INTRODUÇÃO
Este texto tem como objetivo analisar materiais pedagógicos e parte da compreensão que essas propostas revelam concepções de currículo na Educação Infantil (EI). A tradição dos contextos escolares de atendimento às crianças tem compreendido e vivido o currículo como prescrição, como um conjunto de conhecimentos que devem ser transmitidos visando a um suposto progresso, sem considerar os sujeitos envolvidos no processo educativo. A discussão no campo do currículo tem problematizado essa noção estanque, enfatizando as lutas e tensões que atravessam o currículo emergente, em movimento. Assim, os currículos traduzem tensões, disputas, campos de força, concepções, apostas, discursos que forjam uma identidade (SILVA, 2002).
A partir desse entendimento, a EI tem acumulado debates sobre currículo como construção social, um entendimento amplo, dinâmico e flexível, embasado numa práxis que assume o compromisso com os desafios que atravessam as infâncias, problemas que trazem implicações para o fazer pedagógico. Esse movimento de luta por sentidos mobiliza perguntas nesse processo: o que se espera que as crianças aprendam? Como trabalhar com as crianças pequenas considerando seus contextos sociais heterogêneos e seus saberes diversos? Quais noções de criança e infância marcam os currículos? O que compõe o currículo da EI? Quem participa da sua produção?
O artigo compõe os resultados de uma pesquisa interinstitucional que possui como amostra dez Secretarias Municipais de Educação (SME) do estado do Rio de Janeiro. A seleção da amostra seguiu os critérios adotados em estudos anteriores do grupo de pesquisa sobre políticas públicas em EI, pois compreende-se que é relevante conhecer as trajetórias de ações e programas municipais em diferentes tempos e espaços. Nesse sentido, considerou três indicadores: a) o produto interno bruto per capita (PIB per capita); b) o tamanho da população; e c) a porcentagem de crianças matriculadas em creche e pré-escola. O PIB per capita representa a capacidade de cada município em mobilizar recursos para a educação, o tamanho da população diz respeito à complexidade da gestão municipal e a porcentagem de matrículas a capacidade de atendimento.
Os dez municípios apresentam a diversidade encontrada nas cidades do Rio de Janeiro, em relação ao tamanho da população e à proporcionalidade das matrículas da rede pública e privada: nos extremos, temos dois municípios com menos de 20 mil habitantes (as redes públicas congregam 95% das matrículas na EI – creche e pré-escola); e o outro com mais de um milhão de habitantes, em que 56% do atendimento à EI está na rede pública. Entre 20 e 50 mil habitantes, encontramos três municípios (que variam entre 78%, 83% e 85% do atendimento na rede pública) e fazem parte dessa amostra dois municípios que possuem de 50 a 200 mil (55% e 65% de atendimento na rede pública) e ainda dois com mais de 500 mil habitantes, nos quais 40% e 55% das matrículas são na rede pública (IBGE, 2022).
Como estratégia metodológica, o levantamento das informações partiu dos sítios eletrônicos dos municípios, considerando cinco plataformas de busca: site da Prefeitura; site da SME; site do Conselho Municipal de Educação; página oficial do Instagram da SME; página oficial do Facebook da SME. A opção por utilizar informações das páginas do Instagram e Facebook se deu pelo conhecimento de que estes eram canais oficiais de algumas SME para o contato com as famílias e a publicação dos materiais.
Os materiais pedagógicos analisados não fazem menção ao nome dos municípios, indicando apenas a região de localização no estado. Tal opção considerou que o diálogo se faz com a realidade, com o contexto do próprio campo de pesquisa, com a relação estabelecida com os sujeitos. Nessa perspectiva de compreensão da pesquisa, o particular pode ser focalizado como instância de uma totalidade social, buscando compreender os sujeitos envolvidos na investigação e as possíveis relações dos eventos investigados numa integração do indivíduo com o social.
O texto interroga o compromisso social e político da pesquisa acadêmica, considerando que “[...] nas ciências humanas, conjugam-se as dimensões ética e estética para dar origem a uma outra dimensão que é a epistemológica”. (AMORIM, 2007, p. 12). Na mesma direção, Bakhtin (2003, p. 334), em seus estudos sobre as ciências humanas, esclarece que elas “[...] não se referem a um objeto mudo [...], referem-se ao homem em sua especificidade” e continua: “[...] quando o homem é estudado fora do texto e independente do texto, já não se trata de ciências humanas (mas de anatomia, de fisiologia humana etc.)”. Pensar a pesquisa a partir das contribuições de Bakhtin é adotar uma postura dialógica de investigação, desde as escolhas metodológicas e edificação dos dados até as análises.
O resultado das análises dos materiais pedagógicos destinados à EI, produzidos no período de março a setembro de 2020, disponibilizados nas redes sociais e sites dos municípios pesquisados, devido ao contexto da pandemia, possibilitou refletir sobre três temas: (i) “Escola dentro de casa: uma oportunidade de reflexão sobre currículo”; (ii) “Institucionalização e Ensino Infantil”; e, por último, (iii) “Autonomia e autoria na construção dos materiais pedagógicos”. Embora a produção do acervo, composta por um banco de 811 imagens, tenha ocorrido durante a pandemia, o trabalho compartilha da hipótese de que esses achados pouco diferem da tradição da EI já problematizada em outros estudos.
ESCOLA DENTRO DE CASA: UMA OPORTUNIDADE DE REFLEXÃO SOBRE CURRÍCULO
A partir das leituras e releituras da coleção de textos e imagens produzida, foi possível refletir sobre as diferentes concepções de currículo na EI, evidenciando práticas que se distanciam dos interesses, demandas e direitos das crianças. As atividades que compõem o acervo dão pistas para perceber relações de poder, tensões e contradições que marcam os currículos. As discussões produzidas foram favorecidas pela publicidade que as ações das SME assumiram no contexto de suspensão das atividades escolares. As propostas indicam uma captura do ambiente doméstico e dos sujeitos para uma reorganização familiar a partir das referências de um currículo escolarizante, que não reconhece a importância do movimento entre o escolar e não escolar, da complementariedade entre as culturas familiares e a identidade das instituições de EI.
Assim, a escola lança mão de estratégias que normatizam e invadem a vida privada, não reconhecendo os saberes e as potências presentes nos contextos familiares. As prescrições identificadas apontam para uma tentativa de fazer dos pais professores e tornar os filhos como alunos com a sugestão de rotinas, atividades, brincadeiras, metodologias para o ensino, caminhos tomados como corretos para a educação e cuidados das crianças pequenas. A relação com as famílias não permitiu apenas pensar a qualidade dessa interação, marcada por preconceitos e estereótipos, especialmente as de classe popular, mas também a noção de um currículo único, monopólio da escola, supostamente detentora das relações humanas e com a cultura.
De acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI) e a legislação brasileira, que normatizam o trabalho da EI, afirmam a criança como sujeito de direito, produtora de cultura, que aprende por diferentes caminhos, através de um currículo que tem como eixo as interações e a brincadeira (BRASIL, 2009b). Assim, a EI, primeira etapa da educação básica, é caracterizada como um atendimento em espaços institucionais, coletivos, sendo sua função pedagógica e sociopolítica: (i) compartilhar e complementar a educação e cuidado das crianças com as famílias; (ii) garantir a convivência entre crianças e entre adultos e crianças; (iii) ter o compromisso com a ampliação de saberes e conhecimentos diversos; (iv) promover a igualdade de oportunidades educacionais entre as crianças de diferentes grupos sociais; (v) construir novas formas de sociabilidade e de subjetividade comprometidas com a ludicidade, a democracia, a sustentabilidade do planeta; (vi) romper com relações de dominação etária, socioeconômica, étnico-racial, de gênero, regional, linguística e religiosa (BRASIL, 2009b). Essa concepção de EI é resultado de um longo processo de transformação social que toma a educação como um direito subjetivo desde o nascimento.
Para além dos documentos legais que resultam das lutas sociais e das pesquisas, nem sempre o currículo vivido com as crianças respeita os princípios éticos, estéticos e políticos estabelecidos pelas DCNEI (BRASIL, 2009b). As imagens evidenciam propostas mecânicas, de treinamento de habilidades, com conhecimentos superficiais, sem sentido, descontextualizadas.
Na mesma direção, foram identificadas atividades que não trazem elos entre si, com uma expectativa de ensinar o óbvio, sem relação com a cultura, deslocadas da vida e de quem são as crianças. A primeira parte da atividade indica links de vídeos com uma história e uma brincadeira desconectadas e, na sequência, um exercício de ligar partes do corpo. Além da falta de sentido, fica o questionamento sobre possíveis preconceitos que as propostas reforçam: há espaço para reflexão com as crianças sobre as muitas formas corporais de existir no mundo?
De maneira geral, observa-se a menção a objetivos marcados por uma perspectiva de treinamento de habilidades, com um olhar fragmentado para o desenvolvimento infantil (coordenação motora ampla; percepção visual).
Os materiais indicam que a creche e pré-escola assumem uma responsabilidade de controle, adequação e moralização das crianças. Conteúdos considerados adequados para o ensino buscam a formação moral e disciplinadora. Segundo Julia (2001, p. 22), “[...] a cultura escolar desemboca no remodelamento dos comportamentos, na profunda formação do caráter e das almas que passa por uma disciplina do corpo e por uma direção das consciências”. As atividades a seguir dialogam com as questões analisadas – coexistem na proposta uma tentativa de ensinar letras, e a modelagem de comportamentos tomados como saudáveis e adequados.
Na sequência, duas imagens, sem enunciados, que se pressupõe uma atividade de colorir, traz a pretensão de pautar os temas da relação com a natureza e da amizade. O acervo da pesquisa mostra muitas atividades iguais, de colorir modelos prontos, sem enunciados porque não necessitam de explicações ou com enunciados confusos com erros conceituais, que não desafiam as crianças. Novamente, observa-se propostas artificiais que não reconhecem a potência infantil, uma lógica escolarizante que captura temas da vida de forma instrumental, utilitária. O que as crianças pensam sobre a natureza e a nossa responsabilidade com o mundo? Quais são as descobertas e invenções das crianças no mundo? Quais são as histórias de amizade narradas e vividas pelas crianças?
Nessa dimensão do que se espera que as crianças aprendam, também quais são os conteúdos da EI, destacam-se atividades que possuem o tema das emoções baseadas na normatização de comportamentos, didatizando sentimentos e emoções. As imagens evidenciam uma desigualdade entre crianças e adultos, já que são os docentes que estabelecem os caminhos para a proposta pedagógica. Como ensinar a sentir sem estar afetado pelas crianças? Como falar de emoções sem espaço de diálogo e encontro?
As ações descritas neste item apontam para o “[...] ofício de aluno” (PERRENOUD, 1995) no sentido de se deixar formatar por essa cultura que disciplina o corpo e a mente dentro das normas e regras dos estabelecimentos de ensino. Autores do campo da Sociologia da Infância, como Sarmento (2011, p. 588), ao tratar do ofício do aluno, destacam como a criança é investida de uma condição institucional que apaga sua vontade própria, para dar lugar ao que o autor chama de “[...] aprendiz, destinatário da ação adulta, agente de comportamentos prescritos, pelo qual é avaliado, premiado ou sancionado”. O autor destaca que a escola criou uma relação particular com o saber, uniformizando o modo de aquisição e do conhecimento para além das diferenças individuais, de classe e cultura.
Com a responsabilidade de exercer seu ofício, a criança deve comportar-se de acordo com as regras institucionalmente prescritas e esperadas dela. Ao discutir o que seria o “[...] ofício do aluno”, Sirota (2001) o define como a aprendizagem das regras do jogo escola, ressaltando que o bom aluno não é aquele que apenas assimila os conhecimentos, mas que está disposto a jogar as regras da escola, exercendo o conformismo e a competência.
Outro aspecto marcante que emerge é a organização curricular através das datas comemorativas, tradição muito forte nas creches e pré-escolas. Foi identificado um número grande de propostas – dia das mães, dia dos pais, dia do meio ambiente, dia do índio, folclore, páscoa, natal, entre outros. Maia (2014) aponta para o caráter propedêutico e moralizador das datas comemorativas, colaborando para a dominação de uma perspectiva cultural sobre outras. “As datas cívicas e morais são as que aparecem em maior número e implicam em conhecimentos e valores relacionados à pátria, à família e a convivência social” (MAIA, 2014, p. 8). O apelo ao consumo que essas datas assumem no interior da escola, com informações estereotipadas, um currículo que “[...] faz do outro, aquele diferente de mim, alguém de quem eu simplesmente me aproprio para fazer dele um objeto estereotipado e não um sujeito de alteridade”. (MAIA, 2019, p. 119). Esse é o caso dos indígenas, imagem recorrente nas atividades, não valorizado “[...] como sujeito, sua cultura, sua vida real, passam longe do que as crianças sabem, aprendem socialmente, e a escola não necessariamente problematiza”. (MAIA, 2019, p. 119). Parece que esse referencial esvaziado de sentido não permite que as datas no currículo sejam conectadas com as experiências das crianças.
Diante do exposto, a pesquisa aponta para a não superação de um currículo préformatado, não dialógico, organizado ora por listas de conteúdos, entendidos como obrigatórios, ora a partir de habilidades essenciais para a formatação das crianças, ora com atividades que buscam comemorar datas sem sentido. Portanto, destaca-se a importância da construção de um currículo para além da escola, que considere a indissociabilidade entre currículo e vida, a necessidade de desestabilização da cultura escolar, da valorização das crianças e adultos com seus saberes.
INSTITUCIONALIZAÇÃO E ENSINO INFANTIL
A EI não é apenas o que dizemos dela teoricamente ou o que preceitua a legislação. Compreendemos que tais aspectos são orientadores do trabalho nas instituições, entretanto, é no cotidiano, que o currículo se dá de fato. Nesse sentido, conhecer as propostas direcionadas às crianças trouxe indagações para o estudo: que sentidos estão expressos nas atividades? Que princípios fundamentam o currículo na EI?
Fazer parte do sistema de ensino e conviver lado a lado, nas escolas com o Ensino Fundamental (EF), com profissionais que atuam nos dois segmentos, traz o desafio para a EI manter as suas especificidades, na construção de uma identidade para esse segmento que não seja definida por uma lógica de preparação para o EF.
A análise das atividades direcionadas às crianças dá pistas de que o caráter pedagógico da EI se dá no embate entre educação e escolarização, indicando que a luta necessária não é pela garantia ao acesso, mas por um trabalho educativo que respeite as especificidades das crianças.
A recorrência de propostas que têm como objetivo ensinar letras do alfabeto, sejam elas com foco na diferenciação do que é maiúsculo e minúsculo, do treino motor para a escrita com a letra cursiva, das letras apresentadas de forma isolada tendo como ponto de partida as vogais, parecem tomar a centralidade das atividades propostas. Há uma crença no treino motor como requisito para a alfabetização que deveria acontecer de forma sistematizada nos anos iniciais do EF.
A imagem que apresenta a letra A solicita que as crianças repitam o som produzido pela letra, personificando a letra, como se ela falasse, além de enfatizar que as crianças diferenciem o som inicial dos desenhos. A atividade caminha na contramão da concepção de leitura e escrita que potencializa sua função social, a partir de uma perspectiva discursiva (GOULART, 2019).
Tal iniciativa se repete como encaminhamento em diferentes SME, como podemos observar a seguir:
Junto com o intuito de alfabetizar as crianças na EI, as atividades permitem refletir sobre outros aspectos: a estética; os personagens usados como preferência das crianças; a propaganda de rótulos que divulgam marcas e produtos, sem a reflexão ética desse uso, mostrando um descuido na produção e seleção das propostas.
Outro caminho indicado pelos resultados da pesquisa diz respeito ao uso da literatura como pretexto de alfabetização das crianças. Nesse sentido, a amostra traz muitos exemplos, como a atividade a seguir que envolve o gigante, do clássico da literatura infantil João e o Pé de Feijão,1 usado como pretexto para a criança colorir de acordo com as indicações, apesar da diversidade de versões e sentidos que poderiam ser explorados nesse conto de fadas.
No topo dos temas que constituem o currículo de trabalho na EI, está a importância da escrita do nome das crianças. Sem dúvida, a dimensão identitária, íntima e afetiva do nome de cada criança faz com que essa aprendizagem seja de fato essencial e indispensável na vida, já que aprendemos a escrever o nosso nome para produzir marcas da nossa autoria, assinar documentos e produções, identificar objetos etc. (MOURA, 2022). Entretanto, qual o sentido de se pedir para destacar a primeira letra do nome da criança, sendo que qualquer nome é composto por um arranjo estável de variadas letras?
Na tentativa de alfabetizar as crianças ou prepará-las para o EF, as atividades propõem condicionamento, treinamento, fundamentadas na compreensão de que o processo de aprendizado da leitura e da escrita se dá a partir dos seguintes princípios: conhecimento das vogais; aprendizado fragmentado das letras do alfabeto; treino motor; memorização dos sons iniciais de algumas palavras, tendo como ponto de partida o nome das crianças; diferenciação da letra maiúscula e minúscula. A partir dessa crença, brincadeiras, histórias, poesias, músicas ganham caráter estéril. Para Goulart (2019, p. 68), “[...] considerar o sistema alfabético como a ‘escrita’ é um enorme equívoco”, embora conhecê-lo seja fundamental para o processo de apropriação da linguagem escrita.
Nesse sentido, os resultados apontam a alfabetização mecanizada das crianças como tema que percorre quase todas as atividades, funcionando como eixo centralizador, com significados que se distanciam da brincadeira e das interações como eixos estruturantes da proposta curricular da EI, como preceituam as DCNEI. Mesmo diante de atividades que aparentemente poderiam ser interessantes para as crianças, há uma intencionalidade na alfabetização precoce. Da mesma forma, afastam-se da orientação presente no texto das DCNEI, que propõem que as especificidades etárias sejam respeitadas na EI, “[...] sem antecipação de conteúdos que serão trabalhados no Ensino Fundamental” (BRASIL, 2009b).
Na relação com as propostas oficiais que apresentam orientações sobre o currículo das creches e pré-escolas, foi possível identificar em alguns municípios o uso de documentos oficiais, como a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (BRASIL, 2018), como forma de justificar a realização de atividades, como nos exemplos a seguir.
A relação com a BNCC aparece como pretexto para o uso de uma compreensão limitadora do trabalho com a linguagem. Nesse sentido, tal leitura convoca crianças e professores para uma determinada ação, que não dialoga com as orientações presentes na BNCC, produzindo apropriações frágeis e contraditórias. Assim, a creche e a pré-escola ainda precisam fortalecer sua cultura própria, garantindo as especificidades desses contextos. Kramer (2009) destaca a dimensão cultural, interdisciplinar, estética e ética no trabalho da EI.
O currículo da EI, como espaço de relação entre os saberes historicamente construído e os saberes das crianças, mostra-se insuficiente nas atividades analisadas, constituídas a partir de fatores isolados, que supervalorizam a dimensão cognitiva numa perspectiva etapista. O desenvolvimento é processo multifacetado, histórico, marcado pela diversidade de experiências, incluídos afetos, emoções, movimentos (OLIVEIRA; TEIXEIRA, 2002). Assim, não é possível pensar em efeitos universais e homogêneos para o crescimento das crianças e suas experiências.
AUTORIA E AUTONOMIA NA CONSTRUÇÃO DOS MATERIAIS PEDAGÓGICOS
Trazer os conceitos de autonomia e de autoria para pensar o campo da EI associado ao currículo e à formação docente é reconhecer que uma das principais funções da escola é formar o cidadão crítico e participativo e que, nesse processo, a riqueza dos diálogos e das interações entre os atores sociais – professores e crianças – é essencial para o desenvolvimento do ato educativo. Segundo Bakhtin (2003), não existe uma realidade de linguagem fora do diálogo entre o eu e o outro, entre os muitos eus e os muitos outros. O autor dá uma interpretação bastante peculiar à natureza da relação dialógica. O eu, para ele, não é autônomo, somente existindo em diálogo com outros eus. O eu necessita da colaboração de outros para poder definir-se e ser autor de si mesmo.
Paulo Freire (1992, p. 117), de maneira afim à de Bakhtin, afirma que “[...] não se pode pensar pelos outros nem para os outros nem sem os outros”. A significação do diálogo está no fato de que os sujeitos dialógicos crescem um com o outro, não se nivelando nem se reduzindo um ao outro. Assim, este trabalho parte do pressuposto de que a autonomia docente é um processo permanente de trabalho de interpretação do sujeito, na relação com o outro e em sua consequente ação no mundo, num processo que envolve dimensões individuais e coletivas. Desde Rousseau, para quem liberdade era sinônimo de autonomia, os regimes democráticos buscam os elementos necessários para que os cidadãos e seus representantes possam participar das tomadas de decisões (MARTINS, 2002b).
Nessa perspectiva, a questão que envolve o exercício da autonomia está relacionada ao fato de que o professor encontra nele mesmo um sentido que não é o seu e que tem que transformar por meio de sua atividade. Ou seja, as experiências de concessão de autonomia à rede de ensino “[...] têm indicado que às escolas é permitido utilizar seus próprios recursos, ideias, projetos e valores num contexto configurado pela ausência material do próprio Estado” (MARTINS, 2002a, p. 96-97), fazendo com que a palavra autonomia deixe de ser entendida como governar-se a si próprio e seja reduzida à limitada e pretensa liberdade de implementar projetos pedagógicos.
Não se pode compreender a política de formação docente descolada da política do currículo, uma vez que se relacionam com os modos de significar a vida e o cotidiano escolar. E é nesse sentido que a teoria da enunciação de Bakhtin (1988, p. 118) elucida o processo de subjetivação dos professores e das crianças, a partir “[...] da ideologia do cotidiano que acompanha cada um dos nossos atos ou gestos e cada um dos nossos estados da consciência”. Entretanto, os processos de constituição do sujeito são contraditórios, pois, em meio a uma política de formação que não trata da reflexão do cotidiano, a palavra alheia vai se tornando palavra própria (BAKHTIN, 1988, p. 100), com escassas possibilidades de réplicas. A autonomia para a implementação de um projeto pedagógico limita-se à repetição de práticas curriculares que tornam o cotidiano modelar.
Nas redes de ensino pesquisadas, percebe-se que a tríade autonomia, autoria e diálogo tem sido muito pouco valorizada pela equipe pedagógica durante os momentos de formação docente. O piso salarial e a carga horária de trabalho dos professores de todo o Brasil foram referendados em lei2 a partir de intensos debates sobre a profissão e formação docente, em meio às demandas impostas pela nova forma de organização dos sistemas escolares. Cada ente federado é responsável por pensar a sua educação, nos diferentes níveis, e aplicar as especificidades da lei de acordo com suas necessidades, sem ferir, contudo, o disposto na lei: “[...] na composição da jornada de trabalho observar-se-á o limite máximo de 2/3 da carga horária para o desempenho das atividades de interação com os educandos” (BRASIL, 2008). Entretanto, a autonomia das instituições na organização de propostas tem ampliado os deveres dos profissionais de educação sem condições de trabalho. Constata-se que a autonomia foi imbuída pelas formas de fazer mercadológicas e o processo de reflexão se tornou refém de dificuldades econômicas, cursos aligeirados, a distância, sendo o cumprimento de um terço da carga horária para atividades extraclasse – espaços para pensar modos de fazer diferenciados que multipliquem as aprendizagens dos profissionais em relação ao trabalho cotidiano com as crianças – pouco valorizado pela organização escolar.
Nos municípios onde os professores são instados a se pronunciar, encontramos, na maioria dos casos, propostas reproduzidas de sites e blogs, reproduções estas que têm a autorização da própria SME. Tal constatação traz a indagação sobre os sentidos que vêm sendo atribuídos pelos diferentes atores – professores, equipe pedagógica da escola e da SME – à EI. Os trabalhos copiados e disseminados para as crianças revelam uma crença na força da proposta pedagógica por eles veiculada? Qual a finalidade dos trabalhos contidos nas plataformas digitais? Lugar de consumo? Qual o valor que tem sido atribuído à EI?
Nessa ótica, a escola se configura como um local de consumo de conteúdos pretensamente úteis para a formação das crianças, produzidos à margem da proposta políticopedagógica do município, cuja autoria não é assumida pela equipe de profissionais envolvida na gestão, mesmo que eticamente comprometida ou afetada, dado que o material reproduzido se apresenta com a logo da secretaria. Assim, trazendo a ideia de que a consciência se materializa na linguagem, estando sob o comando do sujeito que tem autoridade sobre ela e se responsabiliza por sua ação discursiva (BAKHTIN, 1988), podemos perguntar sobre qual tem sido o processo de autoria e de produção de sentidos das políticas curriculares municipais e de seus efeitos na formação docente. Vale lembrar que é ao município que cabe a incumbência de elaborar e executar a sua proposta pedagógica (BRASIL, 1996, art. 12).
A organização de um banco de imagens, a partir dos materiais pedagógicos divulgados pelas SME, tornou possível uma análise a respeito das políticas curriculares dos municípios.
Embora tenha sido possível constatar o esforço dos professores em manter o vínculo com as crianças durante o período da pandemia – são inúmeros os vídeos produzidos por cada um deles e divulgados pelo YouTube, contando histórias e promovendo algum tipo de interlocução com a turma –, o material pedagógico disponibilizado pelas SME para o desenvolvimento de atividades pelas crianças assume outras referências, conforme evidencia a tabela 1.
Município | Referências utilizadas no material disponibilizado |
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Baixadas Litorâneas I |
Fundação Feac – entidade do terceiro setor, sediada em Campinas (SP), que busca atuar em rede pela cocriação de vários projetos que fortalecem antigas parcerias e possibilitam novas cooperações (https://feac.org.br/); Colégio Santa Maria – Associação Franciscana da Divina Providência, situada em São João de Meriti (RJ) (https://colegiosantamariarj.com.br/); Projeto Saúde e Bem-Estar – Núcleo de Desenvolvimento Infantil da UFSC (https://projetosaude.paginas.ufsc.br/); Colégio Sir Isaac Newton – escola privada situada em São Paulo (SP) (https://www.cosin.com.br/home.php); Tempo Junto – plataforma de parentalidade brincante (https://www.tempojunto.com/); Lunetas – portal de jornalistas que traz “[...] múltiplos olhares sobre as múltiplas infâncias brasileiras” (https://lunetas.com.br/); Associação Nova Escola – plataforma digital de apoio pedagógico, cuja mantenedora é a Fundação Lemann (https://novaescola.org.br/); Ipeduca – Instituto de Pesquisas Educacionais – escola localizada em Cachoeiro de Itapemirim (ES) (https://ipeduca.com.br/); Epco – Escola de Educação Infantil Prof. Cândido de Oliveira, escola privada situada em Osasco (SP) (https://www.epco.com.br/); Proposta da Educação Infantil da Prefeitura (sem acesso). |
Centro-Sul Fluminense I | Não há referências no material. |
Médio Paraíba II |
Nosso Clubinho – atividades e jogos educativos para as crianças (https://www.nossoclubinho.com.br/); SmartsKids – site para crianças, site infantil, jogos educativos, desenhos para colorir, atividades educativas, datas comemorativas (https://www.smartkids.com.br/); |
Centro-Sul Fluminense II | Espacoeducar.com.br – blog para educadores (https://oespacoeducar.com.br/); BNCC. |
Noroeste Fluminense II |
Sem referências. BNCC. |
Metropolitana I | BNCC. |
Fonte: acervo de pesquisa (2020).
Pelas referências descritas na tabela 1, percebe-se a forte presença de atores não estatais na formulação das políticas públicas de educação dos municípios estudados. Tal como pontuam Viseu e Carvalho (2020), pela análise de redes, é possível demonstrar a preponderância das organizações do terceiro setor nas políticas educativas dos países ocidentais. Foi observado, ainda, a ausência de referência aos documentos orientadores de propostas curriculares das escolas, o que evidencia os sentidos atribuídos à autonomia docente. A discussão de ideias pedagógicas e a participação nos processos de tomada decisão da política curricular são narrativas muito importantes, mas que não ganharam concretude nas ações formuladas, embora a BNCC tenha sido explicitada nos materiais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Desde a Constituição Federal de 1988, produziu-se no país uma mudança de paradigma na compreensão dos processos educacionais, consolidando-se e legitimando-se o espaço da EI, em respeito às especificidades e aos direitos de cidadania da criança. A Emenda Constitucional nº 59 (BRASIL, 2009a) estabeleceu a obrigatoriedade da educação básica gratuita, desde a pré-escola, aos quatro anos, até os 17 anos de idade e, também, ampliou os programas suplementares que passaram a cobrir todas as etapas da educação básica.
Em relação à EI, um aspecto que vem sendo identificado como um desafio para a garantia de um atendimento que respeite às especificidades das crianças diz respeito ao trabalho realizado no cotidiano das instituições. A insistência de uma proposta curricular na EI, que se constitui a partir de adaptações de propostas já consolidadas no EF, tem permeado as práticas. É como se para os bebês e crianças bastasse facilitar o grau de dificuldade das atividades para que consigam chegar nos anos iniciais do EF respondendo aos requisitos esperados. Entretanto, cabe indagar o porquê, mesmo diante de tantos avanços no âmbito teórico e legal, historicamente acompanhamos o movimento que opta por fundamentar as práticas com as crianças sem considerar suas especificidades. É necessário que um bebê que frequenta a creche saiba o alfabeto? O que justificativa a pressa para a alfabetização das crianças? Muitas vezes se torna penoso o cumprimento dessas regras por parte das crianças, mas por estarem naturalizadas na cultura escolar, ganham relevância nos currículos da EI.
O argumento de que o trabalho fundamentado nessas práticas se dá por exigência das famílias tem sido muitas vezes a justificativa para sua manutenção. Tem sido um desafio histórico pensar a complementaridade do trabalho da família e da escola na educação das crianças. As funções dessas instituições parecem se confundir: a escola é lugar de trocar fraldas? De dormir? De tomar banho? O que é pedagógico na EI? Tendo os prédios escolares mantido as suas portas fechadas, o que foi revelado nas gestões municipais diz respeito à demanda de que espaço familiar se transforme no espaço escolar a partir de exercícios estéreis para a formação das crianças.
As interações como eixo do currículo da EI perderam força nas atividades analisadas. Quanto à brincadeira, em muitas propostas, sua funcionalidade foi ser usada para ensinar coisas. Vale ressaltar que a crítica feita às atividades não se limita ao trabalho na EI. As crianças que frequentam os anos iniciais do EF também não devem ser submetidas a um trabalho mecânico, acrítico, fragmentado, instrumentalizado. Este estudo não dará conta de tratar das estratégias desenvolvidas pelas crianças dentro da cultura escolar, mas não podemos deixar de destacar que reconhecemos seu poder de criação e acreditamos que muitas táticas são construídas por elas no cotidiano escolar que tensionam a compreensão hegemônica de currículo.