Salvaguardadas as devidas distâncias, e sabendo-se de antemão que o filósofo Michel Serres (1930-2019) considerava Henri Bergson “um dos últimos pensadores de língua francesa” (SERRES, 2001, p. 72), poder-se-á ainda assim afirmar que Serres herdou de Merleau-Ponty a proposta de uma ontofenomenologia do sensível, do corpo e da carne bem como de Husserl, por inferência e radicalidade, a ideia de uma redução fenomenológica do mundo. Tal como Merleau-Ponty, que defende que:
“Vemos as coisas mesmas, o mundo é aquilo que vemos: fórmulas desse gênero exprimem uma fé comum ao homem natural e ao filósofo desde que abre os olhos, remetem para uma camada profunda de ‘opiniões’ mudas, implícitas em nossa vida. Mas essa fé tem isto de estranho: se procurarmos articulá-la numa tese ou num enunciado, se perguntarmos o que é este nós, o que é este ver e o que é esta coisa ou este mundo, penetramos num labirinto de dificuldades e contradições” (MERLEAU-PONTY, 2009, p. 18).
Ou como Husserl que sustenta:
“A experienciar, a viver em geral como eu (a pensar, a valorar, a agir), sou necessariamente eu que tem o seu tu, o seu nós e o seu vós, o eu dos pronomes pessoais. E necessariamente, do mesmo modo, sou e somos, em comunidade egológica, correlatos de tudo o que dizemos, como entes mundanos, disso que, no dizer, no nomear e no discursar pressupomos sempre já no fundamentar cognoscitivo, como experienciável em comum, como o eu na comunidade da vida da consciência existe efetivamente para nós, é efetivo, vale para nós como algo de não isolável individualmente, mas interiormente comum. Mas, apesar de o mundo ser o nosso mundo comum, necessariamente, na validade do ser, posso, contudo, no particular, entrar em contradição com o meu outro, cair na dúvida e na negação do ser do mesmo modo como comigo mesmo” (HUSSERL, 2008, p. 277).
Igualmente, Serres manifesta que é apenas enquanto sujeito ontofenomênico, colocando-se entre as coisas e misturando-se com elas, que é possível conhecer:
“O corpo dobra-se, curva-se, adapta-se, gozando de pelo menos trezentos graus de liberdade, desenha dos pés à cabeça ou à ponta dos dedos um caminho variável e complexo entre as coisas do mundo, cambiante como uma alga no fundo da água, mil e um caminhos de circulação ou de semáforo. Conhecer as coisas exige que nos coloquemos primeiro entre elas. Não apenas em frente para vê-las, mas no meio de sua mistura, nos caminhos que as unem, [...] a pele realiza nossas circulações, o corpo desenha o caminho atado, ligado, pregueado, complexo, entre as coisas a serem conhecidas” (SERRES, 2001, p. 76).
Apresenta-se, desse modo, uma ontofenomenologia do sensível; uma libertação do corpo, não só no sentido em que se realiza a consciência encarnada, tão evidente na obra Os cinco sentidos - Filosofia dos corpos misturados 1 (Les cinq sens - Philosophie des corps mélés 1), mas também em que se apropria da sua natural mobilidade, criticando-se, como mostra em Polegarzinha (Petite poucette), a secular prostração que lhe fora devotada, sobretudo a partir da escolástica; e uma condenação do idealismo e da abstração meramente analítica:
“Muitas filosofias referem-se à vista; poucas ao ouvido; menos crédito ainda dão ao tato e ao odor. A abstração recorta o corpo que sente, suprime o gosto, o olfato e o tato, conserva apenas a vista e o ouvido, intuição e entendimento. Abstrair significa menos sair do corpo do que o partir em pedaços: análise” (SERRES, 2001, p. 21).
No entanto, Serres demarca-se de Merleau-Ponty no que diz respeito à questão da filosofia da linguagem, da fala, do discurso, do logos. Não tanto, segundo cremos, na perspectiva da fenomenologia como filosofia transcendental, como “revelação do mundo” (MERLEAU-PONTY, 2005, p. 21), afinal, Serres não se oporia a uma filosofia que consistisse em “reaprender a ver o mundo” (MERLEAU-PONTY, 2005, p. 21), em perscrutá-lo, mas no sentido em que a “nossa língua reencontra no fundo das coisas a fala que as fez” (MERLEAU-PONTY, 2005, p. 31) e que “são as próprias coisas, do fundo de seu silêncio, que deseja conduzir à expressão” (MERLEAU-PONTY, 2009, p. 18). Esse equívoco, segundo Serres, conduz-nos a julgar que apenas existimos quando nos expressamos por meio da fala:
“Um dia eu falava para um auditório, atentos ele e eu, em um palanque de conferência. Súbito, uma vespa me picou no lado interno da coxa, a surpresa somou-se à dor aguda. Nada na voz ou na entonação denunciou o acidente, e o discurso foi concluído. Esta recordação exata não pretende alardear uma coragem espartana, mas indicar apenas que o corpo falante, a carne plena de linguagem não tem muita dificuldade em continuar na palavra, aconteça o que acontecer. O verbo ocupa e anestesia a carne, até disseram, escreveram que ele se fazia carne. Nada insensibiliza mais a carne do que a palavra. Se eu estivesse olhando alguma imagem, ouvindo o som saído do positivo, cheirando uma grinalda de flores, provando um confeito, segurando um bastão com a mão fechada, o aguilhão da vespa ter-me-ia arrancado gritos. Mas eu falava, em equilíbrio dentro de um sulco ou de um claustro, no interior da couraça discursiva. Querem drogar profundamente um paciente? Levem-no a falar com paixão e ênfase, peçam-lhe que fale dele, só dele, só do desejo dele. Ei-lo intoxicado de palavras sonoras, a vespa já não pode com nele. Falamos para nos drogar, militantes como egotistas” (SERRES, 2001, p. 54).
É difícil, todavia, não nos deixarmos seduzir por esse postulado socrático-platônico, mesmo que Wittgenstein nos lembre que “acerca daquilo que não se pode falar, tem que se ficar em silêncio” (WITTGENSTEIN, 1987, 142). Serres chama a atenção precisamente para esse fascínio perigoso pela loquacidade num dos capítulos mais paradigmáticos de Os cinco sentidos - Filosofia dos corpos misturados 1: “Cura em Epidauro” (“Guérison à Épidaure”):
“Sozinho, esta manhã, apoiado numa arquibancada, saboreio o sol, há duas horas, no teatro de Epidauro. No solstício de inverno, o enxame de turistas, nova guerra, dá trégua. Paz no ar transparente, amarelo e azul. Silêncio. A paisagem espera os deuses, espera-os há dois mil anos. Silêncio. Os deuses vão descer, a cura advirá” (SERRES, 2001, p. 83).
Ao apresentar, desse modo, uma analogia entre a cura do corpo e a cura da filosofia (do discurso ou da linguagem) por meio do silêncio, ou seja, assim como a cura do corpo se dá pelo silêncio dos órgãos, a cura da filosofia se dá igualmente pelo silêncio do logos, Serres critica profundamente a raiz socrática (lógica e dialógica) do pensamento ocidental. Afinal, “a saída do ruído cura, mais que o mergulho na linguagem” (SERRES, 2001, p. 83).
O filósofo francês reflete, nesse sentido, acerca do hiato que se estabeleceu desde logo, no princípio da história da filosofia ocidental, entre o saber e a linguagem. Com o passar da era arcaica para a era antiga e, nesse aspecto, Serres aproxima-se do pensamento de Nietzsche, o saber afasta-se da verdade que os deuses, os mitos, a terra, o céu e a natureza encerram em si mesmos, naturalmente, dissociados, portanto, de uma linguagem formal e artificial que o nascimento da filosofia no século V a.C. acabaria por introduzir como negação do pensamento telúrico-mitológico, a que o surgimento da escrita na Grécia, obviamente, não pode alhear-se. Sócrates é o exemplo perfeito dessa dissociação e dessa transição. Sócrates representa o paradigma falacioso e egolátrico de um logos que se opõe, que guerreia e que se confronta simplesmente para negar. Afinal, os diálogos platônicos têm, na sua generalidade, um objetivo aporético, não chegam na prática a lado nenhum, querem apenas mostrar que os outros homens, para além de Sócrates, não atingiram o verdadeiro conhecimento, ou, então, que o atingiram em menor grau do que ele. A célebre conclusão de que “só sei que nada sei” é um simulacro, um método narcísico que Sócrates criou para se fechar num palácio de linguagem, de palavras excessivas e contraditórias, onde se acredita descobrir o saber. Serres é-lhe implacável:
“Até o instante da morte, ele [Sócrates] não parou de falar. Mesmo num momento tão solene e privado, não conseguiu parar de falar. Sócrates decidiu não abandonar a prisão de ferro e de pedra, não pode escapar, nem um pouco, da fortaleza falastrona, não deixou a gaiola de marfim constituída das Leis e de seu grupo de pressão, não pôde deixar o verbo, nem conseguiu esquecer seu diálogo e sua língua, mosca que bate no vidro da resposta e rebate no muro da pergunta; a prisão vibra de ruído até à agonia, tudo acaba com o sacrifício do galo, palavras, gritos outra vez, quando o corpo está meio gelado. De que doença a morte de Sócrates, aparentemente sacrificado às Leis, curou seus amigos, de que doença polêmica?” (SERRES, 2001, p. 88-89).
A narrativa da visita de Serres ao teatro grego de Epidauro, no santuário de Esculápio, constitui-se ela mesma numa metáfora de dupla significação: 1) rememorar o ato da tragédia da condenação de Sócrates, cujo mote se deu a partir da fala que o filósofo grego endereçou a Críton, na hora da sua morte - “devemos um galo a Esculápio, não se esqueça de pagar a dívida” (SERRES, 2001, p. 87-88) -, é, então, rememorar o conflito que a linguagem, durante todos esses séculos, ao olvidar-se do silêncio, trouxe à filosofia; 2) regressar ao convívio dos deuses é regressar ao silêncio. Ou seja,
“Banhar-se de silêncio equivale a curar-se; a solidão liberta o silêncio do império da linguagem. Se o mundo se encher de barulho, em breve, quem pesquisará? A língua produziu a ciência, a ciência tornou possível mil técnicas que fazem barulho bastante para que afinal possamos dizer que o mundo clama com língua. A linguagem fez muito para ter razão afinal. Procuro um abrigo fora dessa razão: durante o solstício de inverno, em Epidauro, fora da estação” (SERRES, 2001, p. 86).
Serres está convicto de “que existe um mundo independente dos homens” (SERRES, 2001, p. 100), um mundo realista e verdadeiro, que existe para lá da linguagem, e que não pode ser capturado pelo verbo. Um mundo de a-logos, de silêncio, no qual se tem plena noção de que a doença que herdamos há séculos e séculos, quando a filosofia e o logos foram inventados juntos, só pode ser curada quando compreendermos “a afirmação de que não existe mundo fora do que dizemos dele, mergulha inteiramente na linguagem” (SERRES, 2001, p. 100). Trata-se de uma asserção autológica, de um autismo do verbo, que visa entorpecer e condenar o saber vital em nome de um saber lógico e racional.
A metáfora da visita a Epidauro, a metáfora do pagamento da dívida a Esculápio, com vista a obter-se a cura, acenam, assim, para o mundo e para a vida que não se deixam enclausurar pela representação da palavra, da ordem, da ciência e da morte:
“Essa ideia tão difundida de que tudo deve ser dito e resolvido pela linguagem, de que todo verdadeiro problema dá assunto para debate, de que a filosofia se reduz a perguntas e respostas, de que só podemos nos tratar pela fala, e que o ensinamento passa exclusivamente pelo discurso, esta ideia falastrona, teatral, publicitária, sem vergonha nem pudor, ignora a presença real do vinho e do pão, seu gosto tácito, seu odor, esquece o ensino pelos gestos apenas esboçados, a conivência, as cumplicidades, o que não se precisa dizer, a súplica de amor insigne, as intuições incríveis que faíscam como o raio, o encanto que perdura após uma atitude, essa ideia judiciária condena os tímidos, os que nem sempre têm opinião própria e nem sabem o que pensam, os pesquisadores, essa ideia de professor exclui os que não assistem à aula, os inventores e os humildes, os que hesitam e são tocados, as pessoas de espírito, conheci tantas coisas sem texto e pessoas sem gramática, crianças sem léxico, velhos sem vocabulário, vivi tanto no estrangeiro, mudo, aterrorizado atrás da cortina das línguas, teria realmente saboreado a vida se não tivesse feito mais do que ouvir ou falar, o que sei de mais precioso está encastoado em silêncio. Não, nem o mundo, nem a experiência, nem a filosofia, nem a morte se deixam encerrar no teatro, no tribunal, ou numa aula. Esta ideia verdadeira esquece a física e a vida, a ciência e a literatura, a modéstia e a beleza” (SERRES, 2001, p. 102).
A condenação de Sócrates à morte, a sua saída de cena do tribunal e da vida ateniense revelam o fim de um ciclo, de um ciclo da palavra, da linguagem, da sabedoria, do sábio, do logos, e abrem, curiosamente, um outro. Afinal, “a partir de uma certa altura, a ciência deve responder pelas crianças. Sai o sábio, eis a criança”. (SERRES, 2001, p. 103). Esta deixa manifesta-se comumente na obra de Serres, ou seja, o legado da epistemologia, da ética filosófica ou da ontofenomenologia não se encerra em si mesmo, extravasa e é na educação que encontra o seu melhor ponto de atualização. Serres mostra-nos particularmente esse aspecto nos textos O terceiro instruído (Le tiers-instruit) e Polegarzinha.
Como anteriormente afirmado, ao fazer da ética, da ontofenomenologia e da epistemologia os seus principais campos reflexivos, a obra filosófica de Michel Serres acaba incontornavelmente por desembocar na educação. Esta apresenta-se como o centro nevrálgico (ainda que, paradoxalmente, elíptico) da construção ontoepistemológica e ontofenomenológica do ser humano, afinal, a “criação, instrução, educação formam esse sujeito central, à imagem do centro do mundo” (SERRES, 1993, p. 52). Desse modo, ao apontar críticas veementes ao curso que as histórias da ciência, da educação e das sociedades em geral vêm trilhando - reparemos na ênfase que o autor dá, em O contrato natural (SERRES, 1992) e em Polegarzinha (SERRES, 2013, p. 13), à necessidade do homem voltar à Terra inteira e ao amor (SERRES, 1992, p. 82-83) -, Serres aponta para um caminho descentrado, ao qual dá o nome de terceiro (tiers), que não tendo receio da exclusão, da dor, da violência e da pobreza, tem como meta criar “um terceiro homem, o terceiro instruído” (SERRES, 1993, p. 56).
Ora, esse terceiro homem, esse terceiro-instruído (tiers-instruit), nada mais sendo do que o resultado de uma filosofia que compreende a educação enquanto processo inventivo, enquanto sistema que concede à razão um papel de moderação - uma razão moderada, por oposição à razão moderadora dos iluministas (SERRES, 1993, p. 115) -, coloca-se (e é colocado) numa demanda em que a aprendizagem e a aquisição do conhecimento se instauram enquanto viagem. Aprender é, assim, um segundo nascimento, uma instância (a que, também, se poderá chamar lugar) em que o viajante terá necessariamente que ter em conta a alteridade, a existência e a essência do outro. Afinal, jamais o jogo do aprender, o jogo pedagógico, se poderá fechar em (ou a) dois - viajante e destino (objetivo). É preciso contemplar-se um terceiro elemento, um terceiro lugar, que preconize tanto a sensibilidade do eu, a sua essência como um todo, como igualmente a sensibilidade e a essência do outro.
A aprendizagem é um caminho de autocrescimento e de autognose, a mais elementar assunção do estímulo délfico-socrático, mas que se impõe, todavia, enquanto limite e radicalidade do diálogo ser/saber versus não-ser/não-saber. Para Serres, é inconcebível que ainda haja vestígios da epistemologia parmenideo-platônica neste aspecto, no fim de contas, o discurso sobre o ser e o saber não pode ignorar o não-ser e o não-saber. Eles estão implicados, isto é, “o não-saber limita o próprio saber e confunde-se com ele” (SERRES, 1993, p. 50). Ao mesmo tempo, aprende-se (e ensina-se) aquilo que se compreende e aquilo que não se compreende. No primeiro caso, a distinção e a dúvida desaparecem. No segundo, elas instalam-se e projetam um tempo e um lugar que o primeiro caso descarta ou abrevia. Mais uma vez, Serres afasta-se de Platão e crê que aprende-se e sabe-se mais sobre aquilo que ainda não se compreende e não se sabe.
Ontofenomenologia, epistemologia e educação surgem, desse modo, entrelaçadas. Não há um discurso sobre uma que não implique um discurso sobre as outras duas e vice-versa. Discursos esses que se pretendem, desde sempre, proporcionais, racionais, relacionais e moderados (SERRES, 1993, p. 119). Pois que,
“a sageza consente a sua própria medida. O receio de uma solução unitária é o começo da sabedoria. Nenhuma solução constitui só por si uma única solução: nem uma determinada religião, nem uma dada política, nem uma certa ciência. A única esperança que permanece é a de esta última poder ensinar uma sageza tolerante que as outras instâncias nunca souberam ensinar verdadeiramente e evitar assim um mundo unido, loucamente lógico, racionalmente trágico” (SERRES, 1993, p. 120).
Os processos ontofenomenológico, científico e educativo consistem todos eles na demanda da moderação. Aliás, a humanização, enquanto aprimoramento da hominidade, consiste ela mesma em tal alcance: “O homem educado modera-se. [...] O homem educado e razoável pode, pois, desobedecer à razão, para que certas margens nasçam em seu redor, com vista a uma coisa nova. Inventa a boa nova. É um descobridor” (SERRES, 1993, p. 117).
Mas, afinal, em que consiste a moderação?
Por um lado, consiste na reserva, na contenção, na obrigação ética, na abstenção de todo e qualquer mal: “Primeira máxima: antes de fazer o bem, evitar o mal. Abster-se de todo o mal, moderar-se simplesmente” (SERRES, 1993, p. 117). A reserva implica, dessa forma, a cedência, permitir que o outro se revele e se nos revele por meio da nossa atenuação, da nossa concessão de espaço, da nossa gratuidade. Tal como o Sol se reserva para dar espaço à Lua ou tal como o verão se abstém para que o inverno proceda, assim Deus se ausentou para que os homens se exprimissem (SERRES, 1993, p. 117). Nesse sentido, “deveríamos dissimular-nos um pouco sob as árvores e os juncos, abrir as nossas políticas aos direitos do mundo. Cada um de nós deveria moderar-se, sobretudo abster-nos em conjunto, investir uma parte da força na atenuação da nossa força” (SERRES, 1993, p. 117). Diminuirmo-nos, no fim de contas. Mas se essa diminuição ou essa fraqueza é uma “boa nova [que] nasce à meia-noite: sem sol” (SERRES, 1993, p. 117), a verdade é que se trata de um aspecto fortemente positivo - é a hominização transformando-se em humanização (ou a vitória da ciência e da educação), é o homem regressando a si mesmo e à sua casa, à Terra (ou a vitória da ontofenomenologia e da ecologia).
Por outro lado, consiste na consciencialização de que tudo se encerra em falta e em pequenez e de que estamos todos absolutamente nelas encerrados. Afinal, “não é bonito sacudir do ombro os próprios defeitos. Faltas e defeitos são exigidos pela verdade, pela beleza, pela bondade, decerto, mas também pela vida” (SERRES, 1993, p. 117). A consciência da falta em termos gerais é, curiosamente, a percepção da riqueza da falha e da marginalidade/marginalização, até porque
“devemos isso à própria moderação de Deus, criados que fomos nas margens da Sua reserva. Mas devemos isso também ao conjunto das faltas cometidas pelos outros seres vivos, a terra, a atmosfera, as águas e as chamas que, em contrapartida, devem a sua existência às reservas marginais que lhes deixamos” (SERRES, 1993, p. 117).
Trata-se, por fim, da permissão da falta, da falha, da margem, do restante, do sobejo. Mas também da compreensão de que “nada nasce, como novo, se algum sol exasperado o impede” (SERRES, 1993, p. 117), isto é, a Natureza e tudo o que a envolve só se compreende na medida em que existe moderação. Mas a aceitação da falha, por mais natural que esta seja, demanda o exercício do perdão, o exercício da justiça, o exercício do ajustamento, mesmo que se tenha ciência de que a ordem e a percentagem de igualdade e grandeza sejam questionáveis, mesmo que se saiba que “um dente não vale por um olho” (SERRES, 1993, p. 132). O consolo, ou talvez o salto que se projeta para a sabedoria, reside no fato de que, no fim, tudo não passa de uma simples vingança da razão, de uma vingança contra o nada (SERRES, 1993, p. 133), ou de que “tudo está em ordem: o cosmo e o tempo fazem chegar a hora das compensações” (SERRES, 1993, p. 134). A hora da compensação é a hora da mediação, na qual foram superados foram todos os perdões, todas as falhas e faltas. É a hora da Natureza, rousseauista e nietzscheanamente falando! Ou seja, é a hora da Natureza, “que faz tudo para o melhor” (ROUSSEAU, 2009, p. 108) mas é, ao mesmo tempo, a hora em que ela revela a sua indelicadeza - “Há lá tanta estupidez como na natureza” (NIETZSCHE, s.d., p. 121).
A moderação que os processos ontofenomenológico, científico e educativo procuram tem por base, como já dito, o comedimento da razão. E este tem-se essencialmente manifestado, ao longo da história da humanidade, por meio da ciência e da filosofia (SERRES, 1993, p. 120). Se a ciência é um dos pilares da criação do terceiro-instruído - o outro é a piedade (SERRES, 1993, p. 78) - por mais que, nos últimos séculos, venha tentando ocupar o lugar de Deus e, nesse sentido, mereça críticas contundentes (SERRES, 1993, p. 76), a filosofia não deixa de ser digna de uma atenção especial. Serres crê que, nesse sentido, não há “nada que compreenda melhor as coisas do mundo, os meios da história, da linguagem e do trabalho, que permita viver melhor e aceder à rara beleza” do que a Filosofia (SERRES, 1993, p. 120). Ela, enquanto amiga da sabedoria ou enquanto sabida no amor (SERRES, 1993, p. 89), deverá, porque é essa a sua sageza e a sua aventura, cultivar a moderação.
Assim como a ciência só se tornará sábia quando conseguir moderar-se a si mesma e tiver a percepção de que não existem soluções unitárias e exclusivistas, assim a filosofia deverá construir a ideia de um mundo universalizante que consiga, com seriedade, criar
“uma obra grande onde se encontrem precisamente localizadas todas as coisas do mundo, rios, mares, constelações, os rigores da ciência formal, modelos, estruturas, proximidades, exatidões aproximativas da experimentação, turbulências ou percolação, flutuações da história, multidões, tempos, pequenos desvios, as fábulas da língua e os contos populares” (SERRES, 1993, p. 121).
Universalizante não significa, contudo, universal, a não ser que esse se integre ao singular.
“Quando todas as pessoas no mundo falarem, finalmente, uma mesma língua e comunicarem a mesma mensagem ou a mesma regra de razão, desceremos então, pobres imbecis, mais baixo do que os ratos, seremos mais estúpidos do que os lagartos. A mesma língua e ciência maníacas, as mesmas repetições dos mesmos nomes em todas as latitudes, a terra coberta por simples tagarelas rabugentos” (SERRES, 1993, p. 121).
Numa palavra, bela é o que a filosofia deve ser na sua essência. Ou seja, ao ser moderada pela sua própria beleza, deverá manifestar a singularidade, a diversidade, a verdade, a novidade do mundo. Por fim, “quando a ciência e a razão tiverem atingido a beleza, então, não corremos nenhum risco. Como uma coisa bela, a filosofia afasta todo o perigo” (SERRES, 1993, p. 121).
A crítica que Serres aponta aos dilemas do conhecimento introduzidos pelas epistemologias modernas e iluministas, enredados, naturalmente, em questões de ontologia, gnosiologia e educação, baseia-se na unidade racional e espectralidade solar em que tais dilemas se fundaram e fundamentaram:
“Sob o sol único e total resplandece a unidade do conhecimento. Com a aurora, a sua luz extingue a multiplicidade indecifrável das diferentes estrelas. De leste nada de novo. Nada de novo desde que esse fogo nos ilumina, desde as idades de luz: a partir do Sol grego, o Deus único e a ciência clássica, desde Platão, a sabedoria de Salomão, Luís o Grande e a Aufklärung, esse saber diurno sempre perdera tempo. Nenhum desses nomes, nenhuma dessas eras consideradas novas alguma vez mudou o regime, sempre o mesmo, da própria luz, única e intemporal” (SERRES, 1993, p. 53-54).
Nesse sentido, para Serres, o conhecimento não só não é universal e central, como não é igualmente luminoso e solar: é singular e elíptico, é sombrio e lunar. Pois que “existem sujeitos por toda a parte, entre a luz e a sombra” (SERRES, 1993, p. 52), refletindo-o em miríades de cores singulares, de faixas e formas matizadas, listradas, zebradas (SERRES, 1993, p. 53), qual manto de Arlequin, imperador da lua e príncipe da sabedoria noturna.
Embora no sentido aristotélico todos os homens desejem, por natureza, conhecer (ARISTÓTELES, 1984, p. 11), a verdade é que ignoramos tanto o motivo desse desejo quanto o lugar preciso a que ele poderá conduzir. Ora, num paradigma epistemológico de clareza, de universalidade, fechado em si mesmo, no qual “a motricidade encontra-se partilhada entre a fonte obstinada de luz e um segundo ponto obscuro” (SERRES, 1993, p. 50), que governa o Ocidente desde pelo menos Heráclito - “O raio governa todas as coisas” (KIRK, G. S.; RAVEN, J. E.; SCHOFIELD, M., 1994, p. 205) -, a investigação tenderá sempre a girar ao redor de um centro que se encontra, ele mesmo, viciado e distante desses dois pontos: a luz e a sombra, o sujeito e o objeto, o saber e o não-saber, o ser e o não-ser. A alternativa será, pois, fazer de tal universo uma elipse, descentrando-o, levando-o a flutuar, a aproximar-se e a misturar-se em luz e em sombra, em sujeito e em objeto, em saber e em não-saber, em ser e em não-ser. Se cada um deles, poderá, em certa medida, ser ou ter um centro, ainda que, paradoxalmente, de características descentradas e elípticas, por outro lado, nenhum deles será ou terá centro algum. Só neste último paradigma, a que Serres chama de programa da terceira-instrução (tierce instruction), é que será possível
“medir a distância constante desses dois polos, calcular o que a estrela flamejante deve ao ponto cego e este à primeira, procurar as razões de uma tal distância, avaliar a produtividade da zona obscura e mesmo a fecundidade desse duplo e não já simples comando ou regulação atrativa” (SERRES, 1993, p. 50).
Afinal, e baseando-se na revolução kepleriana, Serres defende que a multiplicidade de atrativos de formas diversas que criam determinadas ordens é incontestável e inerente ao processo do conhecimento (SERRES, 1993, p. 53), não se tratando, portanto, de abandonar peremptoriamente as leis mas de estabelecer um contato necessário com uma certa imprevisibilidade (SERRES, 1993, p. 53).
A crítica levada a cabo pelo filósofo francês ao sistema apolíneo que desde a Grécia clássica impera na intelectualidade ocidental (SERRES, 1993, p. 54), muito particularmente nas filosofias, nas ciências e nas pedagogias, dirige-o para a gênese de uma ideia e de uma ordem que intitula de terceira-instrução. Não se manifestando esta, no entanto, enquanto oposição à universalidade da luz, da razão, do conhecimento, da verdade, do progresso, mas antes como defesa da intermitência nictemeral, absolutamente cromática e arlequinada, derivando, assim “dos noctâmbulos e observadores do espaço que confundem o dia com a noite, e esta integra, por sua vez, os dias das galáxias nas noites cheias de buracos negros e essa mistura provoca assim uma terceira luz” (SERRES, 1993, p. 54).
A terceira-instrução, resultante de uma terceira luz e reveladora de um terceiro lugar e, consequentemente, de um terceiro homem, toma posição entre dois focos: um que apresenta as ciências exatas, formais, objetivas, especialistas e poderosas; outro que apresenta a cultura, não obstante ter-se ela tornado tão moribunda, miserável e terceiro-mundista com o decorrer da história (SERRES, 1993, p. 56). É, pois, para lá (e à margem) desses dois pontos que haveremos “de nos instruir como um terceiro lugar” (SERRES, 1993, p. 57), no qual brilharão “mil sóis de saberes diversos” (SERRES, 1993, p. 57), tão luminosos quanto sombrios, e a ontofenomenologia, a epistemologia e a pedagogia assumirão papéis preponderantes. Papéis esses que não deverão descurar a complexidade das tarefas que se lhes apresentarão: exclusão, dor, violência, pobreza e problema do mal. Este último, além do mais, ainda apresenta a característica de abarcar e estar presente, desde a fundação da civilização ocidental, em todos os saberes e em todo o conhecimento:
“Ao contrário dos hindus e depois dos árabes, de todos os nossos vizinhos, próximos ou distantes, que também colocam esse problema, mas lhe oferecem uma outra solução, o Ocidente começa ao mesmo tempo que o problema do mal e empenha-se contra ele num diálogo ou num combate consubstanciais, de forma que o trágico fundamenta aí a sua história, a sua razão e a história da sua razão” (SERRES, 1993, p. 75).
O terceiro-instruído surge, dessa forma, não só a partir daquilo que pensamos moderadamente a propósito das “culturas, os mitos, as artes, as religiões, os contos e os contratos” (SERRES, 1993, p. 77) mas, essencialmente, a partir daquilo que sofremos, do pathos que em nós se concretiza. No fim de contas, o terceiro-instruído é criado pela ciência e pela piedade, é criado pela “sabedoria na própria carne” (SERRES, 1993, p. 76). Essa ideia de Serres não poderia ir mais ao encontro da perspectiva ontofenomênica de Merleau-Ponty:
“Eu que vejo, também possuo a minha profundidade, apoiado neste mesmo visível que vejo e que se fecha atrás de mim, bem o sei. A espessura do corpo, em vez de rivalizar com aquela do mundo, é, ao contrário, o único meio que possuo para chegar ao coração das coisas, fazendo-me mundo e fazendo-as carne” (MERLEAU-PONTY, 2009, p. 176).
A ciência apenas conceitua lugares universais, inteligíveis e absolutos:
“Não temos e talvez não tenhamos jamais resposta global. O lugar vazio é o do Saber Absoluto. O filósofo o abandonou logo após o teólogo.
O lugar vazio é o do Universal. Pedimos que seja ocupado; pedimos também que seja exterior à ciência, já que perguntamos por quê? - já que esta questão fez do saber global um meio. Ora, era a ciência, justamente, que ocupava este lugar do universal, era a ciência sozinha que o havia conquistado a partir do advento da modernidade. Só ela é universal, em sua teoria pura e sua linguagem, logos matemático compreensível por toda a parte, de direito, dizível por toda a parte, quaisquer que sejam as línguas positivas, e persuasivo sem violência. Só ela é universal, por sua prática de um real verificado, já que libera as próprias leis do universo, quaisquer que sejam as latitudes. Foi assim que os nossos pais a viram, e foi assim que acreditámos. E foi por isso que o século XVIII europeu celebrou as Luzes. E é por isso que o século XIX escreveu sobre o Saber Absoluto. O Deus dos clássicos, o dos cientistas e dos racionalistas, não mais deposita na história a não ser um único dos seus velhos atributos, o Pensamento. O Absoluto não o é mais, a não ser sob a espécie do saber. O Absoluto não é nada mais do que a Ciência” (SERRES, 1990, p. 135-136).
Nesse sentido, ela não consegue sequer ajudar “a suportar a finitude, nem a compensar a morte dos filhos, a injustiça que atinge os inocentes, o triunfo permanente dos homens violentos, os felizes fugitivos do amor nem a estranheza do sofrimento” (SERRES, 1993, p. 76), contudo, é precisamente pela possibilidade de tomar consciência desses lugares trágicos, já que, por enquanto, “não aprendeu ainda a língua desse soluçar” (SERRES, 1993, p. 76), e do universal poder rever-se no singular, que a ciência poderá vir a ser útil ao princípio da razão terceiro-instruída:
“O sofrimento e o mal, a dor, a injustiça e a fome encontram-se no ponto em que o global se aproxima do local, o universal do singular, a ciência da cultura, a força da fraqueza, o conhecimento da cegueira ou o próprio Deus da sua incarnação” (SERRES, 1993, p. 76).
Afinal, e no limite, fazemos ciência e “pensamos porque se sofre e isso é assim mesmo” (SERRES, 1993, p. 77).
A terceira-instrução deverá, pois, conduzir a razão e a ciência a uma revelação da fraqueza e da fragilidade, a um encontro do “mal singular, [da] injustiça, [dos] amores desiludidos, [da] violência, [da] morte, [da] fome” (SERRES, 1993, p. 76). Cabendo, desse modo, a cada terceiro instruído, enquanto ser particular, alertar e confrontar a ciência para tais descompassos do coletivo social, para tais assincronias do mundo em que todos habitamos. Para Serres, o surgimento dessa nova ordem ontofenomênica, epistemológica e educativa manifestar-se-á, assim, a partir do momento em que cada homem, de súbito, se descobrir e originar modelo de uma terceira instrução (SERRES, 1993, p. 58). Ou seja, quando cada um conseguir estabelecer a criação de todo o real exterior, de toda a objetividade única e universal que existe fora e para além de qualquer sujeito enquanto primeira ou segunda pessoa, fora e para além, ainda, de todo o logos. Ora, o advento dessa terceira pessoa envolve, no entendimento de Serres, todos aqueles que ousam comunicar entre si, todos aqueles que se tornam conjuntos de objetos em movimentos de elipse e de curva geratriz (sem nós, sem isso, sem aquilo a que apontemos o dedo), todos aqueles que concebem o mundo, o ser e os entes de uma forma impessoal: “A terceira pessoa indexa, pois, o ciclo ou a síntese do saber e dos objetos. Quem poderia um dia ter sonhado com essa soma? Ter na mão os fios de uma tal totalidade?” (SERRES, 1993, p. 58). Nada nem ninguém se dilui, tudo e todos se somam - o ensino e a aprendizagem consistem, afinal, nessa sementeira. Mais uma vez Serres atualiza a ontofenomelogia de Merleau-Ponty e muito especificamente os conceitos de sensível, de corpo e de mundo: “Ora, tudo o que se diz do corpo sentido repercute sobre todo o sensível de que faz parte e sobre o mundo” (MERLEAU-PONTY, 2009, p. 180).
A educação, caminho nas quais se enlaçam e expressam a epistemologia e a ontofenomenologia, constitui-se essencialmente enquanto convite à viagem, à aventura, à alteridade mas também à autognose. Nesse processo, “muitas coisas se alteram” (SERRES, 1993, p. 59), talvez mesmo, estamos em crer, que todas se alteram. Afinal, tal viagem e aventura leva o sujeito a sair de si, a expor-se no mundo e para o mundo, a evoluir, a descentrar-se, a revelar-se elipticamente. Torna-se, enfim, outro sujeito e, porventura, até em simultâneo, volve-se noutro sujeito, transformando-se ele mesmo, nesse instante, em objeto. Sendo, na sua gênese, um convite interpelador, o processo educativo é, nesse sentido, uma proto-viagem em que “a primeira pessoa torna-se uma terceira antes de franquear a porta da escola” (SERRES, 1993, p. 60). Ou dito ainda em forma de metáfora grimmiana:
“Errando pela floresta, também a Branca de Neve encontrou alguns velhos anões: avós por serem já velhos, mas ainda crianças pelo seu corpo, numa quase-igualdade que lhe permite permanecer protegida e ser protetora; sempre criança e já madura; mãe e ainda há pouco filha; portanto, vai renascer dela, deles, da floresta, em si mesma e de outro modo, como filha e mãe de si própria. Não existe qualquer ensinamento sem esse autocrescimento” (SERRES, 1993, p. 59).
A aprendizagem consiste numa confluência de pontos diversos, numa métissage:
“Estranho e original, já misturado nos genes de seu pai e de sua mãe, a criança apenas evolui através desses novos cruzamentos; toda a pedagogia retoma o gerar e o nascimento de uma criança: nascido canhoto, aprende a servir-se da mão direita, mas permanece canhoto, renasce destro, na confluência dos dois sentidos; nascido gascão, continua assim e torna-se francês, realmente mestiço; como francês, viaja e torna-se espanhol, italiano, inglês ou alemão; casa-se e aprende a sua cultura e a sua língua, ei-lo, enfim, quarterão, octavão, alma e corpo misturados. O seu espírito assemelha-se ao manto despido do Arlequim” (SERRES, 1993, p. 60).
A aprendizagem na sua recíproca direção de ensinar e de aprender não se limita tão somente a uma obstinação pelo saber claro. Mas também a uma obstinação pelo saber obscuro, no qual se encerra a ignorância (SERRES, 1993, p. 73). Afinal, se a aprendizagem implica o ensino e a compreensão daquilo que se sabe e daquilo que não se sabe, tal como o já discutimos anteriormente, parece-nos aceitável que nem sempre a procura pelo saber ou pelas soluções para os problemas que se nos colocam se opere no lugar e no tempo esperados. Por vezes, é necessário que os sujeitos e os objetos se desorganizem no seu espaço, no seu modo e na sua ocasião para que os primeiros vejam e compreendam melhor e para que os segundos sejam vistos, compreendidos e apercebidos por um outro ângulo. Mesmo quando os sujeitos se tornam objetos de si mesmos, mesmo quando os “alguéns” se tornam (em) “algos” de si mesmos, como defendeu Merleau-Ponty:
“Consideremo-nos, pois, instalados entre a multidão das coisas, dos viventes, dos símbolos, dos instrumentos e dos homens, e tentemos constituir noções que nos permitam compreender o que aí nos acontece. Nossa primeira verdade - aquela que nada prejulga e não pode ser contestada - será que há presença, que ‘algo’ lá está e lá está ‘alguém’. Antes de passarmos ao “alguém’ perguntemo-nos, pois, o que é o ‘algo’.” (MERLEAU-PONTY, 2009, p. 210).
Na perspectiva de Serres, o processo de aprendizagem enquanto educação e instrução é acima de tudo invenção e trabalho. Invenção na medida em que “é o único ato intelectual verdadeiro, a única ação de inteligência” (SERRES, 1993, p. 95), trabalho porque “tudo resulta sempre [dele], incluindo nele o dom gratuito da ideia que desperta. Entregar-se aqui e agora, de um golpe, a qualquer coisa que seja, sem preparação, conduz a uma arte bruta, cujo interesse se limita à psicopatologia ou à moda: coisa passageira para palhaços e saltimbancos” (SERRES, 1993, p. 94). Ainda assim, invenção e trabalho são, sobretudo, formas de criação.
As propostas ontofenomenológica e epistemológica que o filósofo francês apresenta nas suas obras vão ao encontro de uma interdependência absoluta e inquestionável por parte de ambas em relação à educação. Na radicalidade, a evolução do indivíduo e do conhecimento dão-se na medida em que eles sofrem uma alteração provocada pelo processo pedagógico. Não é por acaso, nesse sentido, que Serres faz comumente referência à paideia grega e às práticas de índole educacional que, antes dela, quer na época homérica quer na época clássica, ainda que na forma de areté, já existiam na Grécia. Desde sempre, portanto, o homem e o saber vão se construindo e modificando na medida em que o primeiro aprende e ensina (transformando e melhorando o seu ser) e na medida em que o segundo é aprendido e ensinado (desenvolvendo-se ele mesmo no sentido não apenas da cientificidade mas igualmente do necessário culturalismo). Depois de iniciado esse caminho pedagógico, nada mais será o mesmo, afinal, ensinar e aprender consiste em “tornar grandes os outros e a si mesmo” (SERRES, 1993, p. 153).
“Quando um homem atravessa a nado um largo rio ou um braço de mar, como a ler ou a escrever um autor ou um leitor atravessa um livro e o acaba, acontece por instantes que franqueia um eixo, um meio, igualmente distante das duas margens. Aí chegado, continuar em frente ou regressar será a mesma coisa? Antes desse ponto, para lá desse instante, o campeão ainda não deixou a sua terra de origem, enquanto depois é já o exílio a que se destina que o submerge” (SERRES, 1993, p. 152).
O tema do silêncio, tão exaltado nos textos Os cinco sentidos e O terceiro instruído, sobretudo porque é entendido como cura para o logos, volta a surgir enfaticamente na pequena obra Polegarzinha. Contudo, dessa vez o enfoque é diverso. Em primeiro lugar, porque surge associado acima de tudo ao tema da educação, em segundo porque a sua inevitável perda não é entendida negativamente, o fato de o silêncio dar lugar ao ruído, ao burburinho, a um novo caos, é sinônimo de “uma nova reviravolta, antes de tudo da pedagogia, mas também da política em todos os seus aspectos” (SERRES, 2013, p. 45).
A problemática educacional verdadeiramente questionada em Polegarzinha refere-se ao meio e à forma como o conhecimento é transmitido. Afinal, tanto o seu objeto como o seu objetivo há muito que foram já estabelecidos. Provavelmente desde o século XVII com Comenius, na sua Didática Magna (COMENIUS, 2015). Portanto, cremos que não é tão relevante perguntar-se “o quê transmitir?” e “a quem transmitir?”, visto que as respostas estão dadas, isto é, transmite-se “todo o saber” “a todos”, mas, sobretudo, perguntar “como transmitir?”. Serres responde sem receios ou equívocos: “Repito. O quê transmitir? O saber? Ele está agora por todo lugar, na internet, disponível, objetivado. Transmiti-lo a todos? O saber inteiro passou a estar acessível a todo mundo. Como transmitir? Pronto, é coisa feita” (SERRES, 2013, p. 26). Ou seja, o saber está pronto, ao alcance de um simples e rápido clique.
As novas tecnologias concedem à pedagogia a sua terceira grande revolução. A primeira havia-se dado na Grécia do século V a.C. com o surgimento da paideia e a segunda no século XV com a invenção da imprensa por Gutenberg. Contudo, nenhuma dessas duas contribuiu tanto para o crescimento da “intuição inovadora e vivaz” (SERRES, 2013, p. 36), da inteligência inventiva, como esta última. Afinal de contas, e ao modo de um Saint-Denis decapitado que subiu a ladeira de Montmartre com a sua própria cabeça na mão, assim os alunos dos dias de hoje veem a sua cabeça ultrapassada por essa caixa cognitiva objetivada no qual se constitui o computador e muito particularmente a internet:
“Nossa inteligência saiu da cabeça ossuda e neuronal. Entre nossas mãos, a caixa-computador contém e põe de fato em funcionamento o que antigamente chamávamos nossas ‘faculdades’: uma memória mil vezes mais poderosa do que a nossa; uma imaginação equipada com milhões de ícones; um raciocínio, também, já que programas podem resolver cem problemas que não resolveríamos sozinhos. Nossa cabeça foi lançada à nossa frente, nessa caixa cognitiva objetivada” (SERRES, 2013, p. 36).
O polegar, através dessa sua nova condição de acesso a um conhecimento infinito e ilimitado, transforma-se num autêntico ente ontofenomênico. Poderá essa sua nova natureza provocar o fim da era do saber e da era dos especialistas? Serres não tem dúvidas que a polegarzinha, personagem-símbolo e personagem-significação da era digital, desencadeou um processo no qual ninguém quer saber mais de porta-vozes do conhecimento, de professores encerrados em salas de aula ou auditórios, exigindo silêncio e prostração da parte daqueles que os escutam, já que o tal conhecimento está disponível na internet em todos os lugares. Mas para além disso, Serres igualmente não tem dúvidas de que a polegarzinha pode colocar um fim à era dos sábios-professores-atores, que ao terem usado as suas máscaras de sapiência e magistralidade se arrogaram à oferta do saber, que deixou, no entanto, de ser único, imóvel e concentrado, bem como um fim à era dos homens que decidiam:
“Temos agora apenas motoristas, apenas motricidade; não mais espectadores, o espaço do teatro se enche de atores, móveis; não mais juízes no tribunal, apenas oradores, ativos; não mais sacerdotes no santuário, o templo se enche de pregadores; não mais professores no quadro-negro, eles estão por toda a sala de aula... E haveremos de dizer, não mais poderosos na arena política, que estará ocupada por quem recebia as decisões. Fim da era dos que decidiam” (SERRES, 2013, p. 50).
A nova demanda, o novo saber, consistirá na libertação dos corpos (imóveis), antes prostrados, agrilhoados e silenciados, qual encenação da alegoria da caverna, no descentramento do conhecimento e, essencialmente, na invenção: “O único ato intelectual autêntico é a invenção” (SERRES, 2013, p. 54). Inventar! E o inventar, como Serres afirma em O canhoto coxo - O poder do pensamento (Le gaucher boiteux - Puissance de la pensée), começa desde logo no pensar: “Pensar significa inventar” (SERRES, 2017, p. 11).
Através de Polegarzinha, Serres propõe uma releitura e uma ressignificação da ideia de silêncio. Não haveria, aliás, outra alternativa, uma vez que o saber passou a ecoar e a escutar-se por toda a parte. Por outro lado, em O terceiro instruído, o autor
“já imaginava uma universidade com seus espaços misturados, sarapintados, matizados, desarrumados, mesclados, constelados... real como uma paisagem! Era preciso, antigamente, ir longe para chegar até onde estava o outro, ou ficar em casa para não ouvi-lo, mas agora tropeçamos nele o tempo todo, sem que nem seja preciso se movimentar” (SERRES, 2013, p. 54).
Parece-nos que não mais haverá silêncio, o logos não mais será interrompido, estejamos móveis ou imóveis, estejamos em casa ou na rua, estejamos em São Paulo, em Lisboa ou em Epidauro.
E o que diria Serres precisamente sobre a importância do silêncio em Epidauro, depois dessa constatação, depois de polegarzinha? Provavelmente diria que só haverá silêncio quando se inventa. E que será essa mesma invenção a recriar o (novo) saber, a “novidade vivaz” (SERRES, 2013, p. 94).
“O objetivo da instrução é o fim da instrução, ou seja, da invenção. A invenção é o único ato intelectual verdadeiro, a única ação de inteligência. O resto? Cópia, disfarce, reprodução, preguiça, convenção, batalha, sonho. Apenas ela suscita a descoberta. Só a invenção demonstra que se pensa verdadeiramente aquilo que se pensa, qualquer que seja essa mesma coisa. Eu penso, logo invento, eu invento, logo penso: é a única prova de que um sábio trabalha ou de que um escritor escreve” (SERRES, 1993, p. 95).