PROÊMIO
O presente ensaio faz alguns deslocamentos interpretativos da obra fundamental de Nietzsche Assim Falou Zaratustra2, considerado um texto filosófico da terceira fase do pensador. Toma-se como fio condutor o personagem central da obra, Zaratustra e seu processo de movimentação filosófica e educativa. Nietzsche não só apresenta a obra como filosófica, mas é possível percorrer, por seu universo de escrita, vários componentes interpretativos, inclusive o pedagógico.
Nesse sentido, Assim Falou Zaratustra também pode ser lida como um processo de formação, de aprendizado vivenciado pelo personagem central (Zaratustra). Zaratustra educa, não porque impõe regras, normas, condutas, leis, modos pragmáticos e pedagógicos. Não! Zaratustra educa pelo exercício processual singular, pelo exercício da experimentação de si e de sua filosofia. Com tal atividade destrona um modo de educação tão presente na modernidade, a educação universalista e utilitária. Em desacordo com sua época, sugere que se deve educar a si mesmo para manter-se afastado de todo tipo de embuste e coisificação, como forma de pensar a favor de outros modos de vida e de existência.
A obra não se torna importante somente por sua filosofia madura, nem por apresentar uma linguagem extremamente refinada e uma estilística avançada, mas, principalmente, porque apresenta um pensamento demolidor e construtor, que exercita a base mais afirmativa do pensamento de Nietzsche.
O texto objetiva explicitar, por meio do Prólogo3, aquilo que se chama fracasso pedagógico, estando ligado efetivamente aos experimentos iniciais de Zaratustra. Com isso, será indagado: Zaratustra sofre um fracasso pedagógico com o povo na praça do mercado? Como Zaratustra vivencia tal experiência? De outro modo, como essa imagem pode ser inspiradora para o seu leitor?
I
É importante destacar que o movimento inicial de Zaratustra no Prólogo é simbolizado pelos dez anos em que o mesmo fica na montanha, quando ao abandonar sua terra natal rompe com o conforto do lar para, então, aprender a amar a solidão. É a partir de um ambiente que no primeiro momento lhe parece estranho - a montanha - que ocorre o eco de um sublime espírito, que, pelo esforço e força de desfazer o desligamento com tudo que é comum, pode produzir e conduzir a si mesmo.
O "si mesmo" não é postulado como uma propriedade de que se dispõe e se toma como controle, ou mesmo uma estabilidade para uma identidade, não é algo enclausurado pelos seus valores, sem que isto queira demandar um itinerário fixado. Como num trabalho de reconstituição, de vigoramento, ele aflora outros sentidos. Alimenta-se outra intelectualidade sob o ponto de vista de outros sabores e odores, a sua paixão torna-se maior e grandiosa. É, por isso, que a nobreza é posta como critério distintivo que põe Zaratustra em um patamar afirmativo.
É na manifestação da retirada do lugar familiar, é na caracterização da extrapolação ao ver o que está vulgarizado pela palavra, pela linguagem ou pelo costume, que ele efetiva outro olhar: não mais ver de lado, ou de baixo. Mas é de cima da montanha que Zaratustra percebe o que é "vulgarizado", o "ritualizado" pelas crenças e verdades que podem ser postas em outros eixos, inclusive a sua própria vida. Ir para a montanha já implica um processo de reflexão, portanto, é com o olhar de quem está de cima, que a visão, os sentidos podem ser ampliados.
O que leva a dizer que o trabalho formativo não pode permitir ser viabilizado apenas de um lugar, de uma forma, de uma maneira, até porque isso não é possível, pois, quando se lida com o que é humano, escorre-se sempre pelos abismos. Ir para a montanha não é garantia, ele apenas quis dar mobilidade de constituir sobre si mesmo e sobre outros, a capacidade de ver em perspectiva, em experimento, já que, do "alto", o mundo, a vida podem ser configurados em pluralidades interpretativas, pois é com o voo do olhar, da reflexão que se podem transformar e criar - o "alto, "a montanha”, "o acima".
Nesse sentido, não podem ser compreendidos como valores superiores ao terreno, pois Zaratustra não fala por oposição, mas como metáfora de alguém que está imbuído por sentimentos mais vigorosos. Para tal, é necessário fazer certo desvio de tudo que parece reto e mergulhar no sinuoso e nas incertezas.
Portanto, a imagem metafórica da montanha mostra uma ampliação dos sentidos, ele vê em ângulos diferenciados, destacando que aquele que se permite caminhar e avançar sobre o seu si mesmo tem que estar preparado para ver as coisas sempre em outro foco. Não quer uma vida padrão, nem um método para ver o mundo da mesma forma. Impor esse tipo de conduta é matar todo o potencial criador de qualquer indivíduo.
Zaratustra aprendeu que a vida é um mar aberto, e aqueles que pretendem navegar na aventura de si mesmos devem compreender que as ondas sempre mudam. Por isso, não quer ser fixado.
Zaratustra abre-se como educador no instante em que inicia seu processo de experimentação de si. E ao se permitir fazer uso também da narrativa, visto que, não é só ele quem narra, caberia até mesmo perguntar quem é o narrador em Zaratustra, pois são tantos os que narram, mas ao contar seus dramas, sua história, sua vivência, mostra sua compreensão de mundo, de vida, faz, ao mesmo tempo, a sua crítica sobre todas as coisas que percebe ao seu redor.
Após esse processo de amadurecimento não é à toa que, numa certa manhã, faz todo um discurso de agradecimento ao sol4 e, como ele, diz que precisa doar o seu supérfluo (Überflüssig), conta da necessidade de descer, pois está excedendo, há uma inexorável vibração em seu coração. Como o sol que ao entardecer deve partir, descer, ele quer isso. É exatamente por isso que: (...) devo baixar à profundeza: como fazes à noite, quando vais para atrás do oceano e levas a luz também ao mundo inferior, ó astro opulente (überreich) (NIETZSCHE, 2011, p. 11). Quer a bênção deste astro iluminado.
Nota-se que Zaratustra não pergunta sobre a conservação e é essa sua vontade de amor que escorrega sobre si mesmo, seu compromisso se torna singular com a vida e, por isso, cumpre-lhe acolher a morte no seu seio5, ou seja, ama o desaparecer, aqueles que não se preservam, que transbordam, que vão até o abismo, que se lançam para a vida, para o desconhecido, que não têm medo do erro. Porque, acima de tudo, amam a vida e sabem precipitar-se. Ele ama a sua própria descida.
Seu espírito está deliciado com outras intuições, interpretações, isto é claramente manifestado na alegria que sente com a luz e com o brilho, porque parece que ele mesmo viveu uma grande transformação, uma espécie de passagem (Übergang) do sol às cinzas e ao fogo, ou seja, ele mostra o seu cruzamento de formação; em vez das cinzas que levara para a montanha, ele, agora, quer levar fogo ao vale, sugerindo que o homem, por meio de sua força criadora, é mutável, está sempre aprendendo.
O seu coração está transformado, por isso, quer doar o seu supérfluo, que não pode ser visto como os restos de Zaratustra, mas é a dinâmica da sua própria vontade de vida. Neste primeiro momento, Zaratustra se mostra como um doador.
Ele discute, nessas suas primeiras narrativas, a experimentação como fator que viabiliza a superação6 do peculiar, da abstração das verdades, da crença dogmatizada, da mesquinharia, da falta de riqueza, da vida padronizada, dos ideais absolutizados, enfim, deve superar tudo que torne o homem sem querer.
Portanto, todo o seu perfil afirmativo e criador destacado é dominado não pela carência, mas pela abundância (Überfluss)7, pelo excesso de amor. Ao querer descer de sua montanha, ele remete à ideia de rasgar novamente o que é cotidiano, da convivência comum, mas isto não é feito por capricho, nem porque cansou de sua solidão, de sua sabedoria, ou de si mesmo, o que só o deixaria ser mais um homem nivelado. Ele identifica a sua segurança, que não é uma segurança qualquer, que esteja, por exemplo, calcada na produção material ou mesmo em verdades absolutas. Mas ela está ligada à mudança de perspectiva, por isso não quer esquivar-se do seu ocaso. E diz: devo ter o meu ocaso.8
Ele apresenta a queda, o seu rebaixamento, o seu declínio (Untergang), mas não esquece de apresentar também a sua passagem (Übergang), pois o saber é destacado na capacidade de aceitar o mais pesado para surgir a leveza, ou seja, essa vontade de ocaso de Zaratustra visa à dissolução, à destruição, se precipitar, ir ao fundo do mais escuro, no sentido de escapar de si mesmo e alcançar-se novamente com outro rosto e com um novo olhar, mais íntimo e profundo. Pois, o aprendizado e a educação, para serem significativos, não se resumem a resultados quantitativos, há a necessidade de que o indivíduo e até mesmo a cultura, em que ele esteja inserido, se proponham a aceitar o divergente, o contraditório, a profundeza, o conflito, até mesmo aquilo que não quer ser visto. É dessa forma que a vida quer caminhar no limiar da destruição e da construção. O feio, o desconhecido, o nebuloso devem ser vividos pois fazem parte do experimento vital.
Desse modo, há que se mergulhar no labirinto existencial, do que é fracasso, do que não tem riqueza. Mas isso não quer dizer que Zaratustra queira ser visto como mais profundo ou mais prudente do que os outros homens9, pois o que o diferencia não é o seu orgulho ou a sua avidez, mas, a sua capacidade de pontuar outro tipo de razão que não seja esta que se contente com a banalidade da vida, ou seja, o seu tipo de razão não aceita a objetividade exacerbada, o modo calculista de viver, pois isso só torna o homem pequeno.
A razão zaratustriana se entranha por uma rede que duela e anseia por uma justificação da destruição geradora, que se elabora e se cria diante do fogo da vida, portanto, não é uma razão objetivada, divinizada, mas inventiva.
Vê-se que o declínio ensina dois movimentos significativos que se configuram conjuntamente: um é o desamor, a ruína, e outro, a travessia, a passagem. A vida se sacrifica porque visa à superação, pois é aniquilando que se pode criar. O lado trágico da vida não pode ser encoberto, ao contrário, deve ser afirmado, pois é através dele que se pode compreender o ponto diverso da constituição humana.
Dessa forma, o mundo pode parecer aberto, para que ele possa ser interpretado e percorrido. Tem-se que desaprender os esquemas que foram inculcados e impostos a todos nós.
Assim, o personagem central insere uma dinâmica a respeito da formação, esta não pode se contentar com as coisas menores, mas nem por isso deve desviar-se delas, pois, elas devem ser o móvel de exigência para que o indivíduo faça a sua ultrapassagem, inclusive do que há de pequeno em si mesmo. É, por isso, que Zaratustra coloca a importância de sentir o desprezo para que se possa alcançar o verdadeiro sentido do declínio.
O aprendizado que visa ser demonstrado no declínio é que a sede pela embriaguez da vida, a profusão de conflitos, as necessidades, a procura por ruídos e ruínas podem levar o indivíduo a dizer sempre mais do que antes, porque o segredo de toda grandeza está mesmo em saber conviver com o perigo.
Há, portanto, um contramodelo formativo: se a formação comum quer a solidez, desviar-se do horror, quer configurar certezas, encontrar o progresso, por outro lado, o homem torna-se cada vez mais distinto da contradição, do ocaso, da insegurança e do fracasso, tornando-se um indivíduo fragilizado.
Desse modo, a ideia de formação posta pelo Prólogo não pretende levar ninguém à conformidade. Mesmo se há ideias que mobilizem a superação, isto não quer dizer que se queira fixar uma natureza, pois o próprio sentido de superação não está aprisionado em si mesmo ou na chegada de um telos.
A superação é movimento pelo qual o homem é capaz de superar o que está aí, o que parece fixado; é dessa forma que se pode fomentar a ideia de uma formação para além da formação solidificada, perenizada em normas, leis e deveres já pré-estabelecidos e fora daquele que o constrói.
Nesse processo, mesmo Zaratustra tendo certa segurança da sua própria conduta, não deixa de perguntar para si mesmo: como conviver com os homens sem se perder? Ou refazendo a pergunta: como conviver com um tipo de cultura dos modernos sem se perder? Há um certo receio a respeito de sua descida, mas este será o seu desafio, pois entende que o homem que pretende ver o abismo deve ter forças para ver o abismo de si mesmo. E decide que quer doar um presente para os homens, mas tal doação não vem por esmola.
Entretanto, o que leva Zaratustra a querer estar entre os homens, quando anteriormente isto pode ter sido o motivo de seu afastamento? O que o faz sentir a necessidade de mãos estendidas? O que o faz querer doar? O que está em excesso?
Isso nos leva a pensar que a formação de Zaratustra insiste na necessidade de que o homem aprenda a amar mesmo aquilo que parece fora de lugar, só dessa forma pode construir uma excelência. Por isso, a sua ideia de ensinar está ligada àquilo que está excedendo. Então, nos inspira a pensar: se o ensinar tem o seu sentido a partir do excesso, é porque aquele que se põe como educador, ou mesmo que se põe a trocar experiências, antes de tudo deve ser educado, cultivado, para favorecer inspirações, para que seja capaz de instigar a grandeza, a exuberância, especialmente, para si mesmo.
A composição Zaratustriana do Prólogo foge a qualquer tipo de formação para o rebanho; é por isso que ele inspira a necessária atividade de se sujar as mãos, o corpo, tornando-se limpo também pela pobreza, naquilo que é feio, pois é assim que a vida se quer. É na junção da beleza e do horror que o homem pode sentir ainda caos em si mesmo. É na junção da alegria e da tristeza que a vida fomenta seus movimentos.
Então pergunta-se: No Prólogo, Zaratustra se mostra com um ar professoral? Não, como diz Scarlett Marton: as posições que avança tampouco se baseiam em argumentos ou razões; assentam-se em vivências. (...) Recusando teorias e doutrinas, rejeitando a erudição, ele sempre apela para sua experiência singular (MARTON, 2001, p. 29). Antes as suas lições são para si mesmo. Por isso, não é como um condutor de alguém que obtém a verdade, mas como um provocador, que conta a sua própria história diante do experimento de outras histórias, porque ele fala da história das ideias e da cultura. É assim que ele se mostra, e como tal quer fazer o declínio para ensinar aos homens o sentido do seu “ser”.
Zaratustra sem nenhum ar professoral nos mostra a imagem da generosidade do pensamento, de alguém que visa doar um presente, que quer trazer um brinde e não imposições, dogmas ou verdades a ser ensinadas. Mas como fazer esse comunicado aos homens? De que forma pode fazer o seu anúncio?
II
No Prólogo, como se pode notar, nos discursos sobre o além-do-homem10 (Übermensch) e o último homem11, Zaratustra realizou movimentos de ensino-aprendizagem significativos. O personagem entende que o seu ensinamento, naquele momento, não pode ser compreendido, os ouvidos do povo do mercado estão embotados. Ele aprende que deve selecionar seus leitores e decide não mais falar para o povo, é necessário discernir o público para consequentemente discernir a mensagem.
O povo não será capaz de compreendê-lo, pois é incapaz de saber o que é grandeza, uma vez que está mais próximo do lodo, da bajulação, do entretenimento, vivendo sob o comando de um niilismo12 reativo.
Para esses homens do entretenimento não há significado nenhum na mensagem de superação, de travessia, de ultrapassagem que Zaratustra argumenta. E como podem realmente ouvi-lo, se ainda não sabem o que é excelência? Pois o homem das letras, o erudito, não passa de um semiculto, de um filisteu e todo o seu saber não foi suficiente para superar o animal bestial que ainda está escondido em si, da mesma forma que toda a sua vestimenta, seu esconderijo dado pela cultura, só faz torná-lo pequeno ao achar que a razão pode levá-lo ao topo do mundo. Esse homem é digno ainda de riso. Esses homens não têm descoberta, não têm necessidade de pensar, de trabalhar a criação, antes, são homens que mergulham no espetáculo e na alienação de suas próprias vidas, negando para si mesmos a possibilidade de se perceber diferentes, isso Zaratustra aprende. Contudo, é este pensar que os faz saltitar de um lado para o outro, sem objetivos, perdidos entre cores e máscaras, entre disfarces e crenças, entre demônios e deuses.
Zaratustra reconhece que não soube fazer uma boa escolha. E entende que os homens do mercado13 estavam preocupados com a tagarelice, com a banalidade, com o conforto momentâneo, com os gestos rudes. E, por isso, se apresentavam de maneira arrogante e indiferente. Então, se, no primeiro momento, o seu ensino era para todos, no final do seu discurso ele se mostra mais seletivo.
Zaratustra compreende que a tarefa de vencer o niilismo pode ser negada pelo bem-estar prometido, pelo prazer da diversão do mundo moderno. Assim, o fracasso de Zaratustra é um "aparente fracasso" ou um "fracasso parcial", já que a partir dele houve um aprendizado: ele aprende que o homem com quem estava dialogando ainda não está preparado para ouvi-lo e entendê-lo; o fenômeno da banalidade, os gestos vulgares são algo marcado na cultura moderna e isso ele pretende evidenciar, pois este é um projeto de vida da cultura massificada. Essa figura pequena é um sintoma de total decadência14, e, portanto, a tarefa formativa/cultural de nosso tempo se torna cada vez mais urgente, já que a degradação e a perspectiva desestruturante tomam conta de todos os ramos da vida, até mesmo no aspecto valorativo, moral e ético.
No fundo, o maior fracasso foi dos homens do mercado, que não compreenderam sua comunicação, e não propriamente de Zaratustra. Com essa experiência com o povo do mercado, Zaratustra também aprende que existe outro modo de compreensão da vida e que a sua interpretação não poderia ser entendida naquele momento, existia outra demanda de interesses, o que nos leva a entender que muitas vezes o professor impõe a sua verdade, a sua interpretação de mundo e negligencia outras interpretações.
A comunicação foi fundamentalmente formativa, tanto para ele como para seus leitores, em um duplo movimento: no primeiro, Zaratustra é educado pelo "fracasso" de sua comunicação, que não foi em si um fracasso; no segundo, ele nos educa porque nos leva a pensar sobre que perspectiva o homem está inserido e em que medida quer avançar sobre si mesmo, ou seja, se quer ainda o rastejante, o liquidado em amor e paixão, ou se quer ter uma vontade afirmativa.
O sentido afetivo que traz o diálogo zaratustriano é forte, desconcertante, apresenta o que ainda se vive, ao mesmo tempo em que mostra que o homem moderno deve assumir a sua autodeterminação. Há cada vez mais a necessidade de projetar um ser humano que possa estar preparado para uma tarefa de grande responsabilidade. Ainda, o diálogo com o povo do mercado é formativo uma vez que Zaratustra entende que a sua comunicação está para além daquele homem do presente.
Agora, no final do Prólogo, não se mostra mais como um doador, um presenteador, mas como um denunciador, um crítico. Aprende que sua comunicação não é para aqueles homens de gestos vulgares, que estalam as línguas, ou seja, demarca a distância sobre o homem do seu tempo, mostrando que seu diálogo é extemporâneo. Contudo, reconhece que, apesar de tudo, sua alma está serena, embora o povo ache que ele é apenas um zombador. Mudado, pelo seu próprio experimento, dá-se conta de si e dos outros, e, portanto, educa-se, e, por outro lado, inspira aqueles com disposição para educar-se também.
III
Depois de presenciar uma cena com o povo, aparece um saltimbanco que caminha sobre a corda que está entre duas torres, suspensa sobre a praça e o povo; no meio da corda vem um bufão exigindo que o saltimbanco saia do caminho, mas este se aproxima e pula por cima dele fazendo-o perder o equilíbrio. É exatamente perto de Zaratustra que o saltimbanco se "espatifa" no chão. Após este fato, todo o povo começa a sair da praça, mas Zaratustra não se move. Este será, então, o primeiro companheiro de Zaratustra, embora morto. Ao anoitecer, a praça do mercado fica envolta em uma grande escuridão, configurando a primeira escuridão por que passa o personagem central, mas Zaratustra permanece sentado, e sobre a noite vem um vento frio. Ele resolve levantar e diz:
Em verdade, uma bela pescaria teve hoje Zaratustra! Nenhum homem pescou, e sim um cadáver". Inquietante é a existência humana, e ainda sem sentido algum: um palhaço pode lhe ser uma fatalidade. Quero ensinar aos homens o sentido do seu ser: que é o super-homem, o raio vindo da negra nuvem homem. Mas ainda me acho longe deles, e meu sentido não fala a seus sentidos.(NIETZSCHE, 2011, p. 21)
A sua mensagem não é para aquele momento. Assim, toda a primeira parte é um presente que está no futuro. Nesta passagem, é importante notar que, curiosamente, aquele cadáver, o homem morto, suscitou ao Zaratustra reflexão: dialogou com ele, fez meditações, pois ele disse muita coisa da condição humana.
O cadáver é uma metáfora utilizada por Zaratustra para dizer que os homens com quem tentou dialogar, comunicar uma certa sabedoria, estão fechados em si mesmos, enclausurados em suas concepções, estão efetivamente mortos para saber receber outras vivências, sentir outras experiências.
Toda a sua tentativa para descrever e demonstrar uma existência liberta que pudesse conduzir o homem para o seu próprio destino não fora compreendida. Sendo assim, o cadáver é o homem que perdeu os sentidos, a sensibilidade, é o tipo acabado, incapacitado de fazer aberturas. Ele vai se dando conta da sua distância diante daqueles homens do mercado, que já estão fossilizados em seus saberes.
Mas, no fundo, gostaria de dialogar com um homem aberto para a vida, porém, eis que se abateu sobre ele um morto, o tipo moderno, que já não pensa, não quer discutir, não tem nenhuma tensão dentro de si, por isso mesmo é um cadáver. Zaratustra o põe nas costas e começa a caminhar. Após poucos passos, um homem o cerca e murmura algo em seu ouvido. Quem fala é o bufão, que pede para Zaratustra deixar a cidade o mais depressa possível, pois são muitos os que o odeiam. Odeiam-te os bons e justos, e te chamam de seu inimigo e desprezador; odeiam-te os crentes da verdadeira fé, e te chamam o perigo para a multidão (NIETZSCHE, 2011, p. 21).
Zaratustra percebe que seu discurso chegou a ser inoportuno, indesejado. O bufão se põe como aquele que representa o corpo do último-homem. E, sob o cenário da diversão, onde o homem se encontra, Zaratustra encontra outra “verdade”. Ele demora, reflete, não se deixa ser sucumbido. Por isso, dorme e acorda sob a aurora. Admirado, olha a floresta, sente também o silêncio, e olha para si mesmo. Levanta depressa e vê uma nova verdade, ou seja, aprende que de companheiros ele precisa, mas não mortos, pois não são discípulos submissos, sem voz, sem fala, que ele quer.
Uma luz raiou em mim: de companheiros necessito, de vivos - não de mortos e cadáveres, que levo comigo para onde quero ir. Mas de companheiros vivos necessito, que me sugam porque querem seguir a si mesmos (...). Companheiros é o que busca o criador, não cadáveres, e tampouco rebanhos e crentes. Aqueles que criam juntamente com ele busca o criador, que escrevam novos valores e novas tábuas (...) (NIETZSCHE, 2011, p. 24).
Nesse contexto, Zaratustra reporta-se para o perfil do afirmador e criador, deste ele pretende agora se tornar companheiro. Ou seja, longe da massa, daquele tipo uniforme, pois estes não podem ser seus discípulos. Zaratustra não é nenhum pastor e não quer ser nenhum rebanho. Não deverei ser pastor, nem coveiro. Jamais tornarei a me dirigir ao povo; pela última vez, falei com um morto, e diz ainda: Quero juntar-me aos que criam, que colhem, que festejam (...) (NIETZSCHE, 2011, p. 24).
O conteúdo formativo de Zaratustra é exemplar, pois aquele que pretende ser livre e senhor não pode também aprisionar, visto que este feito seria a sua própria prisão. Não quer companheiros mortos, mas vivos, que o sigam, porque antes de tudo deseja seguir a si mesmo. O seu aparente fracasso ou o seu fracasso parcial lhe revelou outra perspectiva de relação, e, portanto, de formação, não quer ser um cão de rebanho. O seu papel formativo nesta fala é colocar muitos para fora do rebanho, é neste sentido que se faz educativa.
Agora, quer unir-se aos que criam e não ao povo. Portanto, pode-se dizer que do aparente ou parcial fracasso emergiu um novo aprendizado, ele educou-se. O educador, pode-se dizer, a partir dessa experiência de Zaratustra, não pode querer rebanhos, antes, o mestre deve ser a favor de que os discípulos o superem, pois os crentes, os servidores, são de certa forma como cadáveres que precisam ser carregados. O mestre deve apreciar companheiros vivos, instigantes, descobridores, pois, dessa forma, eles podem trocar experiências e vivências.
Zaratustra "aprende" gradativamente a necessidade de selecionar e sai da perspectiva de um doador para um homem mais prudente. Como mestre não pretende ser divinizado, nem muito menos imortalizado. Antes de tudo, ele quer "sucumbir" e o discípulo em justa medida deve saber assassiná-lo para poder avançar, ir adiante. Não é como um sujeito objetivado que quer ser visto, nem como uma figura paterna, com uma voz do comando, da norma e da lei. Pois, o sujeito que deseja escrever a sua singularidade deve necessariamente sustentar sua palavra, orientar-se por si mesmo, elaborar seus sinais, efetivar sua passagem. Nesse caso, Zaratustra tenta justificar os criadores, sem idealizações: eles são inventores, sobretudo de si mesmos.
No último item do Prólogo, ele fala do meio-dia, hora dos mais criativos, dos mais seletos: seria o momento da tomada de consciência, em que ele vai ter que passar por outras experiências e tomar outras atitudes. Zaratustra fala com seus animais, a águia e a serpente, já remetendo à noção do eterno retorno15. Em círculos, a águia está com uma serpente enrolada no pescoço, não como inimiga, mas como amiga, como numa aliança, simbolizando de maneira mais radical a superação de todas as dualidades. E assim o ocaso de Zaratustra é iniciado.