Introdução
Antonio Candido (2004), no texto intitulado O direito à Literatura, no qual defende o texto literário como importante elemento de humanização, deixa claro que a literatura atua em nós devido à “maneira pela qual a mensagem é construída” (CANDIDO, 2004, p. 177, grifo do autor). Ou seja, segundo o autor, “quando elaboram uma estrutura, o poeta ou o narrador nos propõem um modelo de coerência, gerado pela força da palavra organizada” e essa “organização da palavra comunica-se ao nosso espírito e o leva, primeiro, a se organizar; em seguida a organizar o mundo” (CANDIDO, 2004, p. 177). A afirmação de Candido nos permite afirmar que o texto literário exige o envolvimento do leitor. É este que, ancorado em suas experiências estéticas, emocionais e intelectuais, dá ao texto um sentido próprio. Dessa forma, o leitor torna-se o que Geraldi (2010) define como coprodutor do texto lido, uma vez que o significado do enunciado é construído num processo de interação entre texto e leitor (GERALDI, 2010).
Concordamos com a afirmação dos estudiosos citados e entendemos que, de certa forma, essas afirmações se aproximam do que defende Umberto Eco (2003), quando, ao se ocupar da leitura da literatura, destaca que não se pode perder de vista os limites apresentados pelo próprio texto, pois a leitura do texto literário também
[…] nos obriga a um exercício de fidelidade e de respeito na liberdade de interpretação. Há uma perigosa heresia crítica, típica de nossos dias, para a qual de uma obra literária pode-se fazer o que se queira, nela lendo aquilo que nossos mais incontroláveis impulsos nos sugerirem. Não é verdade. As obras literárias nos convidam à liberdade da interpretação, pois propõem um discurso com muitos planos de leitura e nos colocam diante das ambiguidades da linguagem e da vida. Mas, para poder seguir neste jogo, no qual cada geração lê as obras de modo diverso, é preciso ser movido por um profundo respeito para com aquela que eu, alhures, chamei de interpretação do texto. (ECO, 2003, p. 12)
Assim sendo, na leitura literária estão em jogo habilidades como a inferência, a análise crítica, a interpretação, a seleção de argumentos, bem como o discernimento sobre formações discursivas em torno do tema. O texto literário não oferece as imagens prontas, mas a partir dele é possível construí-las usando todas as habilidades apresentadas acima. É preciso, então, se debruçar sobre o texto e encontrar nele o fino fio com que a trama narrativa é tecida. Como leitor, ao nos depararmos com um texto literário, seja ele de que tempo for, precisamos “construir uma compreensão no presente com significações que, entranhadas nas palavras, são dissolvidas pelo seu novo contexto - que incluem também as contra palavras do leitor - para permitir a emergência de um sentido concreto, específico e único, produto da leitura que se está realizando” (GERALDI, 2010, p. 103).
Considerando o que os citados autores nos apresentam, nos propomos a realizar uma leitura do romance de Rousseau, Júlia ou A Nova Heloísa com uma postura de leitor que ressitua o texto, que produz novas significações, mas não perdendo de vista as marcas dos enunciados presentes no texto. Ou seja, não pretendemos nos curvar a um “servilismo estéril”, como bem define Donald Shuller, mas pensar a partir de Rousseau, pois, como enfatiza Schuller, “Não há fidelidade maior a um inventor de pensamentos do que pensar com ele” (SCHULLER, 2012, p. 07).
Antes de nos debruçarmos à tessitura da leitura que realizamos da obra de Rousseau, entendemos que é importante deixar claro que nossa escolha pelo romance do filósofo francês se deu, sobretudo, porque temos aqui uma obra que transita entre a literatura e a filosofia, mas cujas fronteiras desaparecem e “se tornam espaços imbricados internamente” (MATTOS, 2008, p. 12), a tal ponto que o romance chega a ser considerado como “o romance do pensamento de Rousseau”, como destaca Fulvia Moretto (1994) na introdução ao romance publicado no Brasil. Dessa forma, Júlia ou a Nova Heloísa nos permite alcançar uma leitura que não se limita ao inteligível, mas se torna uma experiência sensível. E como a obra permite essa experiência? Uma resposta possível é dada por Dozol, quando esta afirma que a escrita de Rousseau se opera num prolongamento entre literatura e filosofia, sendo esta escrita,
[…] por vezes, pictórica, oferecendo-nos as ideias ou conceitos sob a forma de imagem ou paisagem. Ou seja, o que o escritor desenha na retina do leitor/intérprete é capaz de conectar-se com as estratégias mentais e linguísticas de apropriação. Então, o que Rousseau nos oferece é uma experiência intelectual, sentimental e visual do conceito (DOZOL, 2012, p. 141).
Compartilhando das ideias apresentadas, nos propomos a fazer uma leitura de Rousseau nos ocupando da linguagem da obra selecionada. A proposta é encontrar na urdidura do texto, como se dá a “costura” entre o dito e o sugerido, evidenciando o potencial da linguagem usada. A riqueza da linguagem hiperbólica e metafórica de Júlia ou A Nova Heloísa nos mobilizou para a leitura que tem como proposta destacar o quanto identificamos da filosofia de Rousseau na sua literatura.
Um romance como metáfora da educação
Publicado em 1761, o romance de Rousseau apresenta um tema recorrente da literatura romântica, o amor impossível. O conflito desse amor é vivido por Saint-Preux e Júlia, professor e aluna, que se apaixonam. Mas o amor é impedido de se realizar, uma vez que o pai da moça não aceita que ela se case com um plebeu. Júlia casa-se, então, com o Sr. de Wolmar, cuja bondade, inteligência e compreensão são fundamentais para aproximá-los. Ela, porém, não deixa de amar Saint-Preux e de ser por ele correspondida. Percebendo isso, o marido decide “curar” o casal, aproximando-os. Desde então, Saint-Preux passa a frequentar a residência dos Wolmar e a desfrutar da vida íntima da família. Dessa forma, “o ser amado é ao mesmo tempo o melhor amigo do amante” (MORRETO, 1994, p. 18).
Aproximar os dois apaixonados foi um recurso primoroso do autor, pois essa aproximação fez sobressair a virtude1 como característica maior da personagem Júlia, que não se fragiliza com a presença de Saint-Preux na rotina do casal e, por extensão, da família. E é assim, na convivência harmoniosa entre o casal e o amante, que encontramos os três personagens na carta XI, da Quarta parte do romance, e na carta III, da Quinta parte. O tema das respectivas cartas são o cultivo do jardim dos Wolmar e a educação dos seus filhos.
Com uma escrita rica em figuras de linguagem e adjetivos, Rousseau descreve o Eliseu, Jardim dos Wolmar, enfatizando não só a beleza e harmonia do lugar, mas, sobretudo, o papel fundamental de Júlia na construção e manutenção do espaço. O Eliseu é um jardim cultivado, estrategicamente, e é feito com tanta perfeição e simplicidade que parece que ali a natureza se mantém intocável, pois nada tem simetria, nem ordem, mantendo-se as alamedas tortuosas e irregulares. Tal é a perfeição com que Júlia cultivou o jardim que ela se sente autorizada a afirmar que “a natureza fez tudo, mas sob a minha direção e nada há aqui que eu não tenha organizado” (ROUSSEAU, 1994, p.410).
O espaço é um dos mais reservados da casa, tanto que, a certa altura, Júlia faz questão de enfatizar ao amante que ele é “o primeiro hóspede que eu trouxe até aqui” (ROSSEAU, 1994, p. 415). O mais curioso, porém, é sabermos que o único convidado a entrar no Eliseu recebeu o convite do Sr. de Wolmar. No entanto, uma leitura menos ingênua já nos permite perceber que esse é mais um recurso para, talvez, sobressair a virtude de Júlia. Por certo, quanto mais íntimo estiver o convidado, mais a virtude e a fidelidade da moça são postos à prova.
Ao entrar no Eliseu, o amante de Júlia não se sente apenas encantado com o lugar, ele se sente “Surpreso, impressionado, arrebatado” (ROUSSEAU, 1994, p.140). À medida que ele vai penetrando naquele “agradável asilo”, a admiração que este lhe causa vai num crescente correspondente ao uso dos adjetivos que a descrevem. Mas, para ver o jardim como ele é, Sait-Preux precisa ser guiado pelo casal que vai revelando para o hóspede o que, a certa parte do passeio, ele denomina como o sendo o “enigma de Júlia” (ROUSSEAU, 1994, p. 411). Sem entender como aquela perfeição pode ser resultado de uma obra humana, Saint-Preux se deixa guiar pelo percurso cujos detalhes revelam a habilidade das mãos de sua amada, uma vez que o jardim não é apenas cultivado, mas “vestido, enfeitado, florido, banhado”, no qual se vê “brilhar mil flores dos campos”, árvores floridas cobertas por “mil guirlandas de videira” (ROUSSEAU, 1994, p. 411) e cujos caminhos, formados por descidas e subidas, são feitos por “mil desvios”. E assim, amante e amigos chegam ao viveiro.
Tão surpreendente quanto todo o resto do local, ali não se encontram apenas alguns pássaros, como imagina Saint-Preux, mas “uma multidão deles”, uma tribo que goza de uma “eterna” tranquilidade. O que impressiona Saint-Preux, porém, é que os pássaros não são prisioneiros, mas moradores voluntários. A impressão que o viveiro causa no visitante é proporcional à emoção com que Júlia descreve as cenas familiares que ali se passam durante todo o ano, com demonstrações de zelo, cuidado e ternura paterna e materna, levando-a a revelar que os pássaros oferecem a ela “o mais encantador dos espetáculos” (ROUSSEAU, 1994, p. 415, grifo nosso).
Com uma linguagem hiperbólica2, Rousseau nos faz evidenciar o impacto que o Jardim dos Wolmar vai causando em Saint-Preux a cada passo dado naquele espaço, pois esses lhe revelam não só a beleza do interior do Eliseu, mas o levam a perceber que o referido jardim traduz a sua própria amada. Tanto é assim que, em certo momento, ele mesmo enfatiza essa percepção confessando que “o nome Eliseu […] me pintava, num certo sentido, o interior daquela que o encontrara […]. Dizia a mim mesmo: a paz reina no fundo de seu coração (Júlia) como no asilo a que deu o nome” (ROUSSEAU, 1994, p. 423, grifo nosso).
Por certo, não incorremos em erro ao afirmar que o Eliseu não é apenas o jardim de uma casa, mas um “espetáculo” que o narrador vai descrevendo e cujas palavras vão dando ao leitor a possibilidade de imaginá-lo, como se diante de si estivesse se desenhando uma tela que se constrói com palavras, mas que para o leitor se revela como se fosse feita com tintas e pincel. E assim vão se revelando, na leitura, as imagens que evolam das palavras e que revelam tanto o interior do Eliseu como o sentimento que Saint-Preux nutre por sua amante Júlia. Sentimento e paisagem estão tão intimamente imbricados que a certa altura, ao voltar ao Eliseu, Saint-Preux sabe que ali vai encontrar “Júlia em sua ausência” (ROUSSEAU, 1994, p. 423.)
Dando continuidade à leitura da obra, percebemos que, além da beleza do local, só uma coisa surpreende mais Saint-Preux, os recursos usados para que não se perceba ali o trabalho humano. Há algo que inquieta o visitante: como Júlia conseguiu tal perfeição? Deixemos que ele fale.
[…] há aqui, continuei, uma coisa que não posso compreender. É que um lugar tão diferente do que era só pode ter-se tornado o que é com cultivo e cuidados, todavia, não vejo em parte alguma o menor traço de cultivo. Tudo é verdejante, fresco, vigoroso e a mão do jardineiro não aparece: nada desmente a ideia de uma ilha deserta que me veio à mente ao entrar e não percebo nenhum passo humano (ROUSSEAU, 1994, p. 416).
É o Sr. de Wolmar quem esclarece o denominado mistério, confessando que os vestígios não são percebidos porque “se tomou grande cuidado em apagá-los”. Sendo ele, o marido, o “cúmplice dessa malandragem” (ROUSSEAU, 1994, p. 416).
Como já afirmamos em um texto anterior, onde analisamos as duas cartas aqui apresentadas, “Há uma espécie de mão oculta que cultiva esse jardim, mas que não deixa qualquer vestígio. Essa mão que (trans)forma o belo jardim da família, porém, não é obra do acaso”, ela revela o que denominamos de “o método de cultivo do casal” (DOMINGUES, 2013, p. 4) que, ao que tudo indica, exige cuidado e não apenas trabalho. O cultivo do jardim se faz com simplicidade e sem violência, como faz a própria natureza, ou seja, com “um trabalho sem esforço cuja facilidade dá ao espectador um novo prazer” (ROUSSEAU, 1994, p. 421).
Eis aqui um aspecto bastante interessante desse romance de Rousseau. O método de cultivo do jardim evidencia o trabalho perfeito de Júlia e toda a sua dignidade. No entanto, mais interessante, ainda, é observar que esse método, ao que tudo indica, não se limita ao cultivo do Eliseu. Uma leitura atenta da Carta III, em que se encontra a descrição da educação das crianças, permite ao leitor atento observar que método semelhante é usado na educação dos filhos dos Wolmar. Fato que também impressiona sobremaneira o visitante e que ele descreve dias após a visita ao Eliseu, quando ainda desfruta da intimidade da casa na companhia do casal. Agora, porém, a cena familiar se amplia, estando com eles os três filhos. O momento, como o próprio narrador afirma ao seu interlocutor3, é de contemplação, como acontece no passeio pelo jardim. Aqui, mais uma vez, Saint-Preux se surpreende com o que vê: Júlia, com um olhar terno, observa as crianças brincando e, nesse momento, “seu coração, arrebatado num tão delicado êxtase, animava seu rosto encantador com tudo o que a ternura materna jamais teve de mais comovente” (ROUSSEAU, 1994, p. 484). Saint-Preux se entrega à contemplação.
Nesse convívio com as crianças e seus pais, porém, não é a ternura o que mais impressiona o amante, mas a forma como as crianças se comportam e como estas se relacionam com os pais, o que o leva a afirmar, “não lembro, pensando no fato, ter visto crianças a quem se falasse tão pouco e que fossem menos inoportunas. Quase nunca se afastam de sua mãe e mal percebemos que estão presentes” (ROUSSEAU, 1994, p. 485). Diante da impressão que as crianças causam ao hóspede, Júlia e o marido revelam a ele de que forma conduzem a educação dos filhos.
Assim como no Eliseu, o método usado é simples. Primeiro, é preciso entender que as crianças precisam ser preparadas para serem educadas. Como a própria mãe orienta, “deixai formar o corpo até que a razão comece a despontar: é então o momento de cultivá-la”. (ROUSSEAU, 1994, p. 490, grifo nosso). Depois, é preciso aprender a observar, pois “Todo homem tem seu lugar assinalado na melhor ordem das coisas, trata-se de encontrar esse lugar e de não alterar essa ordem” (ROUSSEAU, 1994, p.487). Em seguida, é preciso “cultivar” o caráter e “impedir que degenere, pois é assim que um homem se torna tudo o que pode ser e que a obra da natureza se completa pela educação” (ROUSSEAU, 1994, p. 489). Mas, não é só isso. É preciso, ainda, segundo Júlia, não impedir nas crianças “nenhum dos impulsos da natureza” (ROUSSEAU, 1994, p. 491); “[…] deixar seu corpo fortificar-se livremente pelo exercício contínuo que o instinto lhe pede” (ROUSSEAU, 1994, p. 491); deixar que a natureza faça a sua parte e que ela dê a eles as lições que precisam receber, mas que estas sejam “recebidas na simplicidade da natureza” (ROUSSEAU, 1994, p. 499). E ela complementa: “[…] são as produções naturais do fundo que é preciso cultivar” (ROUSSEAU, 1994, p. 504), pois “para guiar o homem, a marcha da natureza é sempre melhor” (ROUSSEAU, 1994, p. 500).
Como é possível ver, com a revelação do método de educação usado por Júlia, realizado também sob a direção do marido, o leitor encontra a mesma atitude com a qual ela cuidou do jardim. Como faz com as plantas, Júlia respeita a natureza dos seres e o tempo necessário para o amadurecimento desses. Cultiva o caráter que eles apresentam em essência e deixa germinar o que lhes é natural. Como as plantas e os pássaros do jardim, as crianças ficam livres “entregues à inclinação de seu coração, sem que nada a mascare nem a altere”, e a mãe zelosa conclui: “nossos filhos não recebem nenhuma forma exterior e artificial, mas conservam exatamente a de seu caráter original” (ROUSSEAU, 1994, p. 504).
Encontra-se, assim, também na educação dos filhos, uma mão oculta que os cultiva, como é possível inferir a partir do próprio discurso da personagem Júlia, quando esta revela que “Um assunto depravado em suas bocas é uma erva estranha cuja semente foi trazida pelo vento; se eu a cortar com uma reprimenda, em breve germinará novamente: em lugar disso, procuro secretamente sua raiz e tenho o cuidado de arrancá-la” (ROUSSEAU, 1994, p. 504).
O que a linguagem nos permite ressignificar
De toda a explicação que Júlia nos dá sobre a educação dos filhos, a mais reveladora, por certo, e a que mais nos autoriza a afirmar que o cultivo do Eliseu é uma metáfora da filosofia da educação defendida por Rousseau, encontra-se na passagem citada anteriormente. Eis aqui a metáfora do referido filósofo-literato, qual seja, a arte de cultivar jardins e de formar os homens é a mesma. Assim como faz com o Jardim inglês, o Eliseu, Júlia defende uma educação sem limites rígidos, sem contornos ou alinhamentos previamente definidos, ou seja, como bem define Dozol, “uma educação que recusa a doutrinação” e seja “promotora da espontaneidade originária do homem” (DOZOL, 2012, p. 126).
Diante dos exemplos apresentados e das relações estabelecidas, nos sentimos autorizados a dizer que a linguagem em Júlia e a Nova Heloísa, rica em metáforas, analogias e hipérboles, em que se encontram inúmeros e significativos adjetivos, é fundamental para que palavras e sentidos se entrelacem no texto e, por extensão, na mente do leitor, pois ali ela não é mero acessório, mas tem como função possibilitar a compreensão do pensamento do autor. Assim sendo, temos aqui um “Livro denso que engaja totalmente o pensador e o artista” (MORETTO, 1994, p. 19), sendo, nesse sentido, “o ponto de partida de uma obra que iria dar uma nova orientação à literatura, à filosofia, à educação e às ciências sociais nos últimos dois séculos. (MORETTO, 1994, p. 19).
O romance de Rousseau proporciona ao seu leitor mais que uma experiência estética e, por extensão, sensível, pois dela é possível extrair um conhecimento que, como defende Larrosa, resulta em experiência4, uma vez que estamos diante de um texto que traz no seu bojo o desejo “de transformação das vidas concreta das pessoas” (LARROSA, 2002, p. 140). E Larrosa complementa:
[…] creio que esses tipos de textos, situados entre a literatura e a filosofia moral, e que contém, mais do que uma ética formalizada, uma estética da existência ou um estilo de vida, poderiam ser um bom exemplo, lamentavelmente desaparecido, daquilo que poderiam ser as formas tradicionais de transmissão desse saber da experiência, que tem a ver com aquilo que somos, com a nossa formação e a nossa transformação” (LARROSA, 2002 p. 140 e 141).
No nosso ponto de vista, temos aqui a riqueza da obra analisada que nos seduz pela linguagem literária e, por extensão, metafórica, que apresenta nos possibilitando percorrer um interessante caminho de análise dos seus enunciados. Tal análise, porém se revelou um desafio a partir do momento em que nos colocamos diante do texto como leitor literário, pois nos exigiu um mergulhar no texto procurando nele as pistas que nos levassem a encontrar os conceitos que estão nas entrelinhas da linguagem metafórica usada pelo autor. Para tanto, fomos destecendo o texto analisado, na medida em tecíamos o nosso próprio texto. Precisamos reconhecer, no entanto, que essa não foi uma tarefa fácil. Mas, por que escrever, na maioria das vezes, nos é tão difícil? Talvez porque estejamos nos desacostumando das palavras, já que vivemos rodeados por muitos outros recursos virtuais, tecnológicos e midiáticos que nos possibilitam a comunicação, envolvidos que estamos com a tecnologia da informação.
Defensores das novas tecnologias enfatizam a contribuição destas para o ser humano. E, de fato, não se pode negar que a facilidade de comunicação que a era da informação trouxe à humanidade é indiscutível. O arsenal tecnológico disponível aproximou os continentes e facilitou todas as formas de contato entre as pessoas, no entanto, estamos perdendo o que é mais necessário ao ser humano, ou seja, a palavra. Jorge Larrosa, em entrevista a Alfredo Veiga-Neto, nos diz que vivemos um tempo que tudo nos passa, mas nada nos acontece. Nas belas palavras do referido estudioso, “Estamos informados, mas nada nos co-move no íntimo”. (LARROSA apudVEIGA-NETO, 2007, p. 133). Ou seja, estamos perdendo a capacidade de nos emocionarmos, nos sensibilizarmos. Obcecados pela informação, cancelamos “nossa possibilidade de experiência”. Até porque só temos interesse pela novidade, pelo efêmero e pelo passageiro. Nesse sentido, alteram-se os valores mais caros à nossa existência, quais sejam, as relações, o conhecimento e a cultura, que se transformam. Não temos mais relações, temos relacionamentos. Não é o conhecimento o que importa, mas a informação. Não queremos cultura, queremos entretenimento5.
Mas a vida do homem prescinde da emoção, da fabulação e, o mais importante, da palavra? Certamente, não. E para justificar essa certeza, recorro, novamente, a Lorrosa, que nos faz lembrar que:
O homem é um vivente com palavra. E isto não significa que o homem tenha a palavra ou a linguagem como uma coisa, ou uma faculdade, ou uma ferramenta, mas que o homem é palavra, que o homem é enquanto palavra, que todo humano tem a ver com a palavra, se dá em palavra, está tecido de palavras, que o modo de viver próprio desse vivente, que é o homem, se dá na palavra e como palavra (LARROSA, 2000, p. 21).
Com sua afirmação, Larrosa nos convida a pensar na importância da palavra ao enfatizar que estas “produzem sentidos, criam as realidades e, às vezes, funcionam como potentes mecanismos de subjetivação” (2000, p. 20 - 21). Concordamos com o autor quando ele se refere a esse poder das palavras e poderíamos apresentar uma série de exemplos que ilustrariam o fragmento citado. Nenhum exemplo, todavia, estaria fora da literatura. Explicamos o porquê.
Sabemos que nenhum outro texto solicita mais a subjetividade, aciona a imaginação, ou joga com as palavras, que o texto literário. Como nos diz Umberto Eco: “todo texto é uma máquina preguiçosa pedindo ao leitor que faça parte do seu trabalho” (ECO, 2004, p. 9). O texto literário, no entanto, leva esse pedido ao máximo grau possível. Para fazer o seu trabalho diante do texto literário, não basta ao leitor decifrar o código, uma vez que essa leitura não pede a simples decifração, pede a construção de sentidos. Ou seja, ler um texto literário não é encontrar nele informações explícitas na superfície do que está dito, mas capturar o sentido oculto no jogo de palavras, porque a linguagem literária é isso, “jogo de linguagem, em que a linguagem se enrosca sobre si mesma” (LARROSA, 2007, p. 145). Eis aí, na opinião do crítico Antonio Candido, porque a literatura nos atinge. “Quando recebemos o impacto de uma produção literária, oral ou escrita, ele é devido à fusão inextricável da mensagem com a sua organização” (CANDIDO, 2004, p. 178). E isso acontece porque “A produção literária tira as palavras do nada e as dispõem como todo articulado” (CANDIDO, 2004, p. 177).
Assim, na urdidura entre matéria (palavra e linguagem) e sentido, o texto literário sensibiliza e leva à fantasia, bem como proporciona conhecimento e leva à imaginação. Nesse sentido, a literatura é necessária à vida e, por extensão, ao ser humano, até porque, como nos alerta Candido, “Não há povo e não há homem que possa viver sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de efabulação” (2004, p. 174).
A partir do que foi dito, entendemos que não nos equivocamos quando afirmamos que o texto literário exige um investimento de quem a ele se entrega. E é dessa forma que ele nos aborda, ou seja, exigindo de nós que o decifremos ou… o abandonemos. Só aceitando a sedução do texto, ou estabelecendo com ele uma relação fetichista, como sugere Barthes, teremos uma leitura literária, de fato, que resulte em conhecimento e emoção, pois, como nos lembra Donald Schuller, “Texto algum é prazeroso em si mesmo. Prazer solitário não há. O prazer estala na relação” (SCHULLER, 2012, p. 169). Nesse sentido, é preciso ficar atento nessa relação, pois corremos o risco de sermos arrastados pelo puro prazer e nos perdermos.
Conclusão
Com uma escrita palatável, que transita entre a literatura e a filosofia, Rousseau, no romance Júlia ou a Nova Heloísa, abre espaço para a interlocução do leitor que não se limita ao inteligível. Por certo, a riqueza da linguagem literária e por extensão metafórica do autor não passa despercebida por um leitor mais atento, ou mais permeável. Ao nos debruçarmos sobre o texto de Rousseau, vamos encontrando pistas dos conceitos dos quais eles se ocupa. Mas essas pistas exigem um olhar atento, uma vez que elas estão nos detalhes, no miúdo que se entrepõe nas entrelinhas. Em grande medida, a obra do filósofo francês nos proporciona uma leitura que nos faz ir além da superfície do que está “dito”. Para tanto, porém, é preciso que tenhamos uma postura mais sensível diante do texto com o qual nos deparamos. Ou seja, os escritos de Rousseau exigem uma leitura que nos coloca em estado de perda e nos possibilita a compreensão do que seja compartilhar emoções e conhecimento. É preciso, ainda, abandonarmos qualquer posição arrogante e nos colocarmos diante do texto como “Alguém que está disposto a […] deixar-se tombar e arrastar por aquilo que procura. Está disposto a transformar-se numa direção desconhecida” (VEIGA-NETO, 2007, p. 134).
E foi com essa postura que nos debruçamos sobre a leitura do romance de Rousseau que, sob o enredo de um amor proibido, traz como temática a relação entre a natureza e a cultua. Fazendo uso de eficientes recursos discursivos, Rousseau desenha um percurso narrativo que contempla tanto o enredo do envolvimento da protagonista, Júlia, com o seu amante, Saint-Preux, como o conceito de uma pedagogia que se dá mais pela observação que pela ação ou pela intervenção explícita. Isto, porém, é o que o leitor pode inferir, uma vez que o autor faz uso de uma linguagem que mais insinua do que explicita.
E foi para evidenciar o fio que tece esse entrelaçamento entre o dito e o sugerido, que nos envolvemos com uma leitura da obra, cujo enunciado nos permitiu traçar uma comparação entre a forma como os Wolmar cultivam o belo jardim inglês dos arredores de sua casa e o método de educação utilizado por eles para educar os filhos.
Por certo, a romance de Rousseau possibilita muitas outras leituras e nos possibilitaria muitas outras análises, mas a linguagem usada pelo referido autor é o que nos mobilizou para a leitura que aqui apresentamos e que resulta da maneira como a linguagem nos desafiou a ponto de querer decifrá-la. Entendemos que é aqui que se encontra a importância da literatura, porque ela nos fornece, “como nenhum outro tipo de leitura faz, os instrumentos necessários para conhecer e articular o mundo feito linguagem” (COSSON, 2009, p. 9 - 30)