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Educação e Filosofia

Print version ISSN 0102-6801On-line version ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.25 no.spe Uberlândia  2011  Epub Jan 31, 2024

https://doi.org/10.14393/revedfil.issn.0102-6801.v25nespeciala2011-01 

Dossiê: Descartes e o Grande Século

DESCARTES EM SEU SÉCULO*

Jean-Robert Armogathe** 

**Diretor de Estudos da École Pratique des Hautes Études (Sorbonne). E-mail: armogathe@wanadoo.fr


RESUMO

Nesta curta investigação da vida e dos trabalhos de Descartes, o autor insiste na habilidade verbal do filósofo (em francês e em latim) para tomar emprestado da tradição escolástica palavras, mudando seu significado para ajustar a seu novo modo de pensar; sugere vários caminhos para nova pesquisa, um dos quais é ver Descartes através das lentes de seus adversários, na França e nos Países Baixos. Nem um filósofo profissional, nem um advogado, nem um soldado: muitas características da vida de Descartes que não são estranhas ao fazer de uma nova filosofia.

Palavras-chave: Descartes; Ciência nova; Países Baixos; Calvinismo; Metafísica; Física

ABSTRACT

In this short survey of Descartes’ s life and works , the author insists upon the verbal skill of the philosopher (in French and Latin) to borrow words from scholastic tradition, twisting their meaning to suit his new way of thinking ; he suggests several paths for new research, one of them being to see Descartes through the lenses of his adversaries, in France and in the Netherlands. Not a professional philosopher, a layman, a soldier: many features of Descartes’s life that are not alien to the making of a new philosophy.

Keywords: Descartes; New science; Netherlands; Calvinism; Metaphysics; Physics

Um breve resumo biográfico

Uma comédia de Corneille, O Mentiroso, representada no inicio de 1644, coloca em cena o jovem Dorante que acaba de estudar Direito em Poitiers, “Em Poitiers, vivi como vive a juventude”, mas “trocou a toga pela espada”.

A la fin, j’ai quitté la robe pour l’épée L’attente où j’ai vécu n’a point été trompée Mon père a consenti que je suive mon choix, Et j’ai fait banqueroute à ce fatras de lois

Ele alega, para impressionar a bela Clarice, ter servido quatro anos na Alemanha “Desde que eu deixei as guerras da Alemanha, isto é, há um ano.” “Que”, diz Clarice, “então, conhecestes a Alemanha e a guerra?” e o jovem mentiroso responde “Eu lá estive por quatro anos, temido que era como um trovão...”

Esse jovem mentiroso poitevin é quase a descrição de Descartes, um resumo de sua própria vida vinte anos antes.

Ele nasceu em 1596, cinquenta quilômetros ao sul de Tours, em uma tradicional família de juristas e parlamentares, o que lhe permitiu viver de suas rendas, modestamente, mas sem preocupações. Ele não foi nem religioso, nem professor e nem exerceu a profissão familiar de jurista, para a qual fora preparado. Levou uma vida despreocupada, sem mesmo sequer recorrer à pensão real que amigos parisienses lhe proporcionaram de 1647 a 1648.

Após o Colégio dos Jesuítas em La Flèche, cursou Direito na Universidade de Poitiers e concluiu suas teses de licença em 1616. Ele está com vinte anos e as dedica a seu tio e padrinho, René, senhor das Fontaines, a quem poderia suceder. O recém-licenciado entra para o exército, como o Dorante do Mentiroso de Corneille. Ele troca a toga pela espada e viaja pela Europa para os campos de batalha do início da Guerra dos Trinta anos: à Holanda, a serviço do príncipe Nassau (de quem uma irmã era abadessa de Sainte-Radegonde, em Poitiers), à Europa central, a serviço de Maximilien de Bavière, à Itália como turista e peregrino.

Os anos 1625-1627 o veem em Paris: ele está com trinta anos e tem alguma renda, é um curioso, que se liga aos melhores cientistas e literatos. Mas é também um solitário, que decide deixar a França para se estabelecer na Holanda, o que se dá em 1629, “a fim de desfrutar uma vida mais calma e mais tranqüila”: 1 lá passa vinte anos, ou seja, o resto de sua vida, mudando uma dúzia de vezes. Em 1644, após quinze anos de ausência, ele vem a Paris, para cedo partir novamente para a Holanda. Intensos conflitos o opõem agora a diversos teólogos e professores calvinistas; em setembro de 1649, a convite da rainha da Suécia, a caprichosa Cristina, ele se dirige a Estocolmo, onde morre de pneumonia em fevereiro de 1650.

Cinquenta e quatro anos de uma vida solitária, com algumas aventuras amorosas (e uma filha natural, morta em 1640 aos cinco anos de idade). Uma vida muito banal, que conhecemos bem através de duas fontes: uma abundante correspondência, conservada seja por minutas, cópias que Descartes guardava para si, seja pelas próprias cartas conservadas pelos correspondentes, e uma biografia. Logo após a morte de Descartes, um amigo próximo, Clerselier, se encarregou de reunir documentos, de publicar a correspondência e de preparar o material para uma biografia. Após diversas dificuldades, essa biografia é publicada em 1691, fruto de um abundante trabalho de Adrien Baillet, o abnegado bibliotecário do presidente Lamoignon: A vida do senhor Des-Cartes.

Esse meio século vivido por Descartes é fértil em acontecimentos: no primeiro plano, a interminável Guerra dos Trinta anos, entre 1618 e 1648, que leva a uma nova divisão da Europa pelos tratados de Westphalie. A princesa Elizabeth, era uma correspondente de Descartes e filha de Frederico V da Boêmia, “o rei de um inverno”, cuja família foi forçada ao exílio holandês após a Batalha da Montanha Branca, na Boêmia em 1620.

A infeliz princesa era também sobrinha de Carlos Primeiro, da Inglaterra, executado em janeiro de 1649. Na França há o governo de Richelieu, que morre alguns meses antes de Luís XIII em 1642; depois há as agitações de La Fronde durante a menoridade de Luís XIV e o governo de Mazarin. Shakespeare morre em 1616. Francis Bacon, chanceler da Inglaterra e filósofo, morre em 1626, ao passo que Molière nasce em 1622. Enfim, a excepcional longevidade de Galileu faz dele um contemporâneo de Descartes, já que morre aos 78 anos em 1642.

Um filósofo original

Uma boa formação clássica, como estudante dos Jesuítas, permite a Descartes escrever correntemente em latim, o que lhe é útil para sua correspondência e para vários de seus tratados. Não se pode de modo algum considerá-lo um profissional, um religioso, um professor ou um engenheiro. A palavra savant começa a aparecer nas línguas europeias (scienziato, Wissenschaftler, Scientist), certamente Descartes não é um savant. Ele não publica para ter dinheiro, pensões ou honras. Seu primeiro livro publicado, o Discurso do método seguido de três Ensaios (Geometria, Dióptrica, Meteoros), é publicado no anonimato em 1637: Descartes tem mais de quarenta anos.

Em relação ao tratado de física que me fizestes o favor de me pedir para publicar, eu não seria tão imprudente a ponto de dizer que o faço se não tivesse a intenção de o atualizar caso o mundo o desejasse, encontrando assim nele consideração e garantias. Mas eu quero bem vos dizer que toda a intenção do que encaminho a imprimir dessa vez não é senão a de lhe preparar o caminho e sondar o vau. Eu propus para tanto um método geral no qual verdadeiramente não ensino, mas procuro prová-lo pelos três tratados seguintes, que junto ao discurso no qual disso falo, o primeiro tem um tema no qual filosofia e matemática se misturam, o segundo, um puramente filosófico, e o terceiro, de pura matemática. Neles posso afirmar que não me abstive de falar de coisa alguma (ao menos daquelas que podem ser conhecidas pela força do raciocínio), porque acreditei não a saber; de maneira que me parece que por isso se pode concluir que uso de um método pelo qual poderei explicar também qualquer matéria de maneira correta caso tivesse as experiências que me fossem necessárias, bem como o tempo para considerá-las. Além disso, para mostrar que tal método se estende a tudo, inseri brevemente alguma coisa de metafísica, de física e de medicina no primeiro discurso. Que se eu puder disseminar no mundo essa opinião do meu método, acreditarei então não ter mais tantos motivos para temer que os princípios de minha física sejam mal recebidos (AT, I, 370-371, B 109, 1637) 2.

Saumaise, um católico convertido à reforma protestante, refugiado nos Países Baixos, escreve de Leyde, em 4 de abril 1637:

quanto às notícias de nossa Academia, o livro do senhor Descartes acaba de ser impresso [...]. Não vos direi nada sobre o personagem, porque imagino que já ouvistes falar dele. Segue uma filosofia totalmente diversa da de Aristóteles, principalmente para a física. Mesmo na Geometria, concebe um outro método de ensinar totalmente diferente. Permaneceu nessa cidade durante a impressão de seu livro.

Quatro anos mais tarde, Descartes assina uma obra em latim, Meditationes de prima philosophia, depois de alguns anos publica os Principia (1644), que se apresentam como um volumoso manual de ensino, e um Tratado das paixões (1649). Alguns tratados póstumos e a correspondência à qual nos referimos completam a totalidade dessa obra que, sem ter o aspecto monumental e enciclopédico da produção de certos contemporâneos, representa um trabalho assíduo, facilitado pelo isolamento voluntário no qual Descartes se recolheu durante mais de vinte anos.

“Estou aqui, escreveu em 1645, em um canto do mundo, onde não deixaria de viver muito tranqüilo e muito contente, ainda que os juízos de todos os doutos fossem contra mim”. 3 Acrescentemos que viveu (e morreu) como um bom católico, preocupado em praticar sua religião em uma Holanda calvinista, mas tolerante, ou em uma Suécia luterana onde a Rainha havia se convertido ao catolicismo. Nem hipocrisia nem fanatismo: Descartes não é nem um “libertino” nem um “devoto”, todos os historiadores estão doravante de acordo sobre esse ponto. E finalmente nada é tão excepcional nesse resumo biográfico, que pudesse não se referir senão a um homem de qualidade, o honnête homme, caro ao século clássico, um pouco misantropo, debruçado sobre os estudos conduzidos com calma, na ociosidade culta que lhe permite sua fortuna. Esse é mais ou menos o retrato que os contemporâneos de Descartes traçam dele.

Existe um precioso documento, uma carta enviada por ocasião da publicação póstuma de sua correspondência por Samuel Sobière, que relata uma visita feita quinze anos antes ao filósofo, em sua residência em Endegeest:

Percebi com grande satisfação a civilidade desse Fidalgo, seu retiro e sua reserva. Ele estava em um pequeno castelo [a mais luxuosa das residências de Descartes, que acabava de herdar de seu pai, morto em 1640] muito bem situado, próximo a uma grande e bela Universidade (a de Leyde), três milhas da Corte (a do príncipe d’Orange) e apenas duas milhas do mar. Havia um número considerável de serviçais, pessoas seletas e bem apresentáveis; um belíssimo jardim, ao término do qual havia um pomar e, em todo o entorno, pradarias de onde se via grande quantidade de campanários mais ou menos elevados até os que na linha do horizonte não pareciam mais que alguns pontos. Ele ia em um dia de lá, pelo canal, a Utrecht, a Delft, a Roterdam, a Dordrecht, a Haarlem e algumas vezes a Amsterdam, onde tinha duas mil libras de renda no banco. Ele podia passar a metade do dia em la Haye e voltar para casa, fazendo esse passeio pelo mais belo caminho do mundo, por pradarias e casas de campo e depois por um grande bosque que acaba na cidade, comparável às mais belas cidades da Europa e espetacular naqueles tempos pela presença de três Cortes: a do príncipe d’Orange, que totalmente militar, atraiu dois mil gentilhommes para o seu contingente de guerra; o colete de búfalo, o cachecol laranja, a pesada bota e o sabre eram seus principais ornamentos. A dos Estados-Gerais compreendia os deputados das Províncias Unidas, representava a Aristocracia em vestes de veludo preto com a larga cabeça e a barba quadrada; e aquela das Graças, não menos que quatro, pois sua Majestade tinha quatro filhas para as quais se curvava todos os dias o elegante mundo de La Haye, para render homenagem ao espírito e à beleza dessas Princesas (AT, III, 351- 352).

É necessário, portanto, se perguntar: o que há de excepcional, que nessa obra levou a distinguir o autor como o pai de toda a idade moderna? Em primeiro lugar, de maneira talvez paradoxal, Descartes é, para começar, um novo estilo de escrita. Não se reconheceu isso sempre por falta de ler os outros seus contemporâneos, em latim ou em francês. Mas basta se debruçar sobre os volumosos livros de Mersenne, de ler Jean de Silhon ou as traduções francesas dos tratados matemáticos de Viète para se render à evidência: há um estilo de Descartes em francês, em latim e na escrita matemática, que é novo, original, único.

Um estilo novo

O Discurso do Método não é o primeiro texto filosófico em língua francesa; Scipion Dupleix, historiógrafo de Luis XIII, publicou, a partir de 1603, um Cours complet de philosophie, um curso clássico, em quatro partes, reeditado no Corpus das obras de Filosofia em língua francesa, pela Fayard. Em 1629, Jean de Silhon publicou em francês As duas verdades, um tratado sobre a existência de Deus e a imortalidade da alma, igualmente reeditado na mesma coleção. Mas a comparação dos textos é instrutiva. A língua de Dupleix ou de Silhon é ainda a de Montaigne, rica em latinismos. O Discurso marca o limiar de uma nova escrita a tal ponto que, apesar de bom tradutor, Étienne de Courcelles multiplica os galicismos na tradução para o latim.

Ex-aluno dos Jesuítas, Descartes também escreve um latim suficientemente polido e ciceroniano para atrair elogios de seu amigo Guez de Balzac, excelente juiz nesse assunto. 4

Enfim, última forma de escrita, seu estilo matemático, de um lado, privilegia as estruturas lógicas da Análise em detrimento do operatório, de outro, o uso da língua francesa o leva a criar uma terminologia e uma sintaxe que constituem um estilo novo de escrita matemática.

A questão que se põe é: que é moderno nele, isto é, que é novo? Para respondê-la, basta procurar em sua obra o que provocou espanto, surpresa, admiração ou hostilidade em seus contemporâneos. A Correspondência, as Objeções, publicadas com as Meditações, documentos de polêmica fornecem elementos de resposta.

O que surpreende a princípio é sua escrita e sua maneira de retomar uma terminologia escolástica subvertendo-a, dando às palavras um sentido diferente daquele das Escolas. Essa originalidade levou a incompreensões de seus adversários, mas também de seus partidários (o conflito com Regius). É isso que o jesuíta Thomas Compton Carleton lhe censura em 1649: “unum vero accidit incommodè, quod is, qui cum praesens mihi hîc disceptatio, scholastico more non scribat, nec eâ claritate, ac methodo, quâ in academiis tradi Philosophia solet : unde fit, ut in quibusdam difficile sit mentem eius eruere, & quid tandem velit, certo pronuntiare”. 5

Conhece-se o julgamento do carmelita Jean Augustin de la Nativité Tartaglia, um dos dois censores romanos de 1663, sobre as Meditações e as Specimina, escreve na carta italiana que acompanha seu voto, “Ho avvertito nell autore ingegno sottile, e inventivo di nuove speculazioni, come anco l’eleganza dello stile non ordinaria, la modestia con la quale soggetta quanto scrive alla censura dei Teologi e riverisco in tutto i meriti di questo scrittore.”

Na censura ele começa com altos elogios, “ingenii acumen, et eloquii nitorem”, e conclui, “Ex eis infero utrumque librum continere doctrinam parum tutam ; ingeniosam quidem ac nouam ; sed sacrae doctrinae non satis consonantem ; Philosophia repugnantem, et ad finem ad quem dirigitur, scilicet notitiam ueritatis, prorsus inutilem.”

A dúvida

Na “filosofia primeira”, toda dúvida é, a princípio, mostrada como perigosa. Não há uma suspeição de ateísmo ao se permitir duvidar da existência de Deus? Pelo menos, é isso que os teólogos calvinistas compreenderam. E se frequentemente identificam em Descartes um novo Vanini, é porque seus protestos de boa-fé são compreendidos como tão hipócritas quanto o discurso subversivo do carmelita da Terra d’Otranto. A discussão das teses cartesianas nos Países Baixos e na Alemanha tratará largamente da natureza da dúvida metódica e de sua aceitabilidade teológica.

Falou-se de “filosofia responsorial” a propósito das Meditações, elaboradas em parte para responder às objeções suscitadas pelo Discurso. Gassendi e Hobbes são profundos conhecedores da filosofia da Escola e é evidente que eles não compreendem bem o que Descartes quer dizer em “sum igitur praecise tantum Res cogitans”.

Assim, para a questão quid sit homo, Gassendi aceita desconsiderar a resposta da Escola, mas ele contesta a introdução da distinção corpo/alma feita por Descartes (AT VII 259). Quando Descartes escreve “sum igitur praecise tantum Res cogitans...”, Gassendi tem grande dificuldade em acompanhar: praecise é um advérbio técnico da escolástica (por exemplo em Eustache de Saint-Victor, Summa philos. IV 11-12, citada por Gilson Index) e a palavra res, quando Descartes a retoma, é carregada por um pesado passado semântico na tradição filosófica da Escola. Não se trata aqui de uma palavra neutra: ele tirou da Idade Média latina uma carga conceitual de primeira ordem, naquilo que se nomeou “a passagem da neutralidade à especificidade” (Jacqueline Hamesse). Essa passagem é estruturada com os recursos da etimologia e a amplitude semântica do verbo reor, ratum (pensar, julgar): “nomen rei ad utrumque se habet, et ad id, quod est in anima, prout res dicitur a reor, reris, et ad id, quod est extra animam, prout res dicitur quasi aliquid ratum et firmum in natura” (s. Thomas). 6

Assim Descartes escolhe um substantivo que pertence de pleno direito ao vocabulário filosófico. Ele o toma em uma acepção que não integra as modificações que a tradição tomista operou nessa palavra, ou melhor: integra-lhe uma outra dimensão semântica, a da matemática. Com efeito, a palavra res revela também o domínio algébrico, no qual designa, com radix e cosa, a quantidade desconhecida. Ele vai qualificar esse termo de uma maneira original, por adjetivos epítetos que vão singularizar, em relação à tradição filosófica, sua escolha: res extensa, res cogitans. Res cogitans é uma expressão estranha à tradição escolástica, mas se encontra como o exato equivalente de mens em Boécio 7. Res extensa é também bastante rara, mas encontramos diversas ocorrências em um tratado cujo vocabulário, muito singular, pôde por várias vezes ser ligado ao de Descartes, o De Corpore Christi de Ockham: “nulla autem res potest realiter esse extensa nisi sit quanta”. 8

A Segunda Meditação trata do conhecimento da existência da mente, res cogitans: “sum igitur praecise tantum res cogitans” (VII, 27). Minha mente existe, mesmo que as coisas materiais não existam fora das representações que ela tem. Aqui Descartes não trata ainda da distinção real entre res cogitans e res extensa, o que só ocorre na última Meditação.

A audácia radical do pensamento cartesiano confundiu nesse ponto os leitores, com exceção de Arnauld. O jovem teólogo foi, com efeito, o único que compreendeu o que Descartes escreve na Carta liminar (e na Synopsis), na qual ele remete à Sexta Meditação para estabelecer e fundar a distinção.

Os outros leitores foram unânimes. Teólogos escolásticos (Segunda e Sexta Objeções) ou filósofos inovadores (Hobbes e Gassendi) se juntam em uma mesma crítica: Por que a matéria não pensaria? É impressionante constatar essa unanimidade. 9 Aqueles que não creem nessa hipótese não a consideram, entretanto, absurda, ao passo que Hobbes e Gasendi a sustentam. Ora, para Descartes ela é, após o cogito, simplesmente impensável. Arnauld admitiu a proposição fundamental: sou enquanto res cogitans, mesmo se meu corpo não existe; ele quer ainda constatar que minha mente é notior em relação a meu corpo, mas, diante da Sexta Meditação, não consegue ultrapassar a Segunda. Ora, a fragilidade do processo argumentativo das Meditações aparece aqui: a maioria dos leitores procura na Segunda Meditação o que Descartes propôs na Sexta, e ao chegar na Sexta eles esquecem o que fora dito na Segunda. O percurso proposto por Descartes é um percurso meditativo, inadequado aos hábitos de leitura de seus interlocutores filósofos. Os teólogos, em certa medida, e, sobretudo, os jesuítas habituados aos Exercices inacianos, estavam talvez mais em condições de ler as Meditações como seu autor gostaria que o fizesse.

Na Segunda Meditação, Descartes atinge o ponto da certeza: “ego sum, ego existo, certum est”, 10 que engedra uma definição para os termos cuidadosamente considerados: “sum igitur praecise tantum res cogitans, id est, mens, sive animus, sive intellectus, sive ratio, voces mihi prius significationis ignotae. Sum autem res vera, & vere existens; sed qualis res? Dixi, cogitans” (ibid., 13-17).

Aqui é indispensável seguir o texto latino. A tradução francesa introduziu “quelque chose”, “une chose” para traduzir o indefinido, mas a palavra res é utilizada por Descartes com um sentido definido e não com o valor de indefinido que “quelque chose” possui no francês moderno. 11 Introduzindo res cogitans, Descartes tem claramente o sentimento de inovar. Com efeito, constata a necessidade de desenvolver as primeiras ocorrências do sintagma (nós o encontramos uma quinzena de vezes nas Meditações): “quod essem res cogitans, sive res habens in se facultatem cogitandi”, “Sed quid igitur sum? Res cogitans. Quid est hoc? Nempe dubitans etc...” (28, 20-23), “sum igitur praecise tantum res cogitans, id est ...” (27, 13).

Praecise tantum: bom conhecedor das tradições escolares, Gassendi se detém longamente sobre a expressão na Disquisitio metaphysica, pois percebeu bem que a tese cartesiana está ligada a esses dois advérbios e, sobretudo, a tantum 12 “Quid sibi enim vult illa vox tantum? An non restrictiva est, ut sic loquar, ad solam rem cogitantem ; & exclusiva aliarum omnium, inter quas sunt compages membrorum, tenuis aër, ignis, vapor, halitus, & caetera corpora? An cum sis Res cogitans, nosti te praeterea harum nullam esse?”. 13 Dentre os pontos que Gassendi contesta nessa parte, está a passagem do conhecimento ao ser, de “qui scit se esse rem cogitantem” a “sum praecise tantum res cogitans”. Ele propõe de preferência que se permaneça no domínio do conhecimento: “ego noui me praecesi tantum rem cogitantem”. De fato, Gassendi, que escreve habitualmente Res cogitans (com R maiusculo), propõe substituir por substantia cogitans (p. 296b). E prossegue:

an quia putes Rem, et Substantiam synonyma esse, & ea, quae vocas accidentia, esse tantum modos? At cum res, & Nihil opponantur, & modi non sunt nihil, sed aliquid amplius, quam merum nihil; sunt igitur res aliquae, non substantiales quidem, sed tamen modales; quare, et vox Res non Substantiae synonyma, sed communis ipsi, ac modo, atque adeo transcendens, synonymaque cum Ente erit.

A dificuldade terminológica encontrada por Descartes é evidenciada nas respostas às Sétimas Objeções. Esse texto é muitas vezes desprezado pelos pesquisadores; 14 entretanto, ele é cronologicamente importante. Nele Descartes não responde apenas às objeções, muito fracas, do Padre Bourdin. Ele retoma também o diálogo geral que ele desejara inaugurar com as Meditações (e já iniciado com o Discurso e os Ensaios) e as reações de Bourdin são seguidamente ocasião para que retome e esclareça sua atitude filosófica. Assim, quando Bourdin põe para Descartes uma questão retórica: “sumne mens?” “sou então uma mente?”. Este reage:

não é verdade que eu examinei se eu era uma mente, pois não havia ainda explicado o que entendia pelo nome de mente. Mas examinei se havia em mim alguma das coisas que atribuía à alma, das quais acabava de fazer a descrição; e, não encontrando em mim todas as coisas que eu lhe havia atribuído, mas notando aí somente o pensamento, por isso, não disse que eu era uma alma, mas disse somente que eu era uma coisa que pensa e dei a essa coisa que pensa o nome de mente ou de intelecto e de razão; não entendendo nada mais pelo nome de mente que pelo de uma coisa que pensa: e, conseqüentemente, havia evitado como se faz aqui muito mal a propósito; pois, ao contrário, acrescentei expressamente que ignorava anteriormente a significação dessas palavras, de modo que é impossível que se possa duvidar que por tais palavras não tenha entendido precisamente a mesma coisa que pelo de uma coisa que pensa (ALQUIÉ II, 992). 15

Descartes compreende bem a dificuldade diante de Bourdin e rejeita a objeção afirmando seu direito ao neologismo “que diga, se lhe parece certo, que uma coisa que pensa é melhor nomeada com o nome de corpo que com o nome de mente, isso não me causa embaraço e não há nada a esclarecer a respeito disso comigo, mas somente com os gramáticos.”

Isso quer dizer que o P. Bourdin tende a entender a palavra res de uma maneira estranha ao uso escolástico, no sentido material, que é igualmente estranho ao neologismo de Descartes, mas que é mais difundido nos autores modernos. Como frequentemente nas relações entre Descartes e os filósofos da Companhia, a ruptura que esses, após Suarez, tentam instaurar em relação à tradição escolástica acarreta mal-entendidos com o vocabulário de Descartes, que inova sobre a base de uma cultura escolástica. Pois, se Descartes utiliza a palavra res, é a princípio para não utilizar substância. É frequente constatar, no vocabulário de Descartes, que um neologismo semântico não procede tanto de uma preocupação de precisão léxica, quanto do desejo de evitar a ambiguidade que suscitaria o emprego de um outro termo. Trata-se aqui do termo substância: Anne Becco comentou a aparição do termo no decurso da Terceira Meditação. Nas respostas a Arnauld, Descartes esclarece bem o uso que faz do termo a propósito da expressão res completa: “neque enim substantias immediate cognoscimus, ut alibi notatum est, sed tantum ex eo quod percipiamus quasdam formas sive attributa, quae cum alicui rei debeant inesse ut existant, rem illam cui insunt vocamus Substantiam” (AT, VII, 222, 5-9) (grifos do original).

A Sagrada Escritura

Um outro ponto de novidade é o estatuto da Sagrada Escritura. Não estou certo do caráter histórico do encontro entre Descartes e Comenius, mencionado somente por este. Suscitado por amigos comuns (Louis de Dieu, Heydanus, Klinger, Heereboord), ele teria acontecido em Endegeest, durante o verão de 1642 e teria durado quatro horas. Cada um teria colocado suas posições e Comenius não teria conseguido abalar Descartes, que teria concluído o diálogo dizendo: “eu não vou além da filosofia; encontra-se portanto em mim uma parte daquilo que em ti se encontra a totalidade.” Comenius representa bem uma outra tradição. Em 1633, ele escreveu a Alsted de forma muito determinada: “os primeiros fundamentos da filosofia [no sentido de “filosofia natural”] não podem ser encontrados senão nas Escrituras”. 16

Ora, Descartes conhece bem as Escrituras, que está na base e nutre seu discurso em muitas ocasiões. Mas o “livro da Natureza” não necessita daquele das Escrituras para ser lido, ou antes, o das Escrituras ganha em autoridade se ele se apoia sobre o da Natureza, o que é o oposto da abordagem de Comenius: “tentando descrever [na Dióptrica] as cores a meu modo e, por conseguinte, estando obrigado a explicar nela como a brancura do pão permanece no Santo Sacramento...”(a Mersenne, 25 de novembro 1630, AT, I ,179).

As coisas que escrevo são freqüentemente tais que aqueles que as lêem se persuadem de que não as encontrei senão por acaso e que poderiam encontrá-las da mesma forma. Ou mesmo, vi algumas vezes que, em certas coisas, se vangloriavam de as haver encontrado da mesma forma, porque eles se depararam com pensamentos relacionado a elas, mesmo que nunca as tivessem bem assimilado, nem que tivessem jamais pensado o saber antes que os tivesse advertido; no que me parecem fazer o mesmo que uma criança que, tendo apreendido apenas as letras do alfabeto, se vanglorie de saber tudo que está em todos os livros, já que nada contém a não ser as letras.

Conhecerei pelo juízo que as pessoas farão de meus escritos a estima que com eles se deve ter; e se esse juízo lhes for favorável, conhecerei pelas conseqüências que ele produzirá nos desígnios dos poderosos se eles se interessam pelo bem público; e falando francamente, não sei bem ainda o que me é mais oportuno: ser procurado ou ser esquecido.

Os poderosos põem os engenheiros (Machinarii) à prova, quando lhes propõem algum projeto secreto; mas a melhor prova que se pode esperar de um homem que ousa procurar o que ninguém jamais encontrou, é a de que mostre que já descobriu várias coisas desse tipo. E essa prova é tanto mais certa quanto não há nada no mundo que possa ser menos falsificado que uma demonstração, porque é imediatamente julgado pela razão, ao passo que as provas dos charlatães (Circulati) freqüentemente enganam: e, se é permitido dizer, os próprios milagres são falsificados pelo diabo.

Não ousaria ainda assegurar que as coisas que avanço sejam os verdadeiros princípios da natureza17, mas pelo menos vos direi que elas me servem como princípios. Tenho o costume de me satisfazer com todas as outras coisas que delas dependem e percebo que avanço sempre um pouco no descobrimento da verdade, sem jamais recuar ou parar (AT IV 691).

Ao lado dos objetores dos quais Descartes imprimiu as questões, é necessário lembrar aqueles, como Comenius, que ele provavelmente não leu, ou ainda aqueles que lhe fizeram objeções epistolares, como Le Conte. E, depois, ainda é também necessário lembrar seus inimigos, em primeiro lugar, os pastores holandeses, Gisbert Voet em Utrecht (1642- 1643) e Revius em Leyde (1647), mas também, do lado católico, os teólogos consultados por Plempius, o jesuíta Compton Carleton (ANVERS, 1649, p. 246), o jesuíta Honoré Fabri.

Poder-se-ia construir um cartesianismo no espelho dos objetores, um Descartes indireto, por assim dizer. Tal trabalho permitiria ver a originalidade de Descartes, os pontos de destaque de seu pensamento, que desconcertaram ou entusiasmaram seus contemporâneos. Uma tal investigação permitiria ainda conhecer melhor a que ponto Descartes participava do horizonte cultural de seu tempo : conhecedor das querelas da graça, que abalaram o século ( a Mersenne, I, 366, maio de 1637, B 108; ou a Elizabeth, 6 de outubro de 1645; a Burman Opere II 1284, a Mersenne, 23 junho de 1641): “Não creio ter grande necessidade das teses de Louvain nem do livro de Jansenius, mas gostaria de saber onde foi impresso a fim de que, caso tenha necessidade, possa encontrá-lo” e imerso nas querelas internas do calvinismo holandês, atento à atualidade política (B660 a Elisabeth).

Vimos, como nessa descrição contrastada, que o próprio Descartes recua em relação à sua imagem, à sua recepção na História da Filosofia, matemático e médico mais que metafísico, mais implicado nos assuntos dos Países Baixos que nos de França e extremamente vigilante para a defesa de suas teses fundadoras. Como não concluir essa exposição por uma citação maravilhosa, tirada de uma carta a Chanut, que remete nosso escritor para a sombra donde não teria nunca querido sair, mas é, ainda aqui, sincero?

Não tive muita ambição para desejar que as pessoas dessa classe soubessem meu nome; e mesmo, se fosse também apenas tão sábio quanto dizem que os selvagens acreditam que o sejam os macacos, nunca teria sido conhecido por quem quer que seja como fazedor de livros: pois dizem que eles imaginam que os macacos poderiam falar, se quisessem, mas não o fazem a fim de que não sejam de modo algum obrigados a trabalhar; e porque não tive a mesma prudência ao me abster de escrever, já não tenho tanto tempo de ócio e de repouso que teria se tivesse tido a inteligência de me calar (A Chanut, 1º de novembro 1646, B 580, AT IV 535).

REFERÊNCIAS

HUYGENS, A. B 113, 1637. [ Links ]

A referência usada para os textos de Descartes é a edição Adam et Tannery (Oeuvres de Descartes, publiées par Charles Adam et Paul Tannery, 11 volumes, Paris, Vrin, 1996). Na notação simplificada usada internacionalmente, AT indica a edição; os numerais romanos, o volume; e os algarismos arábicos, o número da página. [ Links ]

A Mesland, maio 1645. [ Links ]

Ver a Censura (...) Domini Balzaci (AT, I, 7-11, B 14) datada de 1628. [ Links ]

Trata-se da Filosofia universa do jesuíta Thomas Compton Carleton (1591 circa- 1666), que ensinou belas-letras a Saint-Omer, depois Filosofia e Teologia junto aos padres ingleses de Liége. Datada de 1649 (Anvers), a obra tinha sido aprovada em 17 de setembro do ano precedente pelo P. Alexandre Gottifredi, visitante das pro- víncias da Inglaterra e da Bélgica. Em sua décima-segunda disputa, Compton Carleton aborda as formas acidentais e começa por examinar a opinião de um moderno, cujas referências são dadas na margem Ren. Des-Cartes in Medita: Responsione 4. p. 285: “Dum in Physicis hisce disputationibus versarer, in libellos quosdam incidi, ubi quaedam tam mira, tamque a vera Philosophia aliena animaduerti, ut mihi auctor visus sit nouitatis studiosior fuisse, quam veritatis” (p. 246). O jesuíta nota que a dificuldade da refutação vem do estilo particular de Descartes: “unum vero accidit incommodè, quod is, qui cum praesens mihi hîc disceptatio, scholastico ùore non scribat, nec eâ claritate, ac methodo, quâ in academiis tradi Philosophia solet: unde fit, ut in quibusdam difficile sit mentem eius eruere, & quid tandem velit, certo pronuntiare”. Compton Carleton notou bem a diferença nas duas edições para as respostas a Arnauld e menciona explicitamente a segunda edição, Amsterdam, 1642. Resume em nove proposições a resposta de Descartes às objeções do “uir quidam doctus & pius” (que permanecia, lembremos, anônimo para os leitores). Empreende, em seguida, mostrar que os acidentes são reais pelas autoridades dos teólogos, até por Gamaches, Stapleton e os autores da Companhia, depois pela autoridade dos Concílios e, enfim, por argumentos racionais. A seção VI parece responder à opi- nião de Descartes nas cartas a Mesland, ao passo que uma outra opinio nova, exposta na seção VII, é explicitamente distinguida das opiniões cartesianas (a teoria dos acidentes intencionais). [ Links ]

In I Sent., 25, I, 4c (e também II Sent.). [ Links ]

“sit mens sive res cogitans...” PL 63, 762. [ Links ]

De corpore Christi, p. 125, l. 19 e l. 23. [ Links ]

Constatamo-la em Bourdin, Obj. VII. Ele finge admitir a seu objetor, após a desco- berta do cogito, que essa “coisa que pensa” é o corpo, uma extensão (ALQUIÉ, II, 989-990). [ Links ]

AT, VII, 27, 9. [ Links ]

Assim o latim “si uel minimum quid inuenero quod certum sit et inconcussum” é traduzido por “si je assez heureux pour trouver seulement une chose qui soit certaime et indubitable”. [ Links ]

GASSENDI, Quintae objectiones (1642 p. 303): Gasendi omite tantum: “sum igitur praecise Res cogitans, id est Mens, sive animus, intellectus ratio”. [ Links ]

Disquisitio metaphysica, Opera Omnia (rééd. 1964, Fromman Vlg de l’éd. Lyon 1658) t. 3, p. 300. [ Links ]

Notável exceção, os trabalhos de Roger Ariew (Pierre Bourdin and the Seventh Objections. In: Descartes and his contemporaries, 1 éd. R. Ariew et Marjorie Grene, Chicago et Londres: 1995, p. 208-225). [ Links ]

“falsum etiam est me quaesiuisse an mens essem, nondum enim quid nomine mentis intelligerem explicueram, sed quaesivi an aliquid in me esset ex iis, quae animae prius a me descriptae tribuebam, cumque non omnia quae ad ipsam retuleram in me invenirem, sed solam cogitationem, ideo non dixi me esse animam, sed tantum rem cogitantem, atque huic rei cogitanti nomen mentis, sive intellectus sive rationis imposui, non ut aliquid amplius significarem nomine mentis, quam nomine rei cogitantis, atque ideo /ut hic ineptissime cavillatur. Nam contra expresse addidi voces illas mihi prius fuisse significationis ignotae, adeo ut dubitari non possit quin praecise idem tantum per illos ac per nomen rei cogitantis intellexerim” (p. 51-52). [ Links ]

FATTORI, Marta. Esperientia ed Encyclopaedia. In: Studi Filosofici. 1994, p. 111- 145. [ Links ]

Isso remete à Sexta Parte do Discurso do método (AT, VI, 76, l.22 sg.). [ Links ]

1HUYGENS, A. B 113, 1637.

2A referência usada para os textos de Descartes é a edição Adam et Tannery (Oeuvres de Descartes, publiées par Charles Adam et Paul Tannery, 11 volumes, Paris, Vrin, 1996). Na notação simplificada usada internacionalmente, AT indica a edição; os numerais romanos, o volume; e os algarismos arábicos, o número da página.

3A Mesland, maio 1645.

4Ver a Censura (...) Domini Balzaci (AT, I, 7-11, B 14) datada de 1628.

5Trata-se da Filosofia universa do jesuíta Thomas Compton Carleton (1591 circa- 1666), que ensinou belas-letras a Saint-Omer, depois Filosofia e Teologia junto aos padres ingleses de Liége. Datada de 1649 (Anvers), a obra tinha sido aprovada em 17 de setembro do ano precedente pelo P. Alexandre Gottifredi, visitante das pro- víncias da Inglaterra e da Bélgica. Em sua décima-segunda disputa, Compton Carleton aborda as formas acidentais e começa por examinar a opinião de um moderno, cujas referências são dadas na margem Ren. Des-Cartes in Medita: Responsione 4. p. 285: “Dum in Physicis hisce disputationibus versarer, in libellos quosdam incidi, ubi quaedam tam mira, tamque a vera Philosophia aliena animaduerti, ut mihi auctor visus sit nouitatis studiosior fuisse, quam veritatis” (p. 246). O jesuíta nota que a dificuldade da refutação vem do estilo particular de Descartes: “unum vero accidit incommodè, quod is, qui cum praesens mihi hîc disceptatio, scholastico ùore non scribat, nec eâ claritate, ac methodo, quâ in academiis tradi Philosophia solet: unde fit, ut in quibusdam difficile sit mentem eius eruere, & quid tandem velit, certo pronuntiare”. Compton Carleton notou bem a diferença nas duas edições para as respostas a Arnauld e menciona explicitamente a segunda edição, Amsterdam, 1642. Resume em nove proposições a resposta de Descartes às objeções do “uir quidam doctus & pius” (que permanecia, lembremos, anônimo para os leitores). Empreende, em seguida, mostrar que os acidentes são reais pelas autoridades dos teólogos, até por Gamaches, Stapleton e os autores da Companhia, depois pela autoridade dos Concílios e, enfim, por argumentos racionais. A seção VI parece responder à opi- nião de Descartes nas cartas a Mesland, ao passo que uma outra opinio nova, exposta na seção VII, é explicitamente distinguida das opiniões cartesianas (a teoria dos acidentes intencionais).

6In I Sent., 25, I, 4c (e também II Sent.).

7“sit mens sive res cogitans...” PL 63, 762.

8De corpore Christi, p. 125, l. 19 e l. 23.

9Constatamo-la em Bourdin, Obj. VII. Ele finge admitir a seu objetor, após a desco- berta do cogito, que essa “coisa que pensa” é o corpo, uma extensão (ALQUIÉ, II, 989-990).

10AT, VII, 27, 9.

11Assim o latim “si uel minimum quid inuenero quod certum sit et inconcussum” é traduzido por “si je assez heureux pour trouver seulement une chose qui soit certaime et indubitable”.

12GASSENDI, Quintae objectiones (1642 p. 303): Gasendi omite tantum: “sum igitur praecise Res cogitans, id est Mens, sive animus, intellectus ratio”.

13Disquisitio metaphysica, Opera Omnia (rééd. 1964, Fromman Vlg de l’éd. Lyon 1658) t. 3, p. 300.

14Notável exceção, os trabalhos de Roger Ariew (Pierre Bourdin and the Seventh Objections. In: Descartes and his contemporaries, 1 éd. R. Ariew et Marjorie Grene, Chicago et Londres: 1995, p. 208-225).

15“falsum etiam est me quaesiuisse an mens essem, nondum enim quid nomine mentis intelligerem explicueram, sed quaesivi an aliquid in me esset ex iis, quae animae prius a me descriptae tribuebam, cumque non omnia quae ad ipsam retuleram in me invenirem, sed solam cogitationem, ideo non dixi me esse animam, sed tantum rem cogitantem, atque huic rei cogitanti nomen mentis, sive intellectus sive rationis imposui, non ut aliquid amplius significarem nomine mentis, quam nomine rei cogitantis, atque ideo /ut hic ineptissime cavillatur. Nam contra expresse addidi voces illas mihi prius fuisse significationis ignotae, adeo ut dubitari non possit quin praecise idem tantum per illos ac per nomen rei cogitantis intellexerim” (p. 51-52).

16FATTORI, Marta. Esperientia ed Encyclopaedia. In: Studi Filosofici. 1994, p. 111- 145.

17Isso remete à Sexta Parte do Discurso do método (AT, VI, 76, l.22 sg.).

Recebido: 18 de Julho de 2011; Aceito: 24 de Agosto de 2011

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Tradução de Sandra Pacheco Silva dos Santos.

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