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Educação e Filosofia

Print version ISSN 0102-6801On-line version ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.25 no.spe Uberlândia  2011  Epub Jan 31, 2024

https://doi.org/10.14393/revedfil.issn.0102-6801.v25nespeciala2011-11 

Dossiê: Descartes e o Grande Século

MEDICINA E O “GRANDE SÉCULO”: A CRÍTICA CARTESIANA1

Marisa C. de O. F. Donatelli* 

*Professora do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). E-mail: madonat@uesc.br


RESUMO

A literatura nos mostra que a medicina é um dos alvos preferidos das críticas feitas no teatro por Molière na segunda metade do século XVII. Essa situação não é gratuita, pois a medicina fornece material inesgotável às sátiras das quais é vítima, seja pelas práticas terapêuticas usuais, seja pela verborragia característica dos médicos que abusam do latim e da tradição grega à qual se apegam de modo ferrenho. Na filosofia, a crítica a essa ciência também está presente já na primeira metade desse século: justamente pelo fato de a medicina de sua época conter pouca coisa da qual se possa vangloriar, Descartes deposita grandes esperanças nessa área, no sentido de não só promover um conhecimento que leve à redução ou mesmo à eliminação das doenças que afligem o corpo e o espírito, como também de prolongar a vida, livrando-se do enfraquecimento da velhice (AT VI, 63).2 Desde que se instala na Holanda, o filósofo desenvolve estudos com a intenção de construir uma medicina que se destaque daquela que é praticada em sua época, mostrando-se eficaz em seus objetivos. Projeto esse que sofre uma série de alterações à medida que o filósofo prossegue em seus estudos. Este trabalho pretende, a partir de uma breve apresentação do quadro histórico da medicina na primeira metade do século XVII, mostrar a inserção de Descartes na discussão médica de seu tempo.

Palavras-chave: Mecanicismo cartesiano; Medicina cartesiana; Patologia; Terapêutica

ABSTRACT

Literature shows that medicine was one of the favorite objects of Molière’s criticism in theater in the second half of the 17th century. This position is earned, since medicine provides an inexhaustible source for these satirical ideas directed toward it: in addition to the usual therapeutic practices, there is also the typical logorrhea of medical professionals abusively employing the Latin and Greek roots to which they seem inseparably tied. Criticism towards this scientific field was also present in the domain of Philosophy since as early as the first half of the same century: precisely because medicine at that time did not wield its present power, Descartes placed great hopes in this field, not only for improving health and eradicating the ills afflicting the body and spirit, but also for prolonging life and overcoming the deprivations of old age (AT VI, 63). After settling in the Netherlands, he turned to the study of medicine from a different perspective from that usual in his time, and began to effectively achieve his purposes. His project underwent several changes as it evolved over the years. This work aims to describe the role of Descartes in the medical debate of his time, starting from a brief overview of the historical context of medicine in the first half of the 17th century.

Keywords: Cartesian mechanism; Cartesian medicine; Pathology; Therapeutics

I

Os termos da autorização dada pelos doutores da Faculdade de Medicina de Paris3 para publicação de livros de fisiologia e de anatomia servem como referência para a compreensão do pensamento médico que dominará uma boa parte do século XVII. A referência a Hipócrates, aí contida, remete a interpretações comprometidas com o método escolástico, ou seja, remete a uma adaptação de Hipócrates à física e à filosofia de Aristóteles por meio de estudos de Galeno, Averrois e Avicena, dentre outros.

As disciplinas que estruturam os cursos de medicina mantêm o modelo dos séculos anteriores: botânica, química, física, farmácia, anatomia, fisiologia, patologia e filosofia. A medicina constitui-se como uma ramificação da filosofia e é entendida como filosofia natural aplicada ao corpo. Por meio dessa vinculação fica compreensível que um bom médico deve ser também um bom filósofo. Assim, o médico deve formar argumentos firmes no mais puro modelo escolástico: o aristotelismo domina o pensamento científico, aí incluída a medicina4 (DONATELLI, 2006, p. 409).

Apesar desse ponto em comum - a autoridade da tradição - as interpretações oferecidas, muitas vezes, divergem entre si e geram controvérsias entre as obras. Controvérsias que criam um ambiente propício para colocar em prática o ensinamento das disputas por meio da formulação de argumentos. Essa prática é enfatizada dentro das faculdades: nos exames finais, o candidato deve se sair bem nas disputas orais com os seus mestres. O êxito de sua atuação envolve, sem dúvida, o domínio do saber, mas o que importa é saber usar com habilidade o silogismo. A literatura francesa, por exemplo, parece ser um bom testemunho da importância dada às disputas orais. Os médicos caricatos que frequentam a obra de Molière não são desprovidos de total realidade. Na farsa Le médecin volant, só para dar um exemplo, quando Valère instrui Sganarelle sobre como se fazer passar por médico, afirma que “basta falar de Hipócrates e de Galeno!” (MOLIÈRE, 1964, p. 38). O teatro parece colocar em evidência o resultado a que o tipo de ensinamento praticado nas faculdades de medicina pode levar: uma medicina teórica que se forma à distância de uma prática, à distância dos doentes. O mais importante é construir raciocínios legítimos que respeitem a forma e a figura e que componham boas disputas.5

Ao considerar o método de ensino nas faculdades de medicina nesse período, compreende-se por que elas formam médicos hábeis em ler e comentar, orgulhosos de seus conhecimentos. Afinal, o método aí adotado limita-se à escolha de uma obra antiga traduzida para o latim, lida pelo professor do alto de sua cátedra, acompanhada de um comentário. No ensino da anatomia, é preciso acrescentar a esse quadro um demonstrador que mostra nas pranchas as partes descritas nos livros. Nas sessões de dissecação, é o demonstrador que mostra os órgãos sobre os quais discorre a leitura do professor. Aos alunos só resta observar e anotar da melhor forma possível.

No curso, Aristóteles é a base que dá sustentação ao conteúdo desenvolvido: “primeiros princípios, matéria e forma, quatro elementos, geração e corrupção em geral” (ROGER, 1971, p. 15). Ao lado de Aristóteles, Galeno se apresenta como portador da explicação mais adequada sobre os órgãos: eles são considerados sob o ponto de vista da função que desempenham no conjunto de todo o corpo. Essa inspiração teleológica, que domina a fisiologia do século XVI, atinge uma boa parte do século seguinte.

Um ponto de referência no ensinamento médico do século XVII e que se constitui como uma exceção perante o predomínio dos textos antigos é a obra de Jean Fernel (1497-1558). É verdade que uma parte da estrutura encontrada na obra desse médico-autor ainda é de inspiração aristotélica.6 No entanto, ela promove uma modificação ao adotar como ponto de partida da medicina a anatomia,7 que deve ser considerada como pré- requisito à fisiologia,8 uma vez que a compreensão do funcionamento do corpo só pode ocorrer depois de se ter conhecimento de suas partes, tais como o osso, a cartilagem, o nervo. A obra de Fernel, que serve como referência para o ensino da medicina, é intitulada Universa Medicina, da qual os Physiologiæ Liber I-VII (Os sete livros da fisiologia) compõem a primeira parte. Essa obra, publicada em 1542 com outro título, teve várias reedições, sendo que as últimas são de 1644, em Leyde, e de 1656, em Utrecht.9 No período de 1554 a 1568, as obras médicas de Fernel percorrem a Europa por meio de numerosas reedições e traduções (ROGER, 1971, p. 6).

A permanência da obra de Fernel nos fornece um exemplo de como a medicina que chega à primeira metade do século XVII se mantém presa à tradição grega (exceção feita a Paracelso): ela é a fonte das informações sobre anatomia e fisiologia.10 No século XVII, essa tradição é sustentada pelo constante aparecimento de traduções e comentários relacionados à antiguidade. Apesar dessa persistência, dessa forte vinculação com a ciência grega, algumas exceções podem ser mencionadas como Vesalio, renovação na anatomia, e Ambroise Paré, na cirurgia.

Os médicos, no século XVII, são mais suscetíveis a argumentos fundados em citações do que aos que são baseados em dados formados a partir da observação. A grande maioria deles não considera as experiências forjadas a partir do que é visto no organismo e que nem sempre estão de acordo com o que dizem os clássicos manuais.11 O caso mais notável, e também o mais conhecido, fica por conta da publicação da descoberta de Harvey (Excercitatio anatomica de motu cordis et sanguinis, 1628). A recepção de sua obra não foi favorável mesmo no grande centro de referência da medicina que era a Itália naquele momento. A resistência ao novo é compreensível, uma vez que uma descoberta pode colocar em questão todo um sistema teórico estabelecido, como a fisiologia galênica, por exemplo. Não é de se estranhar que essa publicação tenha provocado reações iradas - como foi o caso de Riolan, filho12 - e durante muitos anos tenha alimentado tanta discussão e discordância. Um caso exemplar é a França: nesse país, só a partir da intervenção de Louis XIV, ou seja, depois de transcorridos mais de 50 anos da publicação de Harvey, iniciou-se o ensino da circulação. Mesmo assim, fora da Faculdade de Medicina de Paris: Dionis ensinará e defenderá a descoberta de Harvey no Jardin du Roi, atual Jardin des Plantes.

Essa resistência em aceitar o “visível” tem como consequência discussões intermináveis que, por sua vez, promovem a convivência entre as novas ideias e aquelas que já estão estabelecidas. Assim sendo, as teorias deixam de ter o caráter definitivo da certeza e passam a compor o conjunto de explicações possíveis sobre um determinado fenômeno. Dessa forma, podem ser encontradas várias explicações, as mais diversas, para um único problema. Aquelas referentes à geração fornecem um caso exemplar para esse tipo de situação engendrada pela “combinação” entre ideias antigas e novas (ROGER, 1971, p. 43-44).

Um pequeno exemplo do tipo de medicina que foi divulgada no século XVII pode ser encontrado nos textos de Fernel sobre fisiologia, mais especificamente no estabelecimento da relação entre Criador e a conformação do corpo:

O cérebro é o castelo e o domicílio do espírito humano, a sede dos pensamentos e da razão, a fonte e a origem de todo o movimento e sensação. Ele ocupa a parte superior do corpo, olhando para o alto e para o céu, como o Autor de todo este mundo e esse espírito que conduz todas as coisas reside no céu, no lugar mais alto. Da mesma forma, seria conveniente que o cérebro, o castelo de nossa alma, estivesse situado no lugar mais elevado do corpo (FERNEL, 2001, p.120).

Além dessa referência ao Criador, que é constantemente encontrada nos livros de fisiologia do século XVII, Fernel se vale da comparação entre o coração e o sol para explicar o calor inato, paralelo que remete a uma relação entre corpo e universo presente nos textos de Aristóteles (Geração dos animais), de Galeno (Utilidade das partes do corpo) e que não se esgota no século XVI com Fernel. Ao contrário, a partir do século XVI, essa concepção é largamente difundida, chegando ao século XVII pelo Theatrum anatomicum de Bauhin.

Essa comparação, constante no século XVI e de uso comum no século XVII por aqueles que não conseguem se desvencilhar do peso da tradição, tem por base a aceitação da influência dos astros sobre os homens. Em outras palavras, aceitar essa influência significa aceitar que o princípio vital emana dos astros. Assim sendo, essa influência deve ser considerada como natural e desvinculada de qualquer intenção de lançar previsões. É dessa forma que a astrologia aparece ocupando a posição de uma ciência conjugada à medicina e convivendo, pacificamente, com as prescrições de alimentação e higiene. É exatamente essa postura que se encontra em Fernel. A conciliação que promove entre Aristóteles e Galeno, dando-lhes uma conotação cristianizada, faz desse autor uma figura emblemática de seu tempo, com uma obra que contém toda essa variedade de conteúdo que leva a contradições inevitáveis. Com Fernel, o próprio termo “fisiologia” sofre alteração, pois afasta-se do sentido da “physis” grega, ligado ao estudo da natureza em geral, e passa a vincular- se ao estudo da natureza do homem, estudo este que envolve a anatomia, os elementos, os temperamentos, as funções dos órgãos, as faculdades da alma e a geração.13 A fisiologia que prevalece no primeiro período do século XVII conserva não só esse sentido, como também a estrutura de divisão dos livros de medicina (DONATELLI, 2006, p. 497).

A coexistência entre tradição grega, sacralização do corpo e a consideração da influência dos astros situada no mesmo patamar que a influência da alimentação no funcionamento do corpo compõem o cenário extremamente rico em detalhes, no qual a medicina atuará em boa parte do século XVII. A esse amplo leque de informações, Descartes não passa ileso. De fato, ele se inscreve na tradição da “medicina hipocrática enriquecida e também modificada por Aristóteles e Galeno”, como afirmava Dreyfus Le-Foyer em 1937 (DREYFUS LE-FOYER, 1937, p. 238).

No entanto, a partir das concepções aristotélico-galênicas, a obra cartesiana se encarregará de promover algumas modificações quanto ao seu sentido.

II

É bem conhecida a carta de janeiro de 1630 enviada por Descartes a Mersenne, na qual o filósofo se mostra particularmente preocupado com a doença de seu interlocutor e roga para que ele se conserve bem até chegar o momento em que tenha construído “uma medicina que seja fundada em demonstrações infalíveis” (AT I, 105-106). Também é muito tentador recorrer a essa carta para se tecer comentários maldosos segundo os quais Mersenne não teria sobrevivido se dependesse das conclusões desses estudos de Descartes. Isso porque o suposto “fracasso” do filósofo nessa área é comumente defendido com base em seu descontentamento afirmado ao longo dos anos que se seguiram a essa proposta inicial, descontentamento este proveniente da insuficiência de experimentos que seriam necessários para o bom andamento de seus estudos de medicina. Afastando-se desse tipo de abordagem, este trabalho tem por objetivo voltar-se para a inserção de Descartes na discussão médica de seu tempo. Seu interesse pela medicina está pautado na insatisfação com a medicina de seu tempo, posto que ela contém “poucas coisas cuja utilidade seja tão notável”, como ele afirma no Discurso do método (AT VI, 62). Ao tomar como base de explicação todas as funções do corpo a disposição dos órgãos, da matéria, e os movimentos das menores partes que o compõem, Descartes rejeita a interferência de qualquer outro princípio de movimento e de vida que não seja o sangue, os espíritos animais e suas menores partículas.

Essa explicação dos fenômenos da vida apresenta, segundo Jacques Roger, dois planos: um, macroscópico, em que há facilidade para explicar a circulação do sangue, o movimento dos membros, as contrações do estômago; outro, microscópico, em que só é possível imaginar esses corpúsculos invisíveis dotados de movimentos e formas distintas, como é o caso da explicação fisiológica da formação, da impressão das ideias dos objetos e o concurso dos nervos e da glândula pineal (ROGER, 1995, p. 173-174).

Assim, as explicações de Descartes sobre as funções do corpo tomam por base a física como forma de eliminar da fisiologia todo recurso, propriedades e qualidades ocultas. As modificações de uma extensão em movimento devem estar na base de todas as explicações dos fenômenos físicos, dentre os quais estão incluídos aqueles ligados às funções dos corpos dos seres vivos. A explicação mecânica destes consta em cinco obras de Descartes, sem mencionar a correspondência: Excerpta anatomica (1631-1648), L´homme (1632?), Discours de la méthode (1637) - partes 5 e 6, Description du corps humain (1648) e Les passions de l´âme (1649) - parte 1.

Nesse tipo de explicação, o corpo humano é tratado da mesma forma que o do animal e explicado como se fosse uma máquina. Isso não significa que o homem deve ser interpretado como animal-máquina. A alma aí está inserida, mas o objetivo é desvinculá-la de qualquer função que não lhe diga respeito. O corpo é descrito como um conjunto de órgãos, veias, artérias, músculos, ossos, dotado de um mecanismo que produz seus movimentos e de uma natureza que o preserva e o restaura em caso de algum problema em seu funcionamento. A alma só é considerada quando se tratam de movimentos voluntários, aqueles que dependem do pensamento, uma vez que ela se caracteriza por sua capacidade intelectiva. Esses movimentos que só serão levados a um bom termo, se os órgãos que estão na base de todo movimento estiverem bem dispostos, como afirma Descartes na Descrição do corpo humano.

Nesse contexto, o motor que possibilita todas as funções fisiológicas tem por base o calor cardíaco que, por um processo semelhante à fermentação, faz que o sangue entre em ebulição e distribua-se pelo corpo por meio das artérias. Assim, o calor cardíaco está na origem do movimento do sangue e, consequentemente, de suas partículas mais sutis denominadas espíritos animais. Por sua vez, são os espíritos animais que determinam os movimentos do corpo, a partir do cérebro e de acordo com a estrutura dos músculos e dos nervos, e compõem a base explicativa das sensações. A descrição dos nervos, feita por Descartes, nada acrescenta às informações já aceitas pelos anatomistas e médicos, porém quanto ao “uso” dos nervos, ele não parece satisfeito com o que encontra nos livros. Por conta da dupla função dos nervos - sensação e movimento - os anatomistas traçam uma distinção entre eles. Além disso, eles alegavam que a capacidade de sentir estaria nas membranas que envolvem os nervos e a de mover nas pequenas fibras que se estendem ao longo dessas membranas que são comparadas a pequenos condutos.14 Essa concepção é rejeitada por Descartes. Para ele, o nervo serve a essa dupla função, e as sensações são percebidas pelo cérebro. Os objetos excitam, por meio do choque entre partículas, movimentos nos nervos que os transmitem ao cérebro e daí retornam ao ponto afetado provocando as sensações.

A proposta cartesiana, no que concerne à fisiologia, apresenta-se como inovadora ao adotar a mecânica como modelo explicativo, de forma que nela não é mais encontrada qualquer referência a qualidades ocultas e tendências internas creditadas à alma. A explicação mecanicista volta-se para os movimentos que dependem de “peças menores” - invisíveis. Esses movimentos são explicados por ordem e cada um deles representa uma função.15 Essas funções são explicadas por meio da intervenção de líquidos, separação, agitação e calor das partículas, fermentação, destilação, disposição dos poros e desigualdade entre as partículas, como é o caso da digestão. Toda explicação do funcionamento do corpo está pautada em leis que compõem a base da física cartesiana, de tal forma que na própria composição o corpo remete à explicação dos corpos terrestres, como pode ser constatado, por exemplo, em um dos ensaios do Discurso do método: Os meteoros.16 (DONATELLI, 2008, p. 242-246). Assim como no universo cartesiano encontram-se três tipos de corpúsculos, no corpo do ser vivo encontra-se composição similar, sempre respeitando as leis da natureza.

III

Como forma de exemplificar o tratamento das questões médicas que se serve dos princípios fornecidos pela razão para se voltar para a experiência, vou retomar uma questão da patologia17 que se apresenta revestida de grande interesse para época, qual seja, a referente às febres. A explicação cartesiana da febre toma como base o movimento da matéria e o caráter geométrico das cavidades que contêm a matéria. Em outras palavras, a explicação fornecida por Descartes é de caráter físico- geométrico e conta com os seguintes componentes: calor cardíaco mantido pelo sangue, matéria corrompida, cavidades que contêm a matéria corrompida e movimento. Partindo de um ponto comum com a tradição, qual seja, adotar o aumento do calor cardíaco como causa do aumento da temperatura do corpo e da aceleração do pulso, Descartes se encarregará de introduzir nessa explicação aspectos vinculados a sua física. É assim que se o ponto de partida é o fogo cardíaco mantido pelo sangue, a causa da febre está localizada em algo contido no sangue que provoca alteração nomeada como matéria corrompida que é formada a partir da putrefação originada no repouso dos humores. Quanto aos acessos, Descartes considera a configuração dos poros que fecham as cavidades que contêm essa matéria corrompida, apontando a pressão exercida por ela como sua causa e o caráter geométrico dessas cavidades, que varia entre os homens, como responsável pela diversidade dos acessos. A esses dois pontos fundamentais na explicação da febre, o filósofo agrega outros dois concernentes ao caráter geométrico das partículas do sangue e ao movimento circular da matéria. Afinal, a febre é transmitida a todo o corpo pela circulação do sangue.18 Nota-se que o ponto central da concepção cartesiana de febre localiza-se no coração, que tem seu calor alimentado pelo sangue. Este, por sua vez, é formado a partir dos alimentos e do processo de filtragem e destilação dos órgãos (AT XI, p.121-123).

Ao lado dessa explicação física, e de forma complementar, Descartes defende uma concepção de febre que ultrapassa o âmbito do mecanicismo, como se pode notar em sua correspondência com Elisabeth (DONATELLI, 2002, p. 116-129). Nesse contexto epistolar, a ênfase recai sobre a relação entre fisiologia e disposições mentais: as causas vinculam-se, antes, a um fator emocional do que ao mau funcionamento dos órgãos, do corpo-máquina. No tratado As paixões da alma, Descartes expõe de forma exaustiva essa relação que leva em consideração o homem enquanto composto de corpo e alma, consideração que, por sinal, sempre esteve presente em seus textos médicos, uma vez que há o reconhecimento de que o conhecimento isolado do corpo, enquanto máquina, não é suficiente quando se trata do corpo humano.19

A natureza composta do homem está na base do estabelecimento do que se pode chamar de patologia e terapêutica cartesianas, das quais só restaram algumas anotações esparsas. Nelas, encontram-se dois aspectos que remetem à interpretação do homem, que as duas substâncias fundantes: i) problemas ocasionados por um desajuste do corpo-máquina que necessitam uma intervenção externa para retomar o seu equilíbrio; ii) problemas localizados no campo da união substancial e que devem considerar, antes, o recurso a estratégias comportamentais para superar o quadro que provocou as perturbações do que a medicamentos (DONATELLI, 1999, p. 7-31).

Essas duas considerações, na base da terapêutica cartesiana, indicam o quanto ela se afasta do que era praticado em sua época, que se baseava, por um lado, na tradição galênica e, por outro lado, na escola ocultista tão bem representada pelos herdeiros de Paracelso.

Nesse âmbito, a crítica de Descartes recai sobre o uso de remédios químicos. O atributo “perigoso” está constantemente atrelado a eles: tártaro, antimônio, mercúrio e vitríolo devem ser usados com muito cuidado. À relutância de Elisabeth em tomar esses remédios, Descartes lança seu apoio, pois a menor alteração em sua composição pode transformá-los de remédios em venenos (AT IV, 589). Além disso, para que seus efeitos possam ser devidamente controlados, seria necessário um conhecimento da composição desses remédios que, infelizmente, mostra-se bastante escasso. Por conta disso, ele deixará sempre patente sua preferência pelos meios naturais de cura que evitem as “drogas dos farmacêuticos ou dos empíricos” (AT IV, 625). Essa prevenção contra os químicos também está justificada pela linguagem utilizada por eles que se vale, constantemente, de termos obscuros e pouco usuais, o que indica um uso oportuno da linguagem para ocultar a própria ignorância e impressionar os incautos (AT IV, 569-570).

Nesse universo de crítica aos químicos e aos seus extratos, situa- se o julgamento desfavorável aos médicos que encontramos ao longo dos textos de Descartes:20 é preciso ter cautela na adoção de todas as recomendações feitas por eles e, principalmente, na administração desses medicamentos. O filósofo mostra-se também muito cuidadoso quanto às sangrias. Prática usual em sua época, o constante recurso a esse procedimento terapêutico pode levar o paciente à morte, no lugar de possibilitar a cura e, por isso, Descartes a reputa como muito perigosa: só se deve recorrer à sangria se o paciente já está habituado a essa prática, pois nesse contexto ela se torna quase necessária (AT IV, 590). Dessa forma, são encontrados em sua correspondência conselhos diversificados: se a sangria é recomendável em alguns casos, em outros se mostra extremamente ineficaz. É preciso considerar a circunstância do paciente, para que a prescrição seja minimamente adequada e não haja riscos elevados. Ao lado da sangria, a cirurgia aparece sendo recomendada também com cautela. Os procedimentos terapêuticos aconselhados por Descartes são sempre tomados como contingentes, uma vez que ocorre variação de acordo com o histórico do paciente. Os efeitos dos remédios não se mantêm estanques, por isso a contingência de sua aplicação: a prescrição de um medicamento envolve a possibilidade de efeitos diversos (AT III, 456). Essa postura está fundamentada na convicção de que não há “remédio que possa servir para todos os males” (AT IV, 531).

Apesar de Descartes, na patologia, se valer do conhecimento proveniente da experiência dos médicos que costumava acompanhar, no que diz respeito à etiologia, o filósofo recorre constantemente à explicação física a partir dos princípios estabelecidos por meio da razão, que evocam o movimento da matéria e a configuração das partes que a compõem. O mesmo recurso pode ser constatado na fisiologia, porém, nesse ponto, pode ainda ser notada a importância heurística da experiência.

IV

A proposta cartesiana na área médica agrega outra teoria além do mecanicismo, mas dela decorrente: a fermentação apresenta-se como uma teoria importante e muito usada nas explicações médicas do século XVII, como pode ser constatado em Harvey ao explicar a diástole, e em Van Helmont, ao explicar o processo de digestão. Descartes, ao tomar por base a distinção entre alma e corpo, estrutura suas explicações sobre as funções do corpo em operações materiais. Dessa forma, a digestão e o movimento cardíaco são compreendidos por meio dessas operações materiais que estão na origem das fermentações.

Vejamos como se dá a adoção do processo de fermentação em Descartes, nas explicações do funcionamento dos corpos dos seres vivos. O corpo, que passa a ser considerado de forma autônoma como máquina, necessita de um motor que possibilite todas as funções fisiológicas e esse motor tem por base o fogo cardíaco que, por um processo semelhante à fermentação, faz que o sangue entre em ebulição e distribua-se pelo corpo por meio das artérias. Tudo se dá da seguinte forma: o sangue, ao entrar no coração - portador desse calor - dilata-se. O calor cardíaco além de dilatar e esquentar torna o sangue mais sutil, de modo que ele escoará gota a gota pela veia cava, no ventrículo direito, de onde irá para o pulmão e, assim, passará para o ventrículo esquerdo, do qual se distribuirá por todo o corpo. Assim, o sangue passa por um processo de destilação no coração para, depois, passar por um processo de condensação nos pulmões. Com essa interpretação, Descartes vai contra a explicação galênica, dominante nos livros de sua época, segundo a qual o sangue se distribuiria do fígado para todo o corpo por meio das veias.

O calor cardíaco está na origem do movimento do sangue e, consequentemente, de suas partículas mais sutis denominadas espíritos animais que determinam os movimentos do corpo. Descartes defende essa posição desde o tratado O homem, rejeitando qualquer explicação que recorra a outro princípio de vida que não seja o sangue e os espíritos animais:

não é necessário conceber nela [na máquina corpórea] nenhuma alma vegetativa nem sensitiva nem outro princípio de movimento e de vida além de seu sangue e seus espíritos, agitados pelo calor do fogo que queima continuamente em seu coração (AT IX, p. 202).

Essa posição é reafirmada na Descrição do corpo humano, texto no qual Descartes sustenta que o princípio de todos os movimentos do corpo encontra-se no calor cardíaco (AT XI, p. 226). Aí também se encontra o processo de fermentação na base explicativa do movimento do coração. Na segunda parte dessa mesma obra, Descartes se detém na explicação detalhada do movimento do coração e do sangue, na qual recorre a dois expedientes: observação anatômica (recurso, aliás, já utilizado no Discurso do método) e experiência que corrobora a descrição do movimento do coração (AT XI, p. 241-243). Vou me deter nesse último recurso, pois ele está presente na importante discussão entre Descartes e Plempius ocorrida em 1638.21

Para Descartes, quando o coração está alongado e desinflado, só há, em suas concavidades, um pouco de sangue que restou daquele que se rarefez anteriormente. Esse pouco de sangue rarefeito, ao se misturar com o que entra, comporta-se como uma levedura, fazendo que ele se aqueça e se dilate rapidamente. Assim, o coração enrijece, dilata-se e distribui o sangue pelo corpo por meio das artérias. Com a saída do sangue rarefeito, o coração se alonga e desinfla. Em resposta às críticas de Plempius ao calor cardíaco, Descartes recorre à descrição do experimento com peixes, cujo coração extraído pulsa por muito mais tempo do que o coração de um animal terrestre. A pulsação, após a extração, é explicada pela penetração de um pouco de sangue de uma parte do coração numa outra um pouco mais quente. Isso significa que o coração é impelido a continuar a pulsar, por uma força mínima; afinal, quanto menor é a quantidade de qualquer humor - e o sangue é um tipo de humor - tanto mais facilmente pode ele se rarefazer provocando a dilatação. O exemplo, pautado em analogia, ao qual Descartes recorre para justificar essa afirmação, é o de líquidos que, ao se misturarem a outros, se aquecem e inflam. Da mesma forma, no coração reside algum humor equivalente a um fermento, com o qual outro humor, ao se misturar, dilata-se (AT I, p. 521-534). Assim, convém esclarecer, a rarefação à qual Descartes se refere, aqui, consiste na manutenção da forma do líquido e aumento de seu volume, distinguindo-se da outra maneira, quando ele se transforma em fumo e muda a forma. Plempius, em sua objeção na carta de janeiro de 1638, refere-se a esse último tipo de rarefação, que não é considerado por Descartes na explicação do movimento do coração, uma vez que não há ar nos ventrículos do coração, mas somente sangue. Esse modo de rarefação, que se dá em um momento considerado pelo filósofo na explicação do movimento cardíaco, implica o aumento de volume do sangue, adquirindo, portanto, novo movimento, figura ou posição, de forma que suas partículas necessitam de um lugar mais amplo. É assim que a diástole será defendida como se dando em um momento e não de forma gradativa.

Quando o sangue aumenta de volume no coração, a maior parte dele irrompe pela aorta e pela veia arteriosa,22 mas ainda fica outra parte em seu interior que preenche os ventrículos. Aí, atinge um novo grau de calor e uma certa natureza como a do fermento: imediatamente depois, enquanto o coração desinfla, misturando-se muito rapidamente ao novo sangue, que escorre para dentro através da veia cava e da artéria venosa, infla-se rapidamente e sai pelas artérias, depois de ter deixado para trás uma parte qualquer de si que funciona como um fermento (AT I, p. 530).

A fermentação também é defendida por Descartes no processo de digestão. Assim, os dois aspectos fundamentais de sua fisiologia - movimento do coração e digestão - adotam essa teoria na base de suas explicações como extensão da adoção do mecanicismo na compreensão dos processos fisiológicos. A digestão, assim, está baseada no processo que pode ser comparado com a ação de líquidos sobre a cal e de ácidos sobre o metal. O líquido presente no estômago, e que está na base da digestão, provém do sangue e atua como ácido junto aos alimentos, dissolvendo-os, como ocorre em todas as fermentações23 (AT XI, 121- 122). A digestão necessita do calor cardíaco enviado pelas artérias juntamente com os líquidos que são mencionados nesse processo de fermentação que caracteriza a digestão, ou seja, os alimentos dotados daquele poder, juntamente com as partes fluidas levadas pelo sangue, que facilitam todo o processo, possibilitam a dissolução que ocorre no estômago (AT VI, p. 53). Por meio da adoção da fermentação como causa do calor, que está presente nos dois processos mencionados que podem ser explicados pelo mecanicismo, sem recurso às faculdades, Descartes reforça o distanciamento em relação a Galeno e Aristóteles24 no que diz respeito às explicações sobre a atuação do calor na digestão.

A importância da fermentação no funcionamento do corpo vivo situa-se no fato de ela estar presente em processos fisiológicos fundamentais para o bom andamento da máquina corporal.

V

A teoria da fermentação exerce influência nas pesquisas vinculadas às ciências da vida no século XVII, podendo ser encontrada em Van Hogelande,25 médico atuante em Leiden, com quem Descartes manteve contato.26 Cornelius Van Hogelande defende as ideias cartesianas, adotando seus princípios nas explicações sobre a economia do corpo do homem. Dentre essas idéias, a fermentação apresenta-se de forma recorrente, na base dos seguintes pontos abordados em sua obra: união corpo-alma, digestão, movimento cardíaco e febre, entre outros. Hogelande toma como base em suas explicações o princípio cartesiano fundamental da distinção entre alma e corpo. A obra desse médico, dedicada a Descartes, intitula-se “Pensamentos nos quais a existência de Deus, a espiritualidade da alma e sua união com o corpo são demonstradas, com uma breve descrição da economia do corpo animal e sua explicação mecânica”27 e volta-se, na terceira parte, para a economia do corpo do ser vivo pautada na ação dos líquidos no corpo, com ênfase no papel da fermentação que está na base do processo de digestão, a exemplo do que Descartes defende no tratado O homem e na Descrição do corpo humano. No que concerne à patologia, a febre será considerada como consequência da fermentação dos humores, além da acidez do sangue. Nesse ponto, o distanciamento em relação a Descartes se dá pela desconsideração do aspecto geométrico das cavidades pelas quais os humores escoam. Como já foi afirmado, os acessos de febre são explicados por Descartes, não só a partir da consideração da mistura, ao sangue, do humor corrompido que se aquece e se dilata, o que constitui o processo de fermentação, mas também com base no mecanismo de abertura das cavidades por onde escoa essa matéria corrompida que causa o aumento do calor, além do caráter geométrico das partículas de matéria no sangue.

Essa ênfase na fermentação, comum no século XVII, é devida, principalmente, aos estudos realizados por Jean-Baptiste Van Helmont.28 Segundo esse autor, a digestão pode ser compreendida a partir da ação de um fermento ácido proveniente do baço. Ao lado desse fermento, outros concorrem para o andamento do processo, assim como o fermento do fel e o fermento do fígado. Dessa forma, todo o funcionamento do corpo está regulado pela ação de fermentos, e o processo de digestão apresenta-se como central por fornecer princípios nutritivos aos outros órgãos.

Descartes, por sua vez, adota o princípio da fermentação e a concepção do fogo cardíaco adaptando-os aos princípios da mecânica. A adoção de recursos tirados de seus estudos de química, alegados em carta a Mersenne em 1630 (AT I, p. 137), na explicação concernente ao funcionamento dos corpos, em conjunção com a teoria física do mecanicismo, possibilita a Descartes a composição de uma teoria médica que abrange todos os pontos necessários para a compreensão dos processos fisiológicos, sem que seja preciso recorrer a elementos que ultrapassem a esfera daquilo que pretende explicar. A sua cosmologia com a teoria dos turbilhões, na qual três elementos atuam, compondo um universo sólido e contínuo, em que o vazio é impensável, está na base de toda a explicação física concernente aos fenômenos da natureza. O arranjo que se dá entre os três elementos será responsável pelo surgimento dos mais variados fenômenos que podem ser entendidos, portanto, como consequências das reações que surgem dessas combinações. Nesse contexto, a fermentação, que alia o aspecto químico ao físico, se apresenta dotada de importância pelo fato de dar conta do principal processo: o de aquecimento do sangue no coração que está na origem de todos os outros processos fisiológicos.

Da mesma forma, Hogelande vai se valer da ideia cartesiana de turbilhões e de matéria sutil, mas o destaque maior em sua obra é dado à teoria da fermentação, tal qual encontramos em Descartes. No entanto, a exemplo do que pode ser encontrado em Van Helmont, a interpretação do médico holandês dará maior abrangência à atuação da fermentação, de forma que ela está presente na maior parte de sua obra, anteriormente citada, podendo ser apontada como fundamental para a compreensão do funcionamento do corpo humano. Assim, pode ser notado que Hogelande, ao se apropriar de algumas ideias de Descartes, cria uma interpretação própria que respeita as peculiaridades do sistema cartesiano, ainda que trabalhe com elementos provenientes de um autor que não pode ser considerado, exatamente, como próximo dos parâmetros adotados por Descartes, como é o caso de Van Helmont e seu princípio imaterial denominado arqueu.

VI

Depois desse pequeno esboço aqui traçado, gostaria apenas de concluir com uma observação sobre o projeto de construção da medicina em Descartes. Ao longo de seus textos pode ser notado que o projeto de construção de uma medicina como ciência dedutiva a priori, tal como aparece na correspondência com Mersenne, é ultrapassado pela composição da medicina que se volta para a consideração do composto corpo-alma. Essa ultrapassagem pode ser entendida da seguinte forma: aquela medicina fundada em demonstrações infalíveis, como é afirmado na carta a Mersenne, designada como medicina mecanicista por Gueroult (GUEROULT, 1968, p. 243), e que se volta para o corpo sob o ponto de vista físico-geométrico, estabelece as bases sobre as quais a medicina vai se desenvolver, uma vez que ela requer conhecimentos de anatomia e de fisiologia. Conhecimentos estes que são fundamentais no tratamento de problemas ligados ao corpo humano, que devem considerar a interação constante entre corpo e alma. Por isso, não há como considerar em Descartes mais de uma medicina, mas sim a constituição do fundamento de uma medicina voltada para o homem, ou seja, os princípios da física constituem a base para a compreensão de casos vinculados às ciências que lidam com as coisas compostas - Física, Astronomia e Medicina (AT IX, 16) - e que recorrem ao sensível com o filtro da razão.

Se há algo a ser considerado como problema nesse projeto cartesiano, deve ser o fato de estar ele inacabado. Tal estado se deve à impossibilidade afirmada por Descartes29 de levar a bom termo todas as experiências necessárias para a complementação dos estudos nessa área. Essa complementação está ligada à necessidade de fornecer explicação sobre a gênese do corpo do ser vivo, a exemplo do que ocorre em sua abordagem sobre o universo. Os seus escritos sobre embriologia não chegaram a ser finalizados, encontrando apenas um encaminhamento razoável em 1648, dentro de seu sistema, mas não contemplam o fim que ele pretendia alcançar: explicar a formação das partes do corpo humano e suas funções. A explicação cartesiana da formação dos corpos dos seres vivos toma por base a conjunção entre as sementes do homem e da mulher que se dá pelo processo de fermentação, a partir do qual será formada uma máquina capaz de desempenhar todas as funções que observamos em nós segundo os textos Descrição do corpo humano e Sobre a formação do animal. Essas obras, por sua vez, indicam o inacabamento tanto no que concerne à descrição das funções como no que diz respeito à formação de todas as partes do corpo do ser vivo pela incompletude visível nos artigos sobre as funções e por sua brusca interrupção na exposição referente à formação das partes sólidas. Essa constante interrupção que caracteriza os escritos de Descartes na medicina - lembremos do tratado O homem, dos Excertos anatômicos, da Descrição do corpo humano e dos Primeiros pensamentos sobre a geração dos animais - está pautada na falta de experiências necessárias para completar os estudos, como afirma o próprio autor (AT V, 260-1). Por conta dessa impossibilidade de lançar uma explicação que forneça a gênese do corpo vivo, no campo da medicina, a dedução a priori a partir dos princípios dá lugar a outro encaminhamento: parte-se dos efeitos para se chegar às causas. A observação mostra-se, assim, fundamental à construção do conhecimento nessa área, chegando a ser defendida como a principal responsável pelo desenvolvimento dessa ciência. No âmbito da ciência física, são postuladas causas que possam explicar os efeitos observáveis, de forma que os fenômenos físicos são explicados por meio de uma descrição que mostra como eles poderiam ter acontecido essas de acordo com os princípios já estabelecidos. Descrições que não correspondem, necessariamente, à forma como as coisas são produzidas: caracterizam-se, portanto, como descrições hipotéticas, plausíveis, que estão de acordo com nossa experiência e são deduzidas dos princípios gerais. Em outras palavras, a composição racional de uma explicação referente ao mundo físico só é possível a partir de um modelo daquilo que foi observado. A estratégia de Descartes consiste em partir do observado para explicar o inobservável (AT IX, 319) e fornecer uma descrição do fenômeno estudado sob o ponto de vista da possibilidade de sua ocorrência. Dessa maneira, o modelo facilita a construção dessa descrição: trata-se da analogia entre o que é observado e aquilo que é suposto na física e é isso que podemos constatar nos escritos médicos de Descartes.

Finalizo esta exposição com a citação de um autor que seguiu fielmente os princípios de Descartes na medicina, comentou o tratado O homem, sendo um dos responsáveis pelas gravuras: o médico e filósofo Louis de La Forge:

se for permitido julgar o todo pela amostra, e se o que ele apenas esboçou no segundo tratado30 pode nos servir para conjeturar sobre o que ele poderia ter feito é para crer que ele teria atingido o objetivo de seu desígnio, e nos teria explicado a formação de todas as partes do corpo humano e todas as suas funções se a morte não o tivesse arrebatado de nós. Mas ouso esperar que algum daqueles que têm a honra de serem seus discípulos tomará para si a tarefa de concluir o que resta a descrever sobre a formação do animal. Ainda que não esteja feito de fato a metade, e que comumente a conclusão de uma obra não seja quase menos difícil do que o começo, se, no entanto, eu for tão feliz que os esclarecimentos que tratei de dar aos pontos que me pareceram obscuros na primeira parte possibilitem julgar que não me afastei nem dos dogmas de nosso autor, nem da justa razão, isso me dará coragem para tentar acabar a segunda parte e, talvez, chegar ao fim. Pois, como estou certo da correção de seus princípios, que eles são suficientes, e sei que todas as verdades estão encadeadas, não creio que haja algumas tão afastadas às quais, enfim, não se possa chegar, nem tão escondidas que não se lhes possa descobrir, desde que não se abandone o fio de seu método e que, seguindo nosso autor passo a passo e sem precipitação, não se aceite nada que não seja muito claro, muito distinto e muito seguro (LA FORGE, 1677, 367-8).

REFERÊNCIAS

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LA FORGE, Louis de. L’Homme de René Descartes et un traité de formation du foetus du même auteur, avec les remarques de Louis De La Forge, docteur en médecine, demeurant à la Flèche, sur le traité de l’Homme de Descartes et sur les figures pour lui inventées. 2.éd. Paris: Th. Girard, 1677. [ Links ]

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1Este trabalho foi, em parte, apresentado no II Colóquio Descartes, realizado em Uberlândia e retoma assuntos já expostos em artigos anteriormente publicados e devidamente referidos no final.

2A referência usada para os textos de Descartes é a edição Adam et Tannery (Oeuvres de Descartes, publiées par Charles Adam et Paul Tannery, 11 volumes, Paris, Vrin, 1996). Na notação simplificada usada internacionalmente, AT indica a edição; os numerais romanos, o volume; e os algarismos arábicos, o número da página.

3“Nós, abaixo assinados, doutores da Faculdade de Medicina de Paris, certificamos que lemos a obra de... sob o título..., e atestamos, além disso, que nela nada se encontra que não esteja conforme a verdadeira e pura doutrina de Hipócrates. Dessa forma, nós a julgamos digna de ser entregue para a impressão e ser publicada.” Citado em RAYNARD, M. Les médecins au temps de Molière. p. 349.

4Como exemplo, pode ser citado Gaspard Bachot, Erreurs populaires, touchant la médecine et le regime de santé (1626), em que boa parte é dedicada a considerações filosóficas e à erudição, citado por B. Quemada, Introduction à l’ étude du vocabulaire medical (1600-1700). Sobre o ensino da medicina, cf. Roger, J. Les sciences de la vie dans la pensée française du XVII siècle, ch. I, p. 8-19.

5Cf. Molière, Monsier de Pourceaugnac: “Premier Médecin: - Un peu de patience, nous allons raisonner sur votre affaire devant vous et nous le ferons em français, pour être plus intelligibles.” (MOLIÈRE, 1965, p. 408).

6Os livros compreendiam três grandes partes: 1) faculdades naturais da alma; 2) faculdades vitais da alma; 3) faculdades animais da alma.

7Feito, aliás, elogiado por Jean Riolan, o filho, na primeira metade do século XVII.

8Partes que compõem o livro: descrição do corpo humano, teoria dos elementos, temperamentos, espíritos e calor natural, faculdades e partes da alma, funções, humores e geração.

9Em 1542, a publicação se dá sob o título De naturali parte medicinæ ou Physiologia. A partir de 1567, essa obra reaparece ampliada e passa a ser publicada com título Universa Medicina. Cf. ROTSCHUH, 1970, p. 337-354. É importante lembrar que Descartes viveu na Holanda durante o período de 1629 a 1649.

10Hipócrates, apesar de ser constantemente citado, tem sua influência restringida a duas áreas: patologia e terapêutica.

11Harvey e sua resistência em aceitar a existência dos vasos quilíferos; Bartholin que, apesar de ter repetido as experiências de Pecquet, tomando como material o homem e não os animais, como este último, prossegue afirmando a inexistência dos vasos quilíferos.

12Cf. RIOLAN, Jean (fils). Œuvres anatomiques. Tradução de Cosntant P. Paris: Denyz Moreau, 1629.

13Cf. ROTHSCHUH, K. E. Phisiologie: der Wandel Ihres Konzepte, Probleme und Methoden vom 16. Bis 19. Jahrhundert. Freiburg: Karl Alber, 1968.

14Cf. Dióptrica, discurso VI. (AT VI, 130-147)

15Ordem seguida em L’Homme: digestão; formação do sangue; aquecimento do sangue no coração; uso da respiração; nutrição; circulação do sangue; formação dos espíritos animais; movimento do corpo (estrutura dos nervos e dos músculos); sensações externas (o papel da alma); sensações internas; cérebro e distribuição dos espíritos; glândula e seus movimentos (papel dos nervos).

16Cf. tb. O mundo e Os princípios da filosofia, parte IV.

17Uma exposição um pouco mais detalhada da explicação das febres encontra-se na revista Scientiaæ Studia, v. 6, n. 2, 2008, p. 235-252.

18Cf. Cogitationes ( AT XI, 535-537); Partes similares et Excrementa et Morbi (AT XI, 602-603).

19Cf. O homem ( AT XI, 119-120, 131-132, 143-151, 157-167, 176-177, 180-185). Essas indicações se reportam a algumas referências explícitas à alma, pois há operações descritas que subentendem a participação da alma, como é o caso das paixões.

20Por exemplo: “A Mersenne”, 23 nov. 1646 (AT IV, 565); “Discurso do método” (AT VI, 62-63); “Entretien avec Burman” (DESCARTES, 1952, p. 1402).

21Plempius, médico católico que, em 1633, torna-se professor na Universidade de Louvain. A ele Descartes encaminhará um exemplar do Discurso do Método, que dará margem a uma importante discussão sobre a circulação do sangue. Em sua obra Fundamenta medicinæ, publicada em 1638, o médico expõe a sua concepção referente ao assunto, que se opõe à concepção cartesiana, e publica as cartas que Descartes lhe escreveu, em resposta às suas objeções ao exposto no Discurso.

22A veia arteriosa corresponde ao que denominamos artéria pulmonar.

23AT IX, 250-1

24A referência ao calor cardíaco como fundamento do movimento do coração recebe uma crítica contundente por parte de Plempius, que associa essa interpretação à defendida por Aristóteles. Descartes reconhece a existência dessa noção em Aristóteles, porém o distanciamento se dá pelo fato de não haver, no texto do filósofo grego, qualquer menção à rarefação do sangue. Essa omissão distancia Descartes de Aristóteles e constitui a sua originalidade. Trata-se de reconhecer que o que está em questão é o fundamento da explicação adotada por Descartes e, nesse aspecto, nota-se o constante esforço em transformar concepções tradicionais por meio do modelo mecânico.

25Cornelius Van Hogelande (1590-1662), médico em Leiden, conheceu Descartes, provavelmente, em 1637 e tornou-se seu correspondente nessa cidade, além de um grande amigo a quem o filósofo confiou seus manuscritos antes de sua viagem para a Suécia.

26O médico holandês é mencionado em carta a Elisabeth como defensor de seus princípios na construção de suas explicações médicas contidas em livro publicado em 1646. (AT IV, p. 627)

27Cornelius Van Hogelande, Cogitationes, quibus Dei existentia et animæ spiritalitas, et possibilis cum corpore unio, demonstrantur: necnon brevis historia œconomiæ corporis animalis proponitur, atque mechanique explicatur, Amsterdam, 1646.

28Médico e químico belga que viveu de 1557 a 1644.

29Discurso do método (AT VI, 63-); Descrição do corpo humano (AT XI, 252-253); A Elisabeth, 25 jan. 1648 (AT V 260-1).

30Trata-se da edição composta pelo tratado O homem (Primeiro tratado), seguido de Sobre a formação do feto (Segundo tratado), uma digressão que acompanha a Descrição do corpo humano e ficou conhecida sob o título Sobre a formação do animal.

Recebido: 18 de Julho de 2011; Aceito: 24 de Agosto de 2011

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