Pensamos que a única situação digna neste momento é a dos homens que pensam e trabalham e que nos vários domínios da atividade, fora de ilusões e quimeras, preparam o futuro. Todos os que são solidários com o Portugal velho, nacionalista, isolado, cheio de glória e prestígio, mas sem vida mental e vida de espírito, são para nós solidários com a morte. São mortos da pior morte: que é a morte da inteligência e da razão, a morte do espírito.
José Marinho, Considerações sobre uma apoteose.
Dr. Agostinho da Silva, um dos mais brilhantes espíritos da nova geração. (...) um nome conhecido nos domínios da alta cultura pelos seus trabalhos de filologia clássica e nos meios republicanos pelos seus excelentes artigos que a revista Seara Nova costuma publicar. O Dr. Agostinho da Silva fustiga com ironia e justiça os aspectos característicos do atraso mental e social da vida portuguesa.
Diário da Noite, numa nota intitulada “Dr. Agostinho da Silva”, 26 de maio de 1933.
1. Considerações iniciais
Carta aos velhos latinistas, com que Agostinho da Silva inaugura a sua colaboração na Seara Nova, em fins de outubro de 1928, é já texto saído da pena de um cambiado autor, cuja linha de pensamento e ação deslocara-se das teses antiliberais, monárquicas e nacionalistas do Integralismo Lusitano - movimento político e de renovação intelectual pelo qual andara entre 1925 e 19271 - para o programa democrático, republicano e europeísta do grupo Seara Nova, a que permaneceria ligado por mais de dez anos. Pretendemos, com este estudo, reconstituir o itinerário percorrido pelo jovem pensador, sobretudo através dos artigos que foi publicando, no período que veio de 1928 a 1933, naquela célebre “revista de doutrina e crítica”, período em que deixa de ser o engajado e polêmico filólogo clássico para tornar-se o humanista militante e crítico, numa postura que, à guisa de sólida base, sempre definirá o seu espírito, não obstante as profundas transformações por que posteriormente passará o seu pensamento.
Inspirado no gênero em que se escolara, o das sátiras latinas - outrora talhadas por Lucílio, Horácio e Pérsio, Juvenal, Petrônio e Marcial, entre outros -, e nos seus recursos estilísticos e retóricos,2 deparamo-nos, em Carta aos velhos latinistas, com um articulista satírico e sarcástico, mordaz, ácido e vigorosamente polêmico, para não dizer detrator e ofensivo; um recém formado filólogo que principia por se votar ao papel de crítico obstinado do estado “vergonhoso” da Filologia Clássica em Portugal, disparando contra todos os especialistas da área que estavam em descompasso com as renovadoras perspectivas dos novos estudos e com os métodos de ensino e aprendizado modernos.
Dirigindo-se ao “douto cônego”, ao “nunca assaz louvado latinista” e ao sectário da gramática do Padre Miranda, que caça nos autores “os casos raros de sintaxe”; pedindo-lhes um momento de atenção para troca de ideias e se dizendo seu amigo,
(...) só pretendo que me ouçais um pouco e que os vossos ouvidos e a vossa inteligência não sejam inteiramente surdos às minhas palavras. (...) as ideias que eu vos quero comunicar são as de toda a gente que vive no século XX e não desconhece inteiramente a civilização. (...) em nenhuma das nações civilizadas se ensina latim com o critério estreito, mesquinho e soporífero, de que vós dais tão grandes exemplos; (...) Vós sois uns restos arqueológicos, bons para pôr nas vitrinas dos museus (...) vós de certo sois doutos e veneráveis - mas, mais que tudo, sois ridículos, imensamente ridículos; (...) Para vós, meus amigos, o latim resume-se nas declinações, nas conjugações, na sintaxe; a isso chamais vós, pomposamente, “latinidades”, chegais, em vossa inconsciência, a dar-lhe o nome de “humanidades”; (...) E é confrangedor que assim suceda na vossa terra quando lá fora [entenda-se: Europa de além-Pireneus] já há muito se passou do conceito que vós conservais dos estudos clássicos para outro mais largo e mais amplo: hoje, meus amigos, o latim e o grego estudam-se apenas como instrumento do que se chama a Ciência da Antiguidade, Altertumswissenschaft; (...) simplesmente vos acho (...) fora do nosso tempo e vos peço que deixeis penetrar no vosso espírito um pouco de bom ar e de claro sol. Por que não experimentais ler alguns dos trabalhos que todos os dias se estão publicando sobre disciplinas da vossa especialidade? Por que não tomais conhecimento com a história da arte, com a filosofia, com a paleografia, a história das religiões, a numismática - tantas coisas interessantes e belas que vos fariam compreender melhor os vossos autores e mais amá-los, portanto? (...) se estudásseis a maneira como se ensina o latim e seguísseis os preceitos modernos, veríeis como os vossos alunos não tornavam a cabecear com sono, nem talvez tivésseis necessidade de lançar de novo mão da palmatória... Se não fizerdes isto, todos nós, os que estamos dispostos a lutar contra o Reino da Estupidez, e mais do que a lutar, a vencê-lo, todos os que para tal daremos com alegria o nosso último esforço - todos nós seremos os vossos inimigos implacáveis e impiedosos e não vos deixaremos um momento de sossego enquanto não desistirdes de ensinar latim; (...) o que não queremos, sob princípio algum, é que prossigais na vossa tarefa de fossilização dos cérebros. (...) Dizei-me, amigos: Por que não morreis? (...) prometo fazer-vos um necrológio e citar um verso melancólico de Tíbulo... Crede-me vosso amigo, Agostinho da Silva.3
Antes dessa contundente carta aberta aos eruditos, porém estreitos, admiradores da Eneida e da Arte Poética, o descontentamento de Agostinho da Silva com a situação dos estudos clássicos portugueses já se tinha feito brandamente mostrar. Em Satura - texto do último trimestre de 1927, no qual examina a problemática da sátira latina enquanto criação original do gênio romano -, afirmava, logo nos prolegômenos, dar-se por satisfeito se aquelas páginas (escritas num país cujas bibliotecas eram pobres em materiais relativos ao tema tratado) contribuíssem para que se despertasse da “modorra do latim de padre-mestre em que estamos mergulhados”, e se compreendesse que “para se ser humanista, é necessário saber mais alguma coisa do que os versos mais belos do seu Horácio e do que extasiar-se diante do ‘amica silentia lunae’...”.4
O básico da questão, como de parte da crítica que se lhe destinava, pois, embora não desenvolvido, estava já posto desde a fase integralista. O que o não estava, e se apresentou como novo, foi a virulência e a explosividade da verve polêmica que o reanimou enquanto reposto, seja na longamente citada Carta, seja em artigos subsequentes, nos quais veio a ser abordado, desdobrado, redirecionado e acrescentado em seus mais diferentes aspectos e manifestações.
Com efeito, de 1929 a 1933, Agostinho da Silva cumprirá a sua ameaçadora promessa. “Inimigo implacável e impiedoso”, em registro corrosivamente crítico ou saneadoramente propositivo, não dará descanso aos pseudolatinistas, pseudo-helenistas e acadêmicos lusos - representativos que eram de certa estirpe questionável de intelectual -, publicando quase que ininterruptamente, inventario:
- A Filologia Clássica nas Universidades, Seara Nova (março de 1929)
- O dicionário da Academia, Claridade (maio de 1929)
- Latim de liceu, que viria a lume pela Seara Nova, mas foi cortado pela Comissão de Censura (datado de junho de 1929)
- Os nossos mestres de Filologia Clássica, Seara Nova (setembro de 1929)
- Os nossos mestres de Filologia Clássica: resposta ao Ex.mo Senhor Doutor José Joaquim Nunes, Seara Nova (outubro de 1929)
- No jubileu da Academia, Seara Nova (dezembro de 1929)
- Da imitação da França, Seara Nova (Janeiro de 1930)
- Paladinos da linguagem, Princípio (maio de 1930)
- A propósito de A Marquesa de Alorna, O Comércio do Porto (agosto de 1930)
- Carta aos patriotas sobre patriotismo, Seara Nova (setembro de 1930)
- Erudição, O Comércio do Porto (outubro de 1930)
- Uma lição de latim à 7ª classe de letras, Labor (março de 1931)
- Atividade política dos intelectuais portugueses, Seara Nova (maio de 1931)
- O mar na literatura portuguesa, Seara Nova (junho de 1931)
- Discurso acadêmico, de D. José Pomadinha (da Academia das Ciências e da Associação dos Arqueólogos), Seara Nova (fevereiro de 1932)
- Ensaio sobre a pedagogia oratoriana, Seara Nova (maio de 1932)
- A nobre vida de paradigma, Seara Nova (maio de 1932)
- Glossa: Polêmica, Seara Nova (setembro de 1932)
- Glossa: Erudição, Seara Nova (setembro de 1932)
- Glossa: Clássico, Seara Nova (Outubro de 1932)
- A democracia ateniense, de Maurice Croiset, tradução de Agostinho da Silva para a seção “Páginas para serem meditadas”, Seara Nova (dezembro de 1932)
- Glossa: Patriotismo, Seara Nova (dezembro de 1932)
- Glossa: Liberalismo, Seara Nova (dezembro de 1932)
- Stendhal: tentativa de crítica, Seara Nova (publicado em três partes, de março a maio de 1933)
- Carta que a Botocudo Sênior, sócio da Academia, escreveu João Cabrinha, professor da Universidade, Seara Nova (março de 1933)
- Carta ao Ex.mo Senhor Dr. Alfredo Pimenta, Seara Nova (março de 1933)
- Glossa: Notável, Seara Nova (abril de 1933)
- Segunda Carta ao Ex.mo Senhor Dr. Alfredo Pimenta, Seara Nova (abril de 1933)
- Uma carta, de Doutor Botocudo Sênior, Seara Nova (abril de 1933)
- Glossa: Analfabetismo, Seara Nova (abril de 1933)
- Terceira Carta ao Ex.mo Senhor Dr. Alfredo Pimenta, Seara Nova (maio de 1933)
- Nota breve sobre uma questão já longa, Seara Nova (junho de 1933)
- F. Alves de Azevedo, Figuras Contemporâneas, Seara Nova (setembro de 1933)
- O homem perfeito, de Renan, tradução de Agostinho da Silva para a seção “Páginas para serem meditadas”, Seara Nova (setembro de 1933)
- Elogio da Academia , Polêmicas e Sátiras (1933?)
- Miguel Eyquem, Senhor de Montaigne, Imprensa da Universidade de Coimbra (1933)
- Três Ensaios: Do professorado - Da educação das crianças - Da arte de discutir, de Michel de Montaigne; tradução, estabelecimento de texto e notas críticas e explicativas por Agostinho da Silva, Imprensa da Universidade de Coimbra (1933)
Em sua quase totalidade artigos, excetuando um ou outro livro, ensaio, epístola, resenha ou tradução, e, igualmente, em sua quase totalidade, dados a conhecer pelas páginas da Seara Nova, os escritos acima elencados orbitam em torno de um centro de gravidade comum, o da crítica dos intelectuais, crítica que não por acaso se constituía numa das principais esferas de atuação do próprio periódico que os veiculou, em sua grande maioria, e que se encontrava na ordem do dia das questões que a intelectualidade europeia então se punha.
2. Seara Nova: o grupo e a revista
Ao lançar a revista no início da década de 1920, o grupo Seara Nova tinha duas finalidades. Em primeiro lugar, barrar a proliferação do Integralismo Lusitano nas convicções políticas da juventude, em segundo, aproveitar o afastamento das antigas lideranças partidárias republicanas, tais como Manuel de Brito Camacho (Partido Unionista), Afonso Costa (Partido Democrático) e, mais tarde, Antônio José de Almeida (Partido Evolucionista), para propor uma retificação geral da vida social e política portuguesa, através da difusão de princípios cívicos, morais, éticos e políticos.5 O que significa que não pretendiam os seareiros - Jaime Cortesão, Aquilino Ribeiro, Raul Brandão, Luís da Câmara Reis, Raul Proença, entre outros6 - “governar como os políticos” ou “aconselhar como os técnicos”, mas “orientar, como os ideólogos”.7
Sendo nosso intento contribuir para que se renove completamente a política portuguesa, porque não somos um partido político [perguntava Proença]? Não seria essa a maneira mais direta e eficaz de exercer uma influência positiva sobre a sociedade portuguesa? Recuaremos nós perante as responsabilidades e as fadigas da ação política, quando acima de tudo pregamos a necessidade da ação, previamente esclarecida pela inteligência? Esta pergunta (...) requer uma resposta categórica; e por isso este artigo. Não somos, em primeiro lugar, um partido político porque a nossa ação não pretende limitar-se à simples esfera política. Para além dela vemos toda a vida da nação nas suas atividades essenciais; e à renovação dessas atividades nos consagramos. É preciso que duma vez para sempre, se deixe de ver no político o bode expiatório de todas as desgraças nacionais. É em todas as modalidades da vida portuguesa que devemos encontrar o vírus profundo da nossa degeneração. Cada um de nós, no círculo das suas atividades próprias (quer sejamos empregados públicos, professores, militares, industriais ou agricultores), tem manifestado essa mesma ausência de capacidade criadora e de subordinação aos interesses gerais que tão de boamente assacamos aos nossos políticos. Simples órgãos de correlação, os políticos não podem elevar-se acima das condições gerais de atividade e da mentalidade nacional. Simples função de correlação, a função política não pode ser a única que haja a modificar e corrigir. Há, pois, que agir sobre todos os tecidos do corpo coletivo, que modificar todas as funções desse corpo. E sobretudo que modificar aquele organismo que está destinado a exercer sobre todos os outros uma ação diretiva: numa palavra, que reformar a estrutura espiritual, a forma da mentalidade da élite portuguesa, tão certo é que têm sido os vícios mentais dos portugueses os seus piores inimigos. A nossa empresa é, pois, cumpre vê-lo a toda a luz, extremamente ambiciosa. Não podemos ser um simples partido político, porque a nossa missão social excede o campo de ação de todo e qualquer partido político.8
Partindo do princípio de que a vida política duma nação é, em grande medida, decorrência da sua vida intelectual e do seu movimento de ideias, como das profundas aspirações dos grupos sociais hegemônicos, e de que, portanto, a origem da crise nacional residia na aguda degeneração das estruturas mentais da sociedade lusa, as das classes dirigentes particularmente, o grupo Seara Nova propôs-se, por um lado, a transformar radicalmente a mentalidade da elite portuguesa, de modo a torná-la apta a um “verdadeiro movimento de salvação”9 e, por outro, a formar uma opinião pública nacional que exigisse e apoiasse as reformas que se fizessem necessárias. Sem um escol intelectualmente capaz e um profundo movimento de opinião pública, galvanizado por um ideal coletivo, nenhum esforço sério de regeneração, pensavam, seria possível.
Tratava-se, pois, fundamentalmente, dum ambicioso programa de Doutrina e de Crítica, numa palavra, de uma audaciosa ação idealista sobre a multiplicidade da realidade social, na qual inclusos o “miserável circo onde se debatem os interesses inconfessáveis das clientelas e das oligarquias plutocráticas”, o seu “espírito de rapina”, o “egoísmo dos grupos, classes e partidos”, “os inimigos do bem comum, os que deitaram abaixo as estátuas de todos os altares, para prestar apenas culto ao Bezerro de Ouro”.10
Enfileirada, segundo textualmente declarava, na extrema esquerda da República; disposta a “fundar as condições da verdadeira democracia” - “sem as quais a República não passará do regime de baixa mentira e indigna plutocracia que tem sido até hoje” -; e simpática à luta pelo triunfo do socialismo11, a Seara, no que se refere à sua vertente Crítica, e de acordo com a correlação que estabelecera entre a degenerada esfera mental e a caótica vida política da nação, fustigou severamente aquele segmento social que considerava especialmente culpado pelo desastre coletivo do país e cuja mentalidade urgia reformar. Pois, no seu entender,
(...) nenhum regime político de mentira e incompetência se pode manter em qualquer país sem que essa incompetência e essa mentira sejam os característicos dominantes da sua própria élite intelectual. De outra forma, as monstruosidades e as traficâncias impedi-las-ia o seu protesto organizado. Em última análise, é ela a maior responsável, porque constitui aquela parte da consciência duma nação que deveria ser a última a desfalecer ou a corromper-se. Renunciando ao seu papel diretivo, sequestrando-se no formalismo e no cabotinismo literário, não fazendo do sacrifício o seu prazer mais elevado e da dedicação pelo bem geral o seu mais alto privilégio - não tendo sequer a elegância moral de se conservar pura e desinteressada no meio da corrupção e da deliquescência das altas camadas da sociedade - a sua indiferença, o seu miserável contentamento de si própria, o seu ceticismo moral, a sua intolerável vaidade, a sua falta de preocupações largamente humanas e, sobretudo, a absoluta incompreensão da sua verdadeira missão social, conduziram a este tremendo resultado, que todas as esferas da atividade da nação se sentiram atingidas da falta de ideal, de inteligência, de capacidade criadora e de sensibilidade moral que se revelavam na sua élite.12
Esferas de atividade, portanto, sobre as quais, sabia a Seara, também era preciso atuar. O aspecto da Crítica era imprescindível, mas insuficiente se não acompanhado do da Doutrina, isto é, do aspecto de uma educação geral, ou coletiva, de cunhos popular e social, superior e profissional, educação de cunho decididamente humanístico, que, para se concretizar, contou com a participação de colaboradores das mais diversas áreas do conhecimento humano, que fizeram da Seara Nova um renovador panorama crítico das atividades nacionais as mais relevantes: as sociais como as econômicas, as políticas como as culturais. Discutiam-se nas suas páginas questões que iam da economia política à religião, dos meios de transporte e comunicação à pedagogia e às artes, do mundo do trabalho e da técnica ao mundo filosófico, matemático, histórico ou físico-teórico, da literatura, da agricultura e da poesia às forças armadas e às finanças e, evidentemente, à política, quer dizer, às questões relativas à disputa e ao exercício do poder, à governança da nação.
Demonstram-nos essa diversidade temática e de interesses, não só os artigos e matérias que compunham a revista, como também outras iniciativas seareiras adicionais (algumas delas de extensão), tais como os Cadernos da Seara Nova, coleção em que se publicou de tudo, numa “obra de democratização da cultura, uma tentativa de vulgarização sistemática”, então dividida nas seguintes seções: “estudos literários”, “textos literários”, “estudos filosóficos e científicos”, “textos filosóficos”, “estudos políticos e sociais”, “estudos histórico-econômicos”, “estudos pedagógicos”, “moralistas”, “estudos de arte”, “biografias” e tutti quanti.13
“Poetas militantes, críticos militantes, economistas e pedagogos militantes”,14 os homens da Seara Nova não foram, ao longo de toda essa sua educativa e combativa produção intelectual, analistas imparciais, mas homens com causas, dispostos a descer “até a corrente que transporta os germens da sociedade futura”, e a nela lançar “o seu próprio sangue”. “O heroísmo [afirmava-se no editorial ou manifesto de apresentação do primeiro número] é a palavra mais adequada para exprimir o peso enorme das suas responsabilidades”.15
Principal orientador político do grupo no período compreendido entre o ano de fundação da revista, 1921, e o momento em que, em 1926, ela sofreu uma paragem forçada por conta da ação repressiva da ditadura militar, Raul Proença, novamente ele - ainda naquele primeiro número com que a Seara saiu às ruas -, dava mostras do peso de tais responsabilidades, ao referir-se ao papel dos seareiros na resistência à expansão do Integralismo Lusitano em meio à mocidade:
(...) os srs. [republicanos] são homens práticos. Pensam apenas em defender o regime com as metralhadoras da guarda republicana. Mas ai, srs. homens práticos! a juventude acadêmica (que será amanhã a classe dirigente do país) não a podem os srs. conquistar por esses processos marciais. Não é essa a maneira de vencer o Espírito. E se isto continuasse (que não continua porque o não queremos) veriam como chegaria uma ocasião em que não tinham quem pôr na guarda... senão alferes partidários do [Alberto] Monsaraz e do [Hipólito] Raposinho. E então para que serviria ao regime a guarda republicana? No seu superior espírito prático (que assim se chama à maior estreiteza de espírito e ao maior afastamento das verdadeiras realidades que se pode conceber), os srs. imaginam que, nas democracias, o papel dos intelectuais é inteiramente nulo, e o que importa praticamente para sua defesa é uma metralhadorazinha perfeita. Limpem as mãos ao seu excelentíssimo espírito prático, excelentíssimos cavalheiros! E de aqui a dez ou quinze anos espantem-se por tão conspícua perspicácia ter servido apenas para pôr as metralhadoras mais perfeitas nas mãos dos mais perfeitos antirrepublicanos. Os srs. troçam de nós. Os srs. não dão valor a poetas, a escritores, a pedagogos... Literatura, utopias! Quando reconhecerão afinal os srs. que seremos nós, só nós, que salvaremos a República?16
Atribuindo tão decisiva importância aos intelectuais - a quem via, quando escolados, como dotados de extraordinário poder político-social, dado as possibilidades críticas, esclarecedoras, persuasivas e criadoras da razão -, Proença expressava, enquanto pressuposto, o interesse natural do grupo Seara Nova em proceder ao questionamento e convencimento dos intelectuais portugueses, de modo a, impelindo-os àquele heróico desígnio de descer ao mundo e afirmar ideais, engajá-los na sua ambiciosa empresa de regeneração das estruturas espirituais da nação, isto é, em sua iniciativa de formação de uma “luminosa e firme consciência nacional que imponha aos dirigentes (políticos e não políticos) o caminho da nossa salvação”.17 “Antes de governar no Poder [considerava Proença] é preciso governar nos espíritos”,18 para o que, em se tratando de seareiros, punha-se como indispensável:
Clareza de entendimento e disciplina de ideias.
Abandono de todos os exclusivismos.
Amor da realidade, na sua expressão total e profunda.
Poder de sugestão e de sedução intelectual.
Uma dedicação sem limites pelos interesses gerais.
O mais absoluto escrúpulo profissional.
O amor supremo da verdade - fonte de todas as virtudes.
O desprezo absoluto da mentira - fonte de todos os vícios.
O amor da ação - e das ideias, unicamente como instrumentos e finalidades da ação.
Vontade enérgica e decidida aos esforços mais violentos e heróicos.
Desprezo completo de todo o medo do ridículo.
E audácia, audácia invencível!19
Inspirada num conjunto de valores e princípios de que semelhante cartilha ética era exemplo notável, não precisamos de inventividade para imaginar o que se passaria com a Seara Nova sob o regime militar, a propósito, ironicamente instaurado por um seu antigo colaborador em temas castrenses, o general Manuel de Oliveira Gomes da Costa, aquele mesmo que em maio de 1926 marchara com suas tropas de Braga para Lisboa a fim de, tomando o poder, no que foi exitoso, pôr um ponto final ao caótico partidocratismo da República liberal-parlamentar.
Pois bem, nem três meses passados, a 12 de agosto, ocorreu uma primeira interrupção no processo de preparação e impressão de que adviria mais um número da democrata e missionária revista. A instituição da censura prévia atuava e a Seara ressentia-se tanto da repressão quanto das crescentes dificuldades em se manter uma periodicidade editorial regular.
Proença e Cortesão, assim como o seareiro e republicano capitão do Exército João Sarmento Pimentel, lançaram-se na ação conspirativa que, em fevereiro de 1927, desemboca na primeira e única revolta constitucionalista que, efetivamente, chegou a se constituir numa real ameaça para a ainda cambaleante autocracia. À derrota da intentona, das mais violentas e mortíferas que houve contra a ditadura, seguiram-se medidas oficiais tanto mais opressivas.20
João Sarmento Pimentel, que entrara no corpo diretivo da revista em 1924, e Jaime Cortesão e Raul Proença, que, fundadores, já lá estavam desde 1921, sem outra opção que lhes preservasse liberdade e integridade física e moral, expatriaram-se. Aquele para o Brasil, estes para a França, onde Antônio Sérgio, também ele desde 1923 codiretor da revista, se exilara em finais de 1926, igualmente por conta da sua destacada oposição ao regime militar, “por detrás do qual se adivinhava com facilidade os velhos demônios retrógrados da sociedade portuguesa”.21
O grupo Seara Nova, pois, vergava sob uma grave e preocupante crise. Mas eis que, surpreendentemente, quando tudo parecia apontar para o seu fim, a Seara, em abril de 1927, torna a ganhar as avenidas. Aliás, tal como, em missiva de março do mesmo ano, informara ao jovem literato José Castelo Branco Chaves, Antônio Sérgio, que de Paris comunicava: “A Seara vai reaparecer, sem política, com números especiais”.22
Com quatro de sete dos seus diretores no exílio - permaneceram em Portugal, Câmara Reis, o militar aviador José Manuel Sarmento de Beires e o engenheiro agrônomo e político Mário de Azevedo Gomes - e em busca de meios pelos quais pudesse taticamente se reorganizar e restabelecer, o periódico enveredou por um grande debate interno. Novos intelectuais assomaram em suas páginas, assinando artigos e contribuindo para a revitalização das forças do grupo, que, como se pode facilmente inferir, não mais se destinaria à reforma e salvação da República parlamentar, que morta e enterrada deixara de existir, mas à restauração da democracia, posto que os tempos já eram de pura e dura ditadura, brevemente militar, depois, longamente civil, toda ela marcada por Antônio de Oliveira Salazar, primeiro como ministro das Finanças, subsequentemente como chefe de Governo.
3. Seareiros e integralistas: Homens Livres, Livres da Finança e dos Partidos
É precisamente nesta altura - em que, no plano estatal, se iam gestando as condições para a formação do Estado Novo português -, que o ex-integralista Agostinho da Silva migra para a Seara Nova, nisto, de certa forma, cumprindo uma trajetória semelhante à de Castelo Branco Chaves, adepto do Pelicano real entre 1917 e 1924 que, em 1927, se ligou ao grupo da progressista revista, alinhando-se com Antônio Sérgio.
Branco Chaves, porém, parece ter cultivado o seu integralismo de uma forma mais intensa e explícita do que o universitário George Agostinho. Em primeiro lugar, porque combateu na serra lisboeta de Monsanto pela mesma causa monárquica que, apoiada pelos integralistas, animava a tentativa de restauração realista então deflagrada no Porto, num episódio que, decorrido entre os meses de janeiro e fevereiro de 1919, ficou conhecido como Monarquia do Norte ou, no registro algo jocoso dos republicanos, como Reino da Traulitânia, uma vez que os monárquicos, ao longo dos vinte e tantos dias que governaram a cidade da foz do Douro, basearam o seu comando no terror gerado por bandos de arruaceiros armados (digo, trauliteiros), ao seu serviço. Em segundo, porque, seis anos mais velho que o jovem filólogo, ainda pôde colaborar nos órgãos integralistas por excelência, a revista Nação Portuguesa e o diário A Monarquia, além de ter sido amigo de Antônio Sardinha, que lhe prefaciou o primeiro livro, Fialho de Almeida: Notas sobre a sua individualidade literária.
Publicada em 1923, esta obra chamou a atenção de Antônio Sérgio sobre o novo autor, “estreia prometedora” - asseveraria numa recensão, de 1924, ao livro -, dotada de “uma inteligência crítica (coisa tão rara em Portugal) muito sadiamente orientada”.23 De modo que solicitou a Sardinha - seu conhecido - que avisasse ao rapaz que pretendia avistá-lo, o que de fato veio a acontecer. E os laços de amizade, como de interlocução intelectual, lá foram se tecendo, talvez já mesmo ao tempo da participação de ambos numa iniciativa comum a integralistas e seareiros, a revista Homens Livres - Livres da Finança e dos Partidos, acerca da qual, em dezembro de 1923, numa entrevista ao Diário de Lisboa, dizia Sérgio:
Existe em Portugal um certo número de aspirações patrióticas e sociais comuns a homens seguidores das diferentes teorias políticas. Isolados, esses homens e esses grupos não conseguem difundir suficientemente as ideias reformadoras comuns, e influir nos atos das diferentes classes e instituições sociais”. “Realmente há na revista republicanos e integralistas, monárquicos e libertários”. “Examinadas bem as coisas, na lógica das respectivas doutrinas há uma junção bem visível, embora o não pareça”. “Na verdade, a grande linha de separação política, hoje em dia, não é aquela que nos reparte em monárquicos e republicanos; é sim, a que distingue os reformadores dos conservadores. Uns querem conservar o que aí vemos, e conservar-se no que aí vemos; outros querem purificar, regenerar e progredir”. “Parecendo ser muito diversas, as doutrinas dos diferentes grupos reformadores são idênticas na maior parte das suas teses”. “Façam abstração, por exemplo da questão do rei e de algumas poucas ideias-sentimentos e verá que quase todas as teses concretas, de organização social, dos integralistas, se harmonizam perfeitamente com as do grupo Seara Nova”. “Uns e outros são anticonservadores; uns e outros são radicais; uns e outros regionalistas; uns e outros defendem a criação de uma assembleia representativa das classes e categorias sociais e intelectuais (com a diferença de que os primeiros só desejam esse e os segundos a combinam com um parlamento político); uns e outros atacam a plutocracia da sociedade portuguesa; uns e outros querem uma educação primária trabalhista e regional, etc”. Homens livres, portanto... “é um certo órgão em que uns e outros, unindo os seus esforços, defenderão as ideias que pertencem a todos os grupos, ideias comuns, com exclusão daquelas em que divergem. Estas continuarão a ser tratadas nas revistas respectivas de cada grupo: na Seara Nova e na Nação Portuguesa.24
Embora a duração da “nova falange política” dos Homens Livres, devido a divergências internas, tenha sido efêmera e o seu órgão não tenha passado dos dois primeiros números, saídos em 1 e 12 de dezembro de vinte e três, corroborando com isso o ceticismo de certos seareiros quanto à factibilidade política da inusitada cooperação intelectual, vale reconhecer que o princípio geral que a animava, e a Antônio Sérgio, o grande paladino da aproximação entre os grupos rivais, era digno de nota. Baixar a guarda e dar as mãos em prol de uma ideia nacional, de uma finalidade coletiva, superior e anterior às ambições das plutocratas elites e às disputas mesquinhas típicas do facciosismo partidário, já pelo que implicava de priorização do bem comum relativamente aos projetos políticos parciais de cada um dos grupos envolvidos - seareiros, integralistas, anarquistas, sebastianistas, monarquistas e quejandos - é algo de que, até aos dias de hoje, com raras exceções, careceram todas as épocas.
Se, com efeito, havia um determinado número de aspirações sociais e patrióticas comuns a cada uma daquelas tendências, por que não tentar uma nuançada conjunção de forças e esforços? Se havia uma plataforma convergente de propostas políticas, por que não se organizar uma clamante mobilização combinada pela sua consecução? Não dizem todos sempre, ontem como hoje, que o que importa é o bem coletivo, assim como o pensamento e a ação cívicas que o visam?
Faço essas considerações não apenas pelo que houve de ponderação política, de propriedade e, dado a gravidade da situação liberal-parlamentar, de necessidade na iniciativa, mas igualmente para tentar sacudir a impressão de quimera que algumas das colocações de Sérgio tendem a deixar. Afinal, como juntar num mesmo coro, sem desafinar, gente tão diversa, e ainda com o pressuposto (declarado) de que eram idênticas as suas respectivas doutrinas, na maior parte das teses? Não seria a miscibilidade dos conteúdos políticos de seareiros e integralistas comparável à da água com o óleo?
Diferentemente de Sérgio, era o que pensavam outros integrantes do Grupo Seara Nova, em que
(...) houve sempre quem não acreditasse na viabilidade futura de semelhante convergência de esforços para além de uma cooperação de caráter cívico e cultural. Apenas Antônio Sérgio (...) parecia confiar na possibilidade de um entendimento mais lato. Apoiados por alguns dos seus colaboradores na Seara Nova, Câmara Reis, Cortesão e Proença não admitiam a hipótese de uma colaboração política que não tivesse por base a aceitação e o respeito insofismáveis do regime republicano por parte de quantos viessem a participar de tal acordo.25
De fato, as proposições compartilhadas pelos diferentes grupos não os tornavam assim tão equacionáveis, tal como a boa vontade ou o espírito cívico e político de Sérgio gostaria e dava a entender. O que os aproximava estava, na verdade, profundamente determinado pelo que os afastava: a exploração ou reacionária ou progressista das ideias e reformas defendidas tanto por uns quanto por outros. Reciprocidade, pois, não é comunidade.
Penso todavia, por outro lado, que a aposta sergiana nos Homens Livres teria algo a nos sugerir quanto à definição de um possível substrato, aqui sim, comum, ao que chamaria de “os dois primeiros Agostinhos” (haverá um terceiro e, desde o auto-exílio político ibero-americano, um quarto), o universitário integralista e o jovem filólogo seareiro. Substrato de caráter inconformista e anticonservador, dotado de ideais regeneradores e aspirações reformistas, além de um forte teor de crítica das injustiças sociais existentes na organização societária portuguesa.
Sobre o seu inconformismo, anticonservadorismo e reformismo regenerador de cunho integralista, fizemos já, em oportunidade anterior, algumas apreciações.26 Vejamos então agora como estes mesmos “ismos” se expressaram a partir do seu ingresso no grupo Seara Nova, em que, semelhantemente a Castelo Branco Chaves, se vinculará especialmente ao renomado autor dos Ensaios, embora não tão de imediato.
4. Contra o Reino da Estupidez: guerra ao establishment intelectual, quebra da tradição e modernização dos estudos clássicos e da mentalidade em Portugal
Na condição de filólogo e seareiro, Agostinho da Silva consagrar-se-á à causa da renovação dos estudos clássicos em Portugal por meio da crítica a certos setores da ordem intelectual portuguesa, nos quais entre outras coisas discernia, como pudemos ver em Carta aos velhos latinistas, uma atrasada e estreita concepção do ensino de latim, concepção que se encontrava em completo desacordo com os preceitos modernos em vigor nas nações europeias (que, em oposição ao seu próprio país, define como) civilizadas, onde as línguas clássicas eram estudadas como instrumentos da chamada Ciência da Antiguidade, Altertumswissenschaft.
Enquanto os ridículos e bolorentos filólogos lusos, faltos de luminoso sol e de benfazejo arejar, restringiam o cultivo da sua especialidade à conjugação, à sintaxe e à declinação, em Europa o conceito praticado era outro: saberes linguísticos somavam-se a conhecimentos históricos, filosóficos e estéticos, à paleografia e à diplomática, à numismática, à epigrafia e à história das religiões, como meios para o fim de se estudar a sério a Antiguidade.
Algo, portanto, bastante distinto, muito mais largo e muito mais vasto do que o critério limitado, mesquinho e soporífero de instrução característico dos doutos e veneráveis, incultos e extemporâneos estudiosos portugueses de latim; estes - ainda conforme a crítica agostiniana - fossilizadores de cérebros juvenis, que em uma mão traziam a gramática e o dicionário, na outra a palmatória e o tédio, dignos representantes que eram de um reino cujo epíteto não era em nada honroso. Epíteto, aliás, significativamente tomado do título de uma célebre sátira setecentista aos professores, cursos e métodos duma já então antiquada Universidade de Coimbra, escrita por um estudante brasileiro aluno de medicina - tempos depois de condenado e preso pela Inquisição, por heresia, naturalismo e deísmo -, o poeta, e posteriormente também médico, Francisco de Melo Franco. (Reza a tradição que o patriarca da independência brasileira, José Bonifácio de Andrada e Silva, na ocasião, fins do XVIII, também estudante em Coimbra, teria colaborado na elaboração do texto.27)
Atacando pelo flanco filológico, era exatamente contra este secular Reino da Estupidez que, enquanto consequente seareiro, Agostinho da Silva pugnava. Por detrás da sua ácida sátira aos obsoletos latinistas, como aos processos (anti)pedagógicos que professavam, estava, pois, não apenas o projeto de uma remodelação completa da Filologia Clássica em Portugal, que atendesse às exigências e necessidades da cultura moderna, mas o propósito maior de recriação das estruturas espirituais do país, consoante as boas terras civilizadas da Europa. (Por onde andaria o nacionalista integral?)
Carta aos velhos latinistas, a despeito da virulência e alcance, representou apenas o começo da intensa atuação contestadora de George Baptista da Silva contra o estado lamentável da pesquisa e do ensino lusos sobre a Antiguidade. Seguir-se-ão outros artigos, em que Agostinho voltará à carga com não menos veemência, tais como: A Filologia Clássica nas Universidades, Latim de liceu, que chegou a ser impresso, mas foi vetado pela Comissão de Censura, e Os nossos mestres de Filologia Clássica, todos egressos do forno da Seara, embora um não tenha ganho as ruas daquele “delicioso” e tradicionalmente “desleixado” país, para cuja glória certamente dariam inolvidável contribuição tanto os declinacionistas quanto os novos filólogos; estes que - dado as deficiências apresentadas pelos professores e pelo quadro de cadeiras nas Universidades - se embalavam na “mais paradisíaca ignorância das civilizações clássicas”.28 Na má organização em que se encontravam, as seções de Filologia Clássica das Faculdades de Letras só serviam para formar pseudolatinistas e pseudo-helenistas, que liam os autores antigos com dificuldades, conheciam superficialmente as literaturas grega e latina e quase não sabiam o que era crítica textual, donde outra função não desempenhariam senão a de meros reprodutores daquela “ciência de papagaio ou de padre-mestre, que é papagaio com óculos”.29
(...) enquanto assim continuarmos, não haverá possibilidade de se iniciarem em Portugal os estudos clássicos [pelos quais se entende “o estudo da ‘Ciência da Antiguidade’ feito por especialistas e não o ensino absurdo do latim nos liceus”], hoje imprescindíveis na cultura de qualquer país. É urgente que um ministro mais familiarizado com coisas europeias lance um olhar piedoso para a Seção de Filologia Clássica.30
E, em Latim de Liceu, embora não publicamente, prosseguia:
O país não tem escolas onde se ensine a Filologia Clássica, já que se não pode considerar como tais as nossas Faculdades de Letras; não tem mestres que escrevam ou falem sobre Filologia Clássica, mergulhados como todos estão na admiração bonzica do seu enorme saber; não temos uma coleção de textos, não há traduções além das que, com um gabão pelos ombros e uma lata de rapé, fizeram velhos desembargadores aposentados; não possuímos uma boa história da literatura latina, exceção feita das que escreveram com pena gloriosa João Felix Pereira e o Dr. Mendes dos Remédios. Que esplendida ironia! E é neste mesmo país que o Ministro, os Secretários, os Diretores e os Chefes bradam em coro, alvoroçadamente ou com vozes graves, que o latim é sagrado, que é mister (...) aprender latim.31
Pelo visto, não o latim de nível superior cujo estudo, se idoneamente feito, poderia ter levado ao progresso efetivo da filologia em Portugal, mas o latim de liceu, tal como ministrado, naquela época, enquanto disciplina de relevância equivalente ao português e à matemática e com o qual, desde muito cedo, os alunos eram postos em contato. Segundo um decreto da altura sobre exames liceais, as três disciplinas compartilhavam o status de “importantes”, isto é, de absolutamente reprovativas, ao passo que as “não importantes” só o eram relativamente.
O problema, entretanto, observa Agostinho, residia na rejeição que o ensino do latim costumava ensejar - quer pelas dificuldades intrínsecas ao seu aprendizado, quer pela impressão de inutilidade que, língua morta, acabava por causar -, mesmo naquelas crianças que poderiam, a princípio, ter tido por ele algum tipo de inclinação.
O latim, pense um pouco nesta verdade o senhor Ministro, não torna notável uma Nação e chama sobre ela as atenções do mundo culto na medida em que martiriza as suas crianças (...) E nós, com este culto do latim liceal, não temos um latinista que se possa pôr a par de qualquer filólogo civilizado (...). Não seria mau experimentar se, circunscrevendo o latim a um grupo de especializados, banindo-o do curso geral dos liceus [primeiros cinco anos liceais], mas fazendo-o estudar e estudar bem nos cursos complementares de letras [dois últimos anos] e nas Faculdades, não chegaríamos a produzir latinistas que estivessem ao par dos métodos e conhecimentos modernos e tornassem o nome de Portugal conhecido na Filologia Clássica. (...) Os Senhores Ministros (...) estão no século XVI, e fazem mal, porque já vamos no século XX; deixem pois em sossego o monstrozinho do latim de liceu e pensem, se essa operação lhes é possível, em organizar em bases sérias o ensino da Filologia Clássica em Portugal.32
Com tão explícita objeção às digníssimas autoridades da ditadura, não é difícil compreender o porquê do embargo ao texto pela Comissão de Censura de um regime em que a posição proeminente de Salazar consolidava-se a cada dia mais e mais. A correção dos rumos da economia, que como ministro das Finanças vinha capitaneando, apresentou resultados positivos quase que imediatos. Empossado em 27 de abril de 1928, assentava em 14 de maio uma reforma orçamental, alcançando, cerca de um ano depois, o equilíbrio das contas públicas. O que, conjuntamente à estabilização da moeda e à reorganização geral da gestão financeira, valeu-lhe um enorme prestígio.
Neste mesmo ano de 1929, era tido como a única cabeça pensante da equipe de governo, além de seu homem forte: qual “ditador das finanças”, nenhuma outra pasta podia implementar medidas que implicassem aumento de despesas sem a sua aprovação. Tornou-se o homem de confiança dos militares, mantendo-se no cargo não obstante as mudanças ministeriais, e, expandido o seu poder, foi como que cumprindo o teor das palavras que proferira em discurso, ao tomar posse do manejo da fazenda pública:
Sei muito bem o que quero e para onde vou, mas não se me exija que chegue ao fim em poucos meses. No mais, que o País estude, represente, reclame, discuta, mas que obedeça quando se chegar à altura de mandar.33
“Efetivamente [comenta João Medina]: chegara o tempo de obedecer. Chegara enfim quem mandava. Chegara o Chefe. Plácido, sombrio, discreto - mas timoneiro para sempre. Estava achado o Ditador [que as direitas lusas tanto ansiavam]. Começava realmente a Ditadura”.34
Entrementes, na Seara Nova, Agostinho da Silva persistia no seu propósito de pelejar pela transformação das condições indigentes de pesquisa, ensino e estudo da Filologia Clássica em Portugal, de forma a fazer do País uma referência de excelência na área.
Publica então, aproximadamente três meses corridos desde a redação de Latim de liceu, Os nossos mestres de Filologia Clássica, texto em que retomará muitas das questões e dos pontos de vista já trabalhados, mas em que novos elementos também são aduzidos. Se n’A Filologia Clássica nas Universidades, o foco crítico estava centrado sobre a organização deficitária dos cursos universitários de filologia, neste artigo de agora, desloca-se para a avaliação dos professores que ministravam as disciplinas desses cursos. Afinal, a responsabilidade pelo que havia de lamentável na situação era, de acordo com a mirada agostiniana, tanto daquela quanto destes, como, ainda, do servilismo mental dos alunos que, receosos ante a ameaça encarnada pelos exames, não julgavam, não discutiam nem se afastavam um milímetro da doutrina explanada pelos mestres.
Basicamente, são dois os traços dos catedráticos contestados pelo ex-discente da extinta Faculdade de Letras do Porto. O primeiro reporta-se ao fato de não veicularem as suas lições para além dos muros da Academia, encerrando-se, pois, em torres de marfim, no aristocrático afastamento do vulgo profano, atitude danosa a que, segundo Agostinho, se não assistia em Universidades de costumes e moldes europeus; o segundo diz, por sua vez, respeito ao de se não dedicarem como deveriam à investigação e ao aprofundamento de temas greco-latinos, em lugar dos quais o seu comodismo e a sua predileção em nadar com a corrente punham a literatura e a história portuguesas; abdicavam desta maneira do “meio de se tornarem europeus”, haja vista que eram lentes de disciplinas que eventualmente mais condições lhes dariam de cruzar a cadeia montanhosa dos Pireneus. Bem que poderiam
(...) ter tomado contato com a Grécia e serem claros, da claridade que há nos olhos de Atena, e serem elegantes da elegância íntima e eterna que há num drama de Sófocles, numa comédia de Aristófanes, num mármore de Praxíteles. E não o foram e continuaram fradescamente inclinados sobre os nossos clássicos e a nossa história, a explicarem palavra a palavra os Lusíadas, com falta de gosto e de senso comum (...). (...) não compreenderam que Portugal só terá uma vida intelectual digna do seu passado quando quebrarmos, violentamente que seja, o contato com esse mesmo passado, quando um grupo de homens de rija vontade e peito feito à luta se insurgir contra a Tradição e a desprezar por completo.35
Quedados em êxtase diante das glórias passadas de Portugal, afeitos à tradicional retórica coimbrã - tão balofa quanto empolada, tão vazia quanto tersa -, não estavam os catedráticos portugueses de filologia interessados em realizar, difundindo-a, uma verdadeira produção científica acerca da Antiguidade Clássica, fosse escrevendo, conferenciando ou traduzindo, organizando coleções de textos ou publicando manuais. Traíam, desse modo, a sua missão de mestres universitários, de criadores de cultura no país, como deixavam, por outro lado, de colaborar no movimento de investigação da ciência europeia; “não ousaram sair da estéril gravitação em volta de nós próprios”; “o ensino do grego e do latim é para eles uma maneira cômoda de viver e engordar”. Estão, pois, “enganando o País com seus ares doutorais e seus capelos vistosos; que o País os conheça e os trate com Justiça”.36
Para os seareiros que - como Antônio Sérgio, Raul Proença, Castelo Branco Chaves e Agostinho da Silva -, advogavam uma renovação, para valer, da mentalidade portuguesa, a disposição dos eminentes eruditos lusos era algo a ser continuamente combatido. E não por acaso, ao escrever a dedicatória para Berta David, constante do exemplar do texto em discussão que lhe ofertou, referia-se o autor ao “começo da guerra”37: guerra contra os catedráticos, guerra contra os seminaristas - latinistas de declinar e de conjugar38 -, guerra contra os membros da Academia das Ciências de Lisboa, guerra, enfim, contra a antiquada, defasada, retórica e formalista ordem intelectual portuguesa, na qual, por sinal, dentro em breve, Salazar principiaria a recrutar grande parte dos seus colaboradores de governo.
Ao aludir ao “começo da guerra”, George Agostinho sabia do que estava falando, visto que o contra-ataque dos portadores daquela mentalidade catedrática, tão avessa às ideias e ao espírito novos, não tardou a comparecer na forma de uma réplica subscrita pelo professor e diretor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, o senhor José Joaquim Nunes, que Câmara Reis, enquanto diretor da Seara, numa nota preliminar, introduzia (foi a ele que, solicitando publicitação, Nunes se dirigira):
A carta do sr. Dr. José Joaquim Nunes, cheia duma irritada vivacidade, vinha acompanhada duma outra, particular, muito contundente, em que se estranhava a publicação do artigo do sr. Dr. Agostinho da Silva. (...) Apesar da feição inegavelmente agressiva do primeiro artigo, devemos compenetrar-nos bem de que a atividade dos publicistas e dos professores está naturalmente sujeita à crítica mais ou menos severa, mais ou menos justa, de todos os espíritos livres.39
Em sua argumentação, digamos, pouco consistente, às vezes mesmo pueril, J. J. Nunes se limita a repelir a afirmação do jovem Agostinho de que, curvados sobre temas portugueses estranhos à disciplina que regiam, os professores de Filologia Clássica não haviam conseguido, por exemplo, apreender o “encanto, a graça, a mocidade, a frescura”40 das cantigas trovadorescas medievais galaico-portuguesas, não obstante sua dedicação de décadas. Ora, pensou com seus botões o (sintomaticamente) ex-pároco Nunes, “isto entende-se comigo que exclusivamente entre nós tenho (...) estudado o assunto”.41
O curioso é que ao longo de sua exposição, o que Joaquim Nunes inadvertidamente termina por fazer é corroborar a crítica central feita pelo “ilustre desconhecido” e “pedantesco articulista”42 Agostinho da Silva aos mestres universitários de grego e de latim, qual seja, a de que estavam enganando o país.43 Defendendo a competência da sua dedicação de mais de três decênios às coisas portuguesas, José Nunes como que certificava, em negativo, a relação marginal e instrumental que mantinha com uma disciplina em que deveria ser respeitado especialista e atuante criador de cultura, sobre a qual - uma vez que para isso o Estado lhe pagava - deveria escrever e falar, mas, são dele as palavras,
como conseguiria eu despertar interesse por assuntos já tão distantes de nós? E, que o fizesse, não encontraria editor que quisesse com tal publicação malbaratar o seu dinheiro. Mas lembro ao meu censor, pois parece desconhecê-lo, que às línguas clássicas tenho também dedicado os meus ócios; provam-no o Dicionário português-latino (...) e as referências que no Comentário às cantigas faço a locuções gregas e latinas, sempre que vêm a propósito.44
Chamado de “homenzinho” indigno, incorreto e topetudo (“Já é ter topete!”) por J. J. Nunes - posto que afirmava, porém, incapaz, não provava45 -, o satírico Agostinho da Silva, em sua tréplica, rebateu uma a uma as colocações do “catedrático e sábio” erudito. Vejamos algumas passagens sugestivas:
V. Ex.a, na sua carta tão correta, tão amável, chama-me “homenzinho” (...): eu sou de fato magro, baixo, com quatro ossos à flor da pele - um contraste com a imponência, a solenidade física dum professor catedrático. O “ilustre desconhecido” - ficaria decerto mais perfeito se V. Ex.a suprimisse o “ilustre” (...). (...) eu tenho escrito por diversas revistas alguns artiguitos de filologia clássica, tenho pronunciado conferenciazitas de filologia clássica, publiquei mesmo um livrito sobre filologia clássica [refere-se à tese de doutoramento, editada em 1929]; quase nada tenho falado ou escrito que se não relacione com filologia clássica: por quem mais logicamente esperaria ser ignorado do que por um professor de filologia clássica da Faculdade de Letras de Lisboa?46
E, sempre em tom irônico, continua:
Então V. Ex.a é professor de filologia clássica, tem a seu cargo cadeiras de grego e latim na Faculdade de Letras, é pago pelo Estado para estudar e trabalhar em filologia clássica - e só pensa nela nas horas de ócio? Que diria V. Ex.a se amanhã os contínuos da sua Faculdade apenas lhe quisessem abrir as portas e trazer papel nas suas horas de ócio? (...) Não, aqui há qualquer engano lamentável: V. Ex.a quis talvez, em lugar de horas de ócio, escrever horas de trabalho... Qual! (...). Fica, pois, estabelecido que só nas horas de ócio V. Ex.a cumpre o seu dever.47
Por outro lado,
V. Ex.a está seguro de que, quando investiga a origem duma palavra portuguesa, faz filologia clássica? Não fará antes filologia portuguesa? Eu sou desta última opinião - e levo a deficiência mental que me caracteriza ao ponto de ter a certeza de que, se estudar as origens da mesa em que escrevo, faço a história dum móvel e não botânica; e do mesmo modo creio que V. Ex.a quando se deita a dormir na sua cama faz obra de professor catedrático e não de carpinteiro. Para que V. Ex.a fizesse filologia clássica era necessário que estudasse essas palavras gregas e latinas por si mesmas e não, apenas, como origem de vocábulos portugueses “sempre que vêm a propósito”, segundo suas doutas expressões.48
Por fim, acrescentaríamos ainda mais um excerto, formulado em resposta à asserção de Nunes (verdadeira pérola) de que a crítica que lhe era destinada devia-se apenas ao fato de ele e “outros” terem optado por se ocupar de um “assunto nacional”, ao invés de “repetir” o que “mestres ilustres” já tinham executado com “erudição exaustiva” e em idiomas familiares aos estudiosos, tais como o italiano, o francês, o inglês e mesmo o alemão. O que, se convertido em português claro, equivaleria a dizer que
(...) a filologia clássica já está pronta, todos os mistérios estão dilucidados, as revistas e os livros que todos os dias se publicam apenas repetem o que já está feito: e V. Ex.a, que não serve para imitador e a quem repugna o papel de vulgarizador, talhado como está para a alta investigação científica, resolveu apenas trabalhar nas horas de ócio. Mas, quer V. Ex.a ver uma coisa muito interessante? Há um livro muito bem feito, escrito por L. Laurand [o Manuel des études grecques et latines] (...); não sei se V. Ex.a conhece: eu cito-o porque anda nas mãos de qualquer aluno do I.o ano de Filologia Clássica da Faculdade de Letras do Porto, instituição nefasta que eu cursei e me deu toda a falta de civilização e de saber de que V. Ex.a me acusa. (...) diz Laurand que, nos domínios da filologia clássica, “il y a beaucoup de nouveau à trouver” (...); “beaucoup de nouveau”, note V. Ex.a: e aponta trabalhos a executar (...). Eu fico, na verdade, hesitante entre estas duas opiniões contraditórias (...). Só faço notar que da opinião de Laurand são todos os grandes filólogos.49
5. Um já conhecido, não obstante jovem, Altertumswissenschaftler formado na FLUP
No momento em que escrevia essas palavras (fins de outubro de 1929), Agostinho da Silva não contava mais do que vinte e três anos. E já detinha, a despeito da mocidade, uma produção intelectual bastante significativa. Havia, até então, publicado algo em torno de cinquenta e quatro títulos, ao todo, dentre os quais, cerca de um terço voltado para os temas e questões relacionados à cultura clássica.
Destacaria, entre este terço, o seu doutoramento sobre a existência do sentido do tempo na civilização greco-latina - em oposição à tese de Oswald Spengler, que nesta diagnosticava uma ausência do sentido de passado e de futuro, isto é, um anistoricismo expresso na valorização exclusiva do que Goethe chamou “o presente puro”50 -, o ensaio sobre a poesia satírica de Pérsio, o estoicismo e a sociedade romana do seu tempo51, e dois longos artigos, um, já mencionado, abordando a questão da originalidade das sátiras latinas, outro, tratando do movimento nativista romano, a “única maneira por que [o povo de Roma] podia mascarar as verdadeiras determinantes da sua helenofobia”.52
Haveria ainda a salientar, posto que concluída, embora, naquele fim de década, ainda não impressa, a versão para publicação da sua tradução das Poesias de Catulo Veronense, originalmente elaborada enquanto tese de licenciatura, e o belo livro A Religião Grega, então em estágio avançado de redação. Tanto que, dali a quatro meses, num número da Seara de 27 de fevereiro de 1930, sua introdução seria antecipada ao leitor, com título homônimo, apenas despojado do artigo definido.53 Decorridos mais um ou dois dias, finalizaria a escritura de Sur Catulle, artigo egresso no prestigioso periódico francês, a Revue de Philologie, de Littérature et d’Histoire Anciennes, em que eruditamente propôs uma hipótese de fixação e interpretação de um verso das Poesias do autor latino,54 “num passo [trecho] considerado desesperado por [Georges] Lafaye e todos os outros editores”.55
Migrando das publicações para as conferências de igual temática filológico-clássica, poderíamos citar as que tiveram como matérias “O nativismo romano”, proferida em 1927, “Um romance de costumes no tempo de Nero”, participada em 1929, e as “Sátiras de Juvenal”, comunicada na sede da “Universidade Livre”, na lisboeta Praça Luís de Camões, ainda nos primeiros meses de 1930.56
Diante de tão prolífica produção, não é, pois, de estranhar que alguns dos seus trabalhos chegassem ao conhecimento da comunidade científica estrangeira, com um deles tendo merecido, na Revue Archéologique, comentários elogiosos do renomado arqueólogo francês Salomon Reinach, que ali se mostrava surpreso por em Portugal conseguir-se, conforme os termos utilizados por Luís Cardim, “tão larga informação erudita”.57
Daí que, com efeito, era deslocada, desinformada ou desatualizada a denominação de “ilustre desconhecido” de que José Joaquim Nunes lança mão para desqualificar aquele que, na imprensa da época, aparecia como “talentoso” e “distinto acadêmico” ou “distinto professor”, já que lecionando como professor provisório no Liceu de Alexandre Herculano, no Porto (ano letivo de 1928/1929), depois, no Liceu Central de Gil Vicente, em Lisboa (ano letivo de 1929/1930, talvez igualmente, 1930/1931) e, enquanto estagiário da Escola Normal Superior, no também lisboeta Liceu de Pedro Nunes, em que lhe foram indispensáveis as orientações práticas do metodólogo Sá e Oliveira.
Mais do que definir Agostinho como desconhecido, o que Nunes talvez quisesse realmente dizer fosse algo próximo a: “quem este rapazola pensa que é para assim se dirigir a um professor e diretor universitário?!”, como que mostrando ao quase imberbe crítico qual era o seu devido lugar. Não olvidemos que, se por acaso incógnito pelo que veio antes de Carta aos velhos latinistas, dificilmente assim permaneceria o nome de Agostinho da Silva, para qualquer lente português de Filologia Clássica, pelo que veio depois.
De todo modo, o que importa notar é que se, no proscênio, o que vemos, enquanto espectadores, é o embate entre o ascendente filólogo clássico e o estabelecido e cristalizado professor catedrático, a modernização e a tradição acadêmica, o europeísmo e o limitado nacionalismo, o espírito novo e a mentalidade fradesca e coimbrã, a herança de Antero e de Eça e o significado de Antônio Feliciano de Castilho e de Manuel Joaquim Pinheiro Chagas, não nos pode passar despercebido um certo pano de divergência institucional de fundo, que a irônica referência agostiniana à “nefasta” Faculdade de Letras do Porto nos faz igualmente visualizar. A Faculdade portuense de Letras em que pontificavam mestres formidáveis e em que o curso de Filologia Clássica, diferentemente do que se dava em Lisboa e em Coimbra, formava helenistas e latinistas à altura do que, na Europa, se denominava Ciência da Antiguidade, e que por ter sido compulsoriamente extinta pelo governo da ditadura militar, em 1928, terminara por despertar, em Agostinho da Silva, um verdadeiro paladino.
A abolição daquela inovadora instituição de nível superior, em que as latinidades e as humanidades não eram reduzíveis à conjugação e à declinação de línguas antigas, pois, tanto esteve na raiz da refundição ideológica do agora ex-integralista, quanto estava na feroz campanha contestatória que deflagrou contra o status quo - que tanto contribuíra para o encerramento da FLUP - das duas Faculdades remanescentes de Letras, às quais, não casualmente, refere-se logo no princípio do artigo com que previra desencadear uma guerra (guerra, não obstante, que, se pensarmos bem, em termos político-acadêmicos, vinha de longe, e cuja primeira grande batalha havia sido deflagrada pelo decreto inicial de implementação da notável escola de filologia e filosofia e de geografia e história do Porto, criada por Leonardo Coimbra, em 1919, quando de sua passagem pelo Ministério da Instrução Pública58):
Deve parecer estranho a todos os que pensem um momento no assunto que, tendo nós no país duas Faculdades de Letras, com Seções de Filologia Clássica, a dois lentes por Faculdade, não possuamos, a respeito de obras relativas à Antiguidade Clássica, mais do que as dissertações de concurso, quando as há, não tenhamos o gosto de ouvir conferências sobre assuntos clássicos e se viva, mesmo no domínio de edições e comentários elementares, em completa indigência.59
Além de ex-seminarista e de catedrático de filologia clássica que deu inegável contribuição para o desenvolvimento da filologia portuguesa, Joaquim Nunes era sócio da Academia das Ciências de Lisboa, instituição então universalmente menosprezada, e à qual os melhores escritores da última geração, sintomaticamente, não se haviam associado. Em 1921, ao assumir a sua presidência, e igualmente ao longo da década, Júlio Dantas - jornalista, historiador, cronista, dramaturgo e poeta, escritor dos mais vendidos da época - tentou reverter a sua desprestigiosa situação, revitalizando-a com reuniões sociais para a gente fina da sociedade e com o recrutamento de novos autores. Não foi bem sucedido, no entanto.
Em Lisboa, toda a gente continuou convencida que o único problema que afligia estes bons homens era o exato tamanho das barbas do Afonso de Albuquerque.60
Mutatis mutandis, é precisamente disso - do significado (coletivamente prejudicial) da problemática capital da medida dos pêlos faciais do grande conquistador e governador da Índia para os acadêmicos - que os artigos O dicionário da Academia e No jubileu da Academia muito idoneamente, diga-se, tratam. No primeiro, exclama o filólogo-paladino:
Que ninguém se admire! A Academia só sabe fazer retórica, velha e safada oratória do tempo de D. João VI (...); numa época em que se querem ideias e não palavras, a Academia manifesta-se singularmente estranha ao momento que se está desenhando entre nós de combate ao vazio; a Academia (...) parece querer demonstrar que dentro de si se contém tudo o que há de inferior em Portugal - o gosto pelo discurso bem polido, a falta de linguagem precisa e séria, a ausência de ideias, o “fadistismo” intelectual tão característico da nossa cultura - ou incultura. A inutilidade desoladora da Academia está mais que suficientemente provada; dali saem apenas os discursos que nada dizem ou as miudinhas observações que constituem a história e a filologia em Portugal. Nenhum dos grandes problemas culturais se agitam nem se agitarão jamais dentro da Academia; quando não choram, comovidos com o lirismo do seu digno presidente [Júlio Dantas], os Acadêmicos tomam o seu rapé e os seus óculos e discutem (...) se Leonor Teles [mulher de D. Fernando, rainha de 1367 a 1383 e, após a morte do marido e rei, regente em 1383] quando fugiu de Lisboa, levava ou não uma ruga na testa.61
6. Estrangeirado do Novecentos: iluminismo, europeísmo e francesia
Como viemos vendo, a renovação da cultura e da mentalidade portuguesas, para Agostinho da Silva, como para outros seareiros, passava fundamentalmente pela atualização de Portugal frente à Europa central. Na linha de Verney, Antero e Sérgio, renovar ou remodelar, regenerar, reformar ou modernizar a nação significava, na visada agostiniana, uma mesma e única coisa: a ideia e intenção de europeização do país, de ruptura com a tradição, de superação da sua crônica condição de atraso cultural, econômico-social e político. Daí a sua ferrenha oposição ao antimodernismo e ao antieuropeísmo encarnados pela Academia:
(...) não é acadêmico quem quer, é acadêmico quem pode; quem pode (...) viver sequestrado da cultura europeia. É este afastamento da Europa civilizada, da Europa que trabalha e vive à clara luz do sol e não num velho convento de frades, da Europa que se interessa pelo que é humano e não apenas pelo que é estreitamente nacionalista, é esta separação das correntes modernas do pensamento, que caracterizam a Academia62,
Expressando-se, por exemplo, num interesse (nacionalesco) de restritíssimo calibre pela época das grandes navegações e da expansão comercial e marítima portuguesa, metafórica e ironicamente falando, este “diadema glorioso de Portugal” em que incrustadas “as pérolas das conquistas e os diamantes das descobertas”,63 numa palavra, as pedrarias cujo brilho cegava aos acadêmicos, tomados que ficavam por um espírito de admiração incondicional perante os seus objetos de investigação, as naus e os exploradores e conquistadores que nelas embarcavam, os guerreiros e os seus artefatos, os feitos memoráveis e “toda a velha canalha heróica”,64 tudo minuciosamente estudado com o seu método de cata-palavras, de datas e de nomes, de anedotas e de barbas e de quase nenhum sentido analítico ou crítico, e exposto em adornados períodos balofos, redigidos de acordo com as boas normas da retórica acadêmica, isto é, tome-lhe forma e nada de conteúdo, nada de autêntica e proveitosa e precisa e palpável ou esclarecedora ideia.
Espelhava a Academia, pois, na vida intelectual, a “posição tuaregue”, inferior, periférica de Portugal em face da Europa central, “da Europa culta, da Europa de que queremos fazer parte, da Europa para a qual e com a qual queremos trabalhar”; e a espelhando, era a visualização de uma imagem abreviada do velho Portugal seiscentista, que não permitia “avançar e libertar-se e ser culto o Portugal novo”,65 o que oferecia ao olhar.
Quer pelo formalismo quer por outras das características desse seu mal-afamado espírito seiscentista, ou seja, exterior, vão e meramente descritivo, defasado, avesso à novidade e não conducente ao adiantamento mental do país, não se constituiu o ambiente acadêmico do “Convento de Jesus”,66 isto é, da Academia, em espaço criador de verdadeira cultura. E tudo o que, nesse sentido, se realizava em Portugal, consumou-se ou fora dele ou contra ele. A Academia, pois, correlatamente aos catedráticos das Faculdades de Letras, havia traído a sua missão. E não só. Traíra também os propósitos dos seus fundadores, do duque de Lafões e do abade Correia da Serra,
(...) os fundadores de uma outra Academia, (...) que era afrancesada, estrangeirada, importava as ideias revolucionárias e, pelos seus sócios, mantinha relações com os homens que tinham papel de destaque na Europa culta de então.67
Naquilo que se nos afigurou essencial, o caminho que vai de Carta aos velhos latinistas a No jubileu da Academia calçado e trilhado (hermeneuticamente) está, devendo-se por isso afirmar que, enquanto seareiro, cumpria Agostinho da Silva, no Portugal novecentista, uma função crítica semelhante à que os “estrangeirados” cumpriram no século XVIII, e os setentistas, digo, os integrantes da Geração de 1870, no XIX, frente às manifestações do “vírus profundo da nossa degeneração”, para relembrarmos os termos com que Proença se reportou à decadência daquela nação que, na antemanhã da modernidade, marchara na vanguarda dos povos.
Em vista disso, há portanto que se notar, recuando um pouco mais na cronologia, o quão significativo foi o percurso teórico-político diametralmente traçado pelo jovem Agostinho da Silva, dos tempos de graduação na Faculdade de Letras do Porto aos primeiros anos de pertença ao grupo Seara Nova, percurso, todo ele, de caráter sempre anticonservador, inconformista e regenerador, assinale-se, que veio da reação ao progressismo, do integralismo ao democratismo, do monarquismo ao republicanismo, do tradicionalismo à negação da tradição e à aposta na modernização, do reconhecimento à recusa do consabido lugar laudatório comum da epopeia dos descobrimentos, do nacionalismo integral ao europeísmo pleno, este último, a propósito, flagrantemente estampado no título de um artigo de grande relevância para a compreensão cabal do estágio em questão do seu pensamento, Da imitação da França.
Imitação? Oll korrect, entendido. Mas de que França?
Daquela em cujo espírito se encontravam as qualidades características do espírito grego, do
(...) espírito de Atenas no auge do seu brilho: a elegância, a finura, a vibração de vida, a ironia, a ampla compreensão, numa palavra, o aticismo68,
Lamentavelmente, prosseguiu o autor, ausente tanto do pensamento quanto da linguagem de um Portugal prenhe de professores burocráticos de grego - bárbaros ao pensar e ao escrever - e de puristas ciosos dos hábitos e das tradições nacionais, na língua e na literatura, sobretudo, refratários a todo e qualquer francesismo, especialmente os de vocábulo e sintaxe. A incorporação de um termo francês ou afrancesado em seu cultuado idioma castiço entendida era como se ofensa fosse aos seus clássicos (cegamente) adorados, entre os quais contavam os manes - as almas deificadas dos ancestrais para os antigos romanos - dos padres Manuel Bernardes e Antônio Vieira.
Estrangeirado do Novecentos, para George Baptista da Silva os clássicos portugueses não eram o que supunham aqueles patriotas arqueológicos, avessos à palavra e à ideia estrangeiras:
(...) o considerá-los grandes escritores, dos maiores do mundo, prova mais uma vez que Portugal é uma ilha de ignorância num mar civilizado que a cerca mas não a penetra; e cada vez levantamos diques mais altos para que nem a espuma das ondas nos salpique (...). (...) se buscarmos bem, só encontraremos quatro ou cinco nomes que nos não envergonham no concerto europeu. O resto - frades ingênuos, acumuladores de fatos, oradores verbalistas... (...) é tempo de acabarmos com lendas e tradições falsas; (...) de ler as literaturas estrangeiras e depois de as compararmos com a nossa; de não considerarmos Portugal um país glorioso que pode dormir, mas um pobre país que precisa de acordar e fazer-se. Precisamos de ver que o P.e Manuel Bernardes desce aos últimos limites da ignorância e (...) da ingenuidade escrevendo, em pleno século XVII, as suas historiazinhas, as suas visões, os seus milagres e acreditando piamente neles; que Antônio Vieira, no século que teve Bossuet, é o mais oco retórico que se pode, excetuando [o clérigo e orador Antônio] Alves Mendes, encontrar à flor da terra; que não tem uma ideia profunda e todo se perde em rebuscamentos e gongorismos, que é um mar de palavras e um deserto de pensamentos (...); que Sá de Miranda é um pobre homem que, lutando e suando como quem desbasta uma pedreira, vai talhando no português os seus versos duros e esquinados como calhaus; que todos os grandes de Portugal, quando muito, valem apenas por escreverem bem. (...) Mas, Deus meu! Que há nisto de honroso - escrever bem - quando a ideia traduzida pela prosa admirável é reduzida ou nula?69
Distinguindo a prosa clássica portuguesa pela sua propensão à retórica, pela primazia do gosto da metáfora sobre o pensamento e da música sobre o raciocínio, perspectivava-a George Agostinho como inapropriada para quem quisesse expor ideias em lugar de burilar formas. Para este, uma prosa clara, precisa e de períodos curtos mais adequada seria; uma prosa que fosse “um instrumento de análise minuciosa e de síntese clara e bem ordenada”, que se não perdesse em luxos, dissesse “o essencial e, pela íntima necessidade de ser lógica”, tornasse lógico o nosso pensamento; uma prosa que se não entusiasmasse diante do que escrevesse mas fosse “serena e fria”; em suma, “perdoai-me, meus amigos puristas!”, uma prosa francesa.70
Temos que escrever a língua da ciência, não a desordenada língua da emoção amorosa; e temos que escrever a língua do século XX, não a língua do século XVII, mais ainda, do século XVII português. E uma língua nova só a França no-la pode ensinar.71
Língua encontrável não nos clássicos seiscentistas portugueses, evidentemente, não no “totem Bernardes” ou no “manipanso Vieira”, mas nos clássicos franceses, que deveriam, portanto, prescrevia o filólogo seareiro, ser tomados como modelo para o estabelecimento de uma prosa portuguesa tão nítida quanto elegante, tão límpida quanto inteligível, tão cristalina quanto exata e austera, e para o exercício de um pensamento tão objetivo e preciso quanto, pelo rigor, distinto. Com os grandes mestres franceses, tais como “o claro Voltaire”, aprenderiam os eruditos portugueses a escrever e a pensar à europeia, podendo assim perceberem-se enquanto civilizados, isto é, enquanto aptos para a escritura das obras pelas quais se faria a “nova Renascença de Portugal”, luso fenômeno de aticismo, obras que, como as francesas, uniriam o espírito antigo e o moderno.72
Daí o incitamento:
Imitemos a França, imitemo-la inteiramente, ela nos ensinará o gosto pela composição, a erudição discreta, o amor da Vida, o sentido da Beleza - mesmo nos assuntos mais áridos, mesmo nos escritos mais técnicos; e por todas estas qualidades os eruditos portugueses se tornarão humaniores, mais humanos; e quando for profunda a nossa ciência, ampla a concepção e elegante a maneira de expor - então Portugal será europeu.73
7. Por uma renascença euro-helenizante de Portugal
Tendo como paradigma a pátria de Montaigne e de Stendhal, de Renan e de Croiset, Agostinho, todavia, não queria apenas um Portugal europeu, mas “um Portugal guia da Europa”.74 E nessa direção, defendia, contra o patriotismo nostálgico, cerrado, arqueológico, dos eruditos lusos, um patriotismo crítico, bem informado, analítico, propositivo, que ao invés de evocar e descrever o passado nacional, louvando-o, pensasse-o em articulação com o tempo presente, compreendendo, por exemplo, que se os portugueses do começo da era moderna haviam sido fundamentalmente descobridores - descobridores de novas terras e culturas que se não contentaram com a própria tradição - honrá-los seria antes se lhes opor do que encomiasticamente adorar, antes dedicar-se à reconstrução da nação, de forma a reconduzí-la à dianteira dos povos, do que velar pelas suas antigas grandezas.
“(...) exatamente por venerarmos os nossos antepassados e lhes querermos seguir o exemplo, nós estamos em oposição a eles”.75 “(...) a nossa tarefa de compreender, de assimilar a cultura estrangeira é tão vasta e tão absorvente, [que] não temos tempo nem disposição para nos voltarmos para o passado e irmos pacientemente estudar Fernão Lopes”.76 “Dentro deste vosso patriotismo [o dos eruditos lusos: acadêmicos, clérigos e professores universitários], tão cheio de imagens, das sedas hieráticas duma linguagem episcopal, das hipérboles inflamadas (...) - não há um germe de futuro, alguma coisa que torne Portugal um pouco melhor; é uma retórica estéril, um chalrar infecundo”77,
Uma atitude vã, improdutiva, sem préstimo enquanto fator de estímulo ao progresso do País, e presa a uma época histórica que lhe servia de amparo e refúgio à decadência ambiente - “O vosso ideal, Amigos (...), seria passarmos todos para os deliciosos tempos quinhentistas”78 -, atitude, de resto, muito próxima - e quem sabe se de algum modo herdeira - daquela que caracterizou o patriotismo do século XVII português, quando a censura política exercida pelo domínio espanhol (filipino) reprimia as exteriorizações de afeição à nação. O sentimento patriótico, então, refugiou-se na história, com o passado servindo de compensação ou esteio ao momento presente.
Definindo-os como seiscentistas na modalidade de ensino, na relação com o conhecimento e na rarefação de ideias, no culto à forma, ao vernáculo e à pátria; na estagnação das atividades culturais e na esterilidade livresca; no espírito retórico, exterior e descritivo, desatualizado, obscuro e rebarbativo; como tradicionalistas e puristas, quer dizer, antimodernistas e antieuropeístas; não é de estranhar que, estrangeirado, George Baptista da Silva - para além de haver delimitado a posição tuaregue de Portugal relativamente às nações que considerava civilizadas - desqualificasse os eruditos portugueses, afirmando que representavam, junto com outros naturais, “os beduínos na Europa”: “Nos campos da economia, da organização social, do pensamento, somos tudo quanto há de mais insignificativo; não queremos dizer nada”.79 À semelhança de rudes nômades dos desertos d’África, pensava pejorativamente o francófilo jovem intelectual, desconhecemos
(...) o mais completamente que é possível, todos os grandes nomes de hoje, todas as correntes de opinião que preparam “o mundo que nasce”, o mundo em que Portugal há de ser de novo grande. (...) Como em 500 tivemos a glória de revelar a Natureza, (...) um dia Portugal terá a glória de revelar o Pensamento.80
Pela transferência, para o domínio do espiritual, da atividade pretérita das descobertas, o país poderia abrir “novos campos ao Pensamento”, campos, atente-se, de semeadura matricialmente helênica: na nova Renascença de Portugal, implicado estaria um ressurgimento do espírito grego, ático, aquele mesmo cuja decadência, por volta do século III a.C., fora assinalada pela aparição (sintomática) da figura do erudito, na biblioteca do museu de Alexandria - um dos grandes centros de cultura que, como Pérgamo e Antioquia, então substituíram Atenas -, e do seu gosto da erudição pela erudição.
É, pois, com o que George Baptista da Silva considerava um dos períodos mais dramáticos da história, o da agonia do espírito helênico, que a erudição surge como um fim em si mesmo. Até aí, não se tinha notícia dela enquanto tal:
(...) não se quer dizer que os Sofistas, Hípias, Pitágoras, Górgias, não soubessem minuciosidades de biografias e de estilos; mas aplicavam-nas à Vida, serviam-se delas para instruir os futuros oradores das ágoras; estudava-se o passado, mas sem se desprezar o presente, o grande ideal, ainda neste domínio da inteligência grega, era Viver. O imenso Aristóteles, embora não tivesse feito apenas erudição pela erudição, anuncia já o espírito da nova idade,
Cujo termo, séculos decorridos, “não deve estar”, conjecturava o filólogo, “já muito afastado do nosso tempo”.81 Indício, ora, coerentemente encontrava-o na ofensiva, em toda parte, levada a cabo contra os eruditos; no ambiente desfavorável criado à volta da erudição.
Efetivamente, de todos os lados se levantam clamores e censuras e ironias contra os que fazem da erudição pura, apenas acumuladora de fatos, uma fonte de glória e um motivo de orgulho; com um movimento que foi a princípio leve e quase insignificante e agora vai tomando proporções cada vez maiores e acabará por vencer, iniciou-se a luta dos homens que querem viver a Vida do seu tempo e a dos tempos passados contra os que tornaram o Antigo numa imensa múmia ressequida e estéril.82
Fetichista do fato, da ficha e do verbete, arquivista de coisas mínimas, o erudito luso - contrariamente ao seu congênere francês, visto pelo jovem Agostinho como autor profundo, vivo, elegante e artista - perdia-se em preciosidades e peculiaridades, em estudos minuciosos e secos que, conforme o crivo do seu assíduo crítico, terminavam por o caracterizar enquanto “um imenso tanque, sempre a encher-se e sempre inútil”, tanque cujo conteúdo descurava do mais relevante, das problemáticas fundamentais concernentes ao objeto investigado. Não se discutia, por exemplo, se Gil Vicente fora um grande poeta e, se sim, porque razão, mas se nascera nesta ou naquela paragem, se se dedicara a esta ou àquela ocupação.83
Encastelados em seus gabinetes, apartados do mundo por pilhas de documentos e páginas de monografias recobertas de notas, intermináveis notas, alheados pois de tudo o que não era sua estreita especialidade e das questões postas pelo devir do seu tempo presente, compunham os eruditos obras que, correlatamente, passavam ao largo de toda a vida em sua dinâmica passada. Seu método cognitivo de pura inteligência, segundo George Agostinho, convertia o outrora em algo semelhante a um bicho empalhado, posto que método estritamente lógico, a que faltava o imprescindível critério estético. Somente uma forma de conhecimento que aliasse a inteligência à intuição, fundindo-as numa mesma perspectiva, teria condições de penetrar e recuperar os fenômenos pretéritos, capturando-lhes o que lhes fora vivo e de real interesse e não o que lhes era superficial, rígido e morto.
Não tinham, pois, os eruditos portugueses, também na forma com que produziam conhecimento, uma única centelha de espírito grego. Não tinham amor da vida ou abertura para as inquietações do tempo presente, justo equilíbrio ou ampla compreensão, percepção intuitiva ou clara inteligência, larga cultura ou práxico civismo. Logo, bom seria se se tivessem banhado em “radiosa luz ateniense”84; luz contemplativa, luz ativa, de iluminação tanto teórica quanto política. Afinal, à sua postura metodológica conexo estava, como de costume, análogo posicionamento político, ou, talvez devesse dizer, apolítico, na medida em que defensores de uma conduta intelectual inclinada para o distanciamento do mundo e para o afastamento da vida política, bem ao sabor das “torres de marfim” e dos “retiros silenciosos”, que julgavam indispensáveis para o cultivo e a colheita dos seus eruditos saberes.
8. Os intelectuais e a política
Era esta, ao menos, a posição que adotavam no debate que, tendo se disseminado por toda a Europa, ecoara em Portugal, igualmente na esteira da polêmica decorrente da publicação, em 1927, d’A traição dos intelectuais, o célebre livro de Julien Benda, obra a propósito da qual muito se discutiu “o problema importante da intervenção dos intelectuais na política”,85 já para lançarmos mão de alguns dos termos do artigo com que o jovem George, nesta altura contando vinte e cinco anos, também se debruçaria sobre a questão.
Por tudo o que até agora viemos detidamente tratando, seria quase desnecessário expormos o teor da linha argumentativa de Agostinho da Silva, neste seu Atividade política dos intelectuais portugueses, se não fosse por ter sido ele a sua primeira peça enfaticamente antiditatorial - não digo antissalazarista porque, por aqueles idos de trinta e um, tanto o Salazarismo quanto o Estado Novo estavam ainda em fase de gestação.
Pelo que até aqui está posto, pois, poderia o leitor tranquilamente inferir que encontraria ali advogada uma perspectiva seareira, de inspiração clássica, para a qual é a política a atividade fundamental do cidadão; de que antes de tudo se é cidadão e só depois, erudito e professor; de que não deviam as universidades descurar do aspecto moral e cívico dos seus estudos, se deixando abafar pelas gramáticas e dicionários, pelas regras e classificações; e de que, portanto, aos intelectuais cabia o dever e a tarefa de intervir na política.
Ancorando o debate da questão nas especificidades da problemática realidade político-econômico-social da sua terra natal, pensava George Agostinho que todo o trabalho de erudição seria “inútil e supérfluo” enquanto se não arrumasse o país, arrumação para a qual os homens de letras poderiam e deveriam, logo de imediato, contribuir, não com amontoados de miudezas enciclopédicas, mas com o conhecimento, a identificação e a catalogação das conquistas e mazelas da nação, “para sabermos o que temos e sobretudo o que nos falta. Depois, quantos problemas essenciais a resolver”.86
Em primeiro lugar, afirmava,
(...) precisamos de pão, e aos políticos se abre todo o imenso horizonte deste problema a resolver. E precisamos de inteligência. Não daquela inteligência sutil e rábula que nos vem de Coimbra e sabe estropiar textos; (...) mas da inteligência que compreende, (...) a inteligência que só se pode conseguir pela reforma mental dos portugueses: e esta depende da política.87
Mais especificamente, das políticas públicas para a área da educação, que, naquele momento adverso, estavam a cargo de um Estado autoritário, cujo homem forte provinha, precisamente, da Universidade de Coimbra, em que estudara Direito, militara pelo Centro Acadêmico de Democracia Cristã - junto com Manuel Gonçalves Cerejeira, depois, desde 1929, Cardeal-patriarca de Lisboa - e fora lente de Ciência Econômica. Mal sabia o setentista poeta republicano Guerra Junqueiro, quão longeva e polissêmica poder-se-ia tornar uma sua certa frase, segundo a qual da Universidade de Coimbra só viria luz se lhe deitassem fogo. Fogo não ateado, no entanto, a despeito das tochas e achas de caráter antierudito e antifascista que lhe destinaram - Salazar e Cerejeira viriam a comandar o Estado e a Igreja, durante quase cinquenta anos, com grande participação de quadros provenientes da velha acrópole universitária, o que muito a fortaleceu -, a despeito das críticas que, escapando à censura, incidiram na intersecção da esfera do saber com a do poder, a exemplo da tecida por Agostinho da Silva.
Se a mencionada reforma mental dependia de uma situação política que lhe fosse favorável e, estritamente, da definição e implementação corretas de políticas educativas afins, dependia, antes, de quem as pudesse conceber e dirigir, na direção de uma renascença europeia de Portugal, em que desempenhariam relevante papel aquelas obras de espírito simultaneamente antigo e moderno, helênico e francês, que os eruditos típicos da conservadora ordem intelectual portuguesa deveriam tornar-se aptos a escrever.88 Aos segmentos estrangeirados ou europeizados, esclarecidos, modernizados e civilizados da intelectualidade lusa, pois, atribuía o progressista filólogo George Agostinho da Silva a missão de colaborar ativamente para a renovação da mentalidade nacional, numa ação a se dar em, pelo menos, quatro planos: crítica do poder, inventariação do país, criação de cultura-educação do povo, combate à postura pedagógica e metodológica, patriótica e político-ideológica de acadêmicos e professores das Faculdades de Letras, de determinados filólogos, filósofos, historiadores e arqueólogos, além de símiles e epígonos.
(...) os intelectuais [asseverava] devem fazer política, mas intelectualmente; eles devem constituir aquela força de crítica vigilante que todos os governos temem e afastados das coisas miúdas de dia a dia, melhor poderão desempenhar a sua missão de reguladores e orientadores; não esqueçamos isto: a missão dos intelectuais tem de ser sobretudo de orientação e de crítica; portanto, serena, sem intenções pessoais, mas com perfeito e seguro conhecimento de ideias. Quase insensivelmente vim arrastado até esta última palavra - ideias; eu queria-a afastar do meu caminho para não ter que dizer, com um pouco de dureza, o que me parece ocultar este temor que os intelectuais de Portugal têm da política: eles dão-me a impressão de terem sobretudo uma vasta e paradisíaca ignorância de ideias. Fora da sua especialidade estreita de arqueólogos e de biógrafos, de maus arqueólogos e de maus biógrafos, os nossos eruditos são como morcegos tombados no chão; que desajeitado bater de asas, que movimentos indecisos, que tombos, que posições tão profundamente cômicas (...). A cultura geral dos nossos sábios das letras é quanto há de mais rudimentar, o mundo das ideias uma coisa que os atormenta, um vôo largo de síntese logo os encadeia e desmaia; e rancorosamente falam de retórica, de falta de documentos, e fogem de todo o debate de pensamento. A abstenção da política não representa, pois, para eles, uma ação de deliberada inteligência, mas o reconhecimento de uma impotência covarde. (...) Outra razão ainda se põe a que os intelectuais portugueses se dediquem à política; ela é, na realidade, pouco cômoda; como se tem de atender a uma cultura geral e não apenas à da especialidade, é difícil, se não impossível, entrar para a Academia - onde se exige, com a apresentação da candidatura, um atestado de ignorância; tem de se sustentar uma luta de todas as horas contra as más-vontades, a rotina, a malícia e a estupidez, que tão desoladoramente abundam em Portugal.89
Luta incessante que demandava abnegação dos seus paladinos intelectuais, aí incluindo a impossibilidade de uma realização profissional plena em proveito do bem comum e de causas justas, haja vista que, admoestava à época,
Não são o nosso país e o nosso tempo de molde a permitirem que todos aqueles que sentem uma vocação a sigam decididamente, sem se importarem com o que se passa à sua volta e sem investigarem das possibilidades de execução dos seus trabalhos; cada um de nós tem de desistir de ser o grande arqueólogo, o grande historiador, o grande filólogo que poderia talvez vir a ser; a missão é outra - mais nobre e imensamente mais difícil: a de preparar as condições de meio indispensáveis para que outros o possam vir a ser depois de nós.90
Como bom seareiro, o jovem George Baptista da Silva outorgava extrema importância ao papel dos homens de letras na transformação social, política, econômica e cultural da nação. Outorga mensurável quer pela sensível quantidade de textos que dedicou, em clivagens diversas, à crítica contenciosa e dissuasiva dos intelectuais, quer pela “fúria polemista” com que, amiúde, o fazia, nisto seguindo os passos firmes de Proença e de Sérgio.91
Note-se que os acontecimentos que lhe abalizavam tanto a decadência do espírito grego, desde a Antiguidade, quanto a possibilidade de uma sua ampla ressurgência, na contemporaneidade, eram exatamente de ordem intelectual: a aparição do erudito alexandrino e a onda de combate à erudição como um fim em si mesmo,92 respectivamente. Onda, a propósito, formada por homens de ideias cuja escuta da tradição não se entregava ao passado, mas pensava sobre o presente, e potencialmente por jovens cultos que, dissertava George Agostinho, diferem da mocidade letrada avessa a assuntos políticos, afeita a pergaminhos, e que
(...) sentem a necessidade de intervir na política, sobretudo na ocasião em que fazê-lo é defender a dignidade pessoal no que ela tem de mais sagrado e intangível; na ocasião em que tomar uma atitude política é lavrar o protesto mais caloroso e mais veemente contra certos atropelos de liberdade de pensamento e de expressão, gritar bem alto a vontade de ser homem e não coisa que se maneja segundo o capricho dos que têm força. Esses jovens existem; e é forçoso que finalmente se decidam a deixar por um momento os seus livros e a lançar-se à conquista do que é essencialíssimo para o homem, daquele sentimento, daquele anseio que põe uma palpitação mais forte no seu coração e uma chama mais viva e clara na sua inteligência: a Liberdade. A responsabilidade contraída pelos intelectuais inativos em países que porventura estão sob o domínio de classes em detrimento de todas as outras é sempre muito grande; maior ainda naqueles em que as preocupações dominantes dessas classes podem conduzir a nação a gestos que depois se reconhecerão irreparáveis, a descalabros que ninguém jamais poderá remediar.93
Publicado em maio de 1931, a este liberal, no sentido do que preza, defende e valoriza a liberdade, e antiditatorial Atividade política dos intelectuais portugueses, seguir-se-ia, em junho, O mar na literatura portuguesa, artigo em que o engajado filólogo ironizaria a valer não só acadêmicos e lentes das Faculdades de Letras, como de costume, mas literatos outros que viriam a ser proeminentes representantes da ditadura de Salazar. Refiro-me, nomeadamente, ao ensaísta João Ameal e ao jornalista Antônio Ferro.94 O primeiro, em cerca de três anos, autor de uma das vulgatas do Salazarismo, o Decálogo do Estado Novo, o segundo, não tardaria, chefe do Secretariado da Propaganda Nacional, um e outro, dentro em pouco, ideólogos-promotores conspícuos do regime.
9. Os estudos em Paris, a institucionalização do Estado Novo e a polêmica com Afredo Pimenta
Pela centralidade de que a cultura francesa gozava em seu pensamento, imagino que nada seria tão atrativo para o jovem Agostinho como a possibilidade de prosseguir os seus estudos em França. O que, com efeito, veio a se realizar no segundo semestre de 1931, uma vez tendo concluído, em Lisboa, o seu curso de licenciatura na Escola Normal Superior, e organizado um Centro de Estudos Filológicos, a pedido da Junta de Educação Nacional. Junta que, por sinal, já lhe havia subsidiado no processo de elaboração tanto das Poesias, de Catulo, cujo texto estabeleceu e traduziu, quanto d’A Religião Grega, e que na sequência ainda lhe viabilizaria, com a concessão de uma outra bolsa, a partir de novembro de 1931, a almejada ida para a França, de modo a apurar a sua formação em Filologia Clássica.
Na terra de Racine, no entanto, não foi o interesse filológico o que lhe falou mais alto. Desde os tempos liceais inclinado para a língua e literatura portuguesa, sob a batuta do sempre recordado mestre Augusto César Pires de Lima,95 assim como para a francesa - e daí ter inicialmente enveredado pelo curso de Filologia Românica, na Faculdade de Letras do Porto -, inclinação, no caso da francesa, de que se ocupara, antes mesmo de cruzar os Pireneus, em artigos e resenhas de 1931 publicadas n’O Comércio do Porto - “Maurois e Turgueniev” (em março), “Populismo” (em julho), “Zola” e “Anedota romântica” (em agosto)96 -, Agostinho da Silva, algo decepcionado com a banalidade do trabalho que por lá lhe calhara enquanto filólogo clássico, acaba por propor à Junta o deslocamento do foco de seus estudos para a história moderna da França e para uma certa linha da literatura francesa moderna e contemporânea. A Junta acede. Passa então ao conhecimento da notável pedagogia professada, na França dos séculos XVII e XVIII, pela Congregação do Oratório, a cujo progressismo o ensino jesuítico foi de todo adverso97; ao comentário dos feitos e escritos de Michel de Montaigne, como ao estabelecimento do texto e à tradução de três dos Ensaios98; afora a análise das obras de Henri Beyle, pseudônimo Stendhal, e de Prosper Mérimée.99
Sem prejuízo do pluralismo e da riqueza dos conteúdos tratados em cada um desses trabalhos, não estaria em erro se definisse como temática de fundo de todos eles aquela mesma que Agostinho da Silva tangenciou em Satura e que desde Carta aos velhos latinistas, seu primeiro artigo na Seara, passou a mais detidamente abordar, qual seja, a da crítica (incansável) da erudição auto-satisfeita, dos eruditos e de seus perniciosos efeitos educativos, sociais e políticos, quer pela vertente (anversa) de que foram exemplos os jesuítas, Mérimée, os membros da Academia das Ciências e professores das Faculdades de Letras, quer pela vertente (reversa) em que figuraram Montaigne, os oratorianos e Stendhal, os estrangeirados, seareiros e setentistas, dentre estes, Antero, cujo antepassado, Padre Bartolomeu do Quental (1626-1698), fora o fundador da Congregação do Oratório em Portugal, aonde veio a desempenhar importante papel no campo pedagógico no decorrer do século XVIII.100
Com tantas páginas assiduamente escritas contra setores representativos do establishment intelectual português, não admira que, desde os tempos de Paris - quando, assim como o exilado Antônio Sérgio, morava na Residência de Levallois-Perret -, Agostinho da Silva já se visse como um potencial candidato ao exílio.101 E tinha razões para isso, fosse pelo teor direto ou mediado dos seus escritos, fosse pelo círculo teórico-político a que pertencia, fosse, sobretudo, pelos acontecimentos que se iam desenrolando em seu país.
No mesmo ano, 1932, em que ainda brotaram de sua pena parisiense peças de fundo antierudito comum, não obstante específicas clivagens - paródias como Discurso Acadêmico, sátiras como A nobre vida de Paradigma, além de quase todos os títulos do que poderíamos denominar a primeira leva das Glossas, a que não seria coligida posteriormente em livro,102 ao contrário da segunda -, neste mesmo ano, a 5 de julho, Salazar assumiu a presidência do Conselho de Ministros, empossando um ministério majoritariamente formado por civis;
os generais começaram então a ser substituídos por professores da Universidade. Durante quarenta anos, a Universidade foi a principal base de recrutamento do pessoal político superior.103
E de tal modo, que houve quem, cerca de dois anos depois de promulgada, em abril de 1933, a nova Constituição, quem, como Miguel de Unamuno, caracterizasse o recém-instituído regime enquanto um “fascismo de cátedra”, uma ditadura de catedráticos e generais,104 ou que, como Fernando Pessoa, a ele se reportasse, à mesma época, enquanto um consórcio de padres e doutores.
Sim, é o Estado Novo, e o povo/ Ouviu, leu e assentiu/ Sim, isto é um Estado Novo/ Pois é um estado de coisas/ Que nunca antes se viu.105
Estado de coisas nunca antes visto, dado o “Erro” e a “Fraude” que lhe eram intrínsecos, dado a enganosa ideia de tradição e de porvir, a ausência de alegria e de verdadeira união nacional, a repressão e o cerceamento dos direitos de agremiação e expressão, a mesquinharia, os valores pseudo-cristãos e a retomada do espírito de inquisição que lhe constituíam, conforme as demais estrofes do poema de Pessoa. Um Estado Novo, pois, de coisas arbitrárias a se ver.
Coitadinho/ Do tiraninho!/ Não bebe vinho./ Nem sequer sozinho...
Bebe a verdade/ E a liberdade./ E com tal agrado/ Que já começam/ A escassear no mercado.106
Utilizada pela primeira vez, segundo a versão oficial dos autores dos Anais da Revolução Nacional, nos inícios de 1932, pelo ministro do Interior, Mário Pais de Sousa, antigo condiscípulo de Salazar em Coimbra, a expressão “Estado Novo” denominava, já então, a forma de organização político-administrativa do país que resultaria da ação reorganizadora da ditadura. Forma de organização de caráter unitário e nacionalista, antiparlamentarista, antiindividualista e antidemocrático, como de fato e de direito se veio a sagrar, tendo, aliás, logo a seguir, sido eloquentemente descrita pelo Decálogo, de João Ameal, que o Secretariado da Propaganda Nacional, presidido por Antônio Ferro, editou em 1934, um ano após a aprovação do novo texto constitucional, do qual veio a ser complemento propriamente político, afora peça basilar de divulgação dos dez “mandamentos” do regime, suma política de uma dogmática que se rezava assim:
O Estado Novo representa o acordo e a síntese de tudo o que é permanente e de tudo o que é novo, das tradições vivas da Pátria e dos seus impulsos mais avançados. Representa, numa palavra, a vanguarda moral, social e política.
O Estado Novo é a garantia da independência e unidade da Nação, do equilíbrio de todos os seus valores orgânicos, da fecunda aliança de todas as suas energias criadoras.
O Estado Novo não se subordina a nenhuma classe. Subordina, porém, todas as classes à suprema harmonia do Interesse Nacional.
O Estado Novo repudia as velhas fórmulas Autoridade sem Liberdade, Liberdade sem Autoridade - e substitui-as por esta: Autoridade e liberdades.
No Estado Novo o indivíduo existe, socialmente, como fazendo parte dos grupos naturais (famílias), profissionais (corporações), territoriais (municípios) - e é nessa qualidade que lhe são reconhecidos todos os necessários direitos. Para o Estado Novo não há direitos abstratos do Homem, há direitos concretos dos homens.
Não há Estado Forte onde o Poder Executivo o não é. O Parlamentarismo subordinava o Governo à tirania da assembleia política, através da ditadura irresponsável e tumultuária dos partidos. O Estado Novo garante a existência do Estado Forte, pela segurança, independência e continuidade da chefia do Estado e do Governo.
Dentro do Estado Novo, a representação nacional não é de ficções ou de grupos efêmeros. É dos elementos reais e permanentes da vida nacional: famílias, municípios, associações, etc.
Todos os portugueses têm direito a uma vida livre e digna - mas deve ser atendido, antes de mais nada, em conjunto, o direito de Portugal à mesma vida digna e livre. O bem geral suplanta - e contém - o bem individual. Salazar disse: Temos obrigação de sacrificar tudo por todos; não devemos sacrificar-nos todos por alguns.
O Estado Novo quer reintegrar Portugal na sua grandeza histórica, na plenitude da sua civilização universalista de vasto Império. Quer voltar a fazer de Portugal uma das maiores potências do mundo.
Os inimigos do Estado Novo são inimigos da Nação. Ao serviço da Nação - isto é, do interesse comum e da justiça para todos - pode e deve ser usada a força, que realiza, neste caso, a legitima defesa da Pátria.107
Assíduo colaborador e teorizador do regime, João Ameal, que era monárquico-integralista, pertencia à Ação Realista Portuguesa, dissidência do Integralismo Lusitano liderada por Alfredo Pimenta, este último, supostamente, “a mais culta e mais poderosa mentalidade da contra-revolução portuguesa”,108 consoante o Panorama do Nacionalismo Português, obra de 1932, do próprio Ameal.
Pimenta, cuja trajetória teórico-política pode-se apreender por uma sua frase lapidar de teor bastante discutível - “O que estava dentro do meu anarquismo encontra-se dentro do meu republicanismo e mantém-se dentro do meu monarquismo” -, tinha “fama de erudito irascível e auto-satisfeito”109 ou, se simpaticamente dito, de “polemista truculento (...), de contundência camiliana, menos fundibulário por vocação que por erudita pertinência”.110 Discípulo declarado de Fustel de Coulanges, encarnava, em ciência histórica, o tipo clássico do historicista - “inflexivelmente fiel”, como dizia, “à doutrina de que a História só é ciência, quando se limita a verificar fatos, e a concatená-los”111 -, e, enquanto tal, erudito partícipe de areópagos como o Instituto Português de Arqueologia, História e Etnografia, do qual foi sócio fundador, em 1933, ano em que deflagrou intensa polêmica com Agostinho da Silva, a quem acusava de ter cometido plágio no trabalho de tradução das Poesias, de Valério Catulo, afirmando, com critério de neutralidade científica caracteristicamente positivista - típico da escola histórica à qual filiava-se Coulanges -, que “Alheio aos nomes que subscrevem as obras”, as analisava e anotava, “como o químico, no seu laboratório, analisa e anota as fases duma reação”. E continuava:
(...) é lamentável que se não hesite em apresentar como nosso o que não é nosso (...). Mas quem consome a existência à margem de todos os prazeres mundanos, de todas as distrações sociais, na tentativa permanente de criar para o seu nome um renome legítimo, na ânsia cada vez maior de medir em toda a sua amplitude, profundidade e transcendência a sua ignorância, esse não pode calar-se quando esbarra em criaturas levianas que querem aparentar o que não são. (...) O que o sr. Agostinho da Silva apresenta como seu é a tradução, mutatis mutandis, para se não dizer que é uma tradução literal, do livro Catulle, Poesies, texte établi et traduit par Georges Lafaye, Professeur à la Faculté des Lettres de l’Université de Paris.112
Quer pelo tom ou teor da prosa quer pelas inclinações do prosador, percebe-se de que trincheira político-literária disparava Alfredo Pimenta, cuja acusação de plágio forjada contra Agostinho da Silva não era mais do que uma forma falaciosa de fazer frente às investidas antieruditas de um jovem filólogo, política e intelectualmente antagônico, que era mister barrar: “uma pessoa incômoda”,113 como, na Segunda Carta ao Ex. mo Senhor Dr. Alfredo Pimenta, se auto-reconheceu o não emendado “pedantesco articulista”, para relembrarmos um dos termos com que, em batalha precedente, José Joaquim Nunes se municiou, tendo ocupado a mesma trincheira em que, agora, mais veementemente, pelos acadêmicos, Pimenta revidava, com o apoio indesejado de gente como o Dr. Botocudo Sênior, sócio da Academia das Ciências, que, em carta ao diretor da Seara Nova, considerara:
Por mim, não tenho dúvidas algumas sobre a culpabilidade do tal Agostinho da Silva; este indivíduo é já bem conhecido pela sua irreverência inclassificável ante as instituições culturais mais bem firmadas, as reputações mais solidamente estabelecidas no consenso universal e pelo pouco escrúpulo com que se apodera dos textos e dos pensamentos alheios. Há frases, quase períodos inteiros dos seus escritos, nomeadamente em alguns dos que intitula Glossas (como se efetivamente se tratasse de um escrupuloso lexicógrafo), Discursos ou Cartas, que são copiados, transcritos, Senhor Diretor, sem falha de uma só palavra, das mais notáveis orações que se pronunciam na Academia das Ciências ou na sua congênere dos Arqueólogos. (...) com a sua autoridade de Diretor, ponha cobro a um tal vexame, a esse constante esparrinhar de chistes lamacentos que atinge as bases da mentalidade pátria. É necessário desmascará-lo diante de todos, apontar-se um a um os plágios (...). A obra começou já a ser feita, com pulso rijo e vergasta de ferro, nos eruditos folhetins que um dos mais altos espíritos do nosso País publica quase hebdomadariamente no importante órgão Diário de Notícias. Que se continue sem desalentos, sem fazer caso das suas respostas - duvido que as possa redigir, dado o cerrado da acusação e o valor do adversário - que se leve a tarefa até o fim! Avante, Doutor Pimenta!114
Mas, um momento: o que haveria de indesejável, para Alfredo Pimenta, em tão incondicional apoio? O fato de Botocudo Sênior - coisa adivinhável já pelo ridículo do nome - não ser indivíduo real, mas criação da pequena galeria paródico-satírica de personagens inventadas por Agostinho da Silva - aí incluídos D. José Pomadinha, da Academia das Ciências e da Associação dos Arqueólogos, e João Cabrinha, professor da Universidade -, cujos “discursos ou cartas” há pouco aludidos são:
- Discurso acadêmico, de D. José Pomadinha, Seara Nova (fevereiro de 1932),
- Carta a Botocudo Sênior, de João Cabrinha, Seara Nova (março de 1933) e
- Uma carta, de Doutor Botocudo Sênior, Seara Nova (abril de 1933), que acabamos de citar.115
Uma vez analisados os textos produzidos pelas partes em contenda, está fora de dúvida que coube a Agostinho da Silva o êxito na polêmica em que, como quando da altercação com J. J. Nunes, rebateu cada uma das colocações e provocações de Alfredo Pimenta. Este, contudo, quer pela persistência quer pelo ardil da argumentação, deu-lhe um tanto mais de trabalho. Desencadeada em 25 de março de 1933, a rinha - talvez seja esta a denominação mais apropriada -, entre o erudito integralista e o culto democrata, que debatia a partir de Paris, só se encerrou a 8 de junho, réplicas e tréplicas depois, quando o segundo, já regressado a Lisboa, redige o seu quinto texto, Nota breve sobre uma questão já longa, em resposta ao quarto do primeiro. Nota que, destinada ao “ignorante” e “lamentável pateta” Pimenta, o que “anda a fingir de filólogo com o seu latinzinho de sétima classe dos liceus”,116 a certa altura notifica assim:
Ora aconteceu que na “filológica pugna” que se travou sobre o Catulo, eu pude derrubar um por um todos os argumentos do sr. Dr. Alfredo Pimenta, tanto os que visavam a apresentar-me como um plagiário, como os que tendiam a mostrar-me como um ignorante de tudo o que respeita ao autor editado e à língua latina; não houve neste feito nenhum merecimento da minha parte: o sistema de acusação do ilustre crítico assemelhava-se bastante àquelas barracas de tiro ao alvo para crianças em que os animais desfilam lentamente e a dois passos do atirador: o resultado é que não escapa nem um camelo, não se poupa nem um urso; foi mesmo humilhante para mim ter de realizar a matança (...); vendo por terra toda a sua querida fauna de erros, citações falsas, cópias adulteradas e castos dizeres.117
Intelectualmente vencedor, não foi, todavia, sem perdas que o jovem seareiro deixou a arena donde saiu cabisbaixo Pimenta. Seu retorno a Portugal deu-se de maneira compulsória; adveio de uma decisão do Ministro da Instrução Pública de Salazar, o também professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e membro da Academia das Ciências, Gustavo Cordeiro Ramos - conhecido não apenas de Pimenta como de José Antônio de Matos Romão, lente da mesma instituição e igualmente partícipe da coleção de desafetos eruditos de Agostinho, de quem fora professor de Filosofia na Escola Normal Superior -, que determinou a sua volta e o corte da bolsa que o mantinha em França.118
Ainda que involuntariamente interrompidos, os tempos vividos para além-Pireneus, na Sorbonne e no Collège de France, na assídua convivência com Antônio Sérgio e, por meio deste, nas conversas com o grande físico comunista francês Paul Langevin, representaram porém um passo importante, consumando uma tendência teórico-política que se já havia explicitamente mostrado em alguns dos seus textos e atitudes, e que, me parece, ganha uma formulação significativa numa ligeira nota de rodapé daquele escrito com que encerra a sua participação na polêmica com Alfredo Pimenta - esta última, ponto culminante de todo o crítico itinerário antierudito agostiniano -, nota de fim de página que claramente assinala o fim de uma etapa.
Devo dizer ao sr. Dr. Alfredo Pimenta que dou aos “diplomas” que me concedem, quer sejam de elogio ou de censura, o mesmo valor, isto é, nenhum; o que me interessa nos outros não é o que dizem de mim, mas o que eles próprios fazem; creio que todo o prazer reside no ato de trabalhar e na verificação da distância que me separa do ponto de partida; não como filólogo, ou como crítico, ou como escritor, mas como alguma coisa de que todas essas atividades são apenas aspectos fragmentários - como homem. Assim o Catulo, relido hoje, quatro anos depois de o ter composto, dá-me apenas um orgulho: o de já não ser filólogo. Mas tudo isto, para o Senhor Doutor, deve ser paradoxo.119
10. Considerações finais: filologia grega ou espírito grego? O humanismo militante e crítico de Agostinho da Silva
Curioso mundo este em que há fenômenos em que o centro encontra-se na periferia; ou em que o sentido que realmente interessa, para a leitura de uma vida, não se encontre no principal de uma determinada fonte, mas num seu anexo, numa declaração formulada à margem, em nota de pé de página. Declaração com que Agostinho da Silva sagrava uma qualidade sua que, de tão notória, ser-lhe-ia doravante reconhecida pelo resto da vida: a corajosa, e infelizmente rara, coerência de radicalmente moldar o feito pelo dito, o gesto pelo pensado e o escrito, a ação cotidiana pelo preconizado princípio.
Ao deixar de se reconhecer na sua especialidade, não mais adstringindo o conjunto da sua humanidade àquela área específica do saber, George Agostinho não só demarcava o horizonte expandido das suas metas e interesses como chamava a si o corolário ético-político decorrente das ideias que defendia, segundo as quais, pode-se sumariamente dizer, mais valia “possuir o espírito grego do que a filologia grega”120; aquele espírito de acento helênico cujo sopro manifestava-se, por exemplo, no civismo do democrata exemplar encarnado pelo filólogo e historiador da literatura grega Maurice Croiset, sábio que jamais se fechou em torres de marfim e que conseguiu, numa “verdadeira compreensão” daquele espírito, “aliar as suas preocupações de investigador aos deveres fundamentais do cidadão”,121 aliança de que davam prova as seguintes palavras:
Atenas, pela primeira vez na antiguidade, mostrou o que um povo que governa a si próprio é capaz de fazer para se assegurar um lugar de honra na história. Desta honra tornou-se Atenas digna pelo seu espírito cívico, pela sua humanidade, pela sua cultura superior. Ninguém pode negar que os Atenienses, na época de esplendor da sua Democracia, tiveram verdadeiramente uma alta ideia dos direitos e dos deveres do cidadão. Mostraram-se então sinceramente cuidadosos do bem público, prontos para todos os serviços que o interesse do Estado lhes impunha (...), aceitando de bom grado o sacrifício e as fadigas necessárias, (...) orgulhosos da reputação da sua cidade e felizes por contribuírem para o seu aumento, num sentimento de nobre solidariedade. (...) Era em Atenas que o sentimento da fraternidade humana encontrava as disposições morais mais favoráveis ao seu desenvolvimento. E esta humanidade instintiva manifestava-se até na política nacional. Na sua qualidade de Democracia, a república ateniense sentia-se obrigada a sustentar em toda a parte os princípios democráticos. Era, pois, a natural inimiga das potências opressoras, a protetora dos fracos, tinha por lema a defesa da liberdade. (...) Mas, entre todos os títulos que recomendam o nome de Atenas, nenhum vale o que adquiriu pela sua brilhante cultura intelectual, moral e artística. Ora o que é particularmente interessante notar é a estreita relação desta cultura com as suas instituições democráticas. (...) [A liberdade] foi uma das fontes principais dos sentimentos que animaram os atenienses do século V, a começar pelo maior dentre eles, Péricles. Foi numa atmosfera de liberdade democrática que se produziram todas as grandes obras desse tempo. (...) Não foi a liberdade ateniense que fez um Tucídides, como tinha feito um Péricles? (...) É possível imaginar Sócrates senão em Atenas? (...) Em suma, foi porque a liberdade tinha feito a educação de Atenas que ela pôde tão largamente contribuir para a da humanidade.122
Centrado nos elementos políticos, cívicos, sociais, intelectuais, morais e artísticos que haviam feito, elevando-a à condição de paradigma histórico, a grandeza de Atenas, este fragmento do livro de Croiset evocava um passado de enorme significado para aquele tempo presente em que, entreguerras, a experiência da liberdade humana estava sendo varrida do mapa da Europa: Benito Mussolini avançava a passos largos na Itália, Josef Stalin, na União Soviética, Adolf Hitler, na Alemanha e, mais para o fim da década de trinta, el generalísimo Francisco Franco faria o mesmo, na Espanha. Salazar, temos visto, lá ia também dando a sua sui generis contribuição fascista, no âmbito do, para além de liberticida, “inculto, atrasado, quase bárbaro”123 recanto da Europa; aquele pelo qual, no XVI, o humanista escocês George Buchanan passou “como por uma terra de selvagens”.124
Pois bem, se de 1928 a 1933, o que se viu, no plano macropolítico luso, foi o processo de formação e institucionalização do Estado Novo, no plano da vida de George Agostinho da Silva, o que se deu, numa sincronicidade tão curiosa quanto significativa, foi a consolidação de uma postura militante e crítica, consequente desdobramento dos teores que vinham sendo examinados e difundidos pelo engajado filólogo - mesmo quando por meio da publicação de excertos traduzidos das obras de grandes autores, tais como Croiset -, ao longo do seu intenso mergulho pelas profundidades da cultura clássica.
Sem jamais esquecer que o ar que lhe arejava o escafandro, oxigenando-lhe as ideias, vinha da superfície conturbada das primeiras décadas do século XX, caminhou o jovem especialista pelos extratos literários, históricos, políticos e filosóficos da civilização greco-latina, neles dialogando (às vezes, polemizando) com muitos dos seus intérpretes - uns mais, outros menos próximos da mencionada superfície do oceano que é o tempo, plasma em que se banham os fenômenos (Marc Bloch dixit) -, mas especialmente com Michel de Montaigne, por meio do qual outrossim visitou as profundidades do humanismo da Renascença e margeou as questões que sacudiam o pensamento europeu no alvorecer da modernidade, de Maquiavel a Erasmo, de Lutero a La Boétie, de Copérnico a Descartes e a Pascal, para citarmos, entre predecessores, contemporâneos e vindouros, sem esquecermos de Pico della Mirandola, de Rabelais ou de Francisco Sanches, alguns dos mais representativos.
O que, todavia, ora importa notar é que “Vivendo com os livros,
Montaigne não tinha, no entanto, cultura puramente livresca, o que é o segredo dos espíritos múltiplos como o seu que, parecendo apenas atentos a uma ocupação, na realidade se interessam por todas. Depois, Montaigne possuía fortemente o sentido da vida e, sabendo bem que os livros lha não poderiam reproduzir com toda a fidelidade, que muito se perdia na passagem à escrita, observava-a ele próprio, com a curiosidade sempre desperta e sempre nova. Montaigne observa como se começasse a viver todos os dias. Em face da vida, o seu espírito é jovem, insaciável, de uma extraordinária frescura de impressões; o ceticismo e a cultura não lhe deixaram no espírito nada de seco e desdenhoso; Montaigne é, de fato, “o homem que acorda todas as manhãs sem as ideias da véspera”, como um grego, e perpetuamente as renova, tirando-as dos livros, dos outros e de si mesmo.125
Igualmente pela experiência humanista de Michel Eyquem, pois, reconhecia Agostinho Baptista da Silva que mais valia respirar, inspirando-se, o espírito grego do que escolasticamente saber filologia grega, sobretudo naquela contextura de um Portugal opressor e sombrio; mais valia o seu legado cívico, humano, fraterno e democrático, o seu exemplo de cultivo, de defesa e de amor da vida, da liberdade e da beleza, da sua extraordinária obra de arte e pensamento. Daí porque, em se tratando dos preceitos agostinianos, infatigavelmente endereçados aos intelectuais portugueses - e que George Agostinho, coerentemente, adota como seus, seguindo-os à risca -, mais valia a cultura geral do que a erudição estreita; a reflexão politizada do que o alienante encastelamento, a atitude participativa do que o conformado e rentável comodismo. Mais valia, enfim, o sacrifício da formação de especialista em prol de um humanismo militante e crítico cuja missão era colaborar intelectualmente para a plena renovação do País, orientando e criticando, educando e criando cultura, fiscalizando o poder e reformando as mentalidades, a das elites, precipuamente, tudo na direção de um arranque modernizador, civilizador, numa palavra, europeizador da decadente nação cispirenaica, talvez por aí um dia alçada à condição de inovadora guia espiritual, mental ou intelectual da Europa e de um mundo de feição espiritualmente helênica, que se já podia pressentir, embora somente nalgum ponto distante do futuro viesse talvez a se estabelecer.126Mutatis mutandis, fora este o caráter da proposta de Proença, acometido de esquizofrenia, trágica ironia do destino, desde 1931, continuava sendo este o da de Sérgio, de quem Agostinho da Silva torna-se amigo e discípulo desde os tempos de Paris até, pelo menos, meados dos anos quarenta. O mesmo Sérgio que de volta a Portugal, em 1933, e até 1938-1939, passa a ser o principal orientador da importante revista de doutrina e crítica, costumeiramente definida por ele como essencialmente humanista, em considerações que, postas aqui à guisa de conclusão, discorriam assim:
A Seara Nova (...) não é um partido nem um corrilho, mas um estádio, uma academia, uma escola (...) onde se treinam os cidadãos no Espírito Crítico e no Civismo, e onde a busca da justiça na sociedade tem como raiz ou alicerce a busca da justiça na nossa alma, o culto da veracidade e da razão.127
(...) a Seara Nova, falange moral, não é uma seita entre as demais seitas, um partido entre os demais partidos, uma igrejinha político-social entre as demais igrejinhas político-sociais, - igrejinha que oponha, como qualquer outra, às estreitezas, incompreensões e limitações das outras seitas, as suas próprias estreitezas, incompreensões e limitações. A Seara Nova não é nada disso, mas sim um ginásio de cultura humana, de largo e generoso humanismo crítico, - e a cultura, para ela, consiste precisamente em se libertar o indivíduo de toda espécie de limitações, subindo portanto ao universal, donde tudo que é positivo se observa e abarca. (...) Tudo quanto é larga e profundamente humano é “seareiro”.128