INTRODUÇÃO
A educação física (EF) escolar é reconhecida como um componente curricular obrigatório da educação básica, segundo a Lei n. 9.394/1996. No entanto, a redação de sua obrigatoriedade só foi dada, tardiamente, a partir da Lei n. 10.328/2001 (Brasil, 2005), o que nos faz observar que foi necessária uma lei suplementar para legalizar a EF no contexto da educação básica. Concordamos com Furtado e Borges (2020) que não basta apenas que a EF seja obrigatória por lei. Ela precisa ser legitimada no ambiente escolar.
A questão da legitimidade perpassa os processos de reconhecimento. Nessa esteira, Faria, Machado e Bracht (2012, p. 126) apresentam uma leitura pertinente da posição em que a EF, em muitos casos, tem sido posta nos contextos escolares:
Parece-nos que a visão que ainda se tem da EF é a de que é uma “atividade” auxiliar das outras disciplinas, como se o momento da aula de EF fosse um espaço de distração para os alunos, no qual eles “fogem” ou compensam a tensão proporcionada pelo esforço intelectual em sala de aula. Quer dizer, os agentes escolares têm ainda grande dificuldade de perceber a aula de EF como um momento de aprendizado sistematizado e com objetivos próprios e relevantes para a educação dos alunos. Nesse sentido, apesar de estar presente na escola em função de uma imposição legal, essa disciplina apresenta, no conjunto da cultura escolar, um déficit crônico de legitimidade (grifo dos autores).
Os autores trazem a teoria do reconhecimento social de Axel Honneth como chave de leitura para analisar os fenômenos que envolvem os processos de desvalorização da EF escolar (Faria, Machado, Bracht, 2012; Faria, Machado, Bracht, 2014; Machado, Bracht, 2016). Honneth (2003) vai considerar três formas do reconhecimento social (amor, direito e estima), que influenciam a constituição da identidade das pessoas.
Na dimensão afetiva (âmbito do amor), temos as relações privadas que entrelaçam ligações emotivas, cujo reconhecimento implica no desenvolvimento de autoconfiança. Na dimensão jurídica (âmbito do direito), a pessoa se observa como moralmente imputável perante a sociedade, cujo reconhecimento implica no desenvolvimento do autorrespeito. Na dimensão da estima social (âmbito da solidariedade), uma comunidade de valores se atrela aos interesses recíprocos, cujo reconhecimento leva as pessoas a sentirem orgulho do grupo e a compartilhar uma identidade coletiva, o que reverbera na autoestima (Honneth, 2003).
Na esteira de Honneth (2003), consideramos que a EF, mesmo reconhecida na dimensão do direito, ainda é desvalorizada no âmbito da estima social, visto que falta prestígio social da profissão, em muitos casos, demarcada na visão de uma disciplina de segunda classe. Sobre a configuração deste desprestígio, Faria, Machado e Bracht (2012, p. 127), consideram que “[...] o imaginário social construído em torno da EF, e que a coloca como um componente curricular de menor valor, parece funcionar como um motor que, para além de impulsionar situações de não reconhecimento, pode, inclusive, ‘legitimar’ tais ações” (grifos nossos).
Abrigados na esteira dos autores, vemos um caminho profícuo para conceber os imaginários como fonte dos processos de (des)valorização da EF escolar. Segundo Maffesoli (2001, p. 75), o imaginário “[...] é o estado de espírito que caracteriza um povo”. Logo, o imaginário é social, pois está impregnado do coletivo, o que permite criar uma espécie de cimento para as relações sociais. Assim, podemos compreender que o imaginário social de um indivíduo corresponderá ao do grupo em que ele se insere (Maffesoli, 2001). No campo da EF, Maroun e Vieira (2007) consideram que o imaginário social constitui uma abordagem para o estudo dos fenômenos sociais e da sua cultura inerente ao movimento humano.
Neste estudo, buscamos os imaginários de professores de comunidades escolares no interior do Amazonas acerca da EF escolar. A região Amazônica possui idiossincrasias que afetam, inclusive, as formas educacionais: iniciamos pelos seus povos e culturas compostos pelos indígenas, seringueiros, quilombolas, caboclos, ribeirinhos; destacamos suas ruas compostas de rios e igarapés que dispõem da alimentação, mas, também, da atribuição de sentidos e significados do viver nesta região (Brigada, Ramos, 2020). Esse contexto nos leva a considerar que existem Amazônias (no plural).
São nos banzeiros dos rios que encontramos nossa investigação. Logo, buscamos os imaginários sociais acerca da EF na percepção de professores/as, gestores/as e equipe pedagógica de escolas localizadas nos municípios do interior do Amazonas. Na pesquisa, observamos que os imaginários destacavam, ambiguamente, elementos da (des)valorização da EF escolar. Neste texto, nos concentraremos nesta observação, visto que pode destacar modos de refletirmos sobre os processos de (des)legitimação que podem encadear ações inovadoras ou de desinvestimento pedagógico na interiorização da EF na Amazônia (Faria, Machado, Bracht, 2012; Faria, Bracht, 2014; Machado, Bracht, 2016).
Diante do contexto aludido, nosso estudo se justifica por possibilitar questões afetas à EF no interior do Amazonas, dando espaço para a regionalidade em que as práticas pedagógicas são constituídas. No aspecto geral, o estudo teve como objetivo investigar os imaginários atribuídos à EF escolar pelos professores, gestores e equipe pedagógica das comunidades escolares de municípios do interior do Amazonas. Especificamente, analisamos as ambiguidades expostas nos imaginários com relação à valorização e o não reconhecimento da EF escolar.
METODOLOGIA
Realizamos uma pesquisa qualitativa de caráter exploratória (Gil, 2008), materializada em um estudo de campo com professores/as, gestores/as e equipe pedagógica de escolas dos municípios de Autazes, Itacoatiara, Lábrea, Maués e Silves. Esses municípios foram escolhidos por estarem logisticamente próximos dos polos do curso de licenciatura em EF (modalidade de educação a distância) ofertado pela faculdade de educação física e fisioterapia em parceria com o Centro de Educação a Distância da Universidade Federal do Amazonas.
Participaram da pesquisa 53 colaboradores caracterizados na Tabela 1, convidados e incluídos a partir da técnica de amostragem em bola de neve (Vinuto, 2014). De alguns conhecidos, fomos progredindo e ampliando a rede de colaboradores. Quando apresentarmos a empiria, seguiremos a seguinte disposição de informações do/a colaborador/a (pseudônimo, função, área de formação, idade, município).
Município | Função | Áreas de formação* | Idade** | Tempo de atuação** |
---|---|---|---|---|
Autazes (n=6) | Professor/a (n=5) | Pedagogia, ciências biológicas, matemática, física, geografia | 36,4 anos | 8,2 anos |
Gestor/a (n=1) | Ensino médio | 35 anos | 14 anos | |
Itacoatiara (n=17) | Professor/a (n=14) | Normal superior, ciência política, pedagogia, teologia, letras português, geografia | 44,7 anos | 12,6 anos |
Gestor/a (n=3) | Pedagogia | 47 anos | 10,6 anos | |
Lábrea (n=17) | Professor/a (n=11) | Normal superior, pedagogia, letras português, computação, administração, gestão ambiental | 35,9 anos | 8,2 anos |
Gestor/a (n=3) | Matemática, normal superior | 46,3 anos | 14,3 anos | |
Equipe pedagógica (n=3) | Pedagogia, matemática | 47,3 anos | 11 anos | |
Maués (n=1) | Professor/a (n=1) | Normal superior | 46 anos | 5 anos |
Silves (n=12) | Professor/a (n=11) | Normal superior, matemática, letras português, pedagogia, história, teologia | 47,2 anos | 11,7 anos |
Equipe pedagógica (n=1) | Pedagogia | 45 anos | 4 anos |
Fonte: Elaboração dos autores (2022).
* = O professor/gestor pode apresentar mais de uma formação.
** = Média.
Os critérios de inclusão adotados foram: i) atuar no espaço escolar que tenha, pelo menos, um professor de EF; ii) ter disponibilidade de participar da pesquisa no período determinado; iii) ser gestor, professor ou equipe pedagógica da escola (exceto professor de EF). Não tivemos exclusão nesta pesquisa.
Os dados foram produzidos por intermédio de entrevista semiestruturada, cujas perguntas foram: o que é EF? O que faz a EF? O que torna a EF igual e/ou diferente das outras disciplinas? O que a EF proporciona para a comunidade escolar? O professor de EF participa de reuniões na escola? Assim, buscamos fazer emergir os imaginários sociais quando solicitamos que os participantes falassem sobre a EF no ambiente escolar.
As entrevistas foram realizadas remotamente pelo aplicativo WhatsApp, devido ao estado de emergência da Covid-19. Uma equipe foi treinada para conduzir as entrevistas, visto que estavam nos municípios. Os procedimentos adotados na entrevista foram: boas-vindas; explicação da pesquisa e ambientação (em que foi encaminhado um texto explicativo em PDF e um vídeo do pesquisador responsável); envio da pergunta por escrito (uma de cada vez); recebimento dos áudios de resposta; finalização e agradecimento.
Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Amazonas, Parecer n. 5.030.756. Os participantes foram esclarecidos e assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Os dados foram analisados com base em Silva e Fossá (2015). A análise de conteúdo consistiu em três etapas: 1) leitura geral das entrevistas; 2) exploração e agrupamento dos dados tematicamente em 41 categorias iniciais, 12 intermediárias e quatro finais; 3) emprego da inferência e interpretação de dados com referência à literatura especializada por nós mobilizada.
As categorias finais foram: i) esporte, corpo e dicotomias presentes na EF; ii) estilo de vida, saúde e doença na EF; iii) EF como área de conhecimento que desenvolve competências e habilidades; iv) ambiguidades sobre a (des)valorização da EF. Para o presente texto, iremos apresentar e discutir a quarta categoria, visto que as três primeiras já foram alvo de outro texto. Justificamos este recorte, visto que traz uma discussão já acumulada sobre os processos de inovação e desinvestimento pedagógico, tangenciados pelas ações de (des)valorização da EF escolar.
AMBIGUIDADES SOBRE A (DES)VALORIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR
O conjunto dos dados produzidos e elencados aqui neste artigo trata de uma percepção que tivemos acerca das ambiguidades sobre a (des)valorização da EF escolar a partir dos imaginários sociais dos participantes da pesquisa. A ideia de ambiguidade tem uma conotação ambivalente (Bauman, 1999), pois havia a possibilidade de conferir os imaginários a mais de uma categoria (no caso, da desvalorização ou da valorização da EF escolar). Por vezes, observamos que, na mesma narrativa, o participante relatava elementos de valorização da EF, no entanto, emergia uma espécie de mas, acompanhado de elementos que sugeriam processos de desvalorização. A seguir, a própria empiria nos permitirá visualizar esse mas.
Ao analisarmos as narrativas, chamou-nos a atenção que 36 participantes indicaram em suas falas que a EF é importante ou valorizada na escola. Vejamos alguns exemplos:
[...] então, a EF é uma matéria, uma disciplina, muito importante. A EF proporciona para nossa escola, melhoria de vida mental para nossos alunos e os nossos comunitários (Jaques, professor, matemática, 38 anos, Autazes).
Conversamos diariamente com o professor de EF, pois ele faz parte do quadro. A EF é uma disciplina de suma importância dentro da escola (Tânia, gestora, pedagogia, 40 anos, Itacoatiara).
O professor de EF, assim como todos os outros, participa tanto do planejamento escolar quanto do conselho de classe. Essas aulas dentro da escola são fundamentais e valorizadas, também, porque elas promovem o desenvolvimento tanto mental quanto físico de nossos alunos (Suelen, coordenadora, matemática, 44 anos, Lábrea).
Por se tratar de uma disciplina, eu acredito que seja igual [às outras], porque faz parte da grade curricular. Então, é administrada em todos os níveis de ensino [...] Eu acredito que perpassa a importância das atividades físicas para o ser humano e desperta o interesse para as atividades físicas, proporcionando envolvimento com os exercícios físicos (Ester, professora, normal superior, 46 anos, Maués).
A EF na escola serve para o desenvolvimento do aluno. As práticas de EF são realizadas nas turmas desde a creche até o ensino fundamental II. O que eu observo como pedagoga, a importância da prática da EF para que o aluno tenha uma postura melhor no corpo [...] a importância da EF na escola serve para melhorar o aprendizado do aluno, sobre até mesmo a coletividade com outros colegas, a socialização com os outros colegas (Letícia, pedagoga, pedagogia, 45 anos, Silves).
Os trechos das narrativas expressam que os participantes observam a EF como uma disciplina importante e valorizada. Geralmente, essa valorização vem associada ao desenvolvimento da saúde (notoriamente a biológica) e da socialização/aprendizagem dos alunos. Outra questão que observamos é a menção da EF ser igual às outras disciplinas, visto que é um componente curricular obrigatório. Também, é possível notar relatos de que o professor de EF participa dos espaços escolares de planejamento e do conselho de classe. Souza, Nascimento e Fensterseifer (2018) observaram que, quando o professor de EF é valorizado pela comunidade, há maiores chances de vinculação a processos de sucesso pedagógico.
Outro elemento que os dados nos permitem analisar é a cultura escolar. Faria e Bracht (2014) identificaram culturas escolares atomizadas, ou seja, quando não havia contato entre os professores. Quando vemos nas narrativas que o professor de EF parece participar de momentos de planejamento e espaços pedagógicos, isso pode minimizar essas culturas atomizadas e estabelecer espaços para o reconhecimento mútuo (Faria, Bracht, 2014). No entanto, há um limite nas narrativas, o que não nos permite observar como se dá essa participação, o que sugere que, em outros estudos, os professores de EF devem ser acessados para visualizarmos como essas relações se constituem na ótica deles.
Outro conjunto de narrativas, exemplificadas a seguir, expressam que a EF escolar é considerada uma disciplina prazerosa e a mais aguardada pelos alunos.
[...] valoriza sim a EF. Depois, a EF foi vista como disciplina prazerosa, tanto em sala de aula na teoria como na prática. Os alunos passaram a gostar mais da EF (Jaques, professor, matemática, 38 anos, Autazes).
Os professores procuram desenvolver a sua prática pedagógica nas aulas de EF de forma prazerosa. Para que os alunos, realmente, possam não só compreender a importância da EF para a sua vida, mas também para as suas atividades (Aline, professora, normal superior, 54 anos, Itacoatiara).
Então, o professor de EF sempre acaba sendo aquele mais esperado pela turma, pela classe, porque ele sabe que, com a EF, ele sai daquelas quatro paredes da sala de aula (Verônica, gestora, pedagogia, 48 anos, Itacoatiara).
Eu acredito que ela [a EF] é muito importante no desenvolvimento dos alunos. Porque é uma disciplina que eles adoram, principalmente, a parte da prática. Eles gostam de fazer exercícios físicos e para eles é uma das melhores disciplinas. Muitas vezes, eles ficam ansiosos porque vai ter EF e eles querem participar (Mayara, professora, pedagogia, 53 anos, Lábrea).
Eu gostaria de comentar sobre a satisfação, sobre o prazer, sobre a alegria dos alunos no momento de fazer a EF. Eles ficam muito alegres. É um momento do qual eles ficam mesmo esperando por aquilo. E quando acontece algo que impede esse momento, eles ficam tristes, eles ficam reclamando [...] É algo que tira eles daquela rotina de todos os dias, dentro de uma sala de aula (Lavínia, professora, pedagogia, 41 anos, Silves).
O fato de a EF ser considerada uma disciplina prazerosa parece estar vinculada à possibilidade de os alunos saírem de sala de aula, porque ela trabalha com o movimento, os jogos, as brincadeiras etc. Também, observa-se o fato de que os alunos criam expectativas quanto à chegada da hora da EF, pois ficam eufóricos, ansiosos, alegres e até reclamam quando o momento não acontece. Esses imaginários que tangenciam a EF como uma atividade prazerosa, vinculados inúmeras vezes a uma certa importância e valor do componente curricular, possuem um valor ambíguo como uma espécie de bênção confusa (Bauman, 2001).
A ideia de prazer e alegria, elementos que fazem parte da vida humana (inclusive, da qual trabalhamos para conquistar), podem ambiguamente sustentar uma valorização desvalorizada da EF escolar. Isso porque os imaginários que cimentam essas compreensões estejam mais vinculados à ideia do prazer e da alegria como algo funcional (ou seja, para extravasar as energias acumuladas no trabalho intelectual da sala), do que a uma compreensão dessa dimensão da vida como constituinte do desenvolvimento humano, por exemplo, como aponta o Relatório Movimento é Vida (Pnud, 2017).
Souza, Nascimento e Fensterseifer (2018) comentam sobre algumas relações dos alunos com a EF, que podem até gostar dela (dos seus conteúdos ou da possibilidade de sair da sala de aula), mas não conseguem perceber alguma contribuição para sua formação. Geralmente, nesses casos, não é incomum observar que os alunos dizem que gostam mais de EF, mas consideram português e matemática como mais importantes para suas vidas - já que no imaginário social hegemônico, essas áreas do conhecimento tendem a ser consideradas mais importantes.
Parece-nos que tal bênção confusa, que se observa nas narrativas, foi bem captada por Furtado e Borges (2020, p. 31) quando comentam o processo que a EF passou, enquanto área, buscando sua legitimação:
Contudo, as dificuldades apareceram nas questões internas da cultura escolar, na organização dos conteúdos e no processo de escolarização com as práticas corporais. Em conexão com a narrativa sobre a necessidade da educação física se tornar uma disciplina curricular, devem-se articular os argumentos de legitimidade. Sendo assim, justificativas do tipo; a educação física é a disciplina mais “lúdica” do currículo, espaço e tempo prazeroso, a disciplina que opera exclusivamente com o movimento etc., apresentam lacunas se a centralidade é pensar a demanda pela legitimidade e organização do conhecimento em todos os níveis de ensino e modalidades de educação da educação básica.
Compartilhamos a preocupação dos autores sobre os processos de legitimação da EF, quando se dão pelas justificativas do prazer, do lúdico da alegria, contudo, esvaziadas de sentido pedagógico e formativo. Inclusive, os autores chamam a atenção de que esses movimentos ambíguos estão presentes na Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Ou seja, que apesar de alguns avanços quanto aos saberes trabalhados pela EF, ainda persiste uma visão da disciplina que vai tirar da sala e trabalhar fora da perspectiva da racionalidade científica (Furtado, Borges, 2020).
Podemos estar corroborando uma leitura um tanto pessimista dos imaginários relacionados à EF escolar quanto à sua valorização/legitimação no ambiente escolar. No entanto, vemos como necessária essa análise, pois, podemos nos enganar quanto à bênção confusa que parece se colocar tanto nos imaginários sociais construídos quanto nos documentos oficiais que norteiam as práticas curriculares. E a leitura pessimista que ganha notoriedade neste ponto, parece ser fortalecida pelas ambiguidades expressas por uma espécie de mas, presente nas narrativas dos participantes da pesquisa. Isso se dá pelo fato de que muitos participantes ao mesmo tempo que dizem sobre a importância e valorização da EF, logo, também expressam elementos de sua desvalorização.
Quando observamos as narrativas, identificamos falas que indicavam que a EF é desvalorizada de várias formas, segundo a percepção dos imaginários, no ambiente escolar. Abaixo exemplificamos tais narrativas:
Na minha opinião, a EF precisa ser um pouco mais valorizada por todos na escola (Antônia, professora, pedagogia, 43 anos, Autazes).
Percebemos muitas vezes que essa aula de EF, às vezes as pessoas discriminam a prática. Mas, se ela for bem elaborada e bem planejada, ela vai ser o ponto chave do sucesso dentro de uma escola (Mariele, gestora, pedagogia, 53 anos, Itacoatiara).
Existe quadra na sua escola? Não. Qual a importância de uma quadra para o professor na escola? As respostas [que dei] acima respondem a pergunta (Gabriel, professor, pedagogia, 31 anos, Lábrea).
O que eu gostaria de comentar é que a EF fosse levada de forma mais séria. Porque, às vezes, a gente observa que por ser somente duas aulas na semana, parece assim algo com pouca importância. A gente pode observar que é algo importante, mas muitas vezes os alunos não levam a sério. Muitas vezes, até os próprios professores não levam a sério, porque deixam os alunos muito à vontade, muito no vácuo (Ester, professora, normal superior, 46 anos, Maués).
O professor de EF tem que ser mais valorizado. Porque eu vejo a questão da valorização do professor de EF, da importância que ele tem na escola de auxiliar os alunos nos movimentos que devem fazer (Letícia, pedagoga, pedagogia, 45 anos, Silves).
Faria, Machado e Bracht (2012), na esteira de Honneth (2003), indicam que as relações de reconhecimento e de negação do conhecimento podem ser observadas a partir da desvalorização, inclusive, quando observamos as condições de trabalho e do prestígio social da profissão. Logo, a empiria indica alguns pontos relativos à desvalorização da EF escolar como: a sensação de que a EF enquanto disciplina é desvalorizada (ou precisa ser mais valorizada) pelos professores ou alunos; que o professor de EF é desvalorizado (ou precisa ser mais valorizado); ou que falta infraestrutura e investimento na EF escolar.
Para Souza, Nascimento e Fensterseifer (2018), as ações de desrespeito direcionadas aos professores de EF, ocorrem porque a disciplina é considerada como inferior e colocada em um patamar sobre o qual é questionada quanto à sua contribuição na educação escolar. Soma-se a isso a visão de que a EF é tida, em muitas das vezes, como uma disciplina de segunda classe (Faria, Machado, Bracht, 2012).
Cabe ressaltar, com Almeida (2017), que existem barreiras que acabam por influenciar as práticas pedagógicas dos professores, podendo os levar ao desinvestimento pedagógico. Olhando as narrativas já expressas, podemos considerar que a falta de conhecimento das funções da EF, o não reconhecimento do trabalho do professor de EF e a inexistência de infraestrutura e condições objetivas para o ensino são barreiras presentes para professores de EF nos municípios do interior do Amazonas que foram alvo deste estudo. É importante ressaltar que “[...] esses são elementos que podem impedir o desenvolvimento de boas práticas” (Almeida, 2017, p. 12).
Ainda sobre os elementos acima citados, temos outras narrativas que vão agregando indícios sobre os processos de desvalorização da EF no interior do Amazonas. Vejamos:
Porque o antigo professor, ele só trabalhava, só era bola, bola, bola. Então, eles não tinham outro tipo de atividade (Eliana, professora, pedagogia, 38 anos, Itacoatiara). Na escola, em relação ao que os alunos fazem, normalmente, o que a gente observa é que, assim, costumeiramente e cotidianamente, nas aulas eles utilizam muitas atividades com bola (Apolo, professor, matemática, 43 anos, Silves).
[A EF] proporciona momentos de lazer, respeito mútuo e diversão, quando é realizado o campeonato escolar nas modalidades de futsal, queimada e futebol de campo (Ranulfo, professor, física, 40 anos, Autazes).
A EF proporciona para a escola, em geral, para os alunos, proporciona um momento de lazer e de aprendizado (Manuela, professora, pedagogia, 42 anos, Lábrea).
[...] nós damos muito valor a essa disciplina, porque as crianças precisam disso. Muitas delas ficam uma, duas, três horas dentro de uma sala de aula. E aquilo é muito fatigante. Então, elas precisam disso: se movimentar, correr, pular, respirar o ar puro, pegar um sol de vez em quando (Gabriela, professora, letras português, 40 anos, Itacoatiara).
No meu ponto de vista, em termos pedagógicos, ela [a EF] é igual as outras [disciplinas]. Para os alunos não, mas é porque eu vejo que eles veem na EF um meio de extravasar. Entendeu? De botar ali as suas energias. Às vezes, para os alunos que aquele é o único momento de se socializar. Eles não têm amigos. Então, aquele é o único momento de brincar (Fátima, professora, normal superior, 41 anos, Silves).
O conjunto de narrativas traz alguns elementos a serem considerados quanto a uma visão negativa da EF, quais sejam, que ela está reduzida a jogar bola, que é um momento livre (geralmente relacionado aos termos lazer ou diversão), ou o momento de extravasar as energias. Pich, Schaeffer e Carvalho (2013), comentam que o imaginário social que sustenta a tradição da EF, conduz ao entendimento de que a disciplina deve colocar os alunos para correrem e gastar as energias, ou que os professores apenas rolam a bola. Essas visões destacam um imaginário de que a EF não está sustentada por um alicerce didático-pedagógico e que a prática do professor não necessita de ser respaldada teórico-metodologicamente (Pich, Schaeffer, Carvalho, 2013).
Uma das narrativas apresentadas acima expressa o que vimos chamando de ambiguidades da (des)valorização da EF escolar, o que gera uma bênção confusa. A professora Gabriela destaca que, em sua escola, a EF é valorizada, mas porque ela oportuniza o tempo livre para as crianças saírem da sala de aula e extravasar suas energias. Essa perspectiva, também observada em outras narrativas, parece indicar o que González et al. (2013, p. 13) destacaram, que o reconhecimento da EF (e dos seus professores) “[...] parece estar mais ligado a fatores extraclasse do que às aprendizagens específicas oportunizadas na disciplina”. Dito de outro modo: a valorização da EF não está vinculada ao seu corpo de saberes-fazeres necessários para a educação e desenvolvimento dos alunos, mas pelo fato de oportunizar a administração da tensão gerada no ambiente escolar quando os alunos ficam muitas horas sentados para estudar nas outras disciplinas.
Por fim, ainda há um conjunto de narrativas que denotam outros elementos da desvalorização da EF escolar no interior do Amazonas. A seguir colocamos algumas:
Então, os professores conseguem desenvolver um trabalho bem dinâmico, apesar de não terem a formação na área [...] A pergunta seria: se o professor não tem a formação na área de EF, não é graduado em EF, de que forma ele pode desenvolver a prática pedagógica nas aulas de EF na escola? (Aline, professora, normal superior, 54 anos, Itacoatiara).
Para mim que já trabalhei também como professora de EF dentro da escola “Sol Brilhante”, eu vejo a disciplina de EF como uma das disciplinas mais importantes na vida da criança (Rafaela, professora, pedagogia, Lábrea, 37 anos).
[...] eu já fui professor de EF algumas vezes, apesar de não ter formação. Na necessidade, acabei trabalhando (Eliezer, professor, letras português, 48 anos, Silves).
Porque, se você olhar, é uma das disciplinas que a maioria dos alunos gostam. Dificilmente, um aluno não gosta da prática de EF. E aí é negociável, com a questão da EF. Porque acaba a pessoa também chamando um pouco mais de atenção dos alunos para uma outra prática, de uma outra disciplina. Porque ele quer participar da EF, ele quer sair, ele quer ter aquele momento de socialização, de brincadeira (Verônica, gestora, pedagogia, 48 anos, Itacoatiara).
E o que eu gostaria de comentar mais um pouco é que a EF sempre foi uma área, assim, gostosa de trabalhar. A gente sabe que, dentro da EF, o professor pode trabalhar também a matemática, a arte, a ciência. Não só a parte da ginástica. Mas, pode trabalhar tudo isso: a história, a geografia. [...] A gente orienta sempre o professor para que ele possa colocar a sua aula como uma aula interdisciplinar, que abrange ali, a partir da EF, várias outras disciplinas (Caleb, coordenador, pedagogia, 47 anos, Lábrea).
Acima, temos mais alguns elementos que destacam os seguintes processos de desvalorização da EF escolar: a ausência de professores formados em EF, a EF como moeda de troca (ou de punição), e a EF como apêndice de outras disciplinas. Podemos conceber que a ausência de professores formados em EF no interior do Amazonas, conforme relatado em algumas narrativas, indica problemas complexos que necessitam de ser debatidos e visados pelas políticas públicas. Souza, Sá e Machado (2020) identificaram fenômeno semelhante no município de Manacapuru/AM, em que o professor graduado em pedagogia ministrava aulas de EF. Parece-nos que essa ausência expressa, por um lado, o pouco investimento em material humano e, por outro, a falta de formação especializada no interior do Amazonas (que tem sido um grande desafio para as universidades públicas, inclusive, pela falta de verba para interiorizar ainda mais a formação inicial e continuada).
Outros dois elementos a serem ressaltados se vinculam à ideia de que a EF acaba sendo usada como moeda de troca ou como um apêndice de outras disciplinas. No primeiro caso, a EF acaba sendo usada como uma forma de punir os alunos desobedientes ou que não fizeram as tarefas de outras disciplinas. Silva et al. (2021) e Bandeira et al. (2022) chamam atenção para que as aulas de EF sejam valorizadas e nunca utilizadas como meio de punição. E, geralmente, essa concepção da moeda de troca evidencia, mais uma vez, a denegação da EF enquanto uma disciplina obrigatória e que possui um corpo de saberes-fazeres necessários para a educação e desenvolvimento dos alunos. Cabe, ressaltar ainda, corroborados pelo estudo de Faria, Machado e Bracht (2012), que a EF acaba sendo vista como uma disciplina auxiliar, ou seja, como um apêndice da escola. E, por vezes, essa perspectiva fica mascarada como interdisciplinaridade. No caso, a EF trabalha interdisciplinarmente os conteúdos de outras disciplinas, mas sem estabelecer vínculos com os professores dessas outras disciplinas para um trabalho conjunto e, de fato, interdisciplinar. Dito de outra forma: a EF acaba sendo a extensão de aplicação dos saberes de outras disciplinas (por exemplo, aprender a contar ou a ler em uma brincadeira).
Por fim, cabe refletir que todos os elementos visualizados que estão relacionados aos processos de não reconhecimento e não valorização da EF escolar foram apontados por vários autores como foco ou motor do fenômeno do desinvestimento pedagógico (Faria, Machado, Bracht, 2012; Almeida, 2017; Santos, Bracht, Almeida, 2009; Souza, Nascimento, Fenstereifer, 2018; Faria, Bracht, 2014; González et al., 2013; Pich, Schaeffer, Carvalho, 2013). Ou seja, as ações de desvalorização da EF escolar, geram ou sustentam processos de não reconhecimento que podem impactar significativamente nas identidades docentes, levando os professores ao abandono da docência.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Podemos concluir que os imaginários sociais arregimentados a partir dos participantes da pesquisa destacaram processos de (des)valorização da EF perpassados por ambiguidades que se evidenciaram como uma espécie de bênção confusa. Se por um lado, a EF é vista como importante e valorizada no ambiente escolar, por vezes o que sustenta esses imaginários pode desvalorizá-la, a saber: narrativas que a legitimam como possibilidade de sair da sala ou momento prazeroso. Também, observamos a presença de um mas, quando as narrativas de valorização eram acompanhadas de indícios de desvalorização, a saber: que a EF é importante, mas não tem professor; não tem espaço físico; que é moeda de troca (punição); ou um apêndice da escola (muitas vezes disfarçado de interdisciplinaridade). Percebe-se, ainda, que o mas das narrativas indica um grito por melhorias e valorização da EF no contexto escolar. Se, por um lado, os processos de valorização podem incidir no investimento na profissão e na inovação pedagógica, por outro, preocupa-nos que os processos de desvalorização podem desencadear o fenômeno do desinvestimento pedagógico ou o abandono da docência.
Diante dos dados e análises, sugerimos que políticas públicas tenham como alvo a valorização do magistério, de maneira geral, com melhores salários e condições concretas para a materialização da ação pedagógica. Também, que essas políticas incidam na mudança das culturas escolares, criando e permitindo mais tempo e espaços para os professores planejarem e se reunirem, de maneira que conheçam e reconheçam o trabalho do outro. Ainda, que investimentos sejam feitos para a contratação de professores formados em EF, para a construção de espaços e compra de materiais pedagógicos adequados para as aulas. Por fim, ações futuras no campo da formação continuada dos professores são necessárias para tematizar a função e o trabalho desenvolvido pela EF no interior do Amazonas. Também, consideramos que novas pesquisas devem buscar acessar os professores de EF, suas histórias de vida, formação/atuação profissional e relações com a cultura escolar.