INTRODUÇÃO
O ano de 2015 foi marcado pela epidemia do Vírus Zika principalmente nas regiões Nordeste e Sudeste do Brasil. Com base em boletins epidemiológicos dados mostram que no período de 2015 a 2020 foram notificados ao Ministério da Saúde 19.622 casos suspeitos de Síndrome Congênita do Zika Vírus (SCZV), dos quais 3.577 (18,2%) foram confirmados (BRASIL, 2020). E nesse mesmo período de cinco anos a maioria dos casos confirmados concentrou-se na região Nordeste (n=2.207; 61,9%) do país, seguido da região Sudeste (n=735; 20,6%) (BRASIL, 2020).
A transmissão do Zika Vírus, por meio da picada do Aedes Aegypti chamou muita atenção da mídia em 2015, principalmente em função dos casos de crianças nascidas com microcefalia – condição que estudos recentes evidenciaram que não está presente em todas as crianças com a SCZV (JANSEN, 2020). O maior impacto foi vivido por pessoas que moram na periferia, onde há falta de estrutura de saneamento básico (MARQUES et al., 2021). Em outros termos, a infecção pelo Zika Vírus ocorre no período fetal, sinais e sintomas podem ser identificados no momento do nascimento do bebê ou como também podem ser visualizados tardiamente, ou seja, são bebês que nascem assintomáticos para SCZV. Diante disso, pode ocorrer uma identificação ao longo prazo mediante a manifestações de atrasos no desenvolvimento e na condição de saúde dessas crianças (PLETSCH, SÁ, ROCHA, 2021).
No que se refere à deficiência múltipla causada pela SCZV observa-se um quadro clínico complexo, que potencialmente repercute e afeta o cotidiano das crianças com a SCZV. Estudos apontam para a associação de condições, tais como: a calcificação intracraniana e volume cerebral diminuído, hipertonia, convulsões, anormalidades oftálmicas, artrogripose cardíaca e outras condições e atraso no desenvolvimento, microcefalia ou outras alterações do sistema nervoso central abarcam as funcionalidades motoras, visuais, de alimentação e cognição (MENDES et al., 2020; SÁ et al., 2019; JANSEM, 2020). Vale lembrar que a SCZV leva a uma combinação de deficiências (em geral, deficiência intelectual, visual e/ou motora) compatível com quadros de deficiência múltipla. Ou seja, é uma “[...] condição heterogênea que identifica grupos de pessoas, revelando associações diversas de deficiência que afetam, mais ou menos intensamente, o funcionamento individual e o relacionamento social” (CARVALHO, 2000, p. 47).
Nos últimos anos há um aumento das matrículas de pessoas com deficiência múltipla em escolas comuns de ensino entre 1974 e 2021 como uma resposta da população brasileira às políticas educacionais e pela opção de escolha das famílias por não matricular seus filhos em instituições especializadas (REBELO, PLETSCH, 2023). No Brasil, em 2022 haviam matriculados 65.286 alunos com deficiência múltipla em escolas regulares e outras 21.055 matrículas em classes exclusivas, totalizando 86.341 (BRASIL, 2022). Esse número mudou pouco se comparado ao cenário apresentado no censo escolar de 2021 quando foram totalizadas 86.062 matrículas de alunos com essa condição (BRASIL, 2021).
Tomando essa realidade como base, este artigo discute a escolarização de alunos com deficiência múltipla, principalmente aquelas acometidas pela SCZV e apresenta indicadores de matrículas dessa população na Baixada Fluminense, região constituída por 13 municípios e uma população de quase 4 milhões de habitantes. Como problemática, elencamos os seguintes questionamentos: quais são os números de matrículas desse grupo de alunos em classes comuns nos municípios da Baixada Fluminense abrangendo o período entre 2018 a 2022? Quais são as percepções dos profissionais da educação sobre a escolarização de crianças com a deficiência múltipla, em decorrência da SCZV?
ASPECTOS METODOLÓGICOS, ÉTICOS E APRESENTAÇÃO DOS PARTICIPANTES DA PESQUISA
O estudo integra um projeto guarda-chuva interinstitucional e multidisciplinar, aprovado pelo protocolo de ética 135/2021, desenvolvido a partir um conjunto de estudos e de ações intersetoriais de educação, saúde e assistência social na promoção da escolarização e do desenvolvimento integral de crianças com SCZV na Baixada Fluminense (PLETSCH, 2019). A investigação é realizada a partir de parcerias com secretarias de educação e escolas de municípios da Baixada e Sul Fluminense que integram o fórum permanente de educação especial na perspectiva da educação inclusiva do Sul e Baixada Fluminense formado por gestores públicos de educação especial de 11 redes educacionais (9 da Baixada e 2 do Sul Fluminense) e pesquisadores de duas universidades públicas (UFRRJ - Campus de Nova Iguaçu e UERJ - Campus de Duque de Caxias).
Dados empíricos foram produzidos com base nas sinopses estatísticas da educação básica do censo escolar abrangendo o período entre 2018 e 2022, disponibilizados na página web do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP, BRASIL, 2018; 2019; 2020; 2021; 2022). O Inep, em colaboração com as secretarias estaduais e municipais de educação, coordena o Censo Escolar, sendo este uma pesquisa estatística importante para visualizarmos informações da educação básica nacional. O levantamento abarca todas as escolas públicas e privadas, bem como abrange as diferentes etapas e modalidades da educação básica: ensino regular, educação especial, educação de jovens e adultos (EJA) e educação profissional.
O levantamento incluiu informações da região Sudeste do Brasil, focando no estado do Rio de Janeiro e, especialmente, nos municípios da Baixada Fluminense. O perfil de deficiência analisado foi o da deficiência múltipla e as informações referentes aos números de matrículas da educação especial em classes comuns ou classes exclusivas (escolas e classes especializadas), abarcando todas as etapas de ensino. Também foram inseridos indicadores recolhidos junto aos membros do fórum permanente de educação especial na perspectiva da educação inclusiva do Sul e Baixada Fluminense. Tais indicadores foram organizados em tabelas e serão apresentados ao longo do texto.
Também foram realizadas entrevistas semiestruturadas com seis profissionais da educação de uma escola de educação infantil de um dos municípios que integram o fórum anteriormente citado. As entrevistas ocorreram em abril de 2022 de forma presencial com duração entre 24 minutos e 1 hora e 30 minutos. As profissionais da educação tinham entre 25 e 50 anos de idade e suas funções dentro da escola poderão ser visualizadas na Tabela 1, apresentada a seguir. A escola está situada em um bairro distante do centro da cidade. No período da pesquisa, a escola contava com 244 alunos matriculados, distribuídos em 13 turmas em horário parcial, sendo uma turma em horário integral. Havia dez alunos com deficiência nesta escola, sendo dois meninos com cinco anos de idade com diagnóstico de SCZV. Além deles, a escola tinha outros três alunos em investigação com outras especificações. A escola conta com uma sala de recursos, implementada no segundo semestre de 2021.
Participantes2 | Função | Caracterização |
---|---|---|
Margarida | Mediadora Escolar | Tem formação em pedagogia. Possui 5 anos de experiência na educação e começou a trabalhar na escola em fevereiro de 2022. |
Dália | Professora da classe comum | Tem formação em pedagogia e pós-graduação em prática de letramento. Possui 10 anos de experiência na educação e começou a trabalhar na escola em maio de 2021. |
Íris | Professora da classe comum | Tem formação em pedagogia e letras Libras. Possui 21 anos de experiência na educação e começou a trabalhar na escola em maio de 2021. |
Amarílis | Coordenadora Pedagógica | Tem formação em pedagogia e pós-graduação em metodologia de ensino. Possui 29 anos de experiência na educação, sendo 8 anos atuando na escola. |
Ana | Diretora | Tem formação em pedagogia. Pós-graduação em administração escolar e em orientação educacional. Possui 34 anos de experiência na educação, sendo 9 anos atuando na escola. |
Rosa | Vice-diretora | Tem formação em pedagogia e pós em educação inclusiva. Possui cerca de 20 anos de experiência na educação. Soma 13 anos de experiência na escola. Foi a primeira professora desta escola a receber um aluno com SCZV. |
Fonte: Elaborada pelos autores (2022).
Todas as entrevistas foram gravadas em áudio e a análise dos dados se iniciou com a organização das entrevistas no software Atlas.ti (2022)3. A análise temática foi realizada a partir da identificação e análise dos padrões de recorrência nos dados. Neste estudo, focamos em discussões sobre inclusão escolar de alunos com SCZV abarcando aspectos como a chegada das crianças na escola, a relação com os colegas e sua participação nas atividades escolares.
A INCLUSÃO ESCOLAR EM NÚMEROS: INDICADORES EDUCACIONAIS DA BAIXADA FLUMINENSE
Com base nos dados estatísticas da educação básica do MEC/Inep de 2021 e 2022 no Brasil o público de alunos com deficiência múltipla ocupou em 2022 um total de 65.286 matrículas em classes comuns (BRASIL, 2022) e no ano anterior, o número de matrículas foi de 63.007 (BRASIL, 2021). Desse mesmo grupo de alunos, em classes exclusivas em 2022 foram totalizadas 21.055 matrículas, enquanto no ano anterior foram ocupadas 23.055 matrículas (BRASIL, 2021; 2022). A deficiência múltipla aparece como na quinta posição mais prevalente no cenário das escolas regulares a nível nacional e a quarta no estado do Rio de Janeiro.
Na Tabela 2, exibimos informações sobre as matrículas em classes comuns dos alunos com deficiência múltipla no Estado do Rio de Janeiro no período de 2018 a 2022. É notável um aumento no número de matrículas no período de 2018 até o ano de 2020. Todavia, nos dois anos seguintes houve um decréscimo de matrículas em classes comuns no estado do Rio de Janeiro de alunos com deficiência múltipla apesar da chegada das crianças com SCZV na escola, sobretudo após o retorno presencial em 2021 e 2022.
Ano | Número de Matrículas |
---|---|
2018 | 3.253 |
2019 | 3.704 |
2020 | 4.599 |
2021 | 4.592 |
2022 | 4.261 |
Fonte: Elaborada pelas autoras com base nas sinopses estatísticas da educação básica do MEC/Inep de 2018 a 2022.
A Baixada Fluminense é a segunda região mais populosa do estado, em primeiro lugar está o município do Rio de Janeiro. Trata-se de um cenário que lida com uma diversidade de problemas no âmbito das desigualdades sociais e ambientais. A mais de 14 anos o Observatório de Educação Especial e Inclusão Educacional (ObEE) vem realizando um conjunto de pesquisas sobre a estrutura, o funcionamento das redes de ensino no que concerne esta região e mais especificamente desde 2018 tem focado na escolarização das crianças com a SCZV.
As informações obtidas no censo escolar e apresentadas na Tabela 3 comparam os números de matrículas da educação especial e da deficiência múltipla na Baixada Fluminense em 2021 e 2022 (BRASIL, 2021, 2022). Importante destacar que no censo escolar os dados sobre o número de matrículas de alunos com SCZV estão abarcados no grupo de alunos com deficiência múltipla. Estas informações são oriundas do banco de dados do ObEE colhidas junto às gestoras de educação especial que integram o fórum permanente de educação especial na perspectiva da educação inclusiva do Sul e Baixada Fluminense.
Ano Município |
2021 | 2022 | ||
---|---|---|---|---|
Educação Especial | Deficiência Múltipla | Educação Especial | Deficiência Múltipla | |
Belford Roxo | 2.066 | 77 | 2.454 | 87 |
Duque de Caxias | 4.604 | 293 | 5.425 | 307 |
Guapimirim | 294 | 13 | 459 | 15 |
Itaguaí | 501 | 40 | 590 | 38 |
Japeri | 337 | 27 | 342 | 24 |
Magé | 2.307 | 101 | 2.423 | 107 |
Mesquita | 954 | 58 | 1.066 | 75 |
Nilópolis | 584 | 28 | 677 | 30 |
Nova Iguaçu | 3.223 | 205 | 3.579 | 211 |
Paracambi | 254 | 14 | 288 | 13 |
Queimados | 902 | 39 | 1.067 | 56 |
São João de Meriti | 1.930 | 85 | 2.371 | 104 |
Seropédica | 407 | 32 | 488 | 37 |
TOTAL | 18.363 | 1.012 | 21.229 | 1.104 |
Fonte: Elaborada pelas autoras com base nas sinopses estatísticas da educação básica do MEC/Inep de 2021 e 2022 e dados fornecidos pelas gestoras de educação especial ao ObEE.
Dando seguimento, se olharmos atentamente para a Tabela 4 identificamos um aumento progressivo no número de matrículas de alunos com deficiência múltipla em municípios da Baixada Fluminense no período de 2018 até 2022.
Município | 2018 | 2019 | 2020 | 2021 | 2022 |
---|---|---|---|---|---|
Belford Roxo | 56 | 62 | 70 | 69 | 73 |
Duque de Caxias | 165 | 186 | 208 | 199 | 216 |
Guapimirim | 13 | 16 | 14 | 11 | 6 |
Itaguaí | 52 | 38 | 41 | 37 | 35 |
Japeri | 18 | 28 | 27 | 26 | 24 |
Magé | 48 | 64 | 77 | 86 | 94 |
Mesquita | 29 | 27 | 36 | 33 | 49 |
Nilópolis | 20 | 26 | 24 | 22 | 21 |
Nova Iguaçu | 129 | 162 | 161 | 169 | 173 |
Paracambi | 7 | 8 | 9 | 10 | 9 |
Queimados | 38 | 37 | 36 | 39 | 56 |
São João de Meriti | 50 | 53 | 54 | 54 | 75 |
Seropédica | 5 | 7 | 9 | 16 | 21 |
Total | 630 | 714 | 766 | 771 | 852 |
Fonte: elaborada pelas autoras com base nas sinopses estatísticas da educação básica do MEC/Inep de 2018 a 2022.
Cabe, neste momento, retomar a Tabela 2 sobre o âmbito estadual, quando se apresenta que, no período entre 2021 e 2022, ocorreu uma diminuição no número de matrículas deste grupo de alunos em classes comuns contrariando os dados da Baixada Fluminense, que mostram um aumento anual nas matrículas em escolas comuns.
Uma relação importante precisa ser apresentada neste momento, pois estamos tratando de um contexto temporal no qual as escolas retomam as aulas presenciais após um período de aulas remotas em razão da pandemia do Covid-19. Sobre esse período, duas das profissionais entrevistadas neste estudo se manifestaram nas entrevistas, são elas: Amarílis, a coordenadora pedagógica da escola e Ana, a diretora. Ana destacou a importância da manutenção de vínculos com as crianças e famílias, com atenção especial àquelas que estavam se distanciando do contato com a escola em razão do contexto pandêmico. O cenário de aulas remotas nesta escola envolveu o período entre abril de 2020 e setembro de 2021. Os contatos foram cultivados por meio de um aplicativo de mensagens instantâneas para celulares e de uma rede social da escola, como Ana explica a seguir:
Nós formamos o grupo no WhatsApp. As mães ficaram maravilhadas [...] elas davam retorno. Elas participaram bastante. Essa, assim, foi uma das coisas mais importantes nesse período da pandemia. Foi essa participação. Nós, enquanto profissionais, não esperávamos que fosse tão grande. E assim, elas valorizavam, elas queriam ver o filho lá na página da escola. Então elas davam retorno muito grande para a gente. (Trecho da entrevista com a diretora Ana).
Para Amarílis, neste período, houve um empenho no nível municipal de combate à evasão escolar por meio do uso do programa Busca Ativa Escolar, que é um projeto desenvolvido pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). O objetivo deste projeto é apoiar os municípios na identificação, registro, controle e acompanhamento de crianças e adolescentes que estão fora da escola ou em risco de evasão. Dos 13 municípios da Baixada Fluminense apenas dois, Nilópolis e Mesquita, não aderiram à busca ativa escolar4.
Como já visto na literatura, considerando o quadro da SCZV, é imprescindível que práticas de trabalho na escolarização sejam planejadas para abarcar a diversidade do desenvolvimento destas crianças. A inclusão escolar de todo aluno com deficiência, seja qual for a sua condição, é um direito conquistado e é dever dos municípios e estados ofertar vagas que atendam a demandas de matrículas por etapa de ensino e idade dos alunos. Na prática, como indica Pletsch, mais de 50% das crianças com a SCZV ainda não foram matriculadas nas escolas na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, apesar da idade (FAPERJ, 2023)5. Logo, considerando que alunos com a SCZV apresentam condições compatíveis com o quadro da deficiência múltipla, os números de matrículas deste grupo de alunos poderiam ser maiores na região especificada.
O DIÁLOGO COM A ESCOLA
Toda criança tem direito a estar na educação infantil, que é a primeira etapa na caminhada da escolarização. Nos últimos anos, estudos discutiram sobre a epidemia gerada pelo vírus da Zika estendendo os debates para o desenvolvimento das crianças, inclusive abarcando o ingresso da criança na educação infantil (ANTONIOLI, CAMPOS, PLETSCH, 2021; AVELINO, FERRAZ, 2021; PLETSCH, ARAÚJO, ROCHA, 2020; SÁ et al., 2019; SÁ, PLETSCH, 2021). A inclusão na educação infantil, conforme expresso na política de educação especial na perspectiva da educação inclusiva mostra-se importante, pois é nesta etapa em que “[...] o lúdico, o acesso às formas diferenciadas de comunicação, a riqueza de estímulos nos aspectos físicos, emocionais, cognitivos, psicomotores e sociais e a convivência com as diferenças favorecem as relações interpessoais, o respeito e a valorização da criança.” (BRASIL, 2008, p. 16).
Nesta pesquisa, dois alunos de 5 anos de idade, aqui chamados pelos nomes fictícios de Otávio e Vicente, diagnosticados com SCZV, encontram-se matriculados em uma escola de educação infantil. São crianças que se divertem com os colegas da turma, participam das aulas e são atentos às explicações das professoras. Otávio é um menino sorridente que adora músicas, usa cadeiras de rodas, não oraliza e apresenta maior necessidade de suporte. Vicente se comunica oralmente, gosta de ouvir histórias, adora super-heróis e de brincar no parquinho da escola. Vicente foi o primeiro aluno com a SCZV a entrar na escola, na época ainda com 1 ano e 8 meses.
Antes mesmo de chegarem à escola, podemos inferir, com base no relato da diretora da escola, que alunos com a SCZV já eram aguardados, “[...] quando começou a se falar da síndrome [...] já veio no nosso pensamento, daqui uns 2 anos essas crianças já estarão sendo matriculadas, o que vai ser feito?” (Trecho da entrevista com a diretora Ana). Sobre o primeiro aluno que chegou na escola, a Professora Rosa, que recebeu Vicente, fez o seguinte relato:
Ele chegou aqui [...] ele ia (engatinhava) de bundinha. Aí ele fugia da sala, tinha que ficar de olho. Ele fugia. Quando a gente ia procurar ele já estava no parquinho [...] ele começou a desenvolver durante o ano, ele começou a ficar em pé, segurar nos móveis. Andava segurando nos móveis dentro da sala. No outro ano ele começou a andar (Trecho da entrevista com a professora Rosa).
A escola era um espaço novo para o Vivente, pessoas novas para conviver e espaços para explorar. Seus primeiros passos foram muito além do andar, representando também o começo de uma caminhada na escolarização – passos dados pelo aluno e pela escola. Em nível de rede de ensino, informações mais específicas sobre a SCZV e um debate intersetorial envolvendo a inclusão escolar aconteceram após a matrícula do aluno na escola. Sobre isso, Ana comenta:
O que nos deu um Norte, em relação ao que nós iríamos aplicar de atividades para que ele conseguisse se desenvolver, foram as reuniões que nós tivemos com o grupo lá no CAEE6. [...] com a Miriam Calheiros. Ela deu inúmeras sugestões, abriu um leque de oportunidades. Estava eu e a professora [...]. Nós temos que correr atrás e ver o que nós podemos fazer para ajudar essa criança. [...] eu sempre coloquei para os profissionais isso “se nós temos um desafio e esse desafio vai nos acompanhar ao longo de um período, nós, como profissionais, temos que procurar fazer o melhor”. Então, assim, se tivesse um encontro que ia tratar daquele assunto eu dava oportunidade delas estarem participando [...] eles tiveram o cuidado de montar esse grupo e de estar também dando um suporte para escola. E isso foi fundamental. Porque assim, as experiências que os profissionais ganharam [...] fez toda diferença (Trecho da entrevista com a diretora Ana).
O diálogo intersetorial, a qualificação profissional e a construção de vínculos com a criança foram citadas pelas entrevistadas como fatores que impactaram na definição de práticas que objetivavam atender especificidades de cada um dos alunos com a SCZV que vieram a se matricular na escola. Caminhos elencados pelas profissionais entrevistadas demonstram que o acesso à informação ecoaram sobre o acolhimento e a inclusão escolar, entre eles estão: a orientação e acompanhamento na realização de tarefas do cotidiano (envolvendo a rotina de alimentação, higiene e organização do material); o incentivo à participação em brincadeiras (abarcando músicas, histórias e interesses específicos da criança); a realização de trabalhos colaborativos entre a criança com deficiência e seus colegas sem deficiência. A intersetorialidade também foi citada em outras pesquisas (CAMPOS, 2022; PLETSCH, SÁ, MENDES, 2021; SANTOS, 2021; VIANNA, 2021) como fundamental para o atendimento integral do desenvolvimento destas crianças, sempre envolvendo a educação, saúde e assistência social. Aliás, a escola, para os autores, deveria ser considerada como o centro na elaboração e execução de programas intersetoriais destinados a essa parcela da população.
A diretora Ana também falou dos cenários de cooperação entre colegas, sobretudo diante de uma situação de dificuldade enfrentada por um deles para a realização de uma ação:
[...] os próprios coleguinhas se encarregam de dar esse suporte. Nós percebemos, sempre tem um, um ou outro na sala, que tem esse olhar. O professor não precisa nem pedir [...] porque aquela criança faz parte daquele grupo. (Trecho da entrevista com a diretora Ana).
Em complementação, o aluno Vicente, como indica a professora Dália, é um menino que gosta de participar e de brincar “[...] com os amigos, ele não gosta muito de brincar sozinho. Ele gosta da interação. Ele gosta da interação com as crianças”. (Trecho da entrevista com a professora Dália). Há na educação um potencial transformador e insurgente para pensarmos sobre o cuidado como uma questão pública e de dignidade para todas as pessoas. Inclusive ensinando e dando espaço no cotidiano escolar para que as crianças vivenciem o cuidar. Como apresenta Kittay (2011), cuidar é uma necessidade humana. Logo, é uma necessidade social. Ainda em termos pedagógicos essa relação de uns com os outros reflete aquilo que a literatura chama de tutoria por pares (ROCHA, 2018).
Refletindo sobre o cuidar, a professora Rosa nos traz que “[...] o professor tanto educa como cuida também. [...] a gente educa. Mas a gente tem o cuidado com o nosso aluno. Cuidado de ver se ele está aprendendo não é um cuidado?” (Trecho da entrevista com a professora Rosa). O cuidado toma uma forma abrangente no cenário escolar, na medida que, como descrevem Sá e Pletsch (2021), o cuidado está diretamente interligado com a participação da criança nas atividades propostas, que por sua vez, ampliam as possibilidades de aprendizagem.
Ainda no âmbito do cuidado, existem demandas de apoio e suporte que são específicas em função da condição apresentada pelos dois alunos com SCZV. No relato da mediadora escolar que trabalha com o aluno Vicente, vemos que “[...] querendo ou não eu preciso ter um outro olhar para ele. [...] o meu cuidado precisa ser redobrado” (Trecho da entrevista com a mediadora Margarida). Nesse ponto se tratou sobre o cuidado atrelado ao receio de a criança engasgar-se, especialmente considerando que na condição da SCZV disfagia pode estar presente e ela resulta na dificuldade de deglutição. Ainda segundo Rosa, em diálogo com a família sobre como se dava a alimentação em casa, a escola adotou como medida o uso de “[...] copinho com canudinho, para apoiar. Porque na escola se usa caneca, [...] a gente ficava preocupada dele engasgar e [...] ele sugava no copinho”. (Trecho da entrevista com a professora Rosa). A adoção de um copo com canudo parece ser uma medida simples, mas são grandes os impactos para o bem-estar da criança e a sua participação no momento do lanche na escola junto aos colegas.
A escola havia solicitado, junto à Secretaria de Educação, que Margarida, a mediadora que acompanha o aluno Vicente no turno da manhã, pudesse estender seu turno para também atender o aluno Otávio no período da tarde. Até o momento da realização do estudo, Otávio não contava com o suporte de uma mediadora escolar. É importante mencionar que o profissional de apoio escolar é citado na Lei Brasileira de Inclusão (BRASIL, 2015), mas não temos ainda diretrizes claras regulamentando a profissão e atuação deste profissional no contexto de sala de aula. Igualmente cabe dizer que este profissional aparece com diferentes nomes nas redes de ensino, tais como estagiário, mediador, agente de apoio à inclusão, entre outros. Sobre as contradições, demandas e perspectivas de atuação deste profissional, indicamos a pesquisa de Vogas (2023).
Ainda sobre Otávio, as entrevistadas relataram que ele é um aluno de sorrisos copiosos e olhares expressivos. Seu corpo comunica em movimentos o que em outros identificamos em forma de palavras faladas. O menino não se comunica oralmente, apresenta menor mobilidade e usa cadeira de rodas, necessita de suporte permanente de outra pessoa para se deslocar, se alimentar e participar das atividades propostas. Em sua sala de aula havia 21 crianças matriculadas.
Sobre a escolarização de Otávio, a professora Íris relata fazer o possível para incluir ele nas mesmas atividades que a turma realiza, porém salienta que necessita de “[...] alguém que me dê uma luz [...] oriente [...] com materiais, com uma mediação.” Ter acesso a formações continuadas e que qualifiquem ainda mais a prática pedagógica faz parte dos desejos dela e há em seus relatos expectativas de que uma mediadora escolar venha a somar na inclusão escolar de Otávio, e ainda comenta:
O meu trabalho vai contribuir de forma que eu esteja ali realmente me preocupando com ele e incluindo. Não por ele ser um aluno a mais na minha sala [...] Então, desde o momento que eu faço a diferença na vida dele, seja no material seja nesse acolhimento, isso é importante. Porque ele quer vir para escola. A gente vê a satisfação dele. (Trecho da entrevista com a professora Íris).
A falta de conhecimentos e programas de formação continuada foi amplamente discutida na pesquisa de doutorado de Araújo (2021), que focou na elaboração e avaliação de um programa de formação continuada para professores de educação infantil com a participação de 50 profissionais de educação de uma rede de ensino da Baixada Fluminense para atuar com crianças com deficiência múltipla em decorrência da SCZV.
Essa realidade nos instiga a questionar qual o papel da escolarização para um aluno com deficiência múltipla? Quando Íris apresenta que é parte do seu trabalho acolher, planejar e desenvolver materiais que contribuam para a inclusão escolar, vemos que ela se preocupa em oferecer meios para que o aluno participe das aulas. As restrições na participação, oriundas da falta de oferta de apoios e suportes afetaram aspectos importantes como o bem-estar, o desenvolvimento da linguagem e da aprendizagem. Diante disso, torna-se fundamental refletir mais sobre os apoios e suportes, sejam eles tecnológicos ou de recursos humanos. Nessa direção, articulações entre escola, família e os setores da saúde e assistência social são potenciais caminhos na promoção da escolarização de crianças com deficiência múltipla – tendo em mente que este grupo é muito heterogêneo, logo, as necessidades de suporte e apoio variam de uma criança para outra.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo apresentou indicadores de matrículas de alunos com deficiência múltipla e da Síndrome Congênita do Zika Vírus (SCZV) na Baixada Fluminense e discutiu aspectos que envolvem a sua escolarização. Os dados revelam que, apesar dos avanços legais e da disseminação da cultura inclusiva, principalmente junto às famílias que optam pela escola comum, as redes ainda enfrentam desafios como, por exemplo, não haver um profissional de apoio escolar para todos os alunos que dele necessitam, faltam recursos didáticos e materiais acessíveis e formações continuadas sobre a temática, entre outros. Em que pesem tais desafios comuns às redes de ensino públicas do Brasil, a inclusão é vista como importante e a escola participante do projeto tem buscado atuar de forma a garantir o direito de participação e aprendizagem dos alunos com deficiência múltipla em decorrência da SCZV.
Nessas escolas, trabalham profissionais preocupados com o bem-estar dos alunos e suas aprendizagens, registrando em seus diários momentos nos quais identificam a satisfação do aluno, seja planejando aulas e/ou elaborando materiais que atendam sua funcionalidade e permitam sua participação nas atividades propostas para a turma. Rememoramos que esta é uma escola que instrui, acolhe e cuida. Como acompanhamos os relatos sobre o aluno Vicente, podemos inferir que a escola trabalha para que de passinho em passinho os alunos trilhem suas trajetórias de escolarização, e, nesse andar, encontramos dados que mostram o aumento crescente no período entre os anos de 2018 e 2022 dos indicadores de matrículas em classes comuns de alunos com deficiência múltipla na Baixada Fluminense. Ainda cabe o alerta de que esses dados poderiam ser ainda mais expressivos em 2022 considerando que muitas crianças com SCZV ainda estão fora da escola.
Nossos alunos têm diferentes necessidades, agora, todos devem ser apoiados para alcançar a aprendizagem, e a escola não deve estar sozinha neste processo. A articulação intersetorial parece produzir resultados importantes para essa transformação, inclusive com potenciais contribuições para mudarmos e aumentarmos o quadro de matrículas de alunos com deficiência múltipla em escolas comuns. Cabe ao estado cumprir o papel de promover e prover meios que garantam a participação educacional e social. Estar na escola é um direito de todos.
Em estudos futuros, análises aprofundadas dos indicadores de matrículas dos últimos cinco anos de crianças com deficiência múltipla que residem em outras regiões do estado do Rio de Janeiro – ou até mesmo em outros estados do Brasil – poderão ampliar o banco de informações sobre a presença desses alunos nas escolas comuns. No tocante aos alunos com SCZV, caberão mais investigações voltadas para os fatores potencialmente associados ao não ingresso dessas crianças – que estão em idade escolar – em escolas comuns, de modo a subsidiar a implementação de políticas públicas e ações intersetoriais para essa população.