Introdução
Diante de um pensamento bem moderno que iguala termos díspares como ofício, trabalho, emprego, função, tarefa, cargo, e outras tantas designações de qualquer atividade humana proposital, sistemática e rotineira, faz-se digno de pensar, como primeira grande questão, o sentido, se ainda algum, do que seja “profissão”. E tanto mais, pelo que seu significado etimológico guarda: professar, conjunção do prefixo latino “pro”, pôr diante, pôr em aberto, com o verbo latino “fateri” (particípio passado fassus), aquiescer, confessar, ou seja, dizer ou declarar aberta e publicamente.
Elaborando este entendimento, em grande parte esquecido no uso ordinário, mas nem por isto omisso do sentido profundo, será possível uma segunda questão: “o que professa uma profissão?”. Examinando o pôr em aberto e publicamente aquiescido ou afirmado por aquele que professa uma profissão, estarão, então, reunidas as condições de possibilidade de se iniciar uma reflexão atual sobre o que e como ensinar a se professar uma profissão. Este ensinar e aprender ao mesmo tempo se fundamenta na paideia, que, na originariedade do pensamento grego antigo, se caracteriza por enfatizar o necessário e constante lidar com a incompletude, o inacabado do “ser” humano que se reconhece desde cedo em uma criança, em grego pais.
Em um ensaio anterior, investigamos a vocação como ressonância do ser-aí (DE CASTRO e DE CASTRO, 2018). Nele afirmamos que, “não havendo reconhecimento e valorização do “aí-ser” em que somos, em que se é, não há a escuta necessária ao chamado, à vocação por ser o que se é, não só como si-mesmo, mas também, em decorrência, como mim-mesmo; não se responde à vocação, enquanto ressonância do ser-aí. Aqui damos o passo seguinte, examinando a proveniência da essência da profissão, enquanto consequente dizer, discursar ou professar essa vocação. Antes a questão era a vocação e ouvir seu apelo por ser em modo próprio este ser que cada vez está em jogo para esse ente, o ser-aí. Agora a questão é no ser deste ente, ter de se haver com sua vocação por meio de um dizer, discursar ou professar como ente desse ser chamado a responder pelo seu próprio ser, chamado a professar uma profissão.
“Professar uma profissão”, embora expressão marginal nos dias de hoje, deve ser trazida da periferia que se encontra em relação às questões consideradas centrais na filosofia política e na sociologia do trabalho. A profundidade de seu desígnio, que no passado a associou à fé, a exemplo de “profissão de fé”, deve permitir reabilitá-la, fazendo ganhar o status devido através da sumária reflexão sobre essas três perguntas correlatas: o sentido do professar uma profissão?, o que professa uma profissão?, o que e como ensinar a professar uma profissão?.
Não nos interessa, neste ensaio, o sentido sociológico da palavra “profissão”, tão significativo na atualidade em sociologia do trabalho, enquanto ramo da sociologia propriamente dita. Buscamos o sentido originário, trazendo reflexões que amparam o surgimento do termo “profissão”, e que seguramente jamais cessaram de habitá-lo. Interessa-nos o sentido “originário”, enquanto aquilo a partir de onde e através do que “profissão” é o que é e como é1.
Sentido do professar uma profissão
Como já mencionado acima, certamente a etimologia da palavra nos indica algo desse originário sentido. Surge em francês em 1155, como palavra proveniente do latim professio, declaração pública de sua fé, de professus (“reconhecido”, “confessado”, “declarado”), por sua vez, particípio passado de profiteri, proferir claramente, declarar abertamente, testificar voluntariamente, reconhecer, enunciar publicamente. Interessante para nossa reflexão é que o verbo profiteri é composto do latim pro- (adiantar, avançar) e fateri (reconhecer sua falta, seu erro) do grego phatós e phátis (palavra, discurso). Entretanto, já no início do século XIV, ganha o sentido de tomar votos religiosos, mas também de métier e ofício, em uma época em que se reuniam em distintas guildas e corporações os artesãos de diferentes “profissões”. No século XVI, fixa-se no sentido de “fazer profissão de” (uma religião, um sentimento), surgindo como “profissão de fé” no final do século XVII. Finalmente desponta na forma do adjetivo “profissional”, só no século XIX, em uma tentativa de resgate da valorização dada a diferentes profissões pelas corporações de ofícios, agora diante da ameaça de redução do “humano”, que professa uma profissão, apenas ao trabalho de seus corpos pela apropriação em uma industrialização crescente de todo modo de produção. A indicação formal2 deste percurso etimológico, em língua latina (ERNOUT e MEILLET, 2001, p. 219) e francesa (DAUZAT et al, 1971, p. 605), deixa transparecer elementos primordiais para acesso ao sentido que mais nos interessa, que de modo ousado assim expressamos: professar uma profissão é pro-ferir o discurso do pro-jeto da compreensão do ser vigente em uma ocupação.
Professar uma profissão é “pro-ferir” o discurso de si mesmo em uma ocupação [Besorgen]3; é o “aí” como que dizendo4 “estou assim ocupado”, em que este “assim” deveria ser eco da vocação do ser-aí. Nesta descrição, também deve ser entendido “proferir”, em seu sentido etimológico do latim pro- (adiante) + ferre (levar, portar), ou seja: a profissão é o proferir o discurso de si mesmo neste pôr diante, ou pôr em aberto, no “pro-jetar” da compreensão do ser (Seinsverständnis) em uma ocupação. Profere-se o discurso de si mesmo, simultaneamente, tanto em afirmação de que aí-se-é e de como aí-se-é, quanto em negação de que aí-não-se-é e de como aí-não-se-é, em uma entente tensa ao ser o “aí”.
Redito de maneira ousada, professar uma profissão é proferir o discurso do projeto de poder-ser (Seinkönnen) do ser-aí (Dasein), enquanto compreensão do ser, tanto na verdade quanto na não-verdade5, nos modos tanto de propriedade (Eigentlichkeit) quanto de impropriedade (Uneigentlichkeit). Cada termo ou expressão dessa estrutura enunciativa do sentido de professar uma profissão requer um esclarecimento assim como sua composição e síntese estrutural.
Começando por compreensão ou entendimento do ser (Seinsverständnis) nesta articulação com discurso (Rede), nada mais esclarecedor do que uma citação do próprio Heidegger (2012a, p. 471, 473) que ratifica seu comentário que o ser-aí é “a sede do entendimento-do-ser6” (ibid., p. 49) e essas suas proposições correlatas, “já nos movemos sempre em um entendimento-do-ser” (ibid., p. 41) e “entendimento-do-ser é ele mesmo uma determinidade-do-ser [Seinsbestimmtheit] do Dasein” (ibid., p. 59):
No mais das vezes, o discurso se expressa e já se expressou sempre em palavras. O discurso é linguagem. Mas, no que foi expresso, já residem então cada vez entendimento e interpretação. A linguagem, como o ser-do-expresso, contém em si um ser-do-interpretado do entendimento-do-Dasein. Esse ser-do-interpretado, assim como a linguagem ela mesma, não se reduz ao ainda só subsistente, mas seu ser é ele mesmo conforme-ao-Dasein. O Dasein está de imediato e, dentro de certos limites, constantemente entregue a esse ser-do-interpretado; este regula e divide as possibilidades do entender mediano e do correspondente encontrar-se. No todo articulado de seus nexos-de-significação, o ser-do-expresso traz consigo um entendimento do mundo aberto e, cooriginariamente com ele, um entendimento do ser-do-Dasein dos outros e do cada vez próprio ser-em. O entendimento já assim depositado no ser-do-expresso concerne tanto ao ser-descoberto do ente tal como é cada vez alcançado ou transmitido, quanto ao correspondente entendimento de ser e às possibilidades e aos horizontes disponíveis para ulterior interpretação e articulação conceitual. (HEIDEGGER, 2012a, p.471-473)
Passando ao termo “fala” ou “discurso” (Rede), “ser existenciário (existenziale Sein) do poder-ser próprio do Dasein ele mesmo” (HEIDEGGER 2012a, p. 411), temos acesso a um dos fundamentos da “profissão”, como adiantar ou proferir um discurso ou falar aberta e publicamente, ou seja, “professá-la”. Tanto mais porque Rede (discurso) fundamenta Sprache (linguagem), e “linguagem é conjuntamente (zumal) a casa do Ser e a habitação da Essência do homem” (HEIDEGGER, 1995, p. 95). Sendo, pois, linguagem morada da existência (Existenz), podemos inferir, analogamente, o professar como moradia da vocação de onde dá-se uma profissão, portanto antes de seu exercício. Dito de outra maneira, há profissão porque há antes professar, há professar porque há antes proferir o discurso (logos) da vocação. Por conseguinte, profissão tem uma dimensão de profundidade até então não alcançada por nenhuma outra designação de aparente semelhança, como ofício, trabalho, emprego, função.
Mais ainda, “do ponto de vista existenciário, a fala é igualmente originária à disposição [Befindlichkeit] e ao compreender [Verstehen]” (HEIDEGGER, 2015, p.223). Professar uma profissão, enquanto proferir um discurso, se fundamenta igualmente em sua co-originariedade na afecção (Befindlichkeit) e no entendimento (Verstehen). A afecção não é opaca nem cega, e também não é muda. O que se professa como profissão ou o que se “projeta” (entwerfen), como veremos adiante, é sempre uma certa disposição ou afecção e uma certa compreensão ou entendimento. Como o ser-aí é professante em seu ser mesmo do “aí”, ele vive em significações e pode professar uma profissão enquanto estas mesmas. Para Heidegger, as significações já estão “aí”, já nos habitam, a título de afecções ou compreensões ou interpretações.
Discurso, como “professar”, é co-originário à disposição (Befindlichkeit), enquanto estar no acorde ou afinação a um humor (Stimmung). Nesta disposição em sintonia com o humor, o ser-aí já se põe aberto como “sendo”, já se profere em seu ser, que existindo tem de ser. Todavia, nesse pôr-se aberto ainda não está claro o de onde (Woher) e o para onde (Wohin) do professar, apenas o puro “que é” (Dass) mostra-se enquanto “que é e [comporta um] ter de ser” (HEIDEGGER, 1995, p. 194).
Na maior parte das vezes o ser-aí se esquiva ao ser que se abre na afinação do humor, e nesse deslocar-se justamente do ser afinado do “aí”, neste aí-não-se-é, esse “que é” negativo ganha a denominação de “estar-lançado” ou “ser-dejectado” (Geworfenheit, do verbo werfen projetar) em seu “aí”, indicando também a facticidade da responsabilidade, ou seja, de responder enquanto ser ato e fato “aí”, não de professar uma profissão. Nesse modo de “estar-lançado”, exprime-se a facticidade do ser abandonado a suas afecções. “Encontrar-se” (Befindlichkeit), “estar afectado”, não é um se autoperceber por um ato de observação, mas um se descobrir afectado (GREISCH, 1994, p. 181). O próprio da “dejecção” (Geworfenheit) é não se ver como tal, embora se tenha o sentimento de ser responsável pelo que parece ser, se tenha a ilusão de um “mim mesmo”, sujeito da cotidianidade, agente reprodutor do “a-gente” (das Man), obviamente não professante de nenhuma profissão, somente dos “outros”7.
Por outro lado, a fala [Rede] é também co-originária à compreensão (Verständnis) e a “articulação da compreensibilidade”8, e somente neste sentido é uma referência ao logos, como veremos. No compreender se dá existencialmente este modo de ser do ser-aí que é o poder-ser (Seinkönnen), o que significa que o ser-aí é primariamente um ser-possível (Möglichsein). Ou seja, o ser-aí é sempre o que pode ser e no modo de sua possibilidade. Esse poder-ser concerne os modos da ocupação dos entes que vêm ao encontro, a solicitude pelos outros, e em todos estes modos e desde sempre, o poder-ser em relação consigo mesmo, em virtude de si mesmo, desde o qual se é capaz de atender à vocação e profissão.
Na articulação desses dois existenciais, discurso e compreensão, co-originários do professar uma profissão, ou seja, na dada enunciação “o que discursa o projeto da compreensão de ser”, temos o “projeto” (Entwurf). Um pro-jetar, ou pro-ferir, que reúne o compreender e o discursar, constituindo a abertura do “aí” do ser-em-o-mundo como o “aí” de um poder-ser “proferidor”, “professador”. Justamente na mediação entre discurso e compreensão, o projeto na modalidade de professar uma profissão, é a estrutura existencial do ser do âmbito em que se move o poder-ser fático de uma profissão. Mas, o que é que está a professar uma profissão?, é a questão que veremos a seguir.
O que professa uma profissão?
Como pode aquele que professa uma profissão dar a sua profissão qualquer sentido, se esta não puder ser acolhida e reunida (logos) enquanto discurso (logos) de si mesmo, e posta adiante na forma de uma narrativa9? Entendido logos na interpretação de Heidegger (2012a, p. 113):
λόγος [logos] como discurso significa, ao contrário, algo assim como δηλούν, tornar manifesto aquilo de que “se discorre” no discurso. Aristóteles explicitou mais nitidamente essa função do discurso como άποφαίνεσθαι10. Ο λόγος faz ver algo (φαίνεσθαι), a saber, aquilo sobre o que se discorre e faz ver a quem discorre (voz media) e aos que discorrem uns com os outros. O discurso “faz ver” άπό... a partir daquilo mesmo de que discorre. No discurso (άπόφανσις), na medida em que é autêntico, o dito no discurso deve ser extraído daquilo sobre o que se discorre, de tal maneira que a comunicação por discurso torne manifesto no dito e, assim, acessível ao outro aquilo sobre o que se discorre.
Dado o sentido de professar uma profissão, elaborado anteriormente, cabe então, em seguida, a questão sobre aquilo que professa uma profissão? E a resposta imediata seria: a atualização do que profere o discurso do projeto da compreensão do ser em uma ocupação, no modo-de-ser (Seinsart) próprio do ser-aí. Entretanto, como impropriedade (Uneigentlichkeit) é um modo-de-ser ainda mais prevalecente na cotidianidade do ser-aí, a resposta a esta segunda questão exige investigar a impropriedade do ser-aí, enquanto constante negação à possibilidade de professar uma profissão.
Primeiramente deve-se assumir certas assertivas básicas retiradas do §9 de Ser e Tempo (2012a), sem as quais não é possível a argumentação a seguir. O ser-aí é o ente que sou cada vez. O ser deste ente é cada vez meu, na afirmação ou na negação de sua vocação e assim da profissão que professa. Como ente deste ser, ele está entregue a seu próprio ser, à sua vocação e ao exercício da profissão que professa. Os caracteres discernentes neste ente, como aqueles já mencionados (disposição, compreensão, discurso, etc), não são propriedades de um ente simplesmente dado, mas maneiras de ser possíveis para ele: todo ser tal e tal deste ente é primária e originariamente ser. Em conformidade com o caráter de ser-cada-vez-meu (Jemeinigkeit) deste ente, qualquer referência a ele deve conotar sempre um pronome pessoal, i.é “eu sou”. O uso desta conotação pode facilmente se converter em abandono do ser, abuso de si mesmo e devaneio em um “eu” imaginário, ao se ignorar a diferença ontológica entre ser e ente, ao se considerar este ente como um mim-mesmo, sujeito agente, de fato nada mais que um travesti de “a-gente” (das Man).
Na comunhão com essas assertivas, um passo a mais é reconhecer que cada vez o ser-aí é meu nessa ou naquela maneira de ser, já sempre decidido de alguma maneira em que forma o ser-aí é cada vez meu. O ser-aí é cada vez sua possibilidade mais própria, portanto sua vocação e profissão. Porque se comporta em relação a seu ser como seu poder-ser mais próprio, o ser-aí pode “escolher-se”, ter-se ganho ou ter-se perdido. Ou seja, ser-aí assim se dá no modo da propriedade, como aí-se-é, ou no modo da impropriedade como aí-não-se-é, na medida de seu poder-ser mais próprio. Dito em termos de nossa investigação, o que professa uma profissão é o ser-aí em sua possibilidade mais própria, sua vocação em aí-se-é. Inversamente, quando aí-não-se-é, se-é-a-gente, se-é-ninguém, nada se professa, ou se diria, se re-professa os “outros”. Neste último caso, no modo da impropriedade, cabe o alerta dado por Heidegger (2012a, p. 141): a impropriedade do ser-aí não significa um ser “menos” ou um grau de ser “inferior”, pelo contrário, a impropriedade pode determinar o ser-aí no que tem de mais concreto, em suas atividades, motivações, interesses e prazeres, no mais das vezes ressonando a pseudo-vocação de a-gente, professando a falsa profissão de a-gente.
Dada a prevalente insinuação da impropriedade em sua determinação do mais concreto “aí”, parece uma quimera professar uma profissão enquanto eco de uma vocação. Com efeito, é a ilusão e o devaneio do “mim-mesmo” que parecem preponderar; a ditadura do a-gente que afirma “mim-mesmo” como tirano, desenvolve-se através da dissolução do ser-aí próprio no convívio com os “outros”, a tal ponto que os “outros” desaparecem de cena enquanto distinguíveis e explícitos. A-gente está em toda parte em sustentação a atuação do mim-mesmo, antecipando sempre todo juízo e decisão. A-gente que responde à pergunta pelo “quem” do ser-aí cotidiano, afirmando um mim-mesmo, travesti do a-gente, é o “ninguém” que o ser-aí já se entregou sempre. A isso que parece sem saída ou solução, Heidegger (2012a, p. 735, 737) oferece uma reflexão:
Perdido em a-gente já fica cada vez decidido o imediato poder-ser factual do Dasein - as tarefas, as regras, as unidades de medida, a urgência e a amplitude do ser-no-mundo ocupado e preocupado-com-o-outro. A-gente apropriando-se dessas possibilidades-de-ser já as retirou sempre das mãos do Dasein. A-gente encobre mesmo a dispensa que ele em sigilo efetuou da escolha expressa dessas possibilidades. Permanece indeterminado quem “propriamente” escolhe. Esse ser arrastado sem escolha de ninguém pelo qual o Dasein se enreda na impropriedade só pode ser revertido se por si mesmo a partir da perda em a-gente o Dasein voltar a buscar-se a si mesmo. Retorno que, no entanto, deve ter o modo-de-ser cuja omissão fez que o Dasein se perdesse na impropriedade. A busca-de-si que retrocede a partir de a-gente, isto é, a modificação existencial de a-gente-ela-mesma para o ser-si-mesmo próprio, deve ser levada a cabo como um ir em busca de uma escolha. Mas ir em busca de uma escolha significa escolher essa escolha, decidir-se por um poder-ser a partir do próprio si-mesmo. No escolher a escolha, o Dasein se possibilita pela primeira vez o seu poder-ser próprio.
O pensamento antigo grego também oferece uma reflexão a esse mesmo impasse, a virtude (areté). Ao mesmo tempo que a caracteriza, abre uma discussão que atravessa séculos, sobre se é possível ensiná-la e como11. A virtude é a excelência ou a possibilidade extrema do “ser” humano. Uma definição concisa já no Górgias (505e1) de Platão assim é interpretada por António Caeiro (2002, p. 27): “a ‘excelência’ (areté) de cada coisa é arranjada e posta numa ordem (kósmos) através de uma estrutura organizativa (táxis)”. Assim, já em Platão, se tinha clareza de que a saída não era pelo “aperfeiçoamento” do “mim-mesmo” mas exclusivamente pela possibilidade extrema na abertura do ser-aí de se dar conjuntamente, em situações críticas e incontornáveis, a “organização estrutural” (táxis) e a “ordenação estrutural” (kósmos) capaz de atualização do “ser” humano na situação específica, seja de “fazimento” (poiesis) ou seja de “agimento” (praxis).
Portanto, a resposta que vem da antiguidade à questão “o que professa uma profissão?” é dada pela noção de areté, virtude, excelência ou possibilidade extrema de ser-aí, capaz de professar uma profissão em qualquer de suas atividades da vida ativa: o agir e o fazer. No agir, professa uma profissão quando em harmonia com a prudência (phronesis), ao passo que no fazer, professa uma profissão quando em harmonia com a arte (techne)12. Mas em qualquer que seja a atividade, desde que em harmonia com a phronesis ou com a techne, há poder-ser do ser-aí de professar uma profissão, ou seja, do que discursa o projeto da compreensão do ser. A questão então é quanto tornar real, ou realizar, essa areté e em especial a phronesis e a techne, ou seja a questão passa ser sobre a paideia.
Paideia - O que e como professar uma profissão
A primeira constatação que se faz dessa paideia antiga é a relevância do “ser” humano: ser-aí na plenitude das possibilidades de “ser”, apesar de “aí” indefinidamente “inacabado”13, enquanto “humano”. O sendo humano deste “ser”, está entregue a seu próprio ser, e seu poder-ser próprio ao que é e ao como professar uma profissão de acordo com sua vocação. No modo da impropriedade cai inteiramente absorto pela totalidade de entes e pela coexistência com “os outros” no a-gente; torna-se ninguém, sombra do “humano”, sem vocação e sem profissão, ou no delírio de apto a qualquer profissão.
A máxima do pensamento grego antigo que define “ser” humano como, zoon logon echon, “vivente dotado de linguagem” merece ser considerada em se tratando de paideia e de nossa questão: o que e como professar uma profissão. Essa antiga definição de “ser” humano já guarda em sua expressão a temática que refletimos, pois é possível “traduzir” o zoon logon echon, por “vivente professante” ou “vivente que professa”, sem distorcer de maneira alguma seu sentido originário, como será elaborado a seguir.
É indiscutível a relevância da definição de “ser” humano em se tratando de paideia, enquanto a ser lidado face a condição de “inacabado”, “incompleto”, referente exclusivamente ao “humano”, jamais ao “ser”. Outrossim, podemos dizer o mesmo em relação ao “vivente dotado de linguagem”: se há algo inacabado ou incompleto, a ser lidado pela paideia, este algo faltante, ou esta deficiência, não pode estar se referindo nem ao vivente (zoon, de zoe, vida, sempre integral), nem muito menos à linguagem (logos, sempre integral). Tanto zoe (vida) quanto logos (linguagem, razão, etc.) não admitem qualquer ausência em si, pois são em si a própria plenitude, assim como “ser” não admite “meio” ser. Isto, posto, o faltante ou inacabado só pode estar se referindo à alguma insuficiência na dotação de logos pelo zoon, na “logozificação” do vivente. O teor desta dotação ou medida de a-propriação do zoon pelo logos, é que vai justamente definir um vivente como “ser” humano.
Mas, é preciso cautela ao avançar uma argumentação sustentada pela tradução de palavras do pensamento grego antigo, como no caso, zoon e logos. Heidegger nota que zoe e zen, que traduzimos comumente por vida, tinha para a antiga língua grega o sentido de “surgir para…, desabrochar, abrir-se para o aberto” (HEIDEGGER, 1998, p. 108). Assim sendo, “o que a palavra grega zoon evoca está infinitamente distante do que se pensou modernamente acerca do animal” (HEIDEGGER, 1998, p. 108.), pois até os deuses os gregos chamaram de zoa, porque “são compenetrantes do olhar e, assim, os que aparecem” (HEIDEGGER, 1998, p. 108.). Em seu sentido originário, portanto, zoon evoca o que surge e se acha presente em seu surgir, e neste sentido se determina o animal, do que surge, resguardando-se, todavia, pelo fato de não deter a linguagem. Afirma-se, ao mesmo tempo, a completude do que surge, pois o surgir é completo em seu surgir, o que vale na tradução atual por “vivente”.
No tocante a logos, a dificuldade de se assegurar com precisão essa noção, para o pensamento grego antigo, é ainda mais árdua. Heidegger (2009, p. 15) interpreta o logos para os gregos como uma referência à fala, ao discurso e ao mesmo tempo ao falado, ao discursado, ou poderíamos dizer ao professar e ao professado, ou à profissão, este último enquanto indicativo do eco da vocação em ambos. “Fala na função básica de apophainesthai ou deloun, ‘um trazer-a-matéria-para-se-mostrar’ em falando sobre algo” (HEIDEGGER, 2009, p. 15.), enquanto tendência em direção a falar com outros, auto-expressar, ou diríamos, na mesma linha, “professar”. “Falando com outros ou comigo mesmo, trago aquilo que é endereçado a dação para mim de tal maneira que experimento, em falando, como a matéria parece” (HEIDEGGER, 2009, p. 15-16.).
Aristóteles afirma que “a alma desvela” e, segundo Heidegger (2012, p. 24), o faz antes de enumerar (HEIDEGGER, 2012, p. 21-22) o que denominava modos de desvelamento nos quais o ser-aí des-encobre o ente, na Ética a Nicômaco (VI, 2-6). Por conseguinte, o não estar encoberto é uma realização específica do ser-aí, “que tem seu ser na alma: aletheuei he psyche (a alma desvela)”. O tipo de desvelamento mais imediato é o falar sobre as coisas, que pode ser concebido como logos, que toma primariamente a função de desvelamento, aletheuein, mas distinguido dos cinco modos, enquanto logos (discurso) qua legein (falar). Os cinco modos de desvelamento são “meta logou (por meio do discurso) e ficam assim elencados na interpretação dada por Heidegger (2012b, p. 21-22) do texto de Aristóteles mencionado (VI, 3, 1139b15ss.):
Cinco são os modos, portanto, nos quais o ser-aí humano descerra o ente como atribuição e negação. E esses modos são: saber-fazer [techne] - na ocupação, na manipulação, na produção -, ciência [episteme], circunvisão [phronesis] - intelecção -, compreensão [sophia], suposição apreendedora [noûs].
Nessa determinação do “ser” humano, logon echon, um caráter fundamental do ser-aí é acusado: ser-um-com-o-outro, não no sentido de topológico, mas de ser-como-fala-um-com-outro, através de comunicação, refutação, confrontação. Nessa dotação da fala, logon echon, temos o campo de atuação da paideia para superar o que falta ao “ser” humano, inacabado enquanto humano. Nessa “posse” do logos, a paideia é a única possibilidade de superação da incompletude do humano, no cotidiano aí-não-se-é, a cada vez em que aí-se-é.
Essa superação, os gregos a entendiam como areté, possibilidade extrema do humano, a exemplo do título da obra do filósofo António Caeiro (2002). A areté, também traduzida por virtude ou excelência, é, segundo Caeiro (2002, p. 17-18), desde Platão, principalmente nos diálogos Protágoras e Górgias, fenomenalmente considerada como sendo, ao mesmo tempo, organização estrutural (táxis) e ordenação constitutiva (kósmos). Caeiro, em sua investigação, vai além de Platão até Aristóteles, identificando certo paralelismo entre ambos. Destaca, no entanto, em Aristóteles, “o horizonte do logos onde se pode constituir uma disposição da lucidez humana (psyche) que visa uma completude para a vida humana” (CAEIRO, 2002, p. 19), como se pode notar em termos bastante semelhantes ao dito acima.
À época de Sócrates, a virtude era um tema favorito em sua polêmica com os sofistas: o que é?, pode ser ensinada/aprendida?, se sim, como?. Com uma rara e dúbia exceção nos diálogos, a posição de Sócrates era de que a virtude não pode ser ensinada (DE CASTRO e SIQUEIRA-BATISTA, 2017). Então porque enveredar por este caminho, em se tratando de paideia? Pela simples razão que paideia não é ensino, nem educação e nem formação, nos termos atuais, como fica subentendido desde Sócrates até Aristóteles. E somente compreendendo o que está em jogo, a areté, a possibilidade extrema do humano, será possível apreender então o sentido de paideia, e ainda mais, em nosso caso, do que é e do como é professar uma profissão.
O tema é amplo e o espaço é curto. Tomaremos para análise isolada o terceiro modo de desvelamento, aletheuein, enquanto areté para Aristóteles, a phronesis, temperança, na tradução comum, ou circunvisão, como prefere Heidegger, ou ainda consciência situacional ou sensatez como prefere Caeiro. Todo e qualquer ato humano, para ser ato mesmo, é regido pela phronesis, enquanto “apercepção intuitiva (aisthesis) do momento oportuno (kairos) e da condição de possibilidade de fazer a escolha antecipada (proairesis), que é decisiva para a resolução de uma determinada situação humana (praxis)” (CAEIRO, 2002, p. 19).
A análise da phronesis é feita por Aristóteles na Ética a Nicômaco (VI, 5). Começa por qualificar o phronimos (ente circunvisivo) como , na tradução de Heidegger (2012b, p. 51), “alguém que pode refletir bem, apropriadamente (1140a25ss.)”, alguém que é bouleutikos (alguém que delibera), e especialmente que pode deliberar apropriadamente sobre “aquilo que é bom (pleno e perfeito) e que é, além do mais, bom auto, para ele mesmo, o deliberador”; “que é conducivo ao reto modo de ser do ser-aí como tal e como um todo”, ou seja, à maneira justa e própria de ser ser-aí. Logo, o telos da deliberação do phronimos é zoe ela mesma, não deliberando pelo que não pode ser de outra maneira da que é, nem do que ele mesmo não pode realizar. Enfim, na deliberação do phronimos o que ele tem em vista é ele mesmo e seu próprio agir, seu professar em termos do que ele não pode ser de outra maneira do que é; seu telos é o “ser” humano ele mesmo, o poder-ser próprio do ser-aí, o em virtude de que (Worumwillen) aí-se-é.
Dado que o “ser” humano é o visado pela phronesis, enquanto modo de desvelamento (aletheuein), isto só pode indicar que deve ser uma característica do “ser” humano estar encoberto em seu “ser” pelo “humano”, ou, dito de outra maneira, no encobrimento do “ser” pela cotidianidade14 do “aí”. “Por se haver perdido em a-gente, o Dasein tem de antes se achar. [...] ele deve ser “mostrado” em si mesmo em sua possível propriedade” (HEIDEGGER, 2012a, p. 737). A phronesis é esta possibilidade extrema do humano, esta virtude, este “poder-ser si-mesmo”, capaz de deliberação, de “escolher a escolha” por si mesmo, pois como afirma Heidegger (HEIDEGGER, 2012a, p. 737): “o Dasein [ser-aí] exige a atestação de um poder-ser si-mesmo que ele, segundo a possibilidade, já é cada vez.” Este poder-ser si-mesmo é possibilidade de desvelamento como phronesis, tendo como um de seus aspectos ou facetas, o que denominamos professar uma profissão de acordo com sua vocação, a ressonância de seu ser-aí. Mas qual seria o papel da paideia como condição de possibilidade dessa virtude, a phronesis?
A paideia se apresenta como ouvir15 a voz da consciência, nos termos que Heidegger nos apresenta (2012a, p. 739): “a consciência dá “algo” a entender, ela abre”. Ou seja, ela é o apelo da própria abertura do ser-aí a cada vez meu. “A análise mais penetrante da consciência a põe a descoberto como apelo16. O apelar é um modus do discurso que ressoa enquanto vocação a professar uma profissão.
“O apelo-da-consciência tem o caráter de uma intimação a que o Dasein assuma o seu mais-próprio poder-ser si-mesmo” (HEIDEGGER, 2012a, p. 741). De modo a que se dê a deliberação adequada à situação e a si mesmo no imperceptível deslocamento do noûs, o “notar que apreende o notado”, quinto modo de desvelamento, ao qual estão presentes todos os demais modos do aletheuein, pois de fato cada um é “um determinado modo de levar a termo o noein17 (pensar)” (HEIDEGGER, 2012b, p. 28).
Conclusão
Tentamos neste ensaio dar um passo a mais na investigação do móvel sob todos atos e fatos de ser-aí. Desta feita, continuamos o que foi alcançado no ensaio “Vocação, ressonância do ser-aí”, estendendo a reflexão à profissão, enquanto professar um aí-se-é que a vocação apela a propriamente ser. Criamos assim as condições para o exame do que seria a paideia grega entendida como “discurso” que habilita, ou re-possibilita, uma mutação da inteligência (noûs) doravante capaz de pensar (noein) segundo todos e quaisquer modos de desvelamento, em igualdade de atualização, ao professar uma profissão afinada à vocação.
Quando criança, somos muitas vezes questionados “o que queremos ser na vida?”. A questão deveria pôr à escuta em cada um seu próprio apelo à vocação por aí-ser, seu movimento natural de vivente possuidor de logos, para que desde já manifeste seu desejo de proferir-se “ser” humano, e em última instância exercer uma profissão que o profira como tal. Entretanto a resposta, qualquer que seja, é ainda insuficiente para a realização da realidade, da vigência do que aí-se-é em sua plenitude. Já os gregos reconheciam esta deficiência, esta incompletude, a ser lidada por uma paideia, que mais que instruir, mantivesse viva o chamado de cada um a “ser” humano em qualquer exercício, atividade, profissão deste “humano”, “vivente que possui logos”.