BRASIL, MEU NEGO: DEIXA EU TE CONTAR
Brasil, meu nego
Deixa eu te contar
A história que a história não conta
O avesso do mesmo lugar
Na luta é que a gente se encontra1
O vocativo Brasil, separado por vírgula no samba enredo da Escola de Samba Estação Primeira da Mangueira, de imediato apresenta a característica da grandeza numérica da formação do nosso povo, expresso em forma de maioria de pessoas autodeclaradas pretas e pardas, ou seja, negras. No entanto, essa população, apesar de alguns avanços, ainda é sub-representada no que diz respeito à efetivação de direitos em seus cotidianos.
A Constituição de 1988 considera no Artigo 3, inciso XLI, que: "Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (BRASIL, 1988, p. 1-2). A carta magna, de maneira imperativa, nos apresenta objetivos basilares para uma sociedade equânime. Todavia, apesar da normativa, o racismo e todas as suas consequências se alastram de forma incisiva em nossa contemporaneidade.
A chamada da escola de samba Mangueira, entoando de forma aguerrida a voz para contar a história do povo negro, nos remete às ações da militância coletiva do Movimento Negro Unificado (MNU) nascido no final da década de 1970, 90 anos após a abolição da escravatura. A Constituição de 1988, embora não efetivada em sua totalidade, foi um dos primeiros documentos de cunho legal e jurídico da década de 1980 que foi fortemente influenciado pelos ideais do Movimento Negro, colocando a questão racial como pauta no país.
Os movimentos sociais de enfrentamento ao racismo perceberam que, para contar suas histórias, era necessário subverter o paradigma educacional realizado a partir da narrativa dos colonizadores e assim nascem as Leis n. 10.639/2003 e n. 11.645/2008, que inserem nas diretrizes e bases da educação nacional a obrigatoriedade do ensino da cultura africana, afro-brasileira e indígena nos currículos escolares. Tais leis buscam romper o colonialismo educacional num país de dimensões continentais tanto no seu contexto geográfico de inúmeras territorialidades, quanto na formação de seu povo. Buscam uma forma normativa de valorização da diversidade étnicoracial em todas as etapas e modalidades de ensino. Na esteira desse rol jurídico e legal, temos a Resolução n. 01/2004, do Conselho Nacional de Educação (CNE), que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais, como também as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, aprovadas pela Resolução n. 05/2009 do CNE, tornando a diversidade étnico-racial como parte dos princípios das DCNEI.
A inserção dessas políticas afirmativas, concebidas por conflitos e lutas de grupos sociais subjugados, atravessam os processos escolares e revelam uma tomada de consciência do Estado em relação à contribuição de outras bases epistemológicas e culturais, no que tange às questões étnico-raciais, fundantes da constituição do nosso povo e, por muitas vezes, inferiorizadas. Se faz importante destacar que a manutenção sistêmica de um modelo educacional epistemicida causa, segundo Santos (2016, p. 36), a “[...] destruição maciça de experiências e conhecimentos subordinados, considerados inadequados para servir ao projeto colonial”. Apesar dos avanços jurídicos e legais, percebemos ainda hoje que o processo de escolarização no qual estamos inseridos ratifica os modelos hegemônicos que não levam em conta as pluralidades sócio-raciais de nossos educandos. Candau (2014, p. 36), em seus estudos, evidencia “[...] o caráter em geral padronizador, homogeneizador e monocultural da educação, especialmente presente no que designamos como cultura escolar e cultura da escola”.
Na contramão desse modelo, as políticas afirmativas buscam a quebra do paradigma eurocentrista na intencionalidade de “[...] reconhecer experiências e conhecimentos invisibilizados e desvalorizados pelo pensamento colonial para pensar o futuro a partir de um presente dilatado, observando os sinais do presente como tendências ou embriões que podem ser decisivos no futuro” (SANTOS, 2016, p. 28).
Esse reconhecimento de epistemologias outras, para além das predominantemente inseridas nos currículos escolares, necessita também da adequada formação docente, e talvez aí esteja um dos pontos centrais para real efetivação das referidas leis. Cunha Jr. (2001) nos alerta sobre a propagação exacerbada do pensamento europeu nas universidades brasileiras, que reduz, enfaixa, cristaliza e provoca a necrose pensada, desconsiderando as outras formas de se fazer/pensar ciência. Nesse sentido, problematizamos e compreendemos a função indispensável da formação continuada, já que a inicial pouco ou nada contribui para a mudança do paradigma educacional.
Alinhada a essa compreensão, a Coordenação de Estudos Étnico-raciais (CEER), braço da Subsecretaria Pedagógica na Secretaria Municipal de Educação da Serra/ES (SEDU/Serra), vem promovendo desde 2010 formação continuada anual em Educação para as Relações Étnico-raciais (ERER) para os professores da rede. Em 2022, aconteceu entre maio e agosto a 12ª edição da formação, com carga horária total de 100h, subdivididas em 17 temáticas do currículo/contexto educativo. O curso Educação para as relações étnico-raciais na rede municipal de ensino da Serra: promovendo a diversidade na escola contou com um total de 14 concluintes das mais diversas áreas de conhecimento. A concepção e estruturação do curso foi fundamentada na prática formativa concebida pela interculturalidade, entendida como:
[...] processos sistemáticos de diálogo entre diversos sujeitos -individuais e coletivos-, saberes e práticas na perspectiva da afirmação da justiça - social, econômica, cognitiva e cultural -, assim como da construção de relações igualitárias entre grupos socioculturais e da democratização da sociedade, através de políticas que articulam direitos da igualdade e da diferença (CANDAU, 2014b apudCANDAU, 2020, p. 40).
Ao perceber as complexidades e singularidades de um processo que leva em conta não somente o cumprimento da ementa de saberes, mas também os agentes, ora professores formadores, ora docentes em formação, considerando-os enquanto agentes socioculturais numa ação dialógica de partilha, fala e escuta, que pretendemos compreender a produção de sentidos e seus desdobramentos no contexto de sala de aula dos professores cursistas, voltada para valorização e efetivação da educação das relações étnico-raciais. Para isso, o percurso metodológico deste estudo configura-se no âmbito do enfoque qualitativo de pesquisa-participante, com análise fundamentada na discussão crítico-reflexiva. Utilizamos como instrumentos de produção de dados a observação participante ao longo da formação e ferramentas como questionário do aplicativo google forms, diário de bordo e entrevistas, que serão analisadas ao longo deste trabalho.
DO PERCURSO METODOLÓGICO E DOS SUJEITOS DESSA HISTÓRIA
Tira a poeira dos porões Ô, abre alas pros teus heróis de barracões Dos Brasis que se faz um país de Lecis, Jamelões2
O processo metodológico deste trabalho perpassa por uma abordagem qualitativa do tipo participante, entendendo como Brandão (1998) que a pesquisa participante é um instrumento de trabalho na construção do conhecimento, tendo como objetivo compreender, intervir e transformar a realidade.
A realidade e espaço geográfico e social dessa pesquisa está situada no município da Serra, cidade mais populosa do estado do Espírito Santo, com quase 70% dos munícipes autodeclarados negros, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010. A rede de educação desta municipalidade atende em suas unidades de ensino em torno de 68 mil estudantes que também mantém esse perfil racial. Freire (1976) destaca que a realidade local é compreendida como ponto de partida para desenvolver a consciência crítica, a formação do sujeito ativo e comprometido com o processo social e histórico. A formação de professores, nesse contexto, é uma forma de intervenção nessa realidade que é atravessada por questões raciais.
A escolha por esse caminho se faz apropriada, pois parte das autoras deste texto são professoras da rede municipal de educação e compõem a equipe da CEER/SEDU/Serra responsável pela implementação das Leis n. 10.639/2003 e n. 11.645/2008 que sistematizou, acompanhou e participou, de forma efetiva, de todo percurso formativo. Entendemos que adentrar nesse processo proporciona compreender a produção de sentidos e seus desdobramentos no contexto de sala de aula dos professores cursistas, na busca da valorização e efetivação da Educação das Relações Étnico-Raciais. Nessa escolha consciente dos caminhos da pesquisa, entendemos, conforme Brandão (1998), que a relação de imersão dos pesquisadores sofre a influência, numa via de mão dupla, ao mesmo tempo que influencia os sujeitos participantes.
Assim como as pesquisadoras, os sujeitos da pesquisa são profissionais da educação da Serra. A predominância do gênero é feminino, ocupando 92,9% das vagas; quanto ao perfil raça/cor, 50% se autodeclaram pardas, seguido de 28,6% de pretos e 21,4% de brancos. Ao todo, participaram 14 cursistas, dentre efetivos e contratados de diferentes áreas de atuação, tais como: assessoramento pedagógico, professor MaPa da educação infantil e séries iniciais, professores das áreas de língua inglesa e artes.
Os dados foram produzidos ao longo de 14 encontros formativos ocorridos entre os meses de maio a agosto de 2022, como também em assessoramentos nas escolas onde aconteciam as ações pedagógicas dos professores cursistas. Utilizamos como ferramentas diários de bordo, entrevistas e questionários semiabertos e nossa análise será fundamentada na discussão críticoreflexiva, compreendendo a relação dialógica da pesquisa, baseada em Freire (2016).
HISTÓRIA QUE A HISTÓRIA NÃO CONTA
Brasil, meu dengo
A Mangueira chegou
Com versos que o livro apagou
Desde 1500 tem mais invasão do que descobrimento3
A contextualização da história da humanidade, de forma geral, privilegia alguns povos e sociedades de maneira muito evidente. Não há como negar as contribuições desses povos para a construção da sociedade na qual estamos inseridos, mas o apagamento das histórias de outros povos, tão importantes quanto os rotineiramente prestigiados, deveria provocar algum desconforto. Foucault traduz esse incômodo dos discursos que reverberam na construção da sociedade tal qual conhecemos. Para o autor, esse sentimento é a “[...] inquietação de sentir sob essa atividade, todavia cotidiana e cinzenta, poderes e perigos que mal se imagina; inquietação de supor lutas, vitórias, ferimentos, dominações, servidões” (FOUCAULT, 1996, p. 8).
Chimamanda Ngozi Adichie (2009)4, importante escritora nigeriana reconhecida em todo mundo, problematiza esse incômodo/inquietação nos fazendo refletir sobre “[...] os perigos de uma única história”. A autora nos convida a pensar sobre o protagonismo de alguns povos em detrimento de outros e como a relação de poder subsidia o que é importante ser mencionado e o que deve ser silenciado. Essa relação de poder mencionada por Adichie (2009) é explicitada por Foucault (1996) quando o filósofo expõe os mecanismos de controle da produção do discurso na sociedade que são intencionalmente selecionados, organizados e redistribuídos por “[...] certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade” (FOUCAULT, 1996, p. 8-9).
É nessa complexa trama de interesses entre o que é exposto e o que escondido que são construídas as narrativas e memórias de um povo. A intencionalidade aparente de como é propagada a história reforça o caráter hegemônico da sociedade. As políticas afirmativas de reparação visam romper com o discurso hegemônico e a história única. O Movimento Negro, ressignificando o que é ser negro no Brasil, e a conquista de leis que tornam obrigatório o ensino da História e Cultura Africana, afro-brasileira e indígena nas escolas da educação básica, nos desafia. Para Gomes (2003, p. 181), “Resta agora entendermos que mais do que um desafio, a discussão sobre raça negra e educação, nos seus múltiplos desdobramentos, é um dever dos educadores e educadoras e também daqueles responsáveis pela condução dos processos de formação docente”.
O curso anual de formação proposto pela Coordenação de Estudos Étnico-Raciais vai ao encontro do desafio proposto não só para os professores, mas também para os centros de formação de professores. O que sabemos sobre história e cultura afro-brasileira? O que sabemos sobre os povos indígenas que aqui viviam antes do período colonial? Como não reproduzir leituras e discussões estereotipadas sobre o negro e sua cultura? Que temas devemos priorizar dentro do vasto campo de estudo sobre a cultura afro-brasileira? Como a história e cultura local podem contribuir para a discussão da Educação para as Relações Étnico-Raciais?
O curso de formação continuada Educação para as Relações Étnico-Raciais na rede municipal de ensino da Serra: promovendo a diversidade na escola buscou desenvolver estudos que fundamentam e subsidiam o desenvolvimento de práticas pedagógicas plurais e antirracistas nas escolas municipais da Serra, numa perspectiva intercultural crítica, como aponta Candau (2020, p. 42), que reconhece e valoriza questões identitárias e apoia políticas de ação afirmativa no fortalecimento de processos de construção democrática. Os encontros planejados aconteceram de forma híbrida, no formato presencial e remoto, com encontros síncronos. Os/as professores/as formadores/as convidados/as abordaram as temáticas para Educação das Relações Étnico-Raciais, em intersecção com as áreas de conhecimento, numa perspectiva decolonial crítica e de valorização da cultura local, conforme apontado na Tabela 1.
Data | Tema | Professor(a) |
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14/05/22 (Presencial) |
ERER na escola | Profª. Ma. Juliana Lucas |
Educação das Relações Étnico-Raciais no ensino de Matemática | Profª. Ma. Joelma Rocha | |
18/05/22 (Remoto) |
Multiculturalismo e a prática de ensino para a diversidade | Prof. Dr. Aldieris Caprini |
25/05/22 (Remoto) |
Educação das Relações Étnico-Raciais na Educação Especial | Profª. Ma. Ione Duarte |
04/06/22 (Presencial) |
Educação das Relações Étnico-Raciais e Literatura Infantojuvenil | Profª. Rosângela Santos |
08/06/22 (Remoto) |
Educação das Relações Étnico-Raciais e Literatura Infantojuvenil | Profª. Dra. Débora Araújo |
22/06/22 | ERER e Arte | Profª. Danuza Brício (Remoto) Profª. Valeska Maria |
5/06/22 (Presencial) | Contextualizando a Educação das Relações ÉtnicoRaciais Educação das Relações Étnico-Raciais no ensino de Geografia |
Prof. Dr. Gustavo Forde Prof. Nourival Cardoso |
06/07/22 (Remoto) |
Educação das Relações Étnico-Raciais no ensino de História | Profª. Ma. Nádia Serafim |
13/07/22 (Remoto) |
Educação das Relações Étnico-Raciais no ensino de Ciências | Profª. Ma. Franciele Polez |
30/07/22 (Presencial) |
História e Cultura Indígena Educação das relações étnico-raciais no ensino de Educação Física |
Prof. Me. Welington Batista dos Anjos Profª. Ma. Heloísa Ivone da Silva |
03/08/22 (Remoto) |
Patrimônio Histórico da Serra | Profª. Ma. Hiléia Castro |
10/08/22 (Remoto) |
Mulheres Negras na Educação | Profª. Jamile Menezes da Silva |
17/08/22 (Remoto) |
Racismo Religioso | Profª. Ma. Geisa Huff |
27/08/22 (Presencial) |
Apresentação das práticas pedagógicas | Cursistas |
Fonte: Produção dos(as) autores(as), 2022.
O primeiro encontro teve como objetivo, inicialmente, realizar uma contextualização histórica dos percursos formativos da Coordenação de Estudos Étnico-Raciais, realizada pela coordenadora, uma escuta sensível dos cursistas sobre as expectativas e suas aproximações sobre a ERER. Para Candau (2014), pensar o educador como um agente sociocultural:
[...] é fundamental se queremos contribuir para que a escola seja reinventada e se afirme como um locus privilegiado de formação de novas identidades e mentalidades capazes de construir respostas, sempre com caráter histórico e provisório, para as grandes questões que enfrentamos na atualidade (CANDAU, 2014, p. 41).
No segundo momento, a Profa. Ma. Joelma Rocha problematizou a história hegemônica da matemática, as contribuições do continente africano, a etnomatemática proposta por Ubiratan D’Ambrosio e a Afroetnomatemática, de Henrique Cunha Júnior. O encontro terminou com a participação de todos no jogo awalé, que remete à semeadura, colheita e cosmovisão africana que compreende as pessoas em sua totalidade e interdependência.
A temática da descolonização do currículo e a formação docente foi abordada no encontro seguinte, num diálogo com o Prof. Dr. Aldieris Caprini, do programa de Mestrado Profissional em Ensino de Humanidades do Instituto Federal do Espírito Santo (PPGEH - IFES). Para Caprini, Aroreira e Serafim (2021), a epistemologia decolonial contribui para questionar os discursos colonizados em relação às heranças culturais africanas e indígenas, promovendo, portanto, por meio da formação de professores, práticas pedagógicas decoloniais críticas que valorizem a diversidade.
A necessidade de refletir sobre os muitos atravessamentos na formação da identidade dos sujeitos, especialmente das/dos crianças/estudantes negras/os, muitas vezes já excluídos dos espaços escolares e considerados menos aptos ou com alguma dificuldade de aprendizagem, foi abarcada pela Profª. Ione Duarte, trazendo uma interseção sobre raça e educação especial. Como indica Hall (2015, p. 11), a identidade é “[...] formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. É definida historicamente, e não biologicamente”.
A literatura infantojuvenil com temática africana e afro-brasileira foi o ponto de reflexão no quarto e quinto encontro, com a professora da rede municipal da Serra Rosângela Pereira dos Santos e da Profª. Dra. Débora Araújo, da Universidade Federal do Espírito Santo e coordenadora do grupo de pesquisa LitERÊtura. Para a maior parte dos/das cursistas, segundo a avaliação final, a temática da literatura foi a que mais contribuiu para sua prática docente. As novas tendências literárias, de acordo com Araújo (2018, p. 239), possibilitam vermos crianças negras “[...] vivenciando conflitos comuns a todas crianças, tendo orgulho do seu corpo e da sua história e podendo rememorar e reverenciar sua ancestralidade, marcada não somente na sua memória afetiva, mas, sobretudo, por seus corpos negros, seus cabelos crespos e olhares sempre atentos e altivos”.
Dentre as múltiplas linguagens que compõem o currículo, a arte é destacada na Lei n. 10.639/2003 como potência para o trabalho a partir da história e cultura africana e afro-brasileira na educação básica. As professoras de arte da rede municipal da Serra Valeska Mathias e Danuza Brício apresentaram práticas pedagógicas e artistas de diversos gêneros que potencializam, não só a valorização da cultura negra, mas também a riqueza e pluralidade artística.
O encontro com o militante do movimento negro capixaba e Prof. Dr. Gustavo Forde, da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), possibilitou uma contextualização da Educação para as Relações Étnico-raciais no contexto histórico do Espírito Santo, uma percepção potente sobre os modos de ser e agir numa sociedade estruturalmente racista, fazendo uma provocação para o (re)educar num processo de descolonização. O reflexo da movimentação do pensamento nessa direção é destacado na avaliação final do curso que aponta esse momento como o que mais impactou a percepção dos cursistas em relação à Educação para as Relações Étnico-Raciais.
Nos encontros com as temáticas de Educação das Relações Étnico-Raciais no ensino de História e Geografia, a Profª. Ma. Nádia Juliana Serafim e o Prof. Nourival Cardozo Júnior, seguiram uma perspectiva contra-hegemônica, segundo a qual as muitas histórias precisam ser contadas, fugindo da lógica do ensino eurocentrado, valorizando as heranças africanas e indígenas do Espírito Santo.
A temática no nono encontro, Educação das Relações Étnico-Raciais no ensino de Ciências, foi problematizada a partir do processo de evolução humana e como a ciência, por muito tempo, legitimou o discurso eugenista para justificar a escravização e a subjugação de etnias. Para a professora formadora Franciele Polez, é preciso superar o estereótipo primitivo sobre as questões africanas e afro-brasileiras no ensino de ciências buscando, assim, viabilizar uma formação cidadã.
O município da Serra é composto pela herança negra e indígena, muito mais que traços físicos, o extenso e rico patrimônio histórico-cultural material e imaterial estão presentes no território serrano. Essas raízes se encontram no vocabulário, na culinária, na medicina natural, nas festividades, na arquitetura, nos hábitos de higiene e saúde, entre outras coisas. Os encontros com o Prof. Ms. Welington Batista, da rede municipal de Vila Velha, e a Profª. Ma. Hiléia Castro, da rede municipal da Serra, buscaram colocar em evidência a relevância dessas heranças ancestrais no cotidiano das/dos crianças/estudantes.
A Profª. Ma. Heloísa Ivone da Silva, de Educação Física, da Prefeitura Municipal de Vitória, reavivou a memória dos cursistas, fazendo emergir a presença africana que existe na brasilidade. Assim como pontuado no caderno de atividades da coleção A cor da cultura5, é fundamental que trabalhemos a memória, pois é por meio dela que compreendemos a “[...] nossa existência, em toda a sua plenitude, no nosso modo de andar, cantar, sentir, ser gente, querer” (2006, p. 19).
A escritora Conceição Evaristo, com suas escrevivências, delineou o encontro formativo intitulado Mulheres Negras na Educação, com a mediação da professora e também escritora Jamile Menezes da Silva. Além de Evaristo, Carolina de Jesus e outras mulheres serviram de inspiração para pensar a (des)construção do papel da mulher negra na sociedade brasileira.
O penúltimo encontro, antes das apresentações das práticas pedagógicas desenvolvidas pelos cursistas nas escolas, teve como temática o Racismo Religioso. A Profª. Ma. Geisa Huff, do Centro Universitário da Espírito Santo (UNESC), dialogou com o grupo acerca da religiosidade como ancestralidade e herança histórico-cultural. De acordo com Gomes (2003, p. 170), “[...] a educação não se reduz à escolarização. Ela é um amplo processo, constituinte da nossa humanização, que se realiza em diversos espaços sociais: na família, na comunidade, no trabalho, nas ações coletivas, nos grupos culturais, nos movimentos sociais, na escola, entre outros”.
O processo de formação docente se faz na práxis, no currículo vivido. A dinâmica do fazer pedagógico é cotidiano, inconstante e desafiador. Segundo Freire (1993, p. 19), isso se dá pois:
[...] nos tornamos capazes de dizer o mundo, de conhecer, de ensinar o aprendido e de aprender o ensinado, refazendo o aprendido, melhorando o ensinar. Foi exatamente porque nos tornamos capazes de dizer o mundo, na medida em que o transformávamos, em que o reinventávamos, que terminamos por nos tornar ensinantes e aprendizes.
É nesse fluir de ensinar ao aprender e aprender ao ensinar, que a prática pedagógica na escola movimenta e potencializa a Educação para as Relações Étnico-raciais. Para além da composição de carga horária do curso e pré-requisito para a certificação, as apresentações de práticas nas escolas criam espaços e dão sentido para ação docente contra-hegemônica.
O AVESSO DO MESMO LUGAR
O currículo imposto e exposto pelo lugar eurocêntrico, tal qual como conhecemos, transmite somente um modo de produção de conhecimento legitimado pelo colonizador. De acordo com Apple (1994), o currículo não é um documento neutro, ele está intimamente relacionado ao poder. É consequência de uma seleção e da visão de determinado grupo acerca do que seja conhecimento legítimo.
Esse lugar de privilégio do saber cerceia a historicidade epistemológica da humanidade tornando-a embrutecida e estática diante das complexidades da vida humana em sua narrativa no tempo, espaços e culturas. Compactuar com essa narrativa é nos restringir e negar nossa totalidade. No entanto, Santos (2016, p. 28) nos alerta que não devemos rechaçar a ciência e o pensamento europeu, mas sim reconhecer as suas lacunas e incompletudes. Pensar o currículo fora dessa compressão limitada de produção do conhecimento é vislumbrar outros possíveis e narrativas na/da multiplicidade epistemológica do ser.
O professor Paulo Freire (2016) nos apresenta a ação educativa como meio de transformação do paradigma excludente, esse mesmo paradigma que legitima o currículo colonizado. Para o autor, a prática docente, de uma forma esperançosa, possibilita a mudança do mundo em consequência da mudança das pessoas. Freire (2016, p. 154) concebe que é “[...] através de sua permanente ação transformadora da realidade objetiva, os homens, simultaneamente, criam a história [...]”. Com essa postura intencional da responsabilidade de intervenção no mundo que os professores matriculados e estimulados pelo curso Educação para as Relações Étnico-Raciais na rede municipal de ensino da Serra: promovendo a diversidade na escola se deslocaram do ato passivo de reprodução de saberes, e consequentemente manutenção do status quo, para um agir consciente das questões que atravessam as relações étnico-raciais. Entendendo, assim como Freire (2016), que o ser humano é sujeito ativo de/em transformação, que age no mundo e rompe com os fatalismos e determinismos de uma sociedade pautada pela desigualdade.
As problematizações e novas percepções que ocorriam de forma dialógica ao longo do curso propiciaram práticas no contexto de sala de aula que os deslocaram do lugar comum, demonstrando na ação consciente, crítica e reflexiva o avesso do mesmo lugar do currículo, dando espaço, função e sentido à ação docente que busca a emancipação sociorracial.
Assim, os docentes concluintes elaboraram suas práticas em suas respectivas escolas e áreas de atuação, no decorrer dos quatro meses do curso. No último encontro, culminância das ações, os cursistas apresentaram os projetos desenvolvidos, ou em desenvolvimento, para todo grupo. Obtivemos um total de 14 projetos subdivididos em diversas ações pedagógicas, conforme a Tabela 2 a seguir.
Atuação do Cursista |
Tipo de unidade educativa | Profissionais envolvidos | Projeto/ação pedagógica desenvolvida | Crianças/estu dantes contempladas (os) |
|
---|---|---|---|---|---|
1 | Assessora Pedagógica |
CMEI Vila Nova de Colares |
Todos os profissionais da unidade de ensino | Oficina Lápis Cor de Pele Bolsateca Livro-Parede Expo-Barbie |
200 |
2 | Professora | EMEF Leonel de Moura Brizola |
Professora regente e pedagoga | Roda Literária - A África e suas muitas histórias | 25 |
3 | Professora | EMEF Antônio Vieira de Rezende |
Professora Regente, cuidadora e estagiária |
Valorizando a identidade negra na escola | 24 |
4 | Professora | EMEF Herbert de Souza | Professoras regentes, professor de Artes, ensino religioso, educação física e língua inglesa | Africanidades e interdisciplinaridade na formação integral do estudante | 52 |
5 | Professor | EMEF Governador Carlos Lindemberg |
Professor de língua Inglesa e pedagoga | A Liberdade no Queimado | 195 |
6 | Professora | EMEF Leonel de Moura Brizola |
Professoras regentes | Projeto Queimado: "Conhecendo as raízes e valorizando o presente" | 52 |
7 | Assessora pedagógica |
Gerência de educação infantil | Assessora pedagógica | Reflexões sobre a educação para as relações Étnico-Raciais no contexto da educação infantil |
7 |
8 | Professora | EMEF Centro de Jacaraípe | Professora; Pedagoga | Projeto: Abayomi: Construindo uma educação antirracista | 25 |
9 | Professora | EMEF São Diogo | Professora; Pedagoga | Somos assim: Sequência iniciada com o livro - Olelê | 25 |
10 | Pedagoga | CMEI Espaço Feliz |
Professoras Regentes; Pedagoga |
Este é o meu cabelo | 75 |
11 | Professora da educação especial | EMEF Carla Patricia |
Professora Regentes; Professora da educação especial; Professora de artes |
Projeto - Tranças, traços e movimentos: Nossas heranças culturais africanas |
18 |
12 | Professora de artes |
EMEF São Diogo | Professora de artes | Somos de todas as cores Respeitando as diferenças | 50 |
13 | Pedagoga | EMEF Irmã Dulce |
Pedagoga e professoras regentes | Produção de diário coletivo virtual - Carolinas Marias e Josés | 100 |
14 | Pedagoga | EMEF Luiz Baptista |
Pedagoga, professoras regentes, e professora de Artes |
As muitas Carolinas da EJA | 50 |
Fonte: Produção dos(as) autores(as), 2022.
As ações e projetos dos 14 docentes cursistas contemplaram diretamente 898 crianças/estudantes e ainda contaram com o envolvimento e parceria de outros profissionais das Unidades de Ensino, ampliando e mobilizando boa parte das escolas. A abordagem de valorização do conhecimento plural numa perspectiva decolonial crítica do saber, trabalhados nos conteúdos das disciplinas de história, geografia, literatura, matemática, artes, ciências e língua inglesa, consequentemente, provocou o empoderamento racial dos educandos. Além disso, os docentes relataram que, pela dialogicidade entre teoria e prática, que os atravessavam num movimento contínuo de pensar, fazer e pensar sobre o fazer, também trouxe implicações raciais e identitárias que afetaram as suas próprias percepções enquanto sujeitos.
Tal compreensão é apresentada na reflexão por meio da qual uma das docentes expõe que: "O curso permitiu sair da zona de conforto e me engajou para ser uma professora crítica e pesquisadora, além de impactar minhas práticas pedagógicas e vivências pessoais em relação a minha própria identidade” (Profª. MaPa anos iniciais do ensino fundamental). Pensamento esse também partilhado por outras cursistas ao compartilharem que: “A formação não só traz um impacto na nossa vida profissional, com as práticas educativas, mas também uma formação humana e de entendimento das nossas raízes” (Profª. MaPa educação infantil). Percepção endossada, ainda, por outra cursista, ao expor que: “O curso foi muito além para as cursistas, foi mudança no nosso modo de nos olhar e reconhecer a nossa identidade negra” (Profª. MaPa educação infantil).
Entendemos que essa produção de sentidos dos docentes em relação à própria identidade étnico-racial se manifesta enquanto movimento necessário de um processo formativo que se caracteriza pela humanização das trocas e partilha de experienciações um com outro, pois compreendemos, assim como Candau (2014, p. 38), que “[...] ser conscientes de nossos enraizamentos culturais, dos processos de hibridização e de negação e silenciamento de determinados pertencimentos culturais, sendo capazes de reconhecê-los, nomeá-los e trabalhá-los constitui um exercício fundamental”. O educador que se apropria ou tem uma postura empática com a questão sociorracial se desloca do lugar do sentir para também agir no mundo. Assim, o caráter formativo que privilegia o docente enquanto agente sociocultural se manifesta na dimensão individual e coletiva.
Dessa forma, observamos, na prática, a partir do desenvolvimento dos conteúdos numa perspectiva decolonial crítica, e pelos atravessamentos deste trabalho nos sujeitos discentes e docentes cursistas, que o lugar de apropriação e produção de saber plural não está relacionado à aquisição de um conjunto de saberes e de práticas restritivas, mas intimamente conectado à possibilidade de conhecer e exceder visões ingênuas e fragmentadas, ampliando a capacidade de leitura crítica do mundo, com influência mútua de distintas visões. Enquanto o lugar colonizado é centralizado e convergente, o avesso do mesmo lugar irradia currículos outros.
NA LUTA É QUE A GENTE SE ENCONTRA
Passados 19 anos da aprovação da obrigatoriedade do ensino de história africana e afrobrasileira nas escolas de ensino básico, educar para as relações étnico-raciais ainda é um desafio. A formação de professores e o trabalho pedagógico realizado com a temática racial, além de uma exigência legal, é um compromisso ético e moral na busca pela diminuição das desigualdades raciais. Para a Profª. Nilma Lino Gomes (2021, p. 452), “[...] o trato das semelhanças e diferenças com dignidade deveria ser o eixo norteador de todos os currículos, da formação, das práticas e da competência pedagógica e acadêmica de todas e todos que se dedicam à educação e a pesquisa no Brasil”.
A questão racial atinge nossas subjetividades, valores, crenças, histórias de vidas, posicionamentos políticos e ideológicos. Na fala de uma cursista, discutir Educação para as Relações Étnico-raciais “[...] despertou a me movimentar mais intensamente na luta por promover uma educação antirracista na escola” (Profª. MaPa anos iniciais do ensino fundamental). Sim, ainda estamos na luta.
O combate ao racismo perpassa por discussões que questionem os currículos colonizados e proponham novas formas de ser e estar no mundo. Somente assim é possível uma educação antirracista. As/os crianças/estudantes, à medida que compreendem a sua realidade e a desigualdade racial no nosso país, se constituem como sujeitos integrados ao contexto em que vivem, discernindo, criando e recriando, se objetivando e, assim, se apropriando da história e da cultura (FREIRE, 1979).
Nessa realidade, a formação de professores é fundamental para o rompimento com caráter monocultural da escola e construção de práticas educativas em que a questão das diferenças se faça cada vez mais presente (CANDAU, 2014). Como apontado por outra professora participante, o processo formativo proporcionou “[...] conhecimento nos conteúdos conceituais e epistemológicos, e propostas metodológicas para contribuir com a práxis escolar. Os momentos de discussões, reflexões e trocas de experiências também foram fomentadores para que nós cursistas realimentassem nossa atuação como educadores antirracistas” (Profª. MaPb educação de jovens e adultos).
A compreensão de que a interculturalidade é um processo de elaboração, de construção e reconstrução, e que cada cultura tem suas raízes, mas estas raízes são históricas e dinâmicas (CANDAU, 2020) traz uma tomada de consciência num caminho sem volta. Para Freire (1979, p. 15), “A conscientização é um compromisso histórico. É também consciência histórica: é inserção crítica na história, implica que os homens assumam o papel de sujeitos que fazem e refazem o mundo”.
A participação dos profissionais da educação no processo formativo e seus desdobramentos nas práticas pedagógicas elencadas nesse texto demonstram a importância desses profissionais como agentes transformadores, que fomentam o desenvolvimento pessoal e social das/dos crianças/estudantes, numa ótica sociocultural que aguça a produção de conhecimentos com sentidos, compreendendo as diferenças e singularidades dos sujeitos, contribuindo, dessa forma, para uma educação equânime e inclusiva.