falecimento precoce do seu pai e pouco tempo depois da sua mãe, Rita Angélica Teixeira Bonfim, Loide Bonfim e seus quatro irmãos (Daniel, Franklin, Julieta e Chester) ficaram órfãs. Loide Bonfim tinha dez anos quando ficou órfã.
Após o falecimento dos seus pais, Loide Bonfim e seus irmãos ficaram um tempo com o Reverendo Miguel Rizzo, sendo adotados mais tarde pelos missionários Carlos e Sara Chambers Cooper. Em São Paulo, estudou o curso ginasial no Colégio Anglo-Americano onde aprendeu o inglês fluentemente. Em seguida, fez o curso de Teologia no Instituto Bíblico Eduardo Lane (IBEL) em Patrocínio, Minas Gerais. Embora Loide Bonfim fosse órfã de pai e mãe, o fato dela e seus irmãos terem ficado com um reverendo e, posteriormente, terem sido adotados por um casal de missionários, de certa maneira, acabou dando oportunidade a ela de estudar em uma época, que “[...] um número significativo de jovens mulheres até os anos 1950 mal conseguia concluir o curso secundário. As que seguiram em frente nos estudos quase sempre optavam pelas carreiras profissionais consideradas femininas.” (AREND, 2012, p. 72). Afinal, Loide Bonfim, em seu percurso formativo fez o Ginasial, o Curso de Teologia e aprendeu Inglês.
Após seus estudos teológicos, Loide Bonfim chegou em Dourados na Missão Evangélica Caiuá em março de 1938, para compor a equipe missionária e atuar como professora na Reserva Indígena de Dourados. Nesse período, na Reserva, ocorria uma epidemia de febre amarela, o que ocasionou a morte de muitos adultos indígenas, em decorrência desse fato, Loide Bonfim e a professora missionária Áurea Batista, criaram o orfanato Nhanderoga (Nossa Casa), para acolher as crianças indígenas órfãs e passaram a morar no local com as crianças. No qual desenvolveram com as crianças atividades de evangelização, alfabetização, ensino sobre a higiene e novos comportamentos e hábitos. Assim, atendiam as crianças em âmbito religioso, social, na saúde e educação.
Importa explicar aqui que a Reserva Indígena de Dourados (RID), foi criada em Dourados/MT no ano de 1917, de início foi destinada para os indígenas da etnia Kaiowá, que já ocupavam a região, depois, passaram também a povoar a Reserva os Guarani e Terena, em decorrência das frentes de ocupação e colonização da região. Assim, de modo forçado, os Kaiowá, Guarani e Terena tiveram que sair dos seus espaços tradicionais de ocupação e se deslocar para a Reserva. Já a Missão Evangélica Caiuá (MEC), foi instalada em Dourados no ano de 1929, para desenvolver os “[...] serviços agrícolas, assistência médica, dentária, e ensino primário e da Palavra de Deus.” (O PURITANO, 11 maio 1929, p. 7). Para isso, a primeira equipe missionária a chegar em Dourados foi composta por um médico, Nelson de Araújo (metodista), pelo engenheiro agrônomo João José da Silva, sua esposa Guilhermina Alves da Silva (professora) e seu filho Erasmo (presbiterianos), pelo professor e dentista Esthon Marques (presbiteriano) e pelo reverendo Alberto Sidney Maxwell e sua esposa Mabel Davis Maxwell (presbiterianos). Nessa oportunidade, o engenheiro agrônomo ensinaria os indígenas a lavrar a terra por processos científicos e modernos, o médico com o auxílio do cirurgião dentista a curar os males psíquicos, o professor iria instruí-los e o ministro a guiá-los ao pai celeste (O PURITANO, 6 abr. 1929).
Para somar com suas atividades de professora na Missão, Loide Bonfim também fez o curso de enfermagem em Anápolis/Goiás; assim, pôde atender, em âmbito da saúde, as crianças do orfanato e as demais crianças e adultos que moravam na Reserva. Cumpre mencionar aqui que, após a década de 1930, com o crescimento econômico desencadeado no país, novas oportunidades profissionais foram abertas para as mulheres – secretária, enfermeira, assistente social -, e se firmaram como carreiras essencialmente femininas (DEMARTINI, ANTUNES, 1993). Desse modo, pode-se dizer que Loide Bonfim, ao fazer o curso de Enfermagem, também ingressava em uma carreira bem aceita socialmente para as mulheres, neste período. Na enfermagem, somou com os trabalhos desenvolvidos pelo médico Nelson de Araújo.
No ano de 1941, Loide Bonfim precisou se ausentar da Missão para realizar um tratamento de saúde. Nesse período de afastamento, conheceu e casou-se com o reverendo Orlando Andrade, com quem retornou para a Missão Caiuá no ano de 1943 para assumirem a direção, na qual permaneceram, assim como na Missão, até o ano de 1984. Tiveram três filhas biológicas, Sarita, Mary e Mirtes, e Aracy, uma indígena adotada pelo casal. Para os missionários protestantes, o casal desenvolvia os trabalhos de evangelização na Missão “[...] com habilidade, consagração e amor.” (O PURITANO, 25 dez. 1949, p. 2). Após sair da Missão Evangélica Caiuá, Loide Bonfim trabalhou com adolescentes ensinando-lhes, e ainda, participou do Projeto Semente da Prefeitura Municipal de Dourados. Faleceu no ano de 1990, em decorrência de um acidente vascular cerebral.
A missionária Loide Bonfim desenvolveu trabalhos que ajudou os indígenas a sobreviverem na Reserva diante das novas condições sociais, familiares, religiosas, econômicas e culturais que passaram a conviver no cenário multiétnico e multicultural que estava sendo construído na Reserva com as frentes de ocupação e colonização da região. A Figura que segue apresenta um desses momentos vivenciados pela professora Loide Bonfim com crianças indígenas.
A fotografia permite observar que a professora Loide Bonfim está com dois meninos indígenas, em que a criança maior segura a menor, em uma área aberta com a presença de árvores e plantações, como de pés de banana e mandioca. A área de mata da Reserva Indígena foi aos poucos sendo desmatada para dar lugar aos trabalhos agrícolas desenvolvidos pelos missionários protestantes e pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI) com os indígenas, e, para a construção das casas. Deste modo, a presença forçada dos indígenas na Reserva “[...] atingiu a maior parte da população e resultou em sérias dificuldades para a reprodução social de suas comunidades, com implicações que perduram até os dias atuais.” (PEREIRA, 2012, p. 124).
A professora Loide Bonfim manteve com as crianças e adultos indígenas relações que os assistiram na área social e da saúde, que contribuíram com as péssimas condições que passaram a viver na Reserva, um espaço não escolhido pelas etnias Kaiowá, Guarani e Terena. Nesse contexto, a apropriação “[...] visa uma história social dos usos e das interpretações, referidas a suas determinações fundamentais e inscritas nas práticas específicas que as produzem.” (CHARTIER, 1991, p. 180).
Deste modo, é importante conhecer os trabalhos desenvolvidos por Loide Bonfim na Missão Evangélica Caiuá e na Reserva Indígena de Dourados.
EDUCAR, EVANGELIZAR E CUIDAR DA SAÚDE NA RESERVA INDÍGENA: OS TRABALHOS DE LOIDE BONFIM ANDRADE
A professora Loide Bonfim realizou diversas funções na MEC, foi professora, enfermeira e evangelizadora, atuou na escola primária, na escola dominical, na igreja, no orfanato e no ambulatório médico com o médico Nelson de Araújo. Assim, para os missionários, as professoras que atuaram na MEC, entre elas Loide Bonfim, não ensinavam “[...] somente o conhecimento elementar da ciência humana [...]. Ensinam também uma coisa e muito mais vulto, o caminho da salvação por Nosso Senhor.” (O PURITANO, 10 ago. 1940, p. 4). Com o objetivo maior de evangelização, os missionários mantiveram contatos com os Kaiowá, Guarani e Terena para inserir uma nova cultura e novos conhecimentos dos não indígenas, escolhidos como civilizados.
É necessário frisar aqui que a entrada das moças nas escolas normais desencadeou, a partir do final do século XIX, um processo de feminização do magistério, e serviu para dar contornos mais definidos à profissão docente, na medida em que esse ingresso representava um caminho para as mulheres que precisavam trabalhar, como também para aquelas que desejavam estudar um pouco mais (LOURO, 1989, 2000; SOUSA, 2000). Loide Bonfim atuou como professora na Reserva Indígena de Dourados, apenas com a formação proporcionada por seu Curso Ginasial e pelo seu Curso de Teologia, sem ter a formação oferecida pela Escola Normal, que habilitava professores(as) para atuarem no ensino primário. Não se pode deixar de mencionar que, em alguns Estados brasileiros, como Mato Grosso, ainda no final dos anos de 1930, era muito comum encontrar professores(as) principalmente nas áreas rurais, atuando na profissão docente sem a habilitação específica para o exercício do magistério primário, na condição de professores(as) leigos(as), com a formação apenas do ensino primário ou ginasial, em alguns casos até incompleto, pois, além de ter poucos(as) professores(as) habilitados, esses(as) não aceitava(m) assumir as escolas situadas no meio rural. Porém, nesse cenário, pode-se dizer que Loide Bonfim era uma professora tida como leiga, que até se diferenciava de outros(as) professores(as) leigos(as) que atuavam em escolas rurais em Mato Grosso, nessa mesma época, devido à sua formação no Ginasial, na Teologia e por falar fluentemente o inglês.
Como Loide Bonfim era uma professora que também atuava com formação religiosa nas escolas da Missão Evangélica Caiuá, por sua formação no Curso de Teologia era responsável pela organização e ensaios do coro da Igreja Caiuá, formado pelos indígenas, que cantavam em português e guarani nos cultos e na escola dominical (O ESTANDARTE, 15 abr. 1953). A organização do coro esteve relacionada com os trabalhos de evangelização desenvolvidos pela professora, na igreja, na Reserva, nas casas dos indígenas e nos barracões construídos pelos indígenas na mata.
A professora Loide Bonfim apresentou, em matéria veiculada no jornal O Estandarte sobre os trabalhos desenvolvidos na Reserva Indígena, que: “[...] dou graças a Deus porque posso servi-lo aqui, desse modo tão simples. Depois de quase 11 anos no mato, sinto que faço parte desse mato, desse povo sujo, ‘mal cheiroso’ e ignorante!” (O ESTANDARTE, 15 nov. 1950, p. 5). A forma pela qual a professora se refere ao local e aos indígenas demonstra os estereótipos atribuídos aos indígenas, preconceitos que eram utilizados para justificar a necessidade dos trabalhos missionários, em especial, de evangelização e alfabetização. Embora a professora tenha se referido aos indígenas por meio de estereótipos, manteve com as crianças, adultos e idosos relações de proximidade e confiança. Os indígenas recorriam a Loide Bonfim para pedir ajuda quanto a remédios, roupas, alimentos, atendimentos médicos e para conversar. Ficou conhecida entre os indígenas como a Dona Loide. Cabe marcar que, não foram todos os indígenas que se aproximaram da Missão e dos missionários. Houve casos em que os indígenas se recusaram a manter contatos sociais, culturais, religiosos e educacionais. Essa atitude dos indígenas pode ser entendida a partir de Certeau (2014) que as etnias empreenderam táticas de resistência, sobrevivência, convivência e permanências. Visto que a tática “[...] não tem, portanto, a possibilidade de dar a si mesma um projeto global nem de totalizar o adversário num espaço distinto, visível e objetivável. Ela opera golpe a golpe, lance por lance.” (CERTEAU, 2014, p. 94-95).
Entre os missionários protestantes as atividades desenvolvidas pela professora Loide Bonfim eram vistas como:
[...] símbolo de perseverança e consagração. Nela nós vemos de modo positivo o que seja evangelho dinâmico. Loide Bonfim tem sido um exemplo vivo de altruísmo, vida verdadeiramente inspiradora, dedicada inteiramente ao trabalho entre os nossos irmãos indígenas, provando que o evangelho também tem poder sobre o coração dos selvícolas dos mais ínvios sertões do Brasil. (O ESTANDARTE, 15 maio, 1950, p. 7).
A atitude da professora e missionária de residir e trabalhar em uma região, na primeira metade do século XX, ainda tão distante em termos de acesso dos centros urbanos, realmente pode ser compreendida como presença de coragem, perseverança, dedicação e consagração na fé protestante. Loide Bonfim, em Dourados, passou a construir sua história enquanto missionária e professora, local em que também construiu sua vida pessoal. Mesmo que suas práticas tenham sido de ajuda para os indígenas, sua missão maior era evangelizá-los, com objetivo de distanciá-los das suas culturas, religiosidades e saberes tradicionais.
Na Reserva, diante dos contatos com os não indígenas, ocorreu o desenvolvimento das epidemias entre os indígenas, como: tuberculose, febre amarela, sarampo, malária, pneumonia, gripe, verminose, catapora, entre outras. A fotografia que segue apresenta a professora Loide Bonfim em um momento de vacinação na Reserva Indígena na década de 1950.
Os atendimentos realizados por Loide Bonfim e pelo médico Nelson de Araújo foram necessários e importantes para a saúde dos indígenas, assim como os medicamentos que recebiam no ambulatório médico e depois no hospital Porta da Esperança. Na Figura 2 pode-se observar o trabalho de Loide Bonfim como enfermeira, aplicando vacina nas crianças indígenas. Aparecem na fotografia Loide Bonfim, mulheres e crianças indígenas. Nota-se que as mulheres e a menina maior usam vestidos com comprimento abaixo do joelho, possivelmente uma influência da cultura religiosa protestante, posto que os indígenas recebiam doações de roupas dos metodistas e presbiterianos.
As aulas de costura e tecelagem ministradas pela professora Loide Bonfim também contribuíram na inserção da cultura não indígena entre os indígenas. Na Figura 3, aparece um grupo de mulheres indígenas que eram alunas nas aulas de costura e usam lenços na cabeça confeccionados durante as aulas.
É possível observar, na Figura 3, uma fotografia posada, possivelmente com o objetivo de divulgar, em especial para os protestantes, que os trabalhos desenvolvidos entre os indígenas estavam obtendo resultados. Os aprendizados recebidos nas aulas de costura ministradas pela professora Loide Bonfim embora tenham inserido novos conhecimentos e valores da cultura não indígena, pode ter contribuído com as mulheres indígenas no novo cenário multiétnico e multicultural que passaram a conviver na Reserva, em que tiveram que fazer uso das vestimentas dos não indígenas. Não se pode deixar de mencionar aqui que, nesse período em que Loide Bonfim ministrava essas aulas:
[...] o papel da mulher brasileira esteve influenciado pelo discurso ideológico da “costura” como “coisa de mulher”, que permeado por ideias educacionais rígidas reafirmavam os papéis indissociáveis de mãe, esposa e dona-de-casa exemplar, a quem a atuação profissional consistia em trabalhos que poderiam ser realizados no seio do lar, como maneira de servir aos filhos e marido e em último caso, de complementar a renda da família. (FRASQUETE, SIMILI, 2017, p. 270).
Nesse sentido, nota-se que a costura estava entrelaçada à imagem feminina no período, abrindo oportunidades às mulheres de executar esse aprendizado como trabalho doméstico ou até exercê-lo como atividade profissional, conseguindo levar renda para seus lares. No entanto, esses ensinamentos direcionados ao universo feminino, não se restringiram apenas às aulas de costura, na Reserva Indígena de Dourados, pois Loide Bonfim também ministrava, para as mulheres indígenas, aulas de tecelagem, ensinando-as a confecção de ponchos, que ajudava os indígenas nos dias de inverno. Desse modo, pode-se dizer que Loide Bonfim, com essas aulas, acabava contribuindo para que as indígenas construíssem o que na sociedade brasileira, no período, era tida como uma imagem feminina idealizada, conforme apontam Frasquete e Simili (2017).
Não podemos deixar de evidenciar que outra circunstância marcante na trajetória de Loide Bonfim na Reserva Indígena de Dourados foi o seu trabalho como professora na educação escolar dos indígenas. As aulas de alfabetização ministradas pela professora Loide Bonfim, mesmo inserindo conhecimentos e cultura dos não indígenas, por meio do ensino da Língua Portuguesa contribuiu para que os indígenas aprendessem conhecimentos e cultura dos não indígenas, e assim organizassem um modo cultural para sobreviverem e permanecerem com suas próprias culturas e saberes tradicionais. Construíam, desse modo, sua identidade e representações, visto que “[...] a identidade não se constrói racional e objetivamente, mas é resultante de um processo histórico ou de práticas sociais que se traduzem em representações.” (PESAVENTO, 1995, p. 121).
As aulas de alfabetização, evangelização, de costura, tecelagem e os atendimentos de enfermagem desenvolvidos por Loide Bonfim fizeram parte do projeto de catequização, assimilação, “civilização” e integração dos indígenas mas, também, contribuíram para que as etnias fossem obtendo conhecimentos para se relacionarem, assim como atendimentos em saúde para permanecerem vivos ante as epidemias, as queimaduras com fogo e os acidentes decorrentes de picadas de cobra e mordidas de onça.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Um artigo dessa natureza permitiu-nos compreender e refletir sobre a trajetória de mulheres que atuaram em regiões longínquas do país, situadas geograficamente fora dos grandes centros brasileiros, com os povos indígenas. Nesse contexto, foi possível notar, a partir da análise da trajetória de Loide Bonfim que, certamente, sua inserção na Reserva Indígena de Dourados vinculada ao trabalho da Missão Evangelizadora Caiuá foi influenciada pelo fato de ela e os irmãos terem sido adotados por um casal de missionários, o que inclusive a levou, após o término do Curso Ginasial, à escolha pelo Curso de Teologia em Minas Gerais.
Também foi possível observar que a trajetória de Loide Bonfim na Reserva Indígena de Dourados ocorreu junto a três frentes de trabalho distintas: como professora, missionária e enfermeira. Assim, atuando no campo da educação escolar e não escolar, no processo de evangelização e na área da saúde com os povos indígenas, ainda que boa parte de suas ações estivesse permeada pela inserção da cultura não indígena entre indígenas, essa mulher, com seus ensinamentos, contribuiu para melhorias nas condições de vida desses povos, tanto na saúde, na área social, como na alimentação e na vestimenta, que passou a ser necessária a partir dos contatos com não indígenas. Desse modo, contemplamos nesse artigo a trajetória de uma mulher simples, mas muito ativa em sua atuação, cujo trajeto tem muito a revelar sobre a história de mulheres que atuaram com povos indígenas, bem como sobre a história desses povos.
Diante disso, pode-se dizer que a trajetória de Loide Bonfim requer, além de reconhecimento, análise aprofundada, uma vez que vai ao encontro da história das mulheres e da história dos povos indígenas, em especial, em Mato Grosso, e de forma mais específica, atrelada à história da Reserva Indígena de Dourados e da Missão Evangélica Caiuá, com o trabalho desenvolvido por missionários e missionárias junto aos indígenas.
Ainda há de se ressaltar que, quando tratamos da trajetória de uma mulher como Loide Bonfim, que atuou ativamente junto à Reserva Indígena de Dourados como professora, missionária e enfermeira vinculada ao trabalho da Missão Evangélica Caiuá, acabamos por abordar a atuação de mulheres simples, mas ativas, resistentes em seu trabalho, e que enfrentaram muitas adversidades cotidianas. Por fim, esperamos que este artigo convoque outros pesquisadores a acrescentarem novos conhecimentos aos aqui expostos, dando continuidade a pesquisas que focalizam o estudo da história de outras mulheres que atuaram com povos indígenas, por não se esgotarem, aqui, possibilidades de investigação em torno da própria trajetória de Loide Bonfim na Reserva Indígena de Dourados.