Introdução
A leitura introduz uma arte que não é passividade (CERTEAU, 1994, p. 50).
A escrita acumula, estoca, resiste ao tempo pelo estabelecimento de um lugar e multiplica sua produção pelo expansionismo da reprodução. A leitura não tem garantias contra o desgaste do tempo (a gente se esquece e esquece), ela não conserva e conserva mal a sua posse, e cada um dos lugares por onde ela passa é repetição do paraíso perdido. [...] Com efeito, a leitura não tem lugar [...]. O mesmo se dá com o leitor: seu lugar não é aqui ou lá, um ou outro, mas nem um nem outro, simultaneamente dentro e fora, perdendo tanto um como o outro misturando-os, associando textos adormecidos mas que ele desperta e habita, não sendo nunca o seu proprietário. Assim, escapa também à lei de cada texto em particular, como a do meio social (CERTEAU, 1994, p. 270).
Cada pessoa sabe tanto sobre a criança e seu sexo quanto o melhor dos psicólogos. Cada pessoa sabe infinitamente mais, a partir do momento que abole o corte que, em determinado momento, separou nela a criança do adulto, para fazer da primeira um ser separado. Não basta dizer que cada um de nós foi criança, como se tratasse de um passado e não do futuro da definição de uma tarefa que mal começamos a entrever. É preciso antes de mais nada que restabeleçamos a continuidade daquilo que foi cortado, voltando a abrir as comportas desse fluxo intensivo e intuitivo que bifurcou na compensação, quando acreditamos que a criança e o adulto se separava. (HOCQUENGHEM, 1980, p. 112)
Este texto trata do ato de ler, e da escrita sobre a qual ele se debruça, como potência de inventar mundos que sejam mais afeitos às estranhezas. Michel de Certeau (1994) oferece-nos pistas de extrema importância para pensarmos os sujeitos praticantes da vida cotidiana em atos de ler, escrever, conversar, narrar, caminhar, rememorar etc., mu(n)dando-se em suas operações criativas de produção de mundos. Seguindo seus rastros como praticantes de uma vida que não se conforma com o já dito e escrito, compreendemos que um texto, como narrativa curricular em si, interessada, endereçada, distribuída em tempos e espaços de sociabilização de discursos de verdade, não detém um/o poder que supõe possuir para imprimir a ferro e fogo uma moral para o corpo, o gênero e a sexualidade, naqueles que estão inseridos em práticas de leitura, de escuta, de conversas e de escrita.
Com Paulo Freire (2003, p.11), aprendemos que: “A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente”. Sabemos assim que não existem purismos e neutralidade em um texto. Um texto se organiza afetado que está com fios de poderes e saberes dispersos nas histórias, memórias e afetos que tramam a condição do autor/leitor e se alonga na inteligência do mundo. Sobre leitura, escrita e a inteligência do mundo, Paulo Freire (2003) tem muito a nos ensinar sobre atos de (re)leituras e (res)escritas, uma vez que compreende esta artesania como um fazer acontecer por contaminações com a palavramundo.
Paulo Freire sendo tomado e exposto pela/na e com a palavramundo aproxima de Certeau (1994), quando nos permite compreender que a leitura e a escrita é um processo/ atividade que se faz acontecer por relações, recusas, negociações, misturas, hibridizações, traduções, processos criativos/educativos. Os processos educacionais, comprometidos com as possibilidades de vidas inventivas e singulares, comprometem-se com a não neutralidade do ato educativo, produzindo um tempo e lugar para experiências e problematizações das práticas que nos colonizam e afirmam a manutenção de privilégios da heteronorma e do heterossexismo em sua obsessão pela coerência compulsória entre corpo, gênero e sexualidade, natureza e cultura.
Sobre a potência do novo, Paulo Freire e Michel de Certeau nos convocam na condição de trabalhadores/as culturais, comprometidos com a novidade da vida em seu direito de expandir a desejarmos o exercício educativo como ação política implicada e diz:
Uma das qualidades mais importantes do homem novo e da mulher nova é a certeza que têm de que não podem parar de caminhar [...]. A educação das crianças, dos jovens e dos adultos tem uma importância muito grande na formação do homem novo e da mulher nova. Ela tem de ser uma educação nova também [...]. Uma educação completamente diferente da educação colonial. [...] Uma educação política, tão política quanto qualquer outra educação, mas que não tenta passar por neutra. Ao proclamar que não é neutra, que neutralidade é impossível, afirma que a sua política é a dos interesses do nosso Povo. (FREIRE, 2003, p. 86).
Práticas educacionais e políticas comprometidas com a novidade do mundo são aquelas que se fazem na caminhada e se renova ao se fazer problema. Logo, uma educação que se arroga neutralidade não está coegendrada com a dimensão ética e política com o acolhimento de vidas concretas, demasiadamente sexualizadas e generificadas, que não podemos escolher para habitar conosco o planeta e as escolas. E por sabermos que não podemos escolher e decidir com quem habitamos, vivemos, trabalhamos, nos alegramos e sofremos as misérias cotidianas, só nos resta, como exercício ético, nos abrir, virando do avesso as pregas de nossas verdades e morais. Para despregar o que nos impede de expandir com a novidade da vida, precisamos descolonizar nossos modos de sentir, tocar, cheirar, ver, falar, ler, escrever, etc.
Essa descolonização sugerida: de um corpo que não só pensa (com o cérebro), mas com toda sua potência, por todo os lados possíveis, implica em visibilizar outros modos de estar no mundo e se afetar com ele. Trata-se de despreguear, tirar os pregos de nossos corpos. Aqui trazemos os cus como uma possibilidade deslocamento, no qual ele é um convite para que possamos sentir desde outros lugares que não os localizados num corpo-cérebro. Como uma brisa fresca e suas intensidades em regiões onde o vento de fora não chega. Despreguear, descolonizar o ânus da leitura e da escrita, se dar a ler, e escrever de forma diferente é nos permitirmos ex-postos ao mundo, é reaprender outros modos de falar sobre a prisão da criança nos dispositivos da infância e da boa pedagogia.
Hocquenghem (1980, p. 113) sugere que para descolonizarmos a criança precisamos ensaiar modos de: “falar daquilo que recobre a prisão da infância [...]”. A literatura nos ajuda “a fazer passar intensidades e não as ideias é o início da luta contra a pedagogia”. E é em direção às intensidades literárias ou poéticas que poderemos nutrir nossa deriva intuitiva, em direção àquilo que o sistema da infância mascara.
Temos cu e com ele convocamos políticas de alianças de releituras e reescritas sobre nós e sobre o que de nós quiseram narrar e discursar. Heterossexuais, homossexuais, lésbicas, bissexuais, transexuais, travestis, crianças se igualam em intensidades nas composições das forças revolucionárias, pelo simples fato de possuírem cu. O cu, terras proibidas, zona de perigo, ao nos igualar nos abre ao devir anal do mundo. O cu vira uma bocarra escancarada que engole a nós todos e a tudo! Não é possível a vida sem o buraco negro! Pelo buraco negro, nos abrimos ao mundo. Guy Hocquenghem (1980), alegremente aberto ao mundo, canta esta máxima ao nos convocar para o ato revolucionário nos usos do buraco negro, o buraco do cu, das terras baixas, perigosas, lugar de merda e que espalha merda.
Com Guy Hocquenghem (1980, p. 43) aprendemos que: “[...] o buraco de nosso cu não é nem vergonhoso nem pessoal, é público e revolucionário”. Demolindo, deslocando com Hocqueghem, no que ele nos ensina sobre o orgulho do cu e sua força política revolucionária, gostamos com Paul Beatriz Preciado, de pensar o ânus como território comum a ser descolonizado e desprivatizado das políticas identitárias que nos pregueiam pelo centro do ânus.
Preciado (2014, p. 31), recorrendo a Gilles Deleuze e Felix Gauatarri (2010), diz que o ânus foi “o primeiro de todos os órgãos a ser privatizado, colocado fora do campo social”. Despreguear a arquitetura do corpo, descolonizando o ânus não é só dizer não às políticas identitárias, mas também se colocar problema e se fazer problema por dentro das políticas identitárias! Como diria Paul Preciado (2016, p. 32), “[...] os trabalhadores do ânus são os novos proletariados de uma possível revolução contrassexual”.
Se todos nós, trabalhadores da educação temos ânus e com ele nos abrimos ao mundo e novidades, ousamos com Preciado (2016) dizer que a revolução nas práticas educativas será pelo/com e no ânus. E por que o ânus como potência comum de leituras de mundos e narrativas curriculares aqui é convocado? Pode o ânus torna-se uma ferramenta política de disputas de narrativas sobre nós e nossos processos de subjetivação? De forma apressada, atrevemos a dizer, que é pelo ânus que nos abrimos aos nascimentos de mundo e é por ele e, com ele, que as práticas subversivas das identidades de gênero e sexualidade se fazem entrar em curto-circuito.
Cu, todos temos um e por ele a vida entra e sai. O cu é um lugar antropofágico. Javier Saez e Sejo Carrascosa (2016, p. 47), fazendo uma potente reflexão das políticas anais e das relações de poder que incidem sobre gênero, sexualidade, raça, classe, sexualidades e território, não nos deixam esquecer que a força política da “utilidade do ânus está em abrir-se e não em fechar”. Fechar um ânus é matar a vida. O ânus aberto é o que nos anima! Estes autores das dissidências, em suas apostas anais como possibilidade de produção de mundos e reinterpretação dos dispositivos de gênero e sexualidade, dizem-nos que o ânus: É um lugar estranhamente vazio das marcas de gênero. O binarismo sexual e o mito da cópula heterossexual-reprodutiva não podem operar nesse lugar do anal, que desafia sua lógica e os coloca em dúvida (SAEZ; CARRASCOSA, 2016, p. 31). Paul Preciado (2014), entrando nesta conversa anal, oferece-nos três argumentos que nos ajuda a fazer problema a gênero e sexualidade, e diz:
Um: ânus é o centro erógeno universal situado além dos limites anatômicos impostos pela diferença sexual, onde os papéis e os registros aparecem como universalmente reversíveis (quem não tem um ânus?). Dois: o ânus é uma zona primordial de passividade, de um centro produtor de excitação e de prazer que não figura na lista de pontos prescritos como orgásticos. Três: o ânus constitui um espaço de trabalho tecnológico; é uma fábrica de reelaboração do corpo contrassexual pós-humano. O trabalho do ânus não é destinado à reprodução nem está baseado numa relação romântica. Ele gera benefícios que não podem ser medidos dentro de uma economia heterocentrada. Pelo ânus, o sistema tradicional da representação sexo/gênero, vai à merda (PRECIADO, 2014, p. 32).
Como gostamos de fazer merdas e mandar à merda os privilégios das narrativas heterocentradas com seus limites para pensar gênero e sexualidade fora do centro, nas dissidências, nas bordas do fim do mundo, nos perguntamos: é possível pensar uma literatura infanto-juvenil que nos ajude ir à merda, fazer merda e também convocar a merda? E por estarmos todos nós, unidos pelo devir anal do mundo e na merda, nos preocupamos com as ausências de subjetividades e identidades que nos importam e que pelo ânus são interditadas, exterminadas e silenciadas! Sáez e Corrascosa, em conversa com Paco Vidarte, pensando uma ética bicha desde as políticas anais, fazem crítica aos discursos de verdade da modernidade:
A ciência, a antropologia, a medicina, a psicanálise, a sociologia, a imprensa, todos querem saber dxs bichas, dxs sapatões, dxs trans, das minorias sexuais. Pedem-nos que falemos; que confessemos; que negociemos; que expliquemos; que digamos como somos e o que queremos. A ética anal de Paco vai negar tudo isso. Acabou-se o diálogo e o informe. Porque as condições deste saber vêm manipuladas de antemão, porque as condições do diálogo são manipuláveis, partem de um desiquilíbrio de poder, de quem tem o poder para escrever sobre as nossas vidas, coisificar-nos, classificar-nos, documentar-nos, converter nos em objeto. Esse contexto homofóbico e machista já está prescrito de antemão, por isso não temos que cair no jogo: não responder, não pedir nada, não dizer nada. Somente ser um buraco negro (SÁES; CORRASCOSA, 2016, p. 77).
E com Paco Vidarte, ampliamos seus sentidos e com ele dizemos que os discursos de verdade com a educação, com a pedagogia, com a psicologia, com a literatura infanto-juvenil e com os currículos heterocentrados criaram e criam condições de saber que não se sustentam no fim do mundo. Não temos salvo conduto com os discursos que também inventamos. Como ervas daninhas... porque exercitamos uma ética anal, abrimos buracos no fim do mundo com o que nos resta... nossos cus, e de nossos cus a vida que nos interessa, na merda, devora e zomba deste suposto saber. Sabemos nós, proletariados do cu, de uma coisa, temos muito a te ensinar! Queres conosco aprender? Queres conosco espalhar buracos negros pelos tecidos das escolas? Queres conosco criar lógicas anais de currículos? Façamos a ti convite, se disposto estiveres em compor alianças de (des)aprendizagens e descolonização.
Por uma (anal)ética de abertura de mundos com a leitura
Uma ética bicha deverá decididamente ser anal: uma Analética [p. 30]. [...] O que o poder entende ser o cu de uma bixa não é o mesmo que uma bixa entende que é seu cu. Para o poder somos paus no cu, cus sem eu, sem possibilidade, necessidade ou atitude para ter iniciativas política. Cus para dar, cus para tomar. Cus que reclamam serviços públicos para não se cagarem pelas calçadas: está bem, vamos dar isso, não queremos que encham tudo de merda. Cus despolitizados [p.34]. [...] Me fascina pensar em um movimento LGBTQ que viesse colocar em prática uma política de buraco negro: absorver tudo, apoderar se de tudo: absorver tudo, apoderar se de tudo, sugar tudo sem dar nada em troca. Sobretudo, não dar nada de nós mesmas, não deixar que escape para fora sequer uma parte mínima de nossos eflúvios essenciais. Não dar nada ao sistema e roubar-lhe tudo o que cair nas proximidades do nosso buraco negro (VIDARTE, 2019, p. 88).
Temos um problema no que diz de nossas práticas de leituras nas escolas! Na escola aprendemos a ler com o cérebro. A leitura na escola é cerebral. Fecham tudo que podem: boca, ouvidos, olhos, poros e cus. A boa leitura da escola é a que se dá a ler em silêncio. Será que as bixas das escolas, proletariados do cu, professoras e professores, estudantes e trabalhadores da educação, podem aprender e também ensinar a ler com o cu? Pode o cu ler e se dar a ler com prazer? Parece-nos que sim!
Giro de saberes e descolonização de buracos! Se o cérebro produziu merdas em nossas vidas através de nossos olhos e de nossas línguas controladas pelas tecnologias de gênero e sexualidade, queremos jogar merda nos ventiladores do cisheterosistema. Queremos nos colocar em exercícios de leitura com todo o corpo. A leitura com o cu nos permitiria uma leitura mais franca, mais carnal e mais fresca! E de frescuras: as crianças que nascem em nós, podem muito ensinar! Sobrevivemos com nossos nascimentos em cada amanhecer. Sobreviver já não nos basta, por isso fazemos perguntas com os nossos não saberes e com a força do buraco negro que deseja jogar merda nas calçadas pavimentadas com os saberes e poderes normativos que buscam nos exterminar e nos conformar a heterossexualidade compulsória.
Preciado (2018, p. 78-79), pensando a privatização do ânus, nos diz: “O ocidente é desenhado como um tubo com dois orifícios: uma boca emissora de sinais públicos e um ânus impenetrável ao redor do qual gira a subjetividade masculina heterossexual que adquire status de corpo socialmente privilegiado”. Localizados como abjetos e na merda, gêneros e sexualidades dissidentes precisam se preocupar com as forças que buscam impedir a expansão da vida e o devir anal do mundo.
Com nossos cus abertos, juntos a Paul Preciado (2014; 2018), Juarez Sáez, Sejo Corrascosa (2016) e Paco Vidarte (2018), fazemos ainda algumas perguntas. Pode o novo chegar, no que diz respeito ao devir anal do mundo, pensando as dissidências de gênero e sexualidade com a permanência e esforço de manutenção dos eternos quadros de leituras e imagens que são oferecidas às crianças nas narrativas heterocentradas dos contos de fadas, fábulas, ficções, quadrinhos, poesias e outros gêneros literários?
Ato falho! Não se pode mais falar em “gênero literário”. As polícias de plantão das macropolíticas curriculares sexistas que buscam barrar e exterminar existências já nos disseram que só se pode falar de literatura infanto-juvenil, mas, de “gênero” literário, incorremos em perigo. Salvemos as criancinhas da maldição do gênero e daqueles que estão posicionados nas fronteiras do fim do mundo do sistema sexo-gênero. Mas..., qual criança a polícia de plantão busca salvar? Quem responde com outra pergunta é Paco Vidarte.
Não somos nada ante de ser bixas. Quando é que vamos perceber que primeiro, ainda muito pequenas, já éramos viadas, sujeitos assujeitados e excluídos de qualquer representação e papel social? [...] Desde pequeninos jogamos em duas frentes e habitamos o mundo de modo perverso e cindido, mais ou menos esquizofrênico, criando estratégias de socialização, visibilidade e política muito peculiares e absolutamente inovadoras que cada um tem que inventar individualmente na solidão da infância, mas que somos capazes de reativar e de aproveitar coletivamente (VIDARTE, 2019, p. 31-57).
O gênero enquanto sistema de opressão faz operar assombrações que dizem que queremos transformar meninos em meninas e meninas em meninos! Já disseram algo parecido sobre marxistas, comunistas, ciganos, migrantes e de adeptos de religiões afro-brasileiras. O fazer leitura como processo criativo é responsabilidade de quem se coloca em operações de leitura ou é também compromisso de uma política pública e com práticas pedagógicas que tomam o texto e suas narrativas como mais uma possibilidade de ampliação de nossos mundos? Pode um texto outro, com outros personagens, incluindo as crianças em dissidências com o corpo, gênero e sexualidade compor nossos repertórios de leitura e de escrita? Elas podem aparecer? Respondemos comprometidos que estamos com a expansão da vida, com os nascimentos e com as dissidências, que sim!
Fazer leituras de textos tradicionais a contrapelo, evocam as resistências microbianas da sociedade normativa. Nas narrativas moralistas, distribuídas nas políticas de leituras para crianças e jovens, encontramos belas cenas de rebeldias e insubmissões. Em Carlo Collodi (1985), em sua tradicional história de “Pinóquio”, escrita ainda no século XIX, um boneco de madeira, subjetividade planta e gente, tem nos primeiros “dias” de sua vida, esforços disciplinadores que insistem em transformá-lo em um menino de verdade. Nessa história, na imanência de sopros de vida, encontramos passagens de desobediências e desejos que nos mostram que o boneco, quase menino de verdade, dissidente do processo civilizatório, quer continuar com o cu aberto em suas andanças por onde não se conhece em busca daquilo que ainda não se sabe o que é. Mas sabe que precisa ir. Em dos capítulos desse livro de Carlo Collodi (1985, p. 61-62), intitulado por “A hospedaria do Caranguejo vermelho”, o autor nos oferece uma cena de um corpo que não se conforma e que deseja ir. Seguimos a cena entre o Grilo falante e o boneco da história:
− Quem é você? - Perguntou Pinóquio.
− Sou a alma do grilo falante. - respondeu o inseto, com um fio de voz que parecia vir do outro mundo.
− O que você quer comigo? - Perguntou o boneco.
− Quero lhe dar um conselho. Volte para casa e leve as quatro moedas que ainda estão em seu poder para o seu pai que chora e se desespera porque você desapareceu.
− Amanhã meu pai será um homem muito importante, porque estas quatro moedas se transformarão em duas mil.
− Não confie, menino, nas pessoas que prometem fazê-lo ficar rico do dia para a noite. Sem dúvida são loucos ou embrulhões. Acredite-me, volte para casa.
− Não, eu vou continuar andando.
− Já é muito tarde...
− Mas eu quero continuar.
− A noite está muito escura...
− Eu quero continuar.
− A estrada é perigosa...
− Mas eu vou continuar.
− Lembre-se de que os meninos que querem satisfazer todos os seus caprichos, mas cedo ou mais tarde acabam se dando mal.
− Você sempre com a mesma história! Boa noite, Grilo.
− Boa noite, Pinóquio. Que os céus o protejam do frio da noite e dos assassinos!
Mal pronunciou essas palavras, o Grilo Falante sumiu de repente, como uma luz que se apaga; e a estrada voltou a ficar tão escura como antes. (COLLODI, 1985, p. 61-62)
Vagueando entre moral, más companhias e lugares cheios de perigos para um corpo fora da norma, Pinóquio é corpo indisciplinado, vida abjeta, um não-humano cuja potência de vir a ser lenha, planta, animal e humano vai se deparando com processos de subjetivações que insistem na produção e auto-responsabilização de se tornar e de responder performativamente a meninos de certo tipo. O corpo, campo de possibilidades, vai sendo marcado por seres fantásticos e forças binárias que cruzam seu caminho. As lógicas binárias disputam o corpo. Disputar um corpo não é tarefa fácil. No entre afetos e falta de escrúpulos com os sentidos impressos ao corpo e à moral do adulto, o corpo aberto desse quase menino, só deseja continuar.
Por um mundo sem pregas e pregos: dobras, desdobras e redobras de modos de leituras que permitem a vida aparecer e florescer
Um texto pode muito coisa, mas, não pode tudo! Pinóquio, devorando e fazendo antropofagia de tudo que lhe tocava, já nos ensinou sobre isso! A boa pedagogia e os bons costumes não nos deixam perceber em Pinóquio suas resistências e seus processos inventivos de mundos. Precisamos lembrar que a resistência e os processos de dizer não, não se comprometem, mediante os limites de uma vida, a permanência a um não eterno. Podemos ser capturados a meio caminho e por ali ficarmos espiando à espera da boa hora, da ocasião para insurgir em nascimento.
Um texto, uma imagem, uma conversa, um conselho, não passa de uma possibilidade de endereçamento e de produção de subjetividades e identidades. Apenas uma possibilidade e, por ser apenas uma possibilidade, se faz de reiterações, conferindo aos que se conformam, privilégios e recompensas. As narrativas disciplinadoras sabem que podem fracassar! Por isso insistem com as histórias já contadas. Carlo Collodi (1985) mostra que capturas se fazem acontecer nos que estão nas margens do fim do mundo. Em um dos capítulos, que busca narrar um re-encontro de Pinóquio com a Fada, podemos ler:
− Que boneco danado! Como foi que percebeu que eu sou a Fada?
− Foi o meu grande amor que me revelou a verdade.
− Você se lembra, Pinóquio? Eu era quase uma menina e agora já sou uma mulher; quase poderia ser sua mãe.
− Fico muito contente, porque assim, em vez de irmãzinha, poderei chama-la de mãezinha. Há tanto tempo desejo ter uma mãe como todos os meninos!... Mas, como é possível crescer assim tão depressa?
− Isso é um segredo.
− Ensine-me esse segredo. Eu também quero crescer um pouco. Está vendo? Continuo com a mesma altura.
− Mas você - replicou a Fada - não pode crescer.
− Por quê?
− Porque os bonecos nunca crescem. Nascem bonecos, vivem bonecos e morrem como bonecos.
− Ah! Mas eu estou farto de ser um boneco! − gritou Pinóquio, dando um tapa em si mesmo. - Gostaria de me tornar um homem como os outros.
− Se você merecer, tornar-se-á um homem...
− De verdade? E que posso fazer para merecê-lo?
− É muito fácil. Ser sempre um bom menino.
− Mas eu não sou um bom menino?
− Não! Muito pelo contrário. Os bons meninos são obedientes, e você... Os bons meninos têm amor ao estudo e ao trabalho, enquanto você...
− Eu, ao contrário, sou vadio e levo a vida de um vagabundo o ano inteiro!
− Os bons meninos dizem sempre a verdade...
− E eu sempre digo mentiras.
− Os meninos bons não gostam de faltar à escola...
− E a escola me faz ficar com dores no corpo. Mas, daqui por diante, vou mudar muito.
− Você promete?
− Prometo. Quero me tornar um bom menino, pois quero ser também o amparo de meu pai... Onde estará meu pobre pai a esta hora?
− Não sei.
− Terei eu a sorte de ainda tornar a vê-lo e abraçá-lo?
− É possível. Mas eu não estou muito certa disso.
− A esta resposta, foi tal a alegria de Pinóquio que ele tomou as mãos da Fada e se pôs a beijá-las de tal modo que parecia fora de si. Depois, erguendo o rosto e olhando-a amorosamente, perguntou:
− Diga, mãezinha. Então não é verdade que você está morta?
− Claro que não - respondeu a Fada, sorrindo.
− Se a senhora soubesse a dor e o aperto na garganta que senti quando li: Aqui jaz...
− Eu sei. E foi por isso que o perdoei. A sinceridade da sua dor me fez ver que você tinha um bom coração. E, dos meninos de bom coração, embora um pouco malandros e mal orientados, pode-se sempre esperar alguma coisa, isto é, espera-se sempre que voltem ao bom caminho. Foi por isso que o procurei até aqui. Serei sua mãe.
− Oh, que bom! - exclamou Pinóquio cheio de alegria.
− Você será obediente e fará tudo o que eu mandar.
− Farei ... farei...
− A partir de amanhã - acrescentou a Fada - você irá à escola.
Pinóquio ficou um pouco menos alegre.
− Depois você escolherá uma profissão ou um ofício...
Pinóquio ficou sério.
− Que foi que você resmungou? - perguntou a Fada, ressentida.
− Eu estava dizendo - lamentou o boneco em voz baixa - que ir à escola já me parece um pouco tarde...
− Nada disso. Fique sabendo que para aprender, nunca é tarde...
− Mas eu não quero ter nem um ofício nem uma profissão...
− Por quê?
− Porque trabalhar me cansa.
− Meu filho - disse a Fada −, aqueles que pensam assim, quase sempre acabam na cadeia ou no hospital. O homem, é bom que você saiba, tenha ele nascido rico ou pobre, é obrigado, neste mundo, a fazer qualquer coisa, a ocupar-se, a trabalhar. Cuidado para não ser entregue ao ócio! O ócio é uma doença muito grave, que precisa ser curada o mais rapidamente possível. Do contrário, quando já estivermos crescidos, ela não terá cura.
Essas palavras impressionaram Pinóquio, que erguendo a cabeça, disse a Fada:
− Vou estudar, vou trabalhar, vou fazer tudo o que você mandar. A vida de boneco me cansou e quero ser um menino de carne e osso. A senhora me prometeu, não é?
− Sim, prometi. Mas tudo depende de você. (COLLODI, 1985, p. 129-130)
Qual a possibilidade de Pinóquio existir sem ter que ser de carne e osso - menino de verdade -, ou bom e sem nenhum “defeito moral”? O texto-leitura é endereçado a quem? Quais meninos e meninas de verdade? Sabermos que as pessoas estão tramadas por repertórios de saberes, desejos de aprendizagens e de (des)aprendizagens das normas, nos faz querer buscar o conforto das narrativas insossas com princípios iguais, meio sem graça e fim, para meninos e meninas de verdade. Estes são conformados nas lógicas biológicas normativas que se dizem para o corpo, gênero e sexualidade, em esforços que acontecem com a fita métrica normativa das fadas, mães, pais e da escola. Desvios acontecem, insubmissões comparecem, endereçamentos erram seu alvo e capturas também são tramadas e produz efeitos complexos que não estavam/estão previstos.
Elizabeth Ellsworth (2001) refletindo sobre cinema, currículo e educação, aproxima suas reflexões com as de Certeau (1994). Propõe pensar a condição da atividade que o praticante estabelece com o texto fílmico, e aqui nos faz aproximar a narrativa do Grilo Falante e da Fada com Pinóquio. O endereçamento, como também nos ensina Ellswort (2001), erra seu alvo. Em nossas insatisfações com as histórias que fazem boi dormir, os praticantes do mundo em atos de leitura, resistências e criação, abrem mão de privilégios para continuar sua caminhada. Segundo a autora:
O modo de endereçamento de um filme tem a ver, pois, com a necessidade de endereçar qualquer comunicação, texto ou ação para alguém. [...] Embora os públicos não possam ser simplesmente posicionados por um determinado modo de endereçamento, os modos de endereçamentos oferecem sim, sedutores estímulos e recompensas para que se assumam aquelas posições de gênero, status social, raça, nacionalidade, atitude, gosto, estilo às quais um determinado filme se endereça. [...] Não importa quanto o modo de endereçamento do filme tente construir uma posição fixa e coerente no interior do conhecimento, do gênero, da raça, da sexualidade, a partir da qual o filme deve ser lido: os espectadores reais sempre leram os filmes em direção contrária a seus modos de endereçamento, respondendo aos filmes a partir de lugares que são diferentes daqueles dos quais o filme fala ao espectador. (ELLSWORTH, 2001, p. 24-30)
Os modos de endereçamento oferecem sedutores estímulos e recompensas para os que se veem contemplados em suas narrativas. A população branca, cisheterossexual, cristã, meninos e meninas de verdade podem confirmar isso ao se verem refletidos e contemplados, sem nenhum esforço nessas tramas curriculares! Temos aprendido com os estudos com os currículos críticos que, pelas narrativas curriculares, também se é possível prescrever, inventar, fabricar, valorar, desqualificar, silenciar e apagar formas de subjetividades que não correspondem ao projeto político que qualifica vidas heterocentradas como a única forma legítima de existir. Os praticantes de um texto como currículo1, em atos de leitura, em práticas de poder que não se capitalizam no manuseio de um texto, introduzem uma arte de negociações, disputas, conversações e articulações com redes de saberes e de sentidos que dizem de uma vida e, de uma vida que pede passagem e condições de florescer (BUTLER, 2018).
Judith Butler (2018) afirma que uma vida só pode florescer nos extremos do fim do mundo quando compreendemos que a precariedade, nossa condição comum, buracos negros expostos, precisam ser problematizadas e enfrentadas nas micros e macropolíticas anais que se abrem em práticas de insubmissões. Nesses enfrentamentos que se fazem acontecer cotidianamente a favor de uma vida, redes de apoios em alianças anais podem contribuir com as condições de aparecimento e de políticas de ampliação de vidas e nascimentos.
A literatura pode ser um dos fios dessa aliança. As políticas anais de leituras de mundos novos buscam como exercício ético em (des)aprendizagens, garantir a expansão da vida e a qualificação de um mundo coabitado com nossas diferenças. Podemos escolher muitas coisas em nossas vidas, só não podemos, porque não somos donos do mundo, escolher com quem coabitar o planeta e as escolas. Por isso a precariedade, categoria de análise trabalhada por Butler (2018), assume importância para pensarmos os privilégios de algumas subjetividades e identidades que desfilam diante de nossos olhos nas narrativas curriculares como direito de aparecer, florescer e de serem enlutados. Só se enluta o que importa e Pinóquio faz parte dessa população que as biopolíticas não abrem mão. Frágeis ou não, fios de uma rede de apoio está constituída para acolher a presença infame de Pinóquio no mundo. Esforços não nos faltam, fadas, bruxas, personagens fabulados, escola! Mas nem todas as criaturas, aos modos de Pinóquio são vistas e sentidas desde sempre como vida. As crianças bixas sabem disso! A este respeito, Butler (2018) diz:
A razão por que alguém não vai ser passível de luto, ou já foi estabelecido como alguém que não deve ser passível de luto, é o fato de não haver uma estrutura ou um apoio que vá sustentar essa vida, o que implica a sua desvalorização como algo que, para os esquemas dominantes de valor, não vale a pena ser apoiado ou protegido enquanto vida. O próprio futuro da minha vida depende dessa condição de apoio, então, se não sou apoiado, a minha vida é estabelecida como algo tênue, precário e, nesse sentido, indigno de ser protegido da injúria e da perda e, portanto, não passível de luto. Se somente uma vida de luto pode ser valorizada, e valorizada ao longo do tempo, então apenas uma vida passível de luto vai ser candidata ao apoio social e econômico, a habitação, à assistência médica, ao emprego, ao direito de se expressar politicamente, às formas de reconhecimento social e às condições de atuação política. É preciso, por assim dizer, ser passível de luto antes de ser perdida, antes de qualquer dúvida sobre negligência ou abandono, e deve ser capaz de viver uma vida sabendo que a perda dessa vida que sou poderia ser lamentada, de forma que todas as medidas fossem tomadas para prevenir essa perda (BUTLER, 2018, p. 218).
Durante grande parte de nossas vidas, fomos e somos convocados por imagens, textos, histórias, discursos e narrativas que nos ensinam que tipo de vida será acolhida nos espaços e tempos de sociabilidade e nos processos formativos-educativos. Não podemos esquecer que para uma vida florescer, condições de existência e de qualificação de uma vida precisam ser garantidas. Pinóquio, personagem dos currículos da literatura infanto-juvenil, leitura de casa, da escola e do cinema, ensinou-nos, via corpo indisciplinado, corpo marcado, o que pode acontecer com os sujeitos que escapam do centro e que pelas margens de uma vida rebelde, perdem o direito de acessar a sua condição humana! A este respeito, Butler (2018, p. 50) dirá que: “Talvez o humano seja o nome que damos a essa própria negociação que surge de ser uma criatura viva entre criaturas e em meio a formas de vidas que estão além de nós”. Na história de Pinóquio, corpo marionete, corpo boneco, corpo no meio do caminho entre vegetal, bicho e humano, torna-se promessa e se faz acontecer quando aquele projeto de criança, tendo seu corpo e sua subjetividade ameaçados pela força desigual das instituições disciplinares e de controle, acolhe o compromisso de fazer a norma funcionar a favor de uma sociedade normativa.
Com a história de Pinóquio, compreendemos que outras narrativas e imagens, precisam nos ajudar qualificar e ampliar nossa compreensão de humano, humanidade e de coabitação.
Não podemos falar sobre um corpo sem saber o que sustenta esse corpo, e qual pode ser a sua relação com esse apoio - ou falta de apoio. Desse modo, o corpo é menos uma entidade do que um conjunto vivo de relações; o corpo não pode ser dissociado das condições ambientais de infraestrutura da sua vida e da sua ação. Sua ação é sempre uma ação condicionada, que é sentido do caráter histórico do corpo, além disso, humanos e outras criaturas dependem do apoio da infraestrutura, de maneira que isso expõe uma vulnerabilidade específica que temos quando ficamos sem apoio, quando as condições de infraestrutura começam a se decompor, ou quando nos encontramos radicalmente sem apoio em condições de precariedade (BUTLER, 2018, p. 72).
Problematizações curri(cu)lares e de privilégios
Muitos de nós, corpos e subjetividades em dissidências, queremos viver vidas fora do centro e abertas ao nascimento. Isso não significa que desejamos sentir à flor da pele a precariedade da vida sendo maximizada pela ausência de políticas de educação que criem condições de aparecimento, presenças e florescimentos. Não queremos, na condição de subjetividades dissidentes, ler apenas histórias que fazem o sistema sexo-gênero cumprir sua função na manutenção das estruturas de poder e de seus privilégios.
Não podemos esquecer, com Gayle Rubin (2017, p. 127), que “a sexualidade, assim como o gênero, é política. Ela está organizada em sistemas de poder que recompensam e incentivam alguns indivíduos e atividades, ao mesmo tempo que punem e suprimem outros”. As muitas histórias que contam por aí e que são reiteradas cotidianamente pelos currículos das literaturas disponibilizadas para as crianças, dizem de uma forma-sujeito fabricado e subjetivado nas políticas de educação. É possível acessarmos outras narrativas que nos ajudem a ampliar possibilidades de existências com um corpo, gênero e sexualidade dissidente fora da literatura e dos artefatos culturais oferecidos pela política educacional?
Para nós, sujeitos em dissidências, presenças insubmissas no mundo, as invisibilizações e apagamentos de nossas existências nas políticas de educação são os buracos negros que nos convocam a problematizar as narrativas curriculares e a descolonizarmos uma forma-criança narrada e reificada pela literatura, pelo sistema sexo-gênero. Com Tomaz Tadeu da Silva (1996, p. 165) aprendemos que “o currículo pode ser visto como um discurso que ao corporificar narrativas particulares sobre o indivíduo e a sociedade, nos constitui como sujeitos − e sujeitos também muito particulares”. Essas narrativas particulares, dos que se arrogam no direito de decidir sobre vidas que valem mais, lidas, contadas, vistas, ouvidas nos acompanham e nos dizem que não somos dignos de nelas sermos representados e apresentados. Nelas e por elas não fazemos falta, não somos sentidos, lembrados e enlutados. Há nestas histórias um esforço de nos convencer que para chegarmos ao paraíso dos que participam do banquete dos privilégios da heteronorma precisamos nos adequar aos modos “meninos e meninas de verdade” como fizeram Pinóquio acreditar. Tomaz Tadeu da Silva (1996, p. 177), alerta-nos para o fato que deveríamos,
Reconhecer o currículo como narrativa e reconhecer o currículo como constituído de múltiplas narrativas significa colocar a possibilidade de desconstruí-las como narrativas preferidas, como narrativas dominantes. Significa poder romper a trama que liga as narrativas dominantes, as formas dominantes de contar histórias, à produção de identidades e subjetividades sociais hegemônicas. As narrativas de currículo devem ser desconstruídas como estruturas que fecham possibilidades alternativas de leituras, que fecham as possibilidades de construção de identidades alternativas. Mas as narrativas podem também ser vistas como textos abertos, como histórias que podem ser inventadas, subvertidas, parodiadas, para contar histórias diferentes, plurais, múltiplas, histórias que se abram para a produção de identidades e subjetividades contra hegemônicas, de oposição.
Independentes das narrativas hegemônicas que se fizeram conhecidas em nossos processos educativos, por sermos bixas, sermos buracos negros, fazemos outras coisas com as histórias que nos contaram. Fazendo, riamos! Adoramos as caras de espanto de vocês. Em nossos processos criativos de oposição e exposição alteramos o rumo das histórias. Os textos escolarizados e não escolarizados ensinaram-nos, em seus esforços hegemônicos, que ali não poderíamos existir. Não existíamos na condição de dissidentes em gêneros e sexualidades como personagens e existências possíveis. Sem saber como fazer ecos e fazer furos nos currículos prescritivos, arriscávamos a fazer perguntas que ficaram sem respostas! E o menino que não quer ser menino de verdade aos modos de Pinóquio? Pode um menino ser filho de apenas pai? Toda criança só pode nascer de um corpo feminino? Pode um menino ter duas mães e ou dois pais? Pode um homem engravidar? Por que Gepeto, personagem da história de Pinóquio, fez um boneco e não engravidou? Os homens podem engravidar? Ou será que Gepeto engravidou e não quiseram nos contar? Mestre Cereja, carpinteiro que encontrou um pedaço de pau que chorava e ria como uma criança e que cedeu ao carpinteiro Gepeto é, o quê mesmo de Pinóquio? Não importa o que era e o que se passou entre Mestre Cereja e Gepeto. Perguntas crianceiras! Respostas... Ah.... Isso é uma outra história!
Com essas perguntas de crianças, vamos confirmando nossa hipótese de que um texto, circulando por aí, pode acertar seu alvo e encontrar um leitor que com ele afirme hierarquias e naturalize formas de existir. Um texto em sua fragilidade de existir, campo de intenções, projeções de futuro, não necessariamente irá encontrar o sujeito da passividade da leitura a quem ele se destina. Suas intenções, projeções e objetivos podem errar seu alvo. E erram! E, por saberem disso, a polícia de plantão das normas de gênero e sexualidade insistem em nos contar histórias quem fazem boi dormir, ensinando-nos e prescrevendo que “meninas vestem rosa e meninos vestem azul”, como a Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos proferiu em 2019.
As pessoas, porque não são o que esperamos, resistem. Resistindo inauguram a arte da criação e a capacidade de dizer não à força curricular destas narrativas. Michel de Certeau (1994, p. 273) chama nossa atenção para o fato de que “é sempre bom recordar, que não se deve tomar os outros por idiotas”. Com ele, fazemos um alerta à polícia de plantão e aos que não abrem mão de seus privilégios alimentados pela literatura infantil, “que não devemos tomar as crianças por idiotas”. As crianças não são vazios a serem preenchidos por uma única versão da história e por uma única forma-subjetividade prescrita pelos saberes da infância. As crianças, com as quais aliançamos esperanças, não são peças moldáveis como nos fizeram acreditar alguns discursos da aprendizagem, da pedagogia e dos currículos tradicionais. Tomaz Tadeu da Silva (1996, p. 176), a este respeito, nos dirá:
As narrativas são cruzadas pelas linhas de poder, mas elas não existem num campo tranquilo de imposição. Ao contar histórias contaminadas pelos significados dominantes, elas tentam estabelecer e fixar identidades hegemônicas. Entretanto, as identidades e subjetividades sociais existem num terreno de indeterminação, num terreno de significados flutuantes. Os significados produzidos e transportados pelas narrativas não são nunca fixos, decididos de uma vez por todas. O terreno do significado é um terreno de luta e contestação. Há, assim, uma luta pelo significado e pela narrativa. Através das narrativas, identidades hegemônicas são fixadas, formadas e moldadas, mas também contestadas, questionadas e disputadas.
Se nos cabe disputar, aqui estamos disputando narrativas curriculares e modos de narrar. Os sujeitos em atos de ler, potência como resistência no existir, produzindo efeitos no que lê, com o outro e como outro estabelecem modos próprios de consumo e produção.
Consumir um texto, nada tem a ver com passividade. É nisso que nos tomam como tolos quando, na verdade, rimos debochadamente dos currículos-genitálias. Praticantes de currículos-anais, fazemos surgirem espaços de pura ousadia nas leituras. Lemos Pinóquio ao ponto em que ele repete: “Estou farto, estou farto, estou farto”. A sensação é de fartura - fartura de genitálias, farturas de centralidades sexualizadas, farturas de dores do distanciamento. Mas, ao rirmos disso tudo, fazemos exercícios com nossos cus abertos. Lembramos que, ainda que o cu não enxergue, desde sempre a ele foi atribuído um olho. É ele, evidentemente, que é convocado às práticas de uma leitura aberta ao mundo; lemos, antes de tudo, com os olhos do cu. Daí o mundo se esburaqueia. Afinal, não podemos esquecer com as heterotopias de Michel Foucault (2015), com a instauração de um lugar próprio de Michel de Certeau (1994) e com as forças de contestação e disputas de Tomaz Tadeu da Silva (1996 e 2015), que a leitura como resistência antecede aos endereçamentos, ou seja, a resistência vem primeiro. Nesse sentido, compreendemos com Michel Foucault (2006, p. 183) que,
O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como riqueza ou bem. O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas os indivíduos não só circulam, mas estão sempre em posição de exercer este poder e de sofrer sua ação; nunca são alvo inerte ou consentido do poder, são sempre centros de transmissão. Em outros termos, o poder não se aplica aos indivíduos, passa por eles.
Um texto pensado, programado e distribuído para crianças, atinge jovens e adultos. Serve para um suposto alvo potencial e para ninguém. Um texto que busca afirmar as normas de gênero binário, no seu limite entre o masculino e feminino, e para a heterossexualidade compulsória com suas lógicas hierárquicas e seus privilégios, passam pelos sujeitos, produzindo no entre, no encontro e no acontecimento, atravessamentos e convocações que não podemos capitalizar e quantificar sua força. Nesses atravessamentos, constituídos de histórias dentro de histórias, fazemos coro a uma multidão que não se vê e se reconhece narrada em certas histórias. Ainda que compreendamos com Certeau (1994) que toda produção escrita e sua distribuição não garante o consenso no ato de ler, não podemos deixar de afirmar que esta produção está conectada em acordos de manutenção de poderes e privilégios oriundos desta aposta. Sabemos que as questões de gênero e sexualidade tornaram-se para as biopolíticas de governo da população que se afirma conservadora e fundamentalista, questão não grata e zona de perigo para quem se coloca nesta empreitada. Judth Butler (2018, p. 216) compreende por biopolítica,
[...] os poderes que organizam a vida, incluindo aqueles que expõem diferencialmente as vidas à condição precária como parte de uma administração maior das populações por meios governamentais e não governamentais, e que estabelece um conjunto de medidas para a valoração diferencial da vida em si.
Pensar o corpo do fim do mundo, as questões de gênero e sexualidade, como política na educação, tornou-se questão perigosa. Com nossas opções políticas, a favor de um mundo mais justo e igualitário, vamos nos tornando alvo de maledicências. Somos as bruxas no contemporâneo. A inquisição tem outros rostos. Cotidianamente se faz ouvir nas bravatas políticas, narrativas intolerantes e discursos de ódios que nos acusam de doutrinadores de criancinhas e jovens indefesos, aliados que estamos a uma “ideologia de gênero” e ao famoso “Kit Gay”. As crianças, jovens e professores em dissidências estão nas escolas e não foi este “Kit Gay” e a famosa “ideologia de gênero” que os produziram. Aprendemos com os estudos de currículo que suas narrativas são territórios em disputa e negociações. A este respeito, Tomaz Tadeu da Silva (1996, p. 176) diz que:
Podemos entender o conceito de narrativas para muito além daqueles gêneros formalmente conhecidos como tais: o romance, o conto, o filme, o drama. Existem muitas práticas discursivas não reconhecidas formalmente como narrativas, mas que trazem implícita uma história, encadeiam eventos no tempo, descrevem e posicionam personagens e atores, estabelecem um cenário, organizam os fatos num enredo ou trama. Para todos os efeitos, funcionam como narrativas.
Despregueando-nos: concluímos convocando
Se um texto pode errar seu alvo, como aqui buscamos inferir, bem sabemos que ele também pode ser usado como estratégia de controle da população. As pessoas buscam espaços formativos e criativos para si e para o outro que extrapolam os espaços institucionais. Não precisamos da autorização governamental para narrarmos!
Professores inventam histórias. Pais, mães e cuidadores inventam histórias não autorizadas pela polícia da moral e dos bons costumes. Crianças inventam histórias. Por sabermos da força das histórias nos processos educativos, contamos histórias. Algumas crianças reivindicam o direito de serem narradas em suas dissidências e também querem se ver como narrativas impressas circulando por aí, presente e acessível, nas estantes das livrarias, nas escolas e em nossas casas. Um texto, uma narrativa curricular, como bem nos ensinou Tomaz Tadeu da Silva, é só mais uma possibilidade de acesso a outras versões de nossa história. Quanto mais oferecemos narrativas plurais às crianças, mais confiantes ficamos com o direito de presença e aparecimento. Oferecermos narrativas plurais e dissidentes significa nos comprometermos com o direito à vida.
Pensar a educação enquanto práticas de expansão do buraco negro é, talvez, o propósito dessa escola-anus, de um currículo anal. Ao cu não cabe a passividade que insistem em lhe atribuir. Ao contrário, implica em engolir tudo de modo absurdo e devolver de modo ainda menos esperado. Tudo que sai pelas pregas do cu sai de modo irreconhecível. E isso é a potência das práticas curriculares. Não queremos ingerir histórias plastificadas. Ao nos depararmos com elas, é preciso que elas sejam deglutidas, que sejam processadas, destruídas quimicamente, como que por dentro, como que sem explicação. Pensar currículos anais envolvem a produção de uma escola como um grande cu que se diverte longamente em lançar a/à merda todas as práticas de plastificação da vida.
A hipótese que sustentou a escritura desse ensaio anal, como ato de ler, é de que a literatura infanto-juvenil, que aqui estamos chamando de buracos negros devoradores de mundo, por não estar nas políticas públicas, implicada com as questões de gênero e sexualidade e com as crianças, pouco se faz saber.
De seus usos, não temos notícias. Elas não comparecem nos processos educativos, como comparecem as narrativas do “Patinho feio”, “João e Maria”, “Cinderela”, “Pinóquio” entre outros títulos clássicos. Se as dissidências em gêneros e sexualidades não comparecem nestas narrativas, significa que não existimos e, se não existimos, não podemos reivindicar dignidade e respeito.