Na conjuntura atual, em que o trabalho do pensamento defronta-se com a sensação de um retrocesso brutal ao obscurantismo, com formas de irracionalismo tomando a cena e ceifando vidas, torna-se quase impossível construir um texto que não esteja impactado por uma enorme gama de questões que pulsam no nosso cotidiano. Enquanto se difunde nos meios de comunicação o conceito de pós-verdade, as imagens tomam conta das mensagens que circulam, de modo avassalador, e oferecem discursos rápidos e recortes pré-moldados no acesso aos diversos âmbitos da realidade social.
Mais do que nunca, assombra-nos o limite da representação dos intelectuais como postulantes de um lugar ético, referido a utopias de humanidade, frente a extremismos prontos a justificar as formas mais desumanas e desagregadoras, apoiados em argumentos capazes de organizar discursos aparentemente coerentes. Na verdade, diversos sintomas do quadro que hoje se mostra com uma crueza assustadora se anunciavam desde as décadas finais do século XX e detonavam um debate incomodado com o “silêncio dos intelectuais” ou o “fim dos intelectuais”, na onda dos “fins”, que marcou o final do milênio.
Não é nosso objetivo abarcar todas as vertentes de abordagem da temática ou da categoria “intelectuais”. Nossa atenção se concentra na obra de Jean-François Sirinelli e a proposta de uma “história dos intelectuais” que contou com sua ativa participação, como uma das lideranças de maior vulto. A perspectiva da história dos intelectuais aponta para a necessidade de superar os dilemas de um alinhamento político-ideológico imediato, quando se trata dos intelectuais falando de si mesmos, e buscar uma perspectiva de análise capaz de dar um tratamento aos intelectuais como objeto de estudo. Aliada a essa vertente de pesquisa, a presença de Sirinelli fez-se notar em outros segmentos temáticos, que federaram historiadores franceses e ganharam reconhecimento e adesão para além das suas fronteiras nacionais, com destaque para a Nova História Política e a História do Tempo Presente.
Ao referir-se ao panorama atual, Sirinelli diagnostica que estamos vivendo uma mutação cultural sem precedentes, da qual convém avaliar os desafios e os efeitos induzidos para se tentar deter a espiral perniciosa (2010, p. 11). Historicizar os percursos intelectuais dos últimos séculos apresenta-se, portanto, como parte das tarefas intelectuais deste momento.
No presente artigo, a proposta central encontra-se organizada em dois momentos: no primeiro, retomaremos a propositura teórico-metodológica da história dos intelectuais, tal como apresentada por Sirinelli, nos seus traços principais. No segundo momento, faremos um esforço de pensar suas relações com a história da educação a partir de duas questões: a primeira, voltada para as relações mais gerais entre a história dos intelectuais e a história da educação; a segunda, debruçando sobre questões que se apresentam na pesquisa histórica quando se propõe a investigar intelectuais da educação, particularmente no Brasil.
A história dos intelectuais nos estudos empreendidos por Jean-François Sirinelli
Para se pensar a contribuição de Jean-François Sirinelli é preciso, inicialmente, recorrer a uma das categorias que ele próprio privilegia em sua proposição teórico-metodológica, a de geração. Sem dúvida, esse autor integra uma geração de historiadores que marcou a historiografia francesa, com repercussões internacionais, daí a aproximação e diversas apropriações que passaram a surgir na historiografia brasileira, apesar da pequena quantidade de textos de sua autoria publicados no Brasil, frente à vasta obra disponível em língua francesa. Ele próprio se situa geracionalmente no grupo que, na França, recebeu a denominação de baby-boomers (que se refere à geração que protagonizou os eventos de maio de 1968), assim como assume ter participado da edificação da história cultural francesa, que se solidificou como movimento intelectual nas décadas de 1980 e 1990.
Em sua tese de doctorat d’Etat, defendida em 1986, após uma pesquisa que perseguiu durante onze anos, Sirinelli buscou parâmetros para delimitar uma categoria cujas margens parecem se dissolver em um universo muito amplo de funções associadas ao mundo da escrita. Adotando o ângulo da História Cultural, focado no circuito de produção, divulgação e recepção dos produtos culturais, a pergunta sobre quem pode ser qualificado como pertencente à categoria “intelectuais” ganhou contornos complexos. Procurando um critério de delimitação, Sirinelli recaiu sobre outra categoria, a do engajamento na vida da “cité”, ou seja, o engajamento político.
No prefácio à publicação desse trabalho, o autor apontava para duas definições clássicas do termo “intelectual”. A primeira seria abrangente, incluindo todos os sujeitos envolvidos com atividades laborais associadas ao escrito, tanto como criadores, como na qualidade de mediadores. Nessa primeira acepção, os processos de criação, divulgação e recepção dos produtos culturais é pensado de forma ampla, permitindo que se mapeie uma enorme diversidade, de forma horizontal. Criação e mediação aparecem como termos associados na vasta trama da cultura, tal como se movimenta e ganha forma em contextos espaço-temporais definidos (SIRINELLI, 1994, p. 9).
A segunda definição da categoria “intelectuais”, mais restrita, é demarcada por aquele engajamento na vida da cité. A palavra “cité” possui, na língua francesa, um significado particular, associado a uma história para a qual não temos correspondente na língua portuguesa. Refere-se à participação na coletividade, de modo a interferir e buscar contribuir nas decisões de caráter conjunto, embora nem sempre de interesse comum, ou seja, na condução política, no seu sentido lato (SIRINELLI, 1994, p. 9-10).
As duas definições foram operacionalizadas no trabalho de pesquisa proposto por Sirinelli, tomadas como expressões de dimensões articuladas, mas que devem ser historicizadas. Neste sentido, o engajamento é analisado como uma construção histórica, que comporta uma cronologia, metamorfoses e interações com contextos específicos. É o engajamento que distingue a caracterização do intelectual, tal como é representado na contemporaneidade, e que, em grande medida, naturalizou-se como traço da intelectualidade. Entretanto, do ponto de vista histórico, ele se apresenta como uma novidade passível de ser datada e acompanhada nas suas mutações.
Ao trazer para o centro da caracterização do intelectual o engajamento, sem desligá-lo das formas de produção, circulação e recepção dos produtos culturais, Sirinelli promoveu duas operações conjugadas: vinculou o intelectual à atividade política e conferiu à política uma dimensão intrinsecamente cultural (SIRINELLI, 1998). Obviamente, essas operações precisam ser pensadas no contexto das décadas de 1970 e 1980, quando a cultura ganhava nova expressão como elemento de compreensão dos processos sociohistóricos. Tanto na vertente inglesa do marxismo, quanto na filosofia e na sociologia francesa, a leitura culturalista do social se impunha como um caminho profícuo de análise, com a incorporação das contribuições da antropologia e da literatura. A divulgação dos escritos de Antonio Gramsci, realizados durante o período em que esteve preso pelo regime fascista, foi mais um elemento que fortaleceu o ângulo de incorporação da cultura ao debate intelectual.
Nessa perspectiva, ganhou centralidade o conceito de representação. Na frase síntese do próprio Sirinelli, a História Cultural teria como questão central buscar compreender como os grupos humanos representam e se representam no mundo que lhes envolve (1992, p. III). A questão do engajamento, portanto, é tomada no âmbito das possibilidades dessa representação. Ele não se encontra desvinculado das ações de mediação cultural. Por isso, não se pode tomar as duas definições de intelectual como opostas ou excludentes, na proposição de Sirinelli, mas como complementares. O engajamento é pensado como um fenômeno histórico que emerge em um terreno de criação e mediação cultural.
Para Sirinelli, o engajamento também não está restrito à intervenção direta no debate e na ação política. Esse historiador refere-se a duas formas de sua manifestação: o engajamento direto e o indireto. No direto, os intelectuais apresentam-se como atores ou testemunhos dos acontecimentos, canalizando suas energias para descrevê-los, interpretá-los, adotarem posições. No engajamento indireto, pode haver uma atitude passiva, reclusa e até refratária à ação política direta, mas o resultado do trabalho do intelectual repercute nas linhas de força que orientam a reflexão geral, o que Sirinelli denomina de visão de mundo da classe intelectual (1986, p. 99).
Ao considerar o engajamento sob a lente do percurso histórico, Sirinelli o transforma em traço a ser inquirido, no âmbito da questão de como as ideias ganham forma na produção dos intelectuais. O engajamento deixa de ser um dado pronto e passa a ser analisado como uma atitude construída por uma gama de relações circunstanciadas, que agregaram determinados sujeitos à categoria dos intelectuais. Dessa forma, busca evitar o discurso avaliativo, o julgamento, assim como a mitificação dos intelectuais. Congrega os historiadores a saírem de uma visão geral e estratosférica do meio intelectual para a pesquisa detalhada, que reúna muitos dados antes de avançar para a interpretação.
A partir desses pressupostos, incorpora as três chaves de análise que balizam sua pesquisa sobre os intelectuais: itinerários intelectuais, redes de sociabilidade e geração. Antes de tratar de cada uma delas, penso que é importante chamar a atenção para dois aspectos metodológicos, que devem ser observados por quem se propõe a adotar sua perspectiva de análise.
O primeiro deles refere-se ao necessário entrelaçamento das três categorias. Como procuraremos demonstrar adiante, embora tratem de âmbitos diferenciados na tarefa de historicização do meio intelectual, devem ser tomadas como espécies de zonas interdependentes, apoiando-se mutuamente, clarificando-se uma à outra.
O segundo apontamento diz respeito ao movimento do olhar do pesquisador. Toda essa proposta metodológica objetiva retirar o historiador de uma posição que fragilizaria sua análise, na medida em que a aparência final do intelectual tende a projetar-se sobre o seu passado, conduzindo a interpretação sobre a construção do seu papel na história a partir desse lugar já constituído. É óbvio que o historiador seleciona um intelectual para estudo a partir de realizações que marcaram sua história de vida e sua presença na cena pública. Daí o risco de que esse ponto de partida tão impregnado de simbolismo interfira na narrativa elaborada a seu respeito, que pode assumir um formato retilíneo, em que as zonas de tensão, os recuos, as inflexões do percurso sejam minimizadas ou retiradas de cena. Sirinelli faz questão de frisar, em vários momentos de seus escritos, a importância de que o historiador se coloque “a montante, no curso do rio”, percorrendo o seu caminho acidentado, atento às curvas, aos obstáculos e à forma de contorná-los, aos precipícios e aos trechos de calmaria. Para ele, tudo conta na compreensão de como os sujeitos se transformam em intelectuais.
Passemos, então, às três chaves de análise utilizadas por Sirinelli. A primeira delas concentra-se nos itinerários intelectuais, que podem ser efetivados reconstituindo uma caminhada individual ou buscando trajetórias de grupos que partilham de uma matriz comum. O importante nesse trabalho sobre os itinerários intelectuais é a distinção que guarda em relação às biografias tradicionais e como valoriza elementos que não se restringem à formação escolar do sujeito. Sirinelli informa que adotou a ideia lançada por René Rémond, que foi seu orientador, para se fazer um inventário dos itinerários de um grande número de personalidades de modo a se mapear como se fortaleceram e enfraqueceram tendências doutrinárias que orientaram a vida política francesa. Os itinerários intelectuais auxiliariam a esclarecer a história política (SIRINELLI, 1986, 1994a, 1996, 1999).
Na proposição de Sirinelli, os itinerários integram uma plataforma de reconstituição de trajetórias que se cruzam, incorporando elementos que ponham em relevo os encontros, as leituras, as posições institucionais, constituindo prosopografias. Nessa perspectiva, itinerários individuais devem ser confrontados, de modo que os passos dados pelo intelectual que se tem em vista analisar apareçam em paralelo com os de outros sujeitos que se fizeram presentes nos seus contextos de formação. Por isso, o autor fala em itinerários de níveis diferenciados: além daquele posto em foco, os de intelectuais de menor projeção ou mesmo desconhecidos, cuja existência foi apagada na memória coletiva, mas que tiveram papel relevante na constituição das escolhas, das opções ideológicas, na postura de estudos, no quadro de valores. Nesse grupo, inserem-se professores, mas, também, outros indivíduos que tenham marcado intelectualmente o sujeito em formação.
Um caso interessante relembrado por Sirinelli foi o do bibliotecário da Escola Normal Superior de Paris, o grande centro formador de intelectuais franceses desde o século XIX. Lucien Herr, esse bibliotecário, atuou nessa função de 1888 a 1926, e era um erudito, um socialista que conhecia com profundidade a obra de Marx e Engels, mas, também, as de outros expoentes do pensamento socialista do século XIX, e influenciou a formação de diversos intelectuais, que se definiram pelo socialismo na convivência com ele. São itinerários intelectuais que se encontram e se mesclam.
Por esse motivo, os itinerários de formação intelectual possuem interfaces com as redes de sociabilidade e a geração, embora mantenham suas distinções. Para Sirinelli, o recurso a essas duas outras categorias tem o objetivo de superar a simples descrição da trajetória, com vistas a uma interpretação que se espraie pelo contexto. Foi Maurice Agulhon quem primeiramente aproximou o conceito de sociabilidade da pesquisa histórica, e Sirinelli conferiu-lhe um estatuto de ferramenta indispensável no estudo dos intelectuais. Nas redes de sociabilidade, introduz-se o elemento da escolha. Se no itinerário intelectual, os encontros ocorreram por fatores alheios à decisão individual, a inserção em uma rede de sociabilidade resulta de um gesto voluntário.
Denota, portanto, uma afinidade que é intelectual, mas também é política, no sentido mais amplo. Mas esse movimento gregário do meio intelectual não pode ser pensado como expressão de ações puramente racionais. Simpatias e hostilidades, amizades e rancores, solidariedade e competição mesclam-se nas configurações e nos deslocamentos que marcam as redes de sociabilidade. Porque elas ganham materialidade em formas organizativas, algumas clássicas, como as revistas, as associações, os manifestos. Para compreender como se formaram, o recurso aos itinerários intelectuais de seus integrantes torna-se o meio de detectar os pontos de encontro, as convergências de pensamento, a sedimentação de elos que podem precedê-las no tempo ou não, mas se fundam em zonas de acordos e concordâncias que também devem ser historicizadas. Por esse motivo, além da reconstituição do seu processo de construção, naquele movimento de retomar o curso do rio, as redes de sociabilidade devem ser analisadas naquilo que cimenta as adesões e dissensões, que Sirinelli denominou como “microclima”. Nesse microclima, vale notar as relações de poder que atravessam essas redes de sociabilidade.
A operação historiográfica se completa com a incorporação do conceito de geração, fundamental para iluminar os dois anteriores. Cabe, entretanto, cuidar para que sua definição não fique restrita a uma faixa etária, definida por datas de nascimento. Nas palavras de Sirinelli, as gerações intelectuais (...) são, em essência, multiformes, elásticas e espessas (1986, p. 105). O historiador quer assinalar, com isso, a falsidade de se pretender encontrar qualquer geração homogênea. Toda geração é constituída de cortes decorrentes das mais diferentes fraturas que compõem o momento social: fraturas de classes sociais; de pertencimentos regionais; de faixas de escolarização; de identificações ideológicas; de práticas culturais etc. Por esse motivo, é necessário conjugar uma visão de conjunto à determinação de agrupamentos que guardam distinções, mesmo que se encontrem aparentemente irmanados em um fenômeno geracional. Tais distinções trazem indícios capazes de informar sobre motivações diversas na ação política de um grupo aparentemente homogêneo, mas que porta memórias coletivas distintas. Portanto, quando falamos de geração, estamos nos referindo a um grupo recortado, circunscrito, dentro do conjunto da população de uma mesma faixa etária (SIRINELLI, 1994a; 2007a; 2008a e 2008b).
Por outro lado, o conceito de geração pressupõe, em princípio, um corte histórico. Para se caracterizar uma geração - mesmo com os cuidados a que nos referimos antes - é preciso demarcar uma mudança, um desvio de rota, uma emergência. Por isso, Sirinelli considera o efeito dos eventos históricos de grande amplitude, provocadores de crises, de choques, de mudanças extremas, como marcos detonadores de mudanças, que põem em cena gerações, que se apresentam com traços dissonantes em relação ao panorama que lhes antecede. Outra forma de abordar uma geração passa por detectar transformações culturais que interferem no desenho do meio intelectual. Neste caso, não se trata de um impacto estrondoso, mas pode comportar mudanças subterrâneas, que vêm a se expressar em novos aspectos das práticas intelectuais.
Argumenta que o historiador deve observar aqueles grupamentos que, pela época de nascimento, escaparam de viver o impacto de acontecimentos anteriores e, por não trazerem as marcas de uma memória anterior, expõem-se aos eventos que lhes são contemporâneos, com uma espécie de disponibilidade interna para serem afetados por eles. Nesse sentido, as gerações não possuem uma medida passível de ser pré-definida em quantidade de anos, estando suscetíveis, isto sim, às ondas da história, por vezes mais longas, por vezes mais curtas. O pesquisador deve focar-se na empiria para chegar a essas conclusões, tomando o cuidado de não se deixar seduzir pela projeção consolidada na memória coletiva com relação ao que foi a geração em estudo.
A nosso ver, a geração é a chave de interpretação que enfeixa as demais, permitindo levar a cabo o esforço de contextualização dos itinerários intelectuais e das redes de sociabilidade. Ela auxilia o historiador a circunstanciar as escolhas, as possibilidades de formação intelectual, o terreno institucional, os espaços de circulação cultural, o impacto das inovações tecnológicas, cruzando os níveis local, nacional e internacional.
Geração, redes de sociabilidade e itinerários intelectuais são iluminados, ainda, pelo conceito de culturas políticas (SIRINELLI, 1994a; 1994b; 1996 e 2005). As culturas políticas manifestam-se como um amálgama de múltiplas temporalidades, que confluem para disputas que são mais abrangentes e abarcam no seu substrato as próprias disputas ideológicas. Para além dos posicionamentos alinhados com vertentes de pensamento político, o que está em questão é um alicerce de regimes, práticas e valores que engendram traços de comportamentos coletivos, tanto quanto escolhas individuais.
Não podem ser pensadas, entretanto, como estruturas enrijecidas, determinantes das visões que se desenham no cenário de disputas, mas como massas fluidas, moldáveis, que dão o tom de uma época, mas que estão sendo ativamente construídas pelos sujeitos individuais e coletivos que pensam e se movimentam, expressam-se e agrupam-se, disputam e partilham. A ação dos sujeitos, por outro lado, encontra-se imersa na tonalidade geral dos contextos, sejam eles marcados por guerras ou por períodos de pacificação, por maior prosperidade ou penúria, assim como recebe o impacto de acontecimentos que repercutem na sensibilidade partilhada, abalando crenças e valores estabelecidos ou fortalecendo tendências latentes.
Os intelectuais, na sua dupla dimensão de mediação e engajamento, aparecem como figuras de destaque na arquitetura e sedimentação das culturas políticas associadas às diferentes gerações. Mas sua ação está conectada e sofre os influxos dos vetores culturais disponíveis em cada tempo e lugar. O alcance diferenciado das tecnologias de comunicação e o uso que se faz desses meios difusores, sempre no interior do jogo das tensões de cada momento, são, então, levados em consideração no estudo das gerações intelectuais, sua formação e sociabilidade. As mutações implícitas nas passagens do texto escrito à audição do rádio, desta à visualização televisiva, depois computadorizada, trouxeram embutidas sucessivas ampliações das redes de contato, trocas culturais e constituição de públicos. Passaram, portanto, a influir fortemente na emergência e configuração das culturas políticas.
Tais mudanças, também implicadas com as novas tecnologias, entretanto, não eliminam a permanência de formas historicamente consolidadas, estruturantes de longa duração, que, mesmo submergindo em certos períodos, ressurgem nos discursos e práticas, demonstrando seu profundo enraizamento na cultura política nacional. Por esse motivo, a sofisticação e amplitude dos novos vetores culturais não devem ser supervalorizadas, de modo a conferir à tecnologia uma potência desmedida. A aparência de inovação não pode se impor à análise como se ela, em si, tivesse o poder de revolver todas as camadas mais profundas do imaginário social, alterando o caráter das representações que o permeiam. A atenção com, mais do que a convivência, o amálgama de diferentes temporalidades no desenho das culturas políticas que disputam espaço em determinado momento histórico, é um exercício indispensável para o historiador que opta por esse caminho metodológico.
Como parte da discussão sobre os vetores culturais, a extensão da escolarização, assim como as políticas que orientam os conteúdos e experiências a serem disponibilizados ou interditados à infância e à juventude são incorporados, como elementos constituidores das culturas políticas. A escola não perde seu lugar, mas também não está imóvel ou imunizada frente às transformações socioculturais e políticas mais gerais, com as quais dialoga, para as quais formas públicas, das quais incorpora elementos constitutivos, no seu papel ativo de participante das culturas políticas.
Também as movimentações do contexto econômico, a cartografia de exclusões e distribuições que organiza territórios de variadas dimensões, os deslocamentos populacionais que promove, seus impactos sociais, são trazidos para a compreensão das formas que assumem as culturas políticas, influindo na ação de sujeitos individuais e coletivos. Evita-se, por outro lado, uma percepção que ligue economia e cultura de maneira automática e linear, como se houvesse resultados previsíveis, predeterminados, em uma linha reta de causa e efeito.
Em todos esses indicadores metodológicos, ressalta o lugar dos sujeitos, sejam eles individuais ou coletivos. Na reflexão de Sirinelli aparece a distinção entre autonomia e independência, na tentativa de garantir aos sujeitos uma posição que lhes é própria na construção dos eventos e processos históricos, sem, entretanto, conferir-lhes uma liberdade metafísica, que extrapole os limites do universo social com que interagem.
A ideia de autonomia visa, então, tornar visível a possibilidade de fazer escolhas, a capacidade de pensar, sentir e decidir que os sujeitos preservam no curso da história. Tem o objetivo de evitar a dissolução da ação humana em narrativas que transferem aos mecanismos e forças estruturantes a primazia absoluta nessa condução. Os seres humanos não são autômatos. Agem segundo parâmetros que selecionam, podendo adotar e recusar perspectivas de ver o mundo, podendo mudar de posição e reavaliar suas experiências, podendo filtrar, comparar, rever, recriar, traduzir e produzir leituras inesperadas dos objetos culturais que lhes chegam.
Mas essa autonomia também tem limites. Por isso, nosso autor faz questão de frisar que não se trata de independência. Nessa distinção, quer marcar a atuação dos terrenos culturais em meio aos quais se movem sujeitos individuais e coletivos. Terrenos culturais que, como vimos, são sociais, políticos, econômicos. O campo de escolhas e seleções não é ilimitado, pacífico, uniforme, mas atravessado por tensões e poderes que constrangem, formatam, interferem e orientam, restringindo a liberdade dos sujeitos.
Procuramos, então, até aqui, ressaltar os traços mais significativos das proposições de Jean-François Sirinelli, para uma história dos intelectuais. Passaremos, agora, a refletir sobre alguns aspectos de sua contribuição para a história da educação, particularmente aquela que vem sendo escrita pelos historiadores brasileiros.
História dos intelectuais e história da educação
Na leitura atenta das contribuições de Jean-François Sirinelli, vale considerar algo que ele próprio sinaliza, no artigo de conclusão que escreveu para o dossiê sobre o movimento de Maio de 1968, publicado na Revista Histoir@Politique, em 2008. Ao procurar ampliar a lente de observação a respeito das repercussões do movimento em outras realidades nacionais, Sirinelli chama a atenção para a armadilha de se desconsiderar as especificidades nacionais e locais dos processos que ele denomina de “transferência cultural”, pressupondo univocidade na recepção, como se houvesse homogeneidade nos meios em que as ondas de cultura política espraiaram-se e repercutiram. A ênfase recai, então, sobre os processos de circulação e os jogos de escalas que aí estão imbricados, analisados, tanto do ponto de vista da história social, quanto da história política, porque a recepção em regimes mais ou menos democráticos, por exemplo, faz diferença (SIRINELLI, 2008c, p. 4).
Tomando como pressuposto que a existência de ideias e culturas políticas se realiza por meio da impregnação em grupos, que as partilham ao mesmo tempo em que as alteram, as realidades socioculturais onde circulam, concorrem para as configurações que adquirem. No caso do Brasil, levando em conta nossa posição no mundo, cabe incorporar a questão de como partilhamos e nos inserimos em movimentos históricos que são de grande abrangência, ao mesmo tempo em que vivemos particularidades, das quais cabe destacar aspectos significativos para a construção da interpretação histórica.
Por esse motivo, é preciso observar, na recepção das contribuições dessa historiografia francesa, as necessárias distâncias entre os dois panoramas nacionais: o da França e o do Brasil. Consideramos que esta operação é necessária para se evitar a simples transposição de problemas, que podem se apresentar com grandes distinções nos dois terrenos nacionais. As ferramentas da história dos intelectuais, a nosso ver, serão mais potentes quanto mais buscarmos esse movimento dos jogos de escalas para compreendermos dimensões que se cruzam fortemente e assumem configurações, por vezes, muito distintas, em cada um dos lados do oceano Atlântico.
Assim, é preciso admitir que o ponto de vista nacional se impõe na narrativa francesa com uma força própria a uma construção histórica situada espacial e temporalmente na história mundial. Do ponto de vista do Brasil, se o nacional permeia os discursos, seguindo a marcha que se impôs a partir do século XIX, as conexões com a circulação cultural de nível internacional tornam-se um elemento incontornável. A posição de região consumidora, mais do que produtora, de correntes de pensamento, pressiona para que as pesquisas sobre os intelectuais os percebam nas redes de sociabilidade que os conectam aos centros dominantes, colocando-se na posição de mediadores das produções dos países economicamente centrais.
O olhar, por vezes, excessivamente tomado pela perspectiva nacional, que percebemos na historiografia francesa, mesmo quando se debruça sobre realidades externas, também vivencia limites. A partir do ângulo de visão oferecido pelo “nosso lugar no mundo”, torna-se possível incorporar outros aspectos às leituras dos percursos históricos dos intelectuais, capazes de contribuir para enriquecer a historiografia transnacional.
O objetivo, então, é defender uma apropriação ativa das contribuições dessa história dos intelectuais, que não se renda ao viés da matriz de origem. Nossa história da educação está profundamente conectada e integra a história da construção da modernidade e não pode ser pensada como um fenômeno exclusivamente nacional, mas as formas de sua realização histórica dialogam e são atravessadas por especificidades nacionais que, no caso do Brasil, apresentam ainda uma diversidade local que não pode ser desconsiderada. Este tem sido um esforço bastante bem-sucedido dos historiadores da educação brasileiros nos seus investimentos de pesquisa, crescentemente concentrados em unir as pontas entre o local geograficamente mais delimitado e a circulação internacional, não só de ideias pedagógicas e correntes políticas, mas de interesses econômicos em busca de solos que permitam sua materialização.
Nosso esforço, então, nesta segunda parte, com muitos limites já admitidos e previamente anunciados, será de buscar um diálogo entre as contribuições dessa história intelectual e as questões que se anunciam na historiografia da educação brasileira, sem nenhuma pretensão, entretanto, de abarcar sua totalidade.
Relação entre história dos intelectuais e história da educação
O próprio Sirinelli, na introdução à sua tese “Génération intellectuelle: khâgneux et normaliens dans l’entre-deux-guerres”, escreveu sobre a proximidade de sua pesquisa com a história da educação que se escrevia na França a partir da década de 1960, aproximando-a dos percursos historiográficos de Antoine Prost e Françoise Mayeur. Sua observação não diz respeito exclusivamente a uma relação ampla entre os objetos, mas a um determinado modo de realizar a pesquisa histórica.
Mas podemos pensar em outros pontos de observação para a mesma questão, que permitam, inclusive, enriquecer a nossa percepção sobre a contribuição dessa história dos intelectuais, em pauta no nosso debate, para a escrita da história da educação. Porque seria óbvio que falar de intelectuais implica, de qualquer modo, falar de educação. A história da educação, mesmo a que poderíamos qualificar como mais tradicional, sempre jogou luzes sobre a ação de sujeitos intelectualizados, propositores ou praticantes de formas específicas de aculturação, ainda que fosse para criar tipos ideais de educadores, onde se destacou a matriz cristã.
A história dos intelectuais, entretanto, concentra sua atenção na categoria dos intelectuais, tal como se constituiu historicamente na modernidade. A acepção ampla de intelectuais, que poderia abarcar as camadas intelectualizadas de qualquer época, passa por um processo de decantação, associado aos contextos históricos que fazem emergir uma nova autoconsciência e compromisso de intervenção histórica, representando-se de modo original. Sirinelli identifica uma espécie de cronologia no estudo dos intelectuais franceses, na qual alguns momentos ganham destaque, tais como o século XVIII, com o movimento das Luzes; o marco do manifesto liderado por Émile Zola, no caso do oficial Dreiffus, intitulado “J’accuse!”1; as décadas de 1920 e 1930, entre as duas grandes guerras; a década de 1960, em especial o “maio de 1968”, e a entrada em cena da geração nascida após a guerra da Argélia. Para ele, são marcos temporais de uma trajetória de emergência de novos tipos de engajamento, que transbordam sobre a atividade intelectual como um todo, ao mesmo tempo em que iluminam sujeitos individuais e coletivos vinculados a representações do que é o intelectual.
Essa cronologia pode ser tomada como referencial para se pensar as relações entre esse intelectual moderno e a história da educação naquilo que veio a se tornar um traço de distinção nos processos de aculturação das novas gerações modernamente. Para isso, vamos mudar momentaneamente nosso ponto de observação, saindo do percurso dos intelectuais e dando uma volta pela cronologia da educação.
A história dos intelectuais tem procurado escavar essas relações, a partir do foco sobre as representações que circundam e são assumidas por essas personagens. No caso brasileiro, por exemplo, o papel da Igreja Católica na relação com a arquitetura do edifício da escolarização projeta-se sobre os meios intelectuais e a atuação educativa nos seus diversos níveis. Como tem demonstrado a historiografia da educação, itinerários de formação, assim como redes de sociabilidade de gerações intelectuais no Brasil, em diferentes tempos e extensões territoriais, cruzaram-se com a Igreja por caminhos variados.
Diante da escassez e da precariedade de instituições escolares mantidas pelo poder público, frequentemente para garantir deliberadamente a hegemonia católica ou os investimentos privados, muitos itinerários de formação intelectual tiveram seu início em instituições católicas, fosse de ensino secundário ou médio - denominação que varia de acordo com a época - fosse de nível superior. A Igreja, como instituição que não pode ser pensada como um terreno homogêneo, abrigou e abriga, em seu interior, tanto intelectuais da direita conservadora, como segmentos de esquerda, que encontraram refúgio em nichos preservados no seu interior.
Essa constatação permite ampliar os veios de investigação sobre os itinerários de formação, olhando para além das instituições escolares confessionais, por exemplo, e percebendo o papel fundamental de outras estruturas que integram um organismo extremamente complexo como a Igreja Católica. Tanto congregações, irmandades e formas institucionais semelhantes, quanto organizações de base, voltadas para setores subalternizados da sociedade, atuaram concomitantemente como espaços de formação, nos quais circularam e circulam textos e sistematizam-se estudos, e espaços de constituição de redes de sociabilidade que, pela própria extensão institucional da Igreja, podem articular o local ao internacional.
A perspectiva da história dos intelectuais visa nos permitir ultrapassar leituras lineares e perceber inflexões nas trajetórias de sujeitos que vivenciaram uma matriz comum, quando se reconstrói a genealogia de sua formação. Poder religioso e poder militar possuem, na história brasileira, uma força de intervenção na constituição do meio intelectual que não pode ser desprezada, como tem demonstrado a historiografia produzida a partir do último cartel do século XX. Mas o impacto de sua intervenção não conta com resultados pré-determinados. Assim, como restringiram e constrangeram a atuação dos intelectuais, também comportaram brechas para a configuração de oportunidades de formação e organização para grupos, em princípio, excluídos, como os negros. Por outro lado, seu papel na conformação de culturas políticas e sensibilidades fundadas na aceitação da autoridade, no fatalismo que reforça a sensação de impotência e no medo da punição, foram centrais na história política brasileira.
Esses poderes também guardam relação com o poder de linhagens familiares, ligadas à propriedade, seja de terras ou de empreendimentos industriais, financeiros e de serviços, como os educacionais. Em uma sociedade tão marcada pela concentração da riqueza e uma desigualdade social tão consolidada, o meio intelectual não pode ser tratado como algo infenso a esse quadro. Desse ponto de vista, parece-me que nossa experiência histórica pode iluminar mais fortemente traços que na escrita dos historiadores franceses dessa vertente parecem ser minimizados, frente a uma história nacional que se impõe com outra configuração.
Jean-François Sirinelli, em particular, deu ênfase à vitória de uma cultura política republicana, que foi capaz de se sobrepor e ganhar a adesão de correntes, por vezes, opostas de pensamento, na França. Ele não deixa de se referir à desigualdade social na sociedade francesa, onde apenas 2,5% dos filhos da classe operária conseguiam aprovação no exame final do que seria o nosso ensino médio, o baccalauréat, no início da década de 1960. A cultura republicana não exclui nem combate essa desigualdade, mas transforma-se e consolida-se à medida que o progresso econômico associa-se a políticas de distribuição de serviços públicos, que incluíram a extensão massiva da escolarização. Hoje, na França, essa cultura republicana é tensionada por novos fatos e tanto pode articular-se a posições xenófobas quanto inclusivas, sem perder seu caráter nacional.
Na posição periférica em que se encontra a sociedade brasileira, descortina-se um cenário muito distinto. Apesar de o modelo republicano ter encontrado eco em vozes qualificadas intelectualmente, que procuraram articular projetos de educação escolarizada e modelos pedagógicos em sintonia com o que se considerava civilizado ou desenvolvido, de acordo com o discurso de cada época, penso que poderíamos dizer que a cultura política vitoriosa em solo brasileiro preservou as características de uma cultura oligárquica, sem necessidade de recorrer a muito disfarces, tal a impregnação das raízes escravistas na cultura geral.
O desenho dos meios intelectuais brasileiros, altamente embranquecidos, apesar de uma ampla maioria negra na população, tem levado a que os historiadores da educação venham dando mais atenção às figuras de intelectuais negros e de redes de sociabilidade negras, que apontam para formas de resistência que ficaram marginalizadas na memória social. Para além das questões geracionais, os contextos locais demonstram sua importância nas chaves de interpretação em uma nação tão extensa e diferenciada. Assim, não somente nos casos de intelectuais negros, mas tomando essa vertente como exemplo, as oportunidades de formação intelectual variaram muito, não somente entre os grandes centros urbanos e as regiões ruralizadas. Dentro de uma mesma região interiorana, a prevalência de determinadas atividades econômicas pode abrir ou fechar caminhos de circulação cultural. O desinteresse econômico, por exemplo, que leve à retirada de famílias mais ricas, em geral brancas, pode criar uma situação extraordinária de postos de liderança política e intelectual para sujeitos negros, tal como ocorreu em Cuiabá, na segunda metade do século XIX.
Trago esses exemplos para dizer que a pesquisa sobre intelectuais e sua relação com a educação, em suas diversas formas, no Brasil, pode surpreender e trazer elementos que necessariamente nos afastem das leituras dos colegas franceses. E isto deve ser valorizado por nós, porque a historiografia brasileira tem contribuído e, caso não seja sufocada na conjuntura profundamente adversa em que mergulhamos, mostra-se capaz de trazer à tona outras hipóteses de leitura. Para isso, a adoção das ferramentas teórico-metodológicas da história dos intelectuais tem de ser feita de forma criativa, atenta aos limites e aos diálogos imprescindíveis com as especificidades de nosso processo histórico.
Avançando nessa linha de argumentação, a própria categoria “intelectuais da educação” precisaria passar pelo crivo da crítica construída a partir da empiria. O primeiro estrato associado a essa ideia é o dos sujeitos de maior projeção no cenário nacional e, por vezes, internacional, que ocuparam postos de administração estatal e receberam tratamento privilegiado na historiografia da educação. Mas a pesquisa histórica em educação tem se espraiado por outros segmentos e por múltiplas formas de relação, que tornam bem mais flexíveis as margens dessa categoria.
Uma questão de fundo precisa ser enfrentada, levando-se em conta algumas abordagens possíveis de serem adotadas como protocolos de pesquisa. Quero, então, deixar claro que não partilho de uma leitura que reparta o meio intelectual entre intelectuais mediadores, de um lado, e intelectuais engajados, de outro. Por vezes, ainda, discrimina-se criadores e mediadores, como se pudesse haver atividade de mediação sem algum nível de criação. A meu ver, esse tratamento empobrece e infringe as indicações metodológicas que encontro na obra de Sirinelli, sempre empenhado em tratar mediação e engajamento como aspectos complementares na atuação dos intelectuais. Mediação e engajamento complementam-se e, mesmo quando há distinção ou prevalência de um desses aspectos, as fronteiras são móveis, porque a própria trajetória dos intelectuais pode comportar deslocamentos que provoquem mudanças no tipo de inserção do intelectual: de prioritariamente mediador para engajado e vice-versa. Também vale a pena lembrar que não há, na proposta de Sirinelli, um modelo do que seja “engajamento”, comportando extensões ou amplitudes diferenciadas, formas mais ou menos ativas, sempre na relação com a recepção por parte de públicos, para os quais também não se pode ter uma medida.
Dito isto, voltemos à categoria “intelectuais da educação”. A pergunta seria: Quem podemos agregar sob este rótulo? Pela perspectiva da história dos intelectuais, o leque pode ser bastante ampliado, o que já é possível perceber na historiografia da educação brasileira. Isto porque os vínculos entre intelectuais das mais diferentes áreas e atividades de formação comporta uma gama imensa de possibilidades. Os modos de intervenção incluem desde a própria atividade docente até a participação pontual em projetos datados. Por este motivo, parece-me que o mais adequado não seria determinarmos previamente quem são os “intelectuais da educação”, mas ir reunindo muitos estudos, com rica empiria, que nos apresentem as muitas facetas dessa vinculação. Um passeio pela historiografia da educação produzida nas últimas décadas, no Brasil, já permite constatar um rico repertório.
Com as ferramentas metodológicas da história dos intelectuais, tem sido possível valorizar sujeitos individuais e coletivos, observando, sobretudo, seus itinerários de formação e redes de sociabilidade. Neste sentido, lembrando a necessária atenção e valorização das nossas especificidades, cabe ao pesquisador ultrapassar os limites da formação escolarizada, nos moldes como se apresenta na tradição nacional francesa, e lançar luz sobre as estratégias e variantes produzidas na história brasileira. A presença maciça de profissionais com formação superior nos poucos cursos disponíveis no território brasileiro até a década de 1930, atuando como professores; professoras primárias engajadas no movimento operário nas primeiras décadas do século XX; a centralidade de algumas instituições, como o Colégio Pedro II, que abrigaram disputas na sistematização de conhecimentos a serem ensinados, fosse em história, fosse nas ciências naturais; a participação de artistas em projetos arquitetônicos, literários e musicais ligados à escolarização; a ação isolada de professores que edificaram frentes de resistência à histórica leniência dos grupos dominantes com a educação popular; as lideranças de formas alternativas de preservação cultural de grupos afrodescendentes e de grupos étnicos originais... São inúmeras as entradas possíveis nos arquivos para encontrar manifestações que guardam uma originalidade que exige adequação das ferramentas da história dos intelectuais à nossa história.
Essa empiria precisa, também, ser contextualizada, o que passa, não somente, por sua relação com grandes tendências, mas por sua articulação espaço-temporal, via ação dos sujeitos, com as culturas políticas e as correntes de sensibilidade em circulação. Reside aqui um desafio complexo que se liga ao conceito de geração intelectual: o trabalho de desfolhar as camadas de eventos, no esforço de detectar aqueles que impactaram de maneira significativa as definições geracionais. Ressaltam, então, não somente os acontecimentos políticos, como o golpe de 1964, mas, também, os efeitos de processos ou inovações que repercutiram na formação e nas sociabilidades intelectuais. Por exemplo, a ampliação dos ginásios ou, ao contrário, a Lei nº. 5.692, de 1971, e a privatização que segmentou as oportunidades. Na França, Sirinelli chama a atenção para o significado das guerras. No Brasil, mais do que nunca, é evidente o impacto dos golpes de estado.
Considerações finais
É bom lembrar que a chamada “história dos intelectuais”, depois de um grande sucesso nas décadas finais do século XX, recebeu críticas na virada para o século XXI. Pode-se sempre argumentar que uma vertente que se impõe sobre outras arrisca-se, inevitavelmente, a sofrer os reveses do seu próprio desgaste - e este movimento é próprio do meio intelectual marcado por disputas de perspectivas de análise. Portanto, nem todas as críticas são pertinentes. Por outro lado, porém, fechar os ouvidos a críticas ou deixar de enxergar os limites de qualquer proposição metodológica seria o caminho do dogmatismo e do acriticismo.
Não cabe aqui avaliar esses limites, mas nossa incorporação das contribuições de Sirinelli não pode desconsiderá-los como objeto de reflexão. Em parte, as resistências foram provocadas pela radicalização de uma perspectiva historicizante que se impôs sobre as abordagens da sociologia, da filosofia, da literatura e da história política tradicional. Seguindo as sinalizações de François Chaubet (2003; 2009), é possível, ainda, perceber que parte das críticas decorreu da adoção dos procedimentos de pesquisa sem a necessária profundidade na sua compreensão, esvaziando-os de sua força interpretativa. A ênfase sobre a importância de reunir dados empíricos, em parte, reforçou a tendência à compilação de fatos concernentes aos itinerários, à cartografia das redes de sociabilidade e indicações vagas sobre os traços geracionais, desconectando-os dos contextos. Este é um risco para o qual, com certeza, devemos atentar.
Concluindo, não podemos escapar a uma reflexão que pulsa no nosso cotidiano. Poderíamos afirmar que o panorama conjuntural apresenta novos desafios à reflexão sobre os intelectuais? Qualquer avaliação corre o risco de parecer precipitada. Mas, com certeza, o presente provoca-nos a realizar novas testagens. Sem a pretensão de buscar no passado respostas para o presente, ainda assim, considerando que nossos esforços de estudos têm um sentido que ultrapassa o prazer que temos em descobrir horizontes, caberia uma última pergunta: De que forma a história dos intelectuais aporta ferramentas para a construção de olhares sobre os processos que nos envolvem?
A partir da perspectiva da história dos intelectuais, uma questão me parece nos desafiar para pensar o trabalho intelectual nos dias que vivemos, neste século que se anuncia de grandes mutações culturais associadas a um desenvolvimento de novas tecnologias de comunicação, que implementam uma circulação veloz e mundializada de produtos culturais. Esta questão está posta no debate intelectual desde as décadas finais do século XX, enunciada de diferentes maneiras, por diversos intelectuais. Trata-se da relação entre intelectuais e espaço público, que se encontra no cerne da ação política.
Para nós, envolvidos nessa área da história da educação, ela tem profunda relação com o processo histórico de escolarização. O solo de sistematização do acesso à cultura, que se organizou com base na escolarização, introduzindo gradualmente diversos públicos ao conhecimento científico, artístico e literário, mesmo que de modo desigual, parece estar bastante ameaçado. As acusações de que escola tem sido objeto; o descompasso entre o seu ritmo e estrutura de funcionamento e a incorporação das inovações tecnológicas; o impacto das novas tecnologias no mundo do trabalho, dispensando qualificação escolarizada e reduzindo drasticamente a necessidade de trabalho humano são aspectos de uma grande questão que envolve a formação de públicos e o trabalho do intelectual.
Vivemos um panorama de fragmentação que abre espaço para muitas novas vozes, que encontram canais de veiculação sem precisarem se submeter ao crivo da autoridade, tal como se constituiu na associação entre poder político e intelectual nos séculos XIX e XX. Desenha-se um panorama de ampla autorização para que sujeitos, até então com baixo nível de audição, encontrem recepção ao que expõem a um público completamente imprevisível, já que as novas tecnologias permitem que as mensagens circulem via satélite ou fibras óticas até comunidades longínquas, mergulhadas em culturas inimagináveis para quem formula e divulga aquilo que deseja. As crianças e os indivíduos pouco intelectualizados, por exemplo, parecem ter quebrado as barreiras que preservavam e restringiam sua exposição pública.
Ao mesmo tempo, o domínio de ferramentas intelectuais parece cada vez mais determinante na detenção do poder político, que não se desvincula do poder econômico. A extraordinária concentração de riqueza demonstrada nos dados da pesquisa especializada é a face perversa desse mesmo cenário. Ela acompanha a escassa distribuição do poder de gerar conhecimento, de produzir tecnologia de ponta, de determinar o zoneamento do mundo entre, por exemplo, quem usufrui dos avanços tecnológicos para o bem-estar e quem tem de conviver com o despejo do lixo eletrônico e as possíveis ameaças à vida humana que ele carrega. As articulações a partir de agências centrais, supranacionais, com poder de impor políticas desde a produção de alimentos até os materiais de ensino; de produzir guerras, que devastam regiões inteiras enquanto garantem os lucros da indústria de armamentos; de articular golpes de estado - como vivemos no Brasil - para criar canais de expropriação de recursos naturais em favor da minoria ultra rica, ampliam, também, o terreno da ação política.
Muitas questões se apresentam, diante dessa tensão extraordinária entre expansão, de um lado, e retração, de outro. A aparente democratização do acesso à informação e aos meios de expressão não parece abalar a crescente concentração de privilégios. A cultura de massa, para usar uma expressão utilizada por Sirinelli, assumiu proporções e penetração de enorme potência, dando o tom das tendências de opinião e das possibilidades de leitura de mundo.
Observar o percurso histórico dos intelectuais, tal como se apresentou na história recente, com certeza, pode trazer elementos para a leitura do momento atual. Mas precisamos estar atentos a nosso lugar no mundo e às novas redes que se organizam internacionalmente. Tem ficado claro, por exemplo, como alguns movimentos ligados às forças que articularam o golpe recente no Brasil possuem financiamento externo, proveniente de grupos econômicos poderosos. Em muitos casos, pode-se colocar em dúvida se ocorre uma adesão alicerçada na defesa de certo ideário ou simplesmente uma busca de recursos financeiros por sujeitos provenientes de um estrato social sem grandes alternativas de sobrevivência. Esta é uma realidade que não pode ser desconsiderada, quando se quer evitar um uso banalizado ou ingênuo do arsenal metodológico da história dos intelectuais.
No outro extremo, a circulação de modelos internacionais assumiu um caráter que deslizou da influência trabalhada pelos constructos racionais para a imposição articulada a partir do poder econômico associado ao poder bélico. Nossa posição no mundo é, desse ponto de vista, profundamente reveladora das teias que enredam e constrangem os meios intelectuais nacionais, sob a forma de acordos e convênios, que carregam mecanismos de endividamento externo e submissão a interesses de parcelas privilegiadas.