Introdução
Dado que se trata de uma área de pesquisa extremamente recente, ao menos até aqui a preocupação maior daquelas e daqueles que se dedicam ao tema não era a de delimitar a área, mas a de construir este campo no fazer cotidiano, seja nas escolas e nos espaços não-formais, seja na universidade. O amadurecimento e o volume crescente das pesquisas e das práticas, todavia, permitem-nos, nesse momento, debruçarmo-nos sobre o que temos feito e pensado e, por conseguinte procurar identificar naquilo que foi efetivamente realizado, alguma especificidade (VELASCO, 2021, p. 5).
Recentemente, entre alguns integrantes do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar da Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia (ANPOF), foi formado um grupo de trabalho para investigação do estatuto epistemológico do campo científico-filosófico “Ensino de Filosofia”. O contexto desse debate passa pelo agenciamento, principalmente, da filósofa Patrícia Velasco, que, por um lado, vem há algum tempo investigando o campo que circunscreve o ensino de filosofia e, por outro, assumiu politicamente uma das frentes do debate em torno do reconhecimento do ensino de filosofia, desejo antigo dos pesquisadores do tema, como linha de pesquisa pelos programas de filosofia brasileiros e, também, como uma área de pesquisa pelas agências de fomento nacionais1. O que se reivindica é uma cidadania-filosófica às pesquisas e projetos que assumem há, pelo menos, duas décadas o ensino de filosofia como um problema genuíno do campo da filosofia acadêmica. Isso se torna palpável em uma parte de sua recente pesquisa de pós-doutorado - “A constituição do ensino de filosofia como campo de conhecimento: mapeamento da área na década de 2008 a 2018” -, em que mapeia, organiza os dados e analisa a produção dos integrantes do GT. Por meio de uma análise comparativa entre as produções acadêmicas - divididas em dois períodos históricos, 1997 a 2007 e 2008 a 20182 - e a realização de entrevistas, a filósofa investiga o que tais dados indicam sobre o estado da arte do ensino de filosofia no Brasil. Embora as pesquisas sejam desenvolvidas desde o final da década de 1990, a autora defenderá que a consolidação da temática como campo de pesquisa autônomo e profissional virá na década seguinte, momento em que a produção acadêmica tem um aumento considerável e é realizada com maior sistematicidade e de maneira descentralizada, transformando o ensino de filosofia em objeto filosófico dos mais diferentes núcleos de pesquisa no Brasil.
Esse texto procura dialogar com esse grupo liderado por Velasco, de modo a trazer nossas contribuições e percepções sobre alguns contornos marcantes à constituição do campo na realidade brasileira. Em um primeiro momento, vamos visitar os textos de Velasco para mapear suas proposições acerca do assunto e indicar sua importância nesse debate. Em um segundo momento, apresentaremos algumas notas históricas sobre o agenciamento político e acadêmico de alguns professores-pesquisadores em torno do ensino de filosofia, que parecem ressoar em suas pesquisas, guiando sua percepção do que é o campo e da emergência deste na realidade brasileira. Nosso objetivo, com isso, é aprofundar a análise feita por Velasco e mostrar que a constituição do campo de pesquisa do ensino de filosofia que ela propõe está respaldada em uma narrativa sobre a trajetória da criação e desenvolvimento de um debate em torno do ensino de filosofia no Brasil, cuja historicidade pode ser fundamental para melhor estabelecer o campo em questão.
Ensino de filosofia: a existência de um campo científico-filosófico e a luta por uma área de pesquisa
Na última década, o interesse pelo ensino de filosofia como problema de investigação filosófica aumentou substancialmente. Os núcleos formativos se diversificaram e a temática deixou de ser objeto concentrado nas mãos de poucos pesquisadores, proporcionando à discussão brasileira uma rica diversidade cultural e conceitual. São desenvolvidos mais projetos de pesquisa e de extensão, e são publicados mais artigos, capítulos e livros, como também o ensino de filosofia passa a ser um tema de pesquisa mais recorrente nos programas de pós-graduação, seja na Educação ou em Filosofia, e nos trabalhos de conclusão de cursos3. Talvez um exemplo paradigmático da relevância do ensino de filosofia no contexto brasileiro de pesquisa filosófica seja o XVIII Encontro da ANPOF, realizado em Vitória, no Espírito Santo, em que “cerca de 10% dos trabalhos diziam respeito à temática em questão” (VELASCO, 2020a, p. 19). Inclusive, se olharmos nossos vizinhos latino-americanos, constataremos que, como destaca Kohan ao prefaciar o livro-registro do GT da Patrícia Velasco, “não há em qualquer país da América Latina nada que se compare, em organicidade, presença e força, a esse Grupo de Trabalho no mundo acadêmico da pós-graduação em filosofia de nossos países” (KOHAN, 2020, p. 16).
Considerando o presente contexto, Velasco defende que as produções acadêmicas com o ensino de filosofia não são, nos dias atuais, fenômenos esporádicos ou colaterais da literatura filosófica, e sim expressam os resultados de pesquisas realizadas sistematicamente, constituintes, portanto, de “um campo epistemológico e profissional autônomo” (VELASCO, 2021, p. 3). Mesmo que os dados apresentados estejam circunscritos aos membros e em torno do GT, tais números não deixam de ser significativos à realidade brasileira, uma vez que correspondem aos trabalhos de pesquisadores e seus grupos que, a partir das diferentes regiões do país, assumem sistematicamente a responsabilidade filosófica de pesquisar o ensino de filosofia, como destaca a autora:
[...] trata-se da literatura produzida por pesquisadoras e pesquisadores que há muito tempo assumiram o ensino de filosofia como problema de investigação, dedicam-se ao tema com regularidade e defendem, em sua grande maioria, que não basta saber Filosofia para saber ensinar Filosofia (VELASCO, 2020a, p. 525).
Desde a sua criação em 2006, a proposta do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar era constituir-se como local propício à concentração de pesquisadores do ensino de filosofia no Brasil, a fim de que a área ganhasse organicidade e, consequentemente, potência expansiva, tal como é apontado por Kohan no primeiro relatório do GT: “pretendemos potencializar as forças hoje dispersas sobre o ensino de Filosofia nos programas de Pós-Graduação das Universidades do Brasil para contribuir com um debate em crescente consolidação” (KOHAN, 2006, p. 2). O que os estudos de Velasco mostram é que isso se tornou uma realidade. Ao se expandir e fortalecer, “o grupo de trabalho da ANPOF Filosofar e Ensinar a Filosofar inclui definitivamente as relações entre Filosofia e Ensino no escopo das pesquisas filosóficas desenvolvidas no Brasil - consolidando-se uma subárea de conhecimento” (VELASCO, 2020a, p. 526). Tal como acontece aos diferentes objetos e práticas com a filosofia acadêmica - filosofia política, filosofia moral, filosofia da lógica, filosofia da linguagem, filosofia da arte, etc. -, o ensino de filosofia passa a ser “tomado como objeto e problema de investigação filosóficos”. Cria-se uma “Filosofia do ensino de Filosofia, subárea de conhecimento de cunho filosófico que toma para si as reflexões sobre os fundamentos teóricos e os pressupostos do referido ensino” (VELASCO, 2019b, p. 79-80). Por essa razão, a autora não reluta em dizer que se assistiu, “na década de 2008 a 2018, a consolidação das iniciativas de ensino, pesquisa e extensão na área (Filosofia do) Ensino de Filosofia” (VELASCO, 2020b, p. 31).
É bem verdade que tal consolidação não pode ser deslocada das condições contextuais brasileiras dos últimos anos. O retorno obrigatório da filosofia à grade curricular da educação básica e o aparecimento de programas de aperfeiçoamento e valorização da formação de professores são fatores relevantes para despertar interesse acadêmico à área. Não podemos esquecer também que, com a criação recente de dois mestrados profissionais na área, somada à organização periódica de eventos nacionais, de coleções, dossiês e à criação de revistas - Revista NESEF Filosofia e Ensino (UFPR), Revista Digital de Ensino de Filosofia (UFSM) e a Revista Estudos de Filosofia e Ensino (CEFET- RJ) - há, atualmente, mais condições institucionais que impulsionam e acolhem as produções (VELASCO, 2019a, p. 8-12)4. Porém, dentre todo esse contexto, é difícil ignorar o papel estruturante dos integrantes do GT. São seus membros que, em muitos dos casos, estão envolvidos na criação das novas revistas, na luta pelo PROF-FILO, na organização de dossiês e nos muitos dos eventos nacionais na área. Portanto, se o contexto é importante para esses inúmeros acontecimentos históricos que envolvem o “Ensino de Filosofia”, uma área de conhecimento não se faz sem a participação e o investimento vital direto dos agentes que a constituem. É a presença direta e indireta dos integrantes do GT e/ou de pesquisadores que foram formados pelos seus membros, somada à produção significativa de pesquisas na contemporaneidade, que nos permite dizer que temos, hoje, um campo científico-filosófico no Brasil.
Remando contra a corrente da filosofia universitária - afinal, o ensino de filosofia “não figura como subárea nas agências de fomento à pesquisa e à formação de recursos humanos para a pesquisa no país e não nomeia uma linha de pesquisa sequer dos 43 programas acadêmicos de pós-graduação em Filosofia vigentes” (VELASCO, 2020, p. 19) - Velasco força a comunidade filosófica brasileira a perceber que vivenciamos um acontecimento único na produção científica de filosofia, pois contamos, pela primeira vez na história do país, com uma produção acadêmica, participação ativa nos desenvolvimentos da área e mecanismos institucionais que elevaram o ensino de filosofia ao estatuto de pesquisa filosófica.
No entanto, fazer a comunidade filosófica olhar para o ensino de filosofia como um campo de pesquisa autêntico, apto a reivindicar espaços na área da filosofia e de seus direitos institucionais científicos, não é algo tão simples. Por certo que, como a própria filósofa nos lembra, “a ignorância da comunidade filosófica nacional acerca das iniciativas e produções na área de Ensino de Filosofia é bastante grande” (VELASCO, 2019b, p. 80), ignorância esta que não deixa de estar estruturada em preconceitos históricos da filosofia acadêmica brasileira e de sua própria institucionalização. Entre os diversos preconceitos, talvez o mais presente deles seja que, dentro da tradição universitária brasileira, estabeleceu-se uma “dicotomia entre fazer e o ensinar-aprender Filosofia” (VELASCO, 2014, p. 45, grifos nossos), consequência do próprio ofuscamento dos aspectos educacionais da filosofia. Embora desde os gregos a filosofia e a educação dos humanos estivessem intimamente ligadas, a partir de processos de formação de si com os outros, ainda, para boa parte da comunidade acadêmica, ensinar e aprender filosofia são considerados um problema e uma prática de ordem instrumental, e um ofício institucional inerente à vida acadêmica - à docência como profissão -, não sendo avaliados, portanto, como um problema e uma prática de ordem filosófica. Não é circunstancial que, mesmo com todas as mudanças legislativas recentes em torno da licenciatura e das pesquisas desenvolvidas com o ensino de filosofia, a formação do professor de filosofia e as questões filosófico-educacionais ainda tenham, hegemonicamente, um papel secundário nos cursos de filosofia.
O problema é que, ao se decretar previamente o que é a filosofia, quais são seus objetos, práticas e como ela deve ser produzida dentro da instituição, elimina-se uma reflexão, uma abertura entre os próprios pares, sobre sua própria identidade e os seus diversos sentidos possíveis. Nesta conjuntura, quem se dedica profissionalmente à filosofia encontra dificuldades para filosofar de modo diferente daquele já instituído e institucionalizado, deparando-se com severos obstáculos, ao exemplo de “conseguir financiamento para as pesquisas e bolsas de estudos aos seus orientandos, publicações de artigos em periódicos e aceitação junto aos pares” (VELASCO, 2018, p. 64-65). Ora, se são as agências de fomento que estipulam quais são as subáreas da filosofia, se os artigos só são considerados filosoficamente relevantes desde a identidade imposta pela instituição, aqueles que fazem pesquisa em filosofia dependem, e muito, dos critérios estipulados. Assim, para além da historicidade constituinte da filosofia acadêmica brasileira, poderíamos nos perguntar se tal ignorância não é também institucionalmente estratégica, já que seria ela que não traria legitimidade ao campo científico-filosófico que compõe as pesquisas com o ensino de filosofia, permitindo uma abertura na comunidade acadêmica e uma tensão das relações na reconfiguração da própria filosofia brasileira.
Nesse sentido, a tensão que Velasco estabelece com a comunidade acadêmica não se reduz à simples questão de reconhecimento teórico, a fim de que os pares possam apenas assentir a qualidade filosófica das relações que os agentes envolvidos com o ensino de filosofia praticam. O que está em jogo é uma luta pelo esgarçamento dos limites-identitários institucionais postos pela filosofia acadêmica aos contornos do campo filosofia no Brasil, dentro dos quais se disputa cidadania-filosófica em editais, financiamentos, acolhimento e alocação do que já se desenvolve fora dela, primordialmente nos departamentos e nos programas de pós-graduação em educação.
Enquanto a filósofa tensiona a comunidade acadêmica a olhar com maior atenção para aquilo que já se desenvolve pelos seus pares atopos, ela também força os próprios pesquisadores do ensino de filosofia a olhar para esse recente campo em constituição. Ao apresentar os dados e suas análises, ela nos mostra que, apesar dos diferentes horizontes teóricos das pesquisas, muitas questões e desafios à área são compartilhados, passíveis de estabelecermos alianças pela melhora e aprimoramento de nosso campo científico-filosófico. Como, em muitas das vezes, desenvolvemos nossas pesquisas sem nos conhecermos e nos referenciarmos, ou seja, quase sem o apoio da tradição filosófica - e, no caso, referimo-nos à própria tradição do campo “Ensino de Filosofia” -, perdemos a oportunidade de nos organizar e enriquecer nossas trajetórias. Quando ela publiciza um primeiro repositório acadêmico da área, “entende-se que o inventário realizado das produções bibliográficas do GT seja - pré-texto para que possamos ler uns aos outros, umas às outras, e umas aos uns; para que possamos referenciar, dialogar com os/as colegas, seus textos, suas ideias” (VELASCO, 2019a, p. 19).
No entanto, suas pesquisas são apenas o início de uma caminhada a ser construída coletivamente. Atualmente, esse repositório está em ampliação, juntamente com uma análise filosófica dessas produções. Como dissemos no início do presente texto, alguns membros do GT estão reunidos para discutir o estatuto epistemológico da área; é uma forma que criamos para, através do conhecimento de nossa própria tradição, das heranças que ressoam naquilo que somos, nos fortalecermos. Para tanto, organizamo-nos com o intuito de criar um “inventário das pesquisas no âmbito do Ensino de Filosofia”, que sirva para ampliar o primeiro repositório das produções acadêmicas da área no Brasil, englobando as pesquisas - monografias, dissertações e teses -, produzidas nos mais diferentes cursos de graduação e pós-graduação. Por um lado, será a ampliação do repositório que também alimentará as discussões do estatuto epistemológico do campo, pois nos possibilitará acompanhar, problematicamente, a produção das pesquisas com o ensino de filosofia na contemporaneidade. Como diz Velasco, trata-se de um “[...] movimento necessário que permitirá problematizarmos os processos, as concepções formativas, as trajetórias acadêmicas, os referenciais teóricos e a inserção na educação básica de diversos/as profissionais que atuam na área, nas diferentes regiões do país” (VELASCO, 2019b, p. 81). Isso nos ajudará, ainda, a verificar a extensão das pesquisas com o ensino de filosofia no Brasil e medir as dispersões discursivas das pesquisas realizadas pelos integrantes no GT. Afinal, se o GT se torna o lugar de concentração acadêmica na área, quais seriam os impactos em outros contextos que não de nossos grupos e pares? É algo ainda a se verificar. Por outro lado, a quantificação desses trabalhos acadêmicos nos dará também mais força institucional, permitindo-nos sistematizar qualitativamente a consolidação do campo. Assim, ao mesmo tempo em que mapeamos as produções acadêmicas para quantificá-las, mostrar numericamente o crescimento da área na contemporaneidade, rastreamos e investigamos que campo é esse que nos tornamos, com a expectativa de, quem sabe, conquistarmos nossa cidadania-filosófica.
O amadurecimento da área nos permite debruçar sobre o que temos feito e procurar identificar, naquilo que é efetivamente realizado, nossa especificidade. Sabendo que, ainda na contemporaneidade, coube aos pesquisadores fazer parte de uma “comunidade filosófica vivenciando uma relação com outras filosofias e/ou outras maneiras de filosofar que não fazem parte do modelo reconhecido e valorizado” (VELASCO, 2018, p. 65), a autora convoca os integrantes do campo a lutar, conjuntamente, pela autonomia de nossa área:
Estaríamos dispostos, agora, a criar e defender um projeto político de autonomia epistemológica da área? Conseguiríamos sensibilizar outros segmentos, mostrando os impactos de tal projeto? Seria o projeto político em questão pertinente? Seria viável? [...] o reconhecimento institucional do Ensino de Filosofia como subcampo científico implica não só a consideração da autoridade de um grupo de agentes e seu dever de propor e gerir um projeto político-pedagógico de formação de professores de Filosofia, mas - e este parece ser o ponto mais problemático - a atribuição de um poder político e de um capital social que poderá reconfigurar o jogo de forças hoje vigentes na comunidade acadêmica filosófica (VELASCO, 2021, p. 22).
O que Velasco faz é re-apresentar e atualizar as virtualidades de um movimento político-institucional e um movimento político-filosófico, característico ao campo “Ensino de Filosofia”. Luta pela cidadania-filosófica de uma subárea e insiste em tensionar as relações que nós, pesquisadores e professores, estabelecemos com o ensino de filosofia, de modo que o autoconhecimento da tradição da qual fazemos parte dê maior autonomia e potencialidade às nossas práticas. Essas duas linhas de atuação já eram postas como imprescindíveis ao desenvolvimento do debate em torno do ensino de filosofia no Brasil por Walter Kohan, há 20 anos, em sua palestra de abertura do I Simpósio Sul-Brasileiro sobre o Ensino de Filosofia. Naquele contexto, com a recente promulgação da LDB/96 e da organização de uma grande movimentação dos professores de filosofia que lutava pelo retorno obrigatório da disciplina no ensino médio, Kohan acentua a importância de organicidade, tanto em um viés político-institucional - em busca do direito à filosofia na educação básica, da melhoria dos cursos de formação dos professores, por melhores condições de trabalho, etc. -, e também em um viés político-filosófico, que problematize as práticas que nós, professores e pesquisadores, temos com a filosofia. As conquistas recentes e uma luta institucional de direito à filosofia não poderiam ofuscar esse olhar interno para como ensinamos e aprendemos filosofia na contemporaneidade:
Há uma situação aparentemente favorável ao ensino de filosofia no país. Pelo menos nas instituições educacionais, a filosofia ganha cada vez mais espaço. [...] Essa situação, entretanto, longe de ser contemplada benevolentemente, precisa ser pensada criticamente. Por um lado, há uma importante questão político-institucional por trás. Nós, professores de filosofia, precisamos organizarmo-nos para brigar por condições econômicas, profissionais e políticas que tornem possível um ensino de filosofia levado a sério nas escolas. [...] Há uma outra luta para dentro, não para fora, menos político-institucional e mais político-filosófica. Com efeito, há no interior do movimento dos professores de filosofia um adversário talvez mais difícil, certamente não menos importante. Mais difícil porque não é tão visível, quanto um oponente externo, e não menos importante porque podem faltar muitas coisas ao ensino de filosofia, mas, certamente, não pode se ausentar a própria filosofia. É da relação que temos com a própria filosofia, nós professores de filosofia (KOHAN, 2002, p. 38-39).
De certa forma, esse texto de Kohan não deixa de ressoar e se atualizar na contemporaneidade, porque potencializa ainda os movimentos do campo. Mesmo que as pesquisas com o ensino de filosofia tenham alcançado um patamar não visto no cenário brasileiro, como mostra Velasco, isso não encerra nossas lutas político-institucionais e político-filosóficas, movimentos que, ao nosso ver, sintetizam em uma só e indissociável frente político-filosófica. Velasco apanhou essa virtualidade e nô-la lançou, atualizando-a. Quando a filósofa publica o acervo e expõe suas análises do campo, ela não só agencia e atualiza um enfrentamento na esfera institucional para a área “Ensino de Filosofia”, bem como força seus agentes a refletir filosoficamente sobre o vínculo que mantêm com a filosofia.
A questão que ainda fica insistindo nesse texto é a de como nos inserimos nesse debate. Pensamos ser potente à discussão a retomada dos acontecimentos e da historicidade que marcam uma percepção da emergência do campo no Brasil, percepção a qual parece estar pressuposta nos recortes das pesquisas de Velasco e na maneira como concebe os desenvolvimentos do campo. Resgataremos uma narrativa que aponta para os investimentos político-filosóficos dos professores-pesquisadores de filosofia, ocorridos na passagem da década de 1990 e início dos anos 2000, e interpreta-os como um momento crucial para que o ensino de filosofia fosse territorializado na própria filosofia, alargando os limites epistêmicos e institucionais da filosofia brasileira. Esse agenciamento coletivo significou, nessa leitura, uma mudança de perspectiva com os problemas do ensino de filosofia, abarcando tanto as condições institucionais para um ensino de filosofia na educação básica e no nível universitário com qualidade filosófica, uma outra condição para as licenciaturas de filosofia do país, como também tensionando a relação que se tem com a própria filosofia quando se propõe a ensiná-la, aprendê-la e a pesquisá-la - uma relação não mais de formação geral do professor, e sim uma formação filosófica.
Filosofia do ensino de filosofia: uma percepção sobre a emergência do campo no cenário brasileiro
Há de se pontuar que as pesquisas sobre Ensino de Filosofia vêm sendo feitas no Brasil desde a década de 1990 [...] reivindicando a consideração do ensino sob perspectiva filosófica e a integralidade das licenciaturas enquanto curso de graduação (VELASCO, 2019a, p. 7-8).
Segundo Velasco, o ensino de filosofia ser tratado como problema filosófico é um dos aspectos que une os mais diferentes pesquisadores brasileiros na área contemporaneamente (2020b, p. 14). Apesar dos diferentes horizontes teóricos, os pesquisadores reconhecem que “as reflexões sobre o Ensino de Filosofia estarão, sempre, imbricadas por perspectivas filosóficas, não havendo imparcialidade docente na seleção de conteúdos e métodos de ensino, nem tampouco nas discussões sobre estes últimos” (VELASCO, 2019b, p. 79). Não só diferentes concepções de filosofia implicam em distintos modos de ensinar e aprender filosofia - o que já exigiria uma tomada de posição e de discussão dos pressupostos a ela inerentes, mas também o ato de ensiná-la e aprendê-la, qual seja a concepção, remeter-nos-ia a uma gama de problemáticas que torna essencial uma intervenção filosófica. Por exemplo: é possível ensinar filosofia, transmiti-la de um filósofo a um não-filósofo?; o que se espera que o outro aprenda quando alguém se propõe a ensinar filosofia?; o que significa aprender filosofia?; seria o processo de aprendizagem filosófica semelhante ao processo de aquisição de um conhecimento em geral?; qual é a relação a ser estabelecida entre o ensino e aprendizagem da filosofia com a tradição filosófica e o presente? Enfim, responder a tais questões nos inserem em problemas cujas resoluções nos levariam às discussões epistemológicas, estéticas, políticas, éticas e filosófico-educacionais, ou seja, nos conduziria à tradição filosófica. Por essa razão, como demarca a autora, a indissociabilidade entre a filosofia e o ensino de filosofia é uma questão de conceito, que evidencia e põe em jogo a relação que cada um tem com o filosofar e o ensinar a filosofar, e não só de estratégias de ensino, didática ou metodológica - tal como nos apresenta Cerletti em sua obra O ensino de filosofia como problema filosófico (2009), trabalho que, para Velasco, se torna leitura obrigatória à área para entendimento da construção filosófica do problema de ensinar e aprender filosofia (VELASCO, 2019b, p. 79).
A alusão ao filósofo argentino Alejandro Cerletti e seu livro não aparece coincidentemente nos textos de Velasco. Por certo que seus trabalhos embasam discursivamente muitas das pesquisas no campo, ou, pelo menos, são utilizados para demonstrar a necessidade conceitual filosófica com o ensino de filosofia, a sua transformação em um problema filosófico. No entanto, mais do que uma referência teórica - ou uma obra canônica, como é habitual ao modus operandi da filosofia acadêmica - as pesquisas do filósofo argentino fazem ressoar a discursividade de um momento historicamente crucial à realidade da área “Ensino de Filosofia”, uma nova construção discursiva com o ensino de filosofia em emergência no solo brasileiro.
Em um nível mais amplo, a publicação do seu livro apresenta a tônica dos últimos anos de debate na América Latina. Como o próprio autor expõe em sua conclusão, os estudos mais recentes sobre o ensino de filosofia, referindo-se, nesse caso, à Argentina, modificaram seu campo problemático. Há algumas décadas, a “questão do ‘ensino de filosofia’ não constituía um problema filosófico relevante” à comunidade acadêmica (CERLETTI, 2009, p. 89). É só recentemente que se começa a entender o “ensino de filosofia como um campo complexo de problematização filosófica, com teorias e questões singulares” (CERLETTI, 2009, p. 90). Esta mudança conceitual de perspectiva, dentro da qual Cerletti se considera inserido, vai invadindo a maneira como procuramos pensar o ensino de filosofia na contemporaneidade brasileira. Por vezes, são os próprios textos de Cerletti, a sua participação e a circulação de algumas de suas teses nos eventos, nos fóruns regionais brasileiros e nos dossiês especializados do ensino de filosofia que funcionam como intercessão para que os professores-pesquisadores enunciem a perspectiva por meio da qual se pensarão as questões do ensino de filosofia. Entretanto, existem inúmeros outros autores que fazem circular essa perspectiva na área. Antes mesmo de um autor, de um sujeito, trata-se de um tensionamento produzido no movimento coletivo de professores de filosofia, cujo percurso histórico é narrado como uma tentativa de territorializar, em transformar conceitualmente, o ensino de filosofia em um problema da ordem da filosofia.
Na realidade, a própria Velasco, em seus textos, sempre faz referência a uma movimentação que a antecede e na qual suas pesquisas estão inseridas. Ainda em 2011, em busca de fundamentar o ensino de filosofia como problema filosófico, ela diz ao seu leitor que, diferentemente da forma como “a temática do ensino de filosofia foi usualmente tratada, [isto é] como uma questão educacional e, como tal, pesquisada por pedagogos e filósofos da educação”, ela se inserirá em um movimento, “da última década, [para o qual] o ensino de filosofia passou propriamente a figurar como problema de pesquisa filosófica” (VELASCO, 2011, p. 28). Tal posicionamento é retomado em seus artigos mais recentes, quando diz que suas pesquisas se fazem “na esteira de um movimento crescente nas últimas décadas, no Brasil e nos países da América Latina”, para o qual “ensinar (e aprender) Filosofia demanda uma inserção na Filosofia (VELASCO, 2019b, p. 79 - grifos da autora). O que é este movimento crescente nas últimas décadas, cuja força impulsiona suas pesquisas filosóficas com a temática? Já que suas pesquisas foram feitas junto aos integrantes do GT, será que este movimento se inicia com a criação do mesmo?
Isso poderia ser plausível, em uma leitura mais apressada. O que de fato aconteceu é que o GT trouxe para dentro de si boa parte dos pesquisadores da área, impulsionando as produções e o debate em torno do tema. São alguns desses agentes e seus grupos que se posicionaram criticamente à forma como até então o ensino de filosofia era pensado na realidade brasileira, criando uma disputa discursiva pela legitimidade do tratamento dos problemas da área, a fim de constituir novas linhas demarcatórias para o tema. Mesmo que, atualmente, o GT seja o principal local de pesquisadores e professores que se dedicam filosoficamente ao ensino de filosofia no Brasil, ele é efeito de uma movimentação acadêmica e política que o antecede, como demonstra a autora a partir do recolhimento dos depoimentos históricos da criação do grupo:
[...] o GT, já em sua criação, aspirava refletir filosoficamente sobre temas e problemas concernentes à Filosofia e seu ensino, consolidando-se como um espaço que carrega as produções da área [...] De fato, sua gestação aconteceu a partir das atividades de investigação realizadas por pesquisadores e pesquisadoras em diversas regiões do país. [...] Além do envolvimento acadêmico de pesquisadores e pesquisadoras com as investigações sobre/em Ensino de Filosofia, há que se mencionar, igualmente, o engajamento político que antecedeu à fundação do Grupo de Trabalho Filosofar e Ensinar a Filosofar (VELASCO, 2020a, p. 25-28 - grifos da autora).
Que atividades acadêmicas e que engajamento político são esses? Como dissemos anteriormente, o ponto inicial perpassa a LDB de 1996 que previa, ambiguamente, a necessidade dos conhecimentos filosóficos à formação da educação básica. É a partir dela que começou a ganhar força e contexto a associação entre professores-pesquisadores de filosofia na realidade brasileira, os quais se organizaram e realizaram uma série de encontros, congressos e fóruns de discussão, permitindo uma articulação mais orgânica em torno do destino do ensino de filosofia no Brasil. Enquanto uma das pautas, evidentemente, foi a luta legislativa pelo retorno da disciplina à grade curricular obrigatória do ensino médio, desejava-se, concomitantemente, abrir um campo de pesquisa, promover um debate mais conceitual, de modo a pensar os problemas relativos à temática do ensino de filosofia e não simplesmente lutar corporativamente por um espaço na escola.
Os agentes envolvidos eram, em sua grande maioria, professores da educação básica, professores universitários e pós-graduandos que habitavam os departamentos da área da educação e realizavam suas pesquisas em programas de pós-graduação em educação e não de filosofia. Esse é um diagnóstico corrente nas produções acadêmicas que analisam o lugar da produção filosófica do ensino da Filosofia, e, para citar apenas um exemplo disso, fazemos referência a uma passagem de Danelon: “[...] com algumas exceções, são os filósofos que elegeram a educação seu tema privilegiado de pesquisa, que têm enfrentado o problema do ensino de filosofia” no Brasil (DANELON, 2008, p. 16-17). De maneira geral, os professores universitários de filosofia não utilizaram tanto de sua força institucional e política - seus acessos aos veículos de comunicação que semanalmente faziam uso para suas análises filosóficas -, para se inserirem nesse debate. Não só os “departamentos de filosofia das principais universidades públicas ainda se encontram afastados desta preocupação” (FÁVERO et al, 2004, p. 276), como também houve, em muitos dos casos, “resistência de grande parte dos professores de Filosofia do ensino superior” pelo retorno da disciplina (MAATAR, 2017, p. 72).
O Congresso Internacional de Filosofia com Crianças e Jovens, promovido em julho de 1999 pelo projeto Filosofia na Escola, sediado na Faculdade de Educação da Universidade de Brasília5, tornar-se-ia um momento referencial para essa articulação acadêmica. Apesar de seu intuito central consistir no debate da filosofia e infância, houve a criação de uma mesa redonda para discutir o tema “A filosofia no ensino médio”. Foi neste evento, conforme nos diz Silvio Gallo6, que “principiamos a trocar impressões e experiências, que começamos a nos debruçar com mais rigor sobre o tema do ensino de Filosofia” (GALLO, 2004, p. 11).
No ano seguinte, realizar-se-ia o I Congresso Brasileiro de Professores de Filosofia7. Diante da percepção do contexto do ensino de filosofia no Brasil, que indicava um descaso hegemônico da comunidade acadêmica filosófica, a desarticulação entre os professores da área, a inexistência de um campo de pesquisa e, consequentemente, a rarefeita produção bibliográfica, percebe-se a “necessidade de construir uma articulação regional e nacional dos professores de Filosofia, bem como de construir estratégias para pressionar os governos para introduzir a Filosofia como disciplina obrigatória no ensino médio” (GALLO, 2013, p. 15). Partindo da experiência do Fórum Sul de Coordenadores dos Cursos de Filosofia, que já havia realizado os Encontros dos Cursos de Filosofia do Sul do Brasil8, e que convocavam para um primeiro encontro sobre o ensino de filosofia - Simpósio Sul-Brasileiro sobre o Ensino de Filosofia -, inspirou-se na ideia da criação de fóruns regionais que ampliassem a organização e debate entre os professores sobre o ensino de filosofia no Brasil. Acreditou-se que “não seria oportuno criar mais um órgão, como uma Associação Brasileira de Professores de Filosofia, sem uma articulação mais orgânica em nível estadual e regional”. Seria, então, por meio do “fortalecimento regional da organização de professores e aprofundamento do debate em torno do ensino da Filosofia” que, no futuro, se possibilitariam ações de caráter mais geral (GALLO, 2013, p. 15-16). Assim, da experiência do Fórum Sul9 são criados os Fórum do Centro-Oeste de Ensino de Filosofia10, Fórum Sudeste de Ensino de Filosofia11 e o Fórum Norte-Nordeste do Ensino de Filosofia. Junto com articulação regional, também se foi acordado o esforço pela criação de linhas de pesquisas com o ensino de filosofia na pós-graduação e do incentivo à publicação, como destaca Cornelli na introdução da coletânea que marcaria o referido congresso:
Além destas e muitas outras palavras que marcaram o Congresso, restaram indicativos de continuidade e vários projetos concretos, como os de organizar fóruns de professores de filosofia em nível regional, da oportunidade de realizar em breve um II Congresso Brasileiro de Professores de Filosofia, de redobrar o esforço para a realização de novas publicações nesta área, de criar linhas de pesquisa específicas sobre o ensino de filosofia em nível de pós-graduação (2003, p. 13-14).
Na luta pelo retorno da filosofia à educação básica, podemos mencionar, por exemplo, a Carta de Piracicaba, que manifestou apoio aos senadores e deputados pela aprovação do PL nº. 3178/97, como também a Carta de Londrina, elaborada no evento do VI Simpósio Sul-Brasileiro sobre o Ensino de filosofia. Esta última, em especial, foi encaminhada pessoalmente aos conselheiros do CNE (Conselho Nacional da Educação) antes e durante a votação da resolução do Parecer n. 38/2006. Contou ainda com os signatários de representantes da ANPOF, CAPES, CRUB (Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras), os membros de cada fórum regional e de todos os simpatizantes pela volta da disciplina a educação básica. De acordo com Maatar, uma das organizadoras da sexta edição do Simpósio Sul-Brasileiro, a “petição e a representação do fórum, naquele momento [das discussões no CNE], tiveram caráter nacional e podem ser consideradas o primeiro gesto político de uma articulação nacional que reuniu todos os fóruns do país” (2017, p. 71).
Não obstante a frente político-institucional, em defesa do retorno da filosofia à educação básica, uma característica dos fóruns regionais e dos eventos por eles organizados é a emergência também de uma frente político-filosófica de uma área que procura, principalmente, pensar seus próprios pressupostos, como bem ilustram a apresentação de Gallo e Kohan ao dossiê A Filosofia e seu ensino, publicado na revista Caderno CEDES, em 2004:
[...] pode soar curioso este apelo a certa incompatibilidade entre o Estado e o pensamento filosófico quando parece que os que defendem o ensino de filosofia buscam, sobretudo, a anuência ou o aval do Estado. Em parte o é. Mas isso não nos preocupa. Se fosse verdade que hoje os debates sobre o ensino de filosofia se concentram, no Brasil, na luta pela sua obrigatoriedade como disciplina, esta apresentação - e também, por que não, este conjunto de artigos - poder-se-ia ler como um signo de preocupação desse caráter. Não que sejamos contra a obrigatoriedade da disciplina, mas sim que a concentração do debate sobre essa questão esconderia uma ausência preocupante do pensamento sobre si própria, a interrogação sobre o valor e o sentido de sua tarefa. Se fosse verdade que os debates sobre o ensino de filosofia se concentram na defesa de uma obrigatoriedade, algo de muito pouco filosófico estaria tomando quase toda a cena. Felizmente, pensamos que as coisas não são tais. [...] Permanentemente há eventos, relatórios de pesquisas, produção de livros, linhas de pós-graduação. Os Fóruns Regionais de Ensino de Filosofia, surgidos do Congresso Brasileiro de Professores de Filosofia, em Piracicaba, SP, em novembro de 2000, são uma amostra desta vitalidade. [...] E, sobretudo, há uma produção intelectual diversa, poderosa, inquietante. Este número do Caderno CEDES pretende afirmar essa diversidade, essa força e essa inquietude. Não o anima qualquer identidade filosófica ou ideológica, para além da tentativa de uma área pensar-se a si própria, a seus pressupostos, a seus valores e sentidos em nosso momento (GALLO; KOHAN; 2004, p. 254 - grifos nossos).
Essa passagem não só reforça uma interpretação da importância do agenciamento acadêmico e político que surgiu, na realidade brasileira, com o I Congresso Brasileiro de Professores de Filosofia, assim como mostra um posicionamento crítico de alguns professores-pesquisadores com o debate em emergência, procurando forçar uma relação filosófica em torno da área, de seus pressupostos, valores e sentidos. Por certo que também se reconhecia o impacto desta movimentação para potencializar a produção acadêmica em torno do ensino de filosofia. Muitos dos eventos publicaram suas produções em coletâneas, dissertações e teses foram desenvolvidas e mais livros didáticos começaram a aparecer, preenchendo a lacuna bibliográfica ainda existente na área. Todavia, talvez mais relevante à área seja a percepção de emergência do campo que parece surgir dessa organicidade entre os professores, campo este que é caracterizado pela mudança de perspectiva com a temática, do que propriamente o desenvolvimento bibliográfico e a busca pelo reconhecimento estatal à disciplina. Danelon, ao fazer um balanço dos últimos anos da área, aponta que o fortalecimento dos elos regionais permitiu a emergência de um novo tipo de olhar às demandas do ensino de filosofia, um pensar filosófico para o qual o ensino de filosofia torna-se um objeto genuíno de pesquisa. Segundo ele,
Os diversos eventos e as inúmeras produções acadêmicas sobre o ensino de filosofia estão sinalizando para uma mudança de eixo no entendimento do problema do ensino de filosofia. Afirma-se, de forma incisiva, a necessidade de um olhar filosófico para o ensino de filosofia, ou seja, que o ensino de filosofia se constitui um problema filosófico, tratado de forma filosófica e tendo, isto é fundamental, a história da filosofia como instância dialógica para o enfrentamento desse problema. (2008, p. 17 - grifos nossos).
Se retornarmos a algumas coletâneas que marcam esse agenciamento, podemos mostrar como esse discurso, o ensino de filosofia como um problema filosófico, passa a aparecer. Antes mesmo da realização do I Congresso Brasileiro de Professores de Filosofia, publica-se uma coletânea também voltada à discussão, Filosofia no ensino médio (volume VI da coleção Filosofia na Escola da editora Vozes), em que já se poderia destacar uma das primeiras análises históricas das produções acadêmicas em torno do ensino de filosofia (especialmente na educação básica) até aquele momento no Brasil e a necessidade de uma mudança de perspectiva com a problemática. Dir-nos-iam os organizadores, Gallo e Kohan, que, embora o ensino de filosofia possua alguns manuais didáticos para o ensino médio, ainda não há, na realidade brasileira, uma produção filosófica expressiva sobre a temática: “a reflexão e a produção escrita sobre o ensino de filosofia nesse nível de ensino deixa ainda mais a desejar”, em outras palavras, “a produção filosófica sobre o ensino de filosofia, entre nós, ainda é praticamente nula” (GALLO; KOHAN, 2000, p. 7 - grifos nossos).
Isso não significa que não existia uma produção sobre o ensino de filosofia no Brasil. De acordo com os filósofos, entre a década de 1970 e 1980 houve uma produção considerável. O contexto era a reforma educacional desenvolvida pela lei n. 5692/71, que reestruturou o ensino de 1º e 2º grau, momento em que a filosofia perdeu seu espaço no currículo na educação básica. Diante disso, alguns departamentos de filosofia e estudantes das universidades brasileiras articularam-se em defesa do retorno da filosofia ao 2º grau. Ganha destaque especial a fundação do Centro de Atividades Filosóficas no de 1975 no Rio de Janeiro, que mais tarde seria transformada na Sociedade de Estudos e Atividades Filosóficas (SEAF). A SEAF se inteirou e se notabilizou pela problemática relativa à filosofia e seu ensino, de forma a desenvolver atividades que reivindicassem sua volta obrigatória ao currículo. Esse movimento somar-se-ia às reivindicações contra a ditadura militar, construindo um discurso que, ao defender a presença obrigatória da filosofia na educação básica, destacava-se sua capacidade crítica e transformadora da vida dos estudantes, cujas práticas seriam imprescindíveis à vida democrática.
Essa articulação teve seus efeitos na criação da lei federal de n. 7.044/82, que, ao alterar a disposição de uma educação voltada à “profissionalização compulsória” do ensino do 2º grau, substituindo-a pela “preparação para o trabalho”, abriu a possibilidade da filosofia tornar-se uma disciplina facultativa. Porém, “com a precária volta da filosofia aos currículos (de forma opcional, como sabemos), essa luta arrefeceu e a produção bibliográfica mingou” (GALLO; KOHAN; 2000, p. 7). O que ainda restou da discussão se direcionou ao registro metodológico de ensinar filosofia e à elaboração de alguns manuais e livros didáticos (GONÇALVES, 2011, p. 33-34).
O problema é que, ao se concentrar em uma defesa incondicional da filosofia, principalmente de forma a destacar sua suposta importância à formação do cidadão - ou mesmo um debate restrito à escolha dos conteúdos, temas e propostas para um programa mínimo que deveriam ser ensinados no 2ºgrau - a produção teórica construída não foi suficiente para consolidar uma área de pensamento e desenvolver uma perspectiva de estudo e pesquisa da filosofia e seu ensino, alterando o próprio estatuto formativo dos cursos de licenciatura ou o modo como as questões educacionais são tratadas na filosofia. Tinha-se uma discussão muito mais apologética e programática do que, propriamente, um campo de pesquisa em torno das práticas e das relações que permeariam sua reintrodução. Faltaram, assim, trabalhos mais conceituais que problematizassem e pensassem as relações desenvolvidas quando se ensina e se aprende filosofia em nossa contemporaneidade, como apontam Gallo e Kohan:
Nos anos oitenta, a Seaf (Sociedade de Estudos e Atividades Filosóficas) foi responsável por uma produção e publicação razoável. Mas era um “tempo heroico”: foi o momento marcado pelo combate pela volta da filosofia ao Ensino Médio, então denominado “Segundo Grau”. Os textos produzidos, então, tinham muito mais o cunho político de “apologia da filosofia” para justificar sua presença nas grades de estudos, do que propriamente uma conceituação filosófica do ensino de filosofia. (GALLO; KOHAN, 2000, p. 7 - grifos nossos).
Ainda na apresentação da obra, os autores nos sinalizam que, mesmo se para grande parte acadêmica da filosofia “os grandes filósofos da história nunca se dedicaram ao problema do ensino, produzindo conceitos, reflexões e obras sobre essa temática”, um outro olhar para a história da filosofia justifica plenamente a “eleição do ensino de filosofia, ou da ‘pedagogia da filosofia’, como um tema estritamente filosófico” (GALLO; KOHAN; 2000, p. 7-8 - grifos nossos). E é sob o signo dessa nova perspectiva que os textos dessa coletânea são apresentados, convidando o leitor a participar desse horizonte investigativo e a reabrir um debate tão essencial para que a disciplina volte a ocupar um papel fundamental na educação básica:
Esperamos que esses textos possam contribuir para que os professores de filosofia, os estudantes de filosofia, além de demais interessados nos assuntos, possam colocar-se filosoficamente a questão do ensinar filosofia, possibilitando com isso que cada vez a filosofia possa, de fato, inserir-se no currículo de nosso Ensino Médio, como uma atividade crítica e resistente na formação de jovens dispostos a problematizar seu presente. E para voltar a abrir um debate, tão necessário, tratando-se de filosofia (GALLO; KOHAN, 2000, p. 9-10 - grifos nossos).
E é a necessidade de abrir o debate filosófico que leva os professores de filosofia a criarem um evento de âmbito nacional, o I Congresso Brasileiro de Professores de Filosofia, como já havíamos nos referido há pouco. Apresentado ao público como um canteiro de obras, o evento é descrito como um lugar temporariamente escolhido para que os professores de filosofia começassem a construir coletivamente, com as ferramentas trazidas dos mais diferentes lugares, “um espaço de movimento, um momento de reflexão” com o ensino de filosofia. Buscou-se “explorar, filosoficamente, a didática do ensino de filosofia em seus vários níveis, gerar um espaço de trocas de experiências entre professores atuantes em todo o país e explorar novas possibilidades teóricas e metodológicas para pensar e praticar o ensino de filosofia”, de modo a “consolidar um espaço de intervenção sobre o ensino de filosofia” na contemporaneidade (CORNELLI, 2003, p. 9 - grifos nossos).
Ainda segundo Cornelli, sob o rigor da própria filosofia, aproximadamente 250 professores - brasileiros e de outras nacionalidades (Argentina, Uruguai, Itália e França) - encontraram um ponto em comum para sua diversidade: a “singularização de um campo de discussão que, pensando a filosofia como ensino, revela a necessidade da reflexão sobre sua função política, seu significado enquanto instrumento de formação de homens e mulheres cidadãos” (CORNELLI, 2003, p. 10 - grifos nossos). Um campo que, em consonância com o próprio nome da coletânea - Filosofia do Ensino de Filosofia -, pautou-se no horizonte filosófico para recriar as virtualidades educativas da filosofia, envolvidas politicamente com a formação, potencialidades que são constantemente ofuscadas nas relações acadêmicas com a filosofia, por assim dizer, stricto sensu.
Mas o que constitui essa singularização de um campo de discussão, da criação de uma filosofia do ensino de filosofia? Neste mesmo evento, temos a intervenção de Cerletti, Ensino da filosofia e filosofia do ensino filosófico (2003), que nos oferece tal ideia. Em primeiro lugar, ele nos diz que se trata de romper com a dicotomia entre os campos, didática e filosofia. Tal como Cornelli (2003) já tinha acentuado que um dos objetivos do evento foi pensar filosoficamente a didática da filosofia, seja em qual nível for, o que Cerletti nos aponta é que uma filosofia do ensino de filosofia consiste no alargamento do campo da filosofia, de seu território, justamente para fazer uso das ferramentas, que só a filosofia pode dar, para pensar os problemas relacionados com seu ensino, sua aprendizagem, sua finalidade, etc.. Com isso, não há como separar filosofia e didática, ou mesmo, a filosofia e seus aspectos educativos, como se fossem territórios distintos. Trata-se, por essa razão, de uma mudança de perspectiva com o ensino de filosofia:
Esta ampliação do campo da filosofia, que agora inclui a reflexão sobre o seu ensino, significa pôr o ponto de partida e o interesse fundamental na filosofia e a partir daí abordar as estratégias de ensino, já que será a filosofia que irá avaliar a pertinência das técnicas de ensino que eventualmente utilizaremos, dos recortes dos conteúdos que faremos ou da seleção de recursos que poremos em jogo em nossas aulas. Essa mudança de perspectiva amplia notavelmente o campo filosófico porque agora a filosofia deverá reconhecer como próprio o problema de sua transmissão ou de seu ensino, que é algo que sempre se viu (sobretudo a partir da filosofia acadêmica) como um aspecto separado ou como uma questão subalterna e menor (CERLETTI, 2003, p. 66).
Nesse sentido, uma filosofia do ensino de filosofia consistiria na criação de um novo campo de reflexão filosófica, de forma a proporcionar novos conteúdos, objetos e problemáticas à área da filosofia. Dito de outro modo, ensinar e aprender filosofia, a didática da filosofia, os limites e as possibilidades da ensinabilidade e da aprendibilidade da filosofia tornam-se objetos da própria filosofia. Isso teria validade tanto para seu ensino na educação básica, na universidade e em espaços não-institucionais, como afirmou Cornelli (2003).
Dentro do contexto em que ocorre o debate, essa mudança de perspectiva, esse alargamento do campo da filosofia, tem um forte acento nos cursos de licenciatura, mesmo que a estes não se limite. E, por essa razão, a ideia de uma filosofia do ensino de filosofia, que poderia se constituir apenas como mais um problema teórico à filosofia, - prática comum à filosofia acadêmica -, torna-se uma atuação político-filosófica, que agora força duas áreas vistas como distintas na licenciatura, a formação geral e a formação específica. Alargar o campo epistêmico significa reivindicar também um espaço filosófico dentro das próprias licenciaturas de filosofia. Afinal, como é que a filosofia poderá voltar à educação básica sem que se prepare filosoficamente o futuro professor para o exercício de sua profissão?
No I Simpósio Sul-Brasileiro sobre o Ensino de Filosofia, os organizadores chamam a atenção à responsabilidade filosófica pela formação do professor de filosofia e destacam a necessidade de problematizar as práticas de ensinar e aprender para além do registro habitual pedagógico-instrumental. A reunião dos participantes, neste evento, foi qualificada por três atitudes: teimosia, coragem e compromisso de olhar crítica e criteriosamente o ensino de filosofia. Teimosia, primeiramente, porque se trata de uma insistência, por parte dos mais de quinhentos participantes, em criar “estratégias de debate para que a discussão sobre o ensino de filosofia deixe o anonimato, o espontaneísmo, o didatismo, o pedagogismo e ocupe um lugar central na reflexão dos cursos de licenciatura de filosofia” (FÁVERO; RAUBER; KOHAN, 2002, p. 9). Isso só será possível com coragem para olhar as próprias práticas estabelecidas nas licenciaturas, encarar o universo escolar em sua realidade, conhecer a produção teórica envolvida e perceber que a inserção da disciplina na escola contemporânea passa pela formação de bons professores. Uma boa formação, no caso, não se limita à inserção de disciplinas de didática ou prática de ensino. Faz-se necessário formá-los em bases mais sólidas, saindo dos registros de pensamentos com os quais se acostuma pensar. Da teimosia e da coragem, surge o compromisso com o ensino de filosofia de maneira geral e, mais especificamente, com a licenciatura:
[...] Entendemos que não basta batalhar para que a legislação determine a obrigatoriedade da disciplina de filosofia no ensino médio se os cursos de filosofia não tiverem uma política de formação do professor de filosofia; se os cursos de licenciatura de filosofia não forem responsáveis e competentes para formar bons professores de filosofia que irão ocupar os postos de trabalho no ensino médio. Não basta introduzir nos currículos dos cursos disciplinas de didáticas ou prática de ensino, se não houver uma reflexão consistente sobre a especificidade do ensino de filosofia, sua natureza, seus novos paradigmas, seu papel no mundo de hoje. Pensar o professor de filosofia não é, simplesmente, instrumentalizá-lo didática e pedagogicamente; é preciso formá-lo em bases mais sólidas. [...] Não é coerente que os cursos de licenciatura em filosofia continuem exercendo seu papel de licenciar futuros professores de filosofia sem pensar com seriedade a formação do professor de filosofia (FÁVERO; RAUBER; KOHAN, 2002, p. 9-10 - grifos nossos).
Esse projeto político-filosófico, que fomenta adquirir um lugar institucional de reflexão filosófica com o ensino de filosofia dentro dos cursos de licenciatura, busca ainda o estabelecimento de um novo lugar dentro da filosofia, uma nova prática, a filosofia como ensino. Desse modo, começa-se a tensionar a hierarquia do bacharelado sobre a licenciatura e a separação entre o filósofo e o professor de filosofia, que perduram nos cursos de filosofia. O bacharel, que caminha para a construção de sua trajetória como pesquisador, tem supostamente uma função de criação dos conhecimentos. Mesmo que, dentro da pesquisa filosófica nas universidades, a criação do pesquisador não seja usualmente considerada semelhante a dos filósofos canônicos, prevalece ainda um pressuposto e uma defesa da existência de um processo filosófico, ora na elaboração de um comentário original, ora na atualização historiográfica dos problemas perenes da filosofia. Há, de uma maneira ou de outra, um enriquecimento do corpus filosofia que implica, se não a produção teórica propriamente dita, uma renovação e atualização dos eternos problemas da filosofia ao presente. Em contrapartida, as práticas do professor não são qualificadas como um exercício filosófico, e sim "pedagógico" e "educacional". Se a universidade reconhece as práticas historiográficas e o comentário como algo da natureza filosófica, isso não vale para o registro educacional da filosofia. Quem é professor nada há a atualizar, apenas reproduz o saber criado, uma vez que sua função realiza apenas uma mediação, supostamente neutra, porque científica, e didática, porque pedagógica, de dois mundos: da produção filosófica e dos leigos, aproximando estes últimos à cultura construída. Embora seja preciso criar para ser professor, esse ato estaria restrito a um registro organizacional dos conteúdos a serem ensinados, que precisam ser adequados à capacidade dos estudantes, e das metodologias aplicadas para tanto, uma relação, portanto, não considerada filosófica.
Nesse sentido, em contraposição a essa separação entre fazer filosofia e ensinar filosofia e a hierarquização entre bacharelado e licenciatura, o enfoque filosófico das condições que envolvem as possibilidades do ensino de filosofia gera uma outra perspectiva das práticas de ensinar e aprender e do ofício do professor. Quando as práticas educativas com a filosofia são dimensionadas como um problema realmente filosófico, o seu exercício exigiria de seus agentes um comprometimento com a pesquisa filosófica. Ensinar e aprender filosofia, pela especificidade filosófica que os envolve, impele o professor a adentrar ao registro teórico e tensionar os pressupostos e as implicações de suas práticas. Mas não só isso. Uma filosofia do ensino de filosofia exige um compromisso com o filosofar, de tal forma que as salas de aulas, ou espaços educacionais, sejam o espaço por excelência da prática filosófica e os professores e estudantes sejam filósofos por excelência. E isso começa a aparecer em alguns textos que perpassam essa movimentação dos professores-pesquisadores.
Em seu texto, Filosofia do ensino de filosofia, Mauricio Langón afirma que “uma didática do filosofar não deve ser pensada como um modo de didática, mas como um modo específico de filosofar”. O professor é um mestre em atuação, transforma a sala de aula e os espaços educacionais em uma comunidade na qual se trata de “filosofar educando, de filosofar fazendo filosofia, de fazer filosofia ajudando a filosofar, de filosofar em grupo” (LANGÓN, 2003, p. 92 - grifos do autor). Nessa mesma direção, destacamos também as palavras de Cerletti (2003, p. 62), para o qual ser professor é assumir a posição de “alguém que vai muito além de ser capaz de mostrar ou apresentar certas questões filosóficas, ou alguns temas da história da filosofia”. O professor deverá ser coerente com sua própria posição filosófica, transformando a relação educativa no próprio espaço de exercício de sua filosofia, sendo assim, “consequente com esta maneira de orientar o pensamento”. Isso significa que suas práticas de ensinar e aprender são seu modo específico de filosofar, são a partir delas que ele exemplifica, encarna e tece suas relações educativas com os estudantes. Ele não é neutro, possui uma trajetória com a filosofia através da qual se constrói filosoficamente, se relaciona com o mundo e tensiona não só os estudantes, permitindo a criarem seus próprios sentidos e problemas, mas também tensiona a si mesmo, de tal forma a reformular e reconstruir seus caminhos. Dar aula será um desafio filosófico, filosofar torna-se um imperativo do retorno da filosofia à educação básica, de maneira específica, e das práticas de ensinar e aprender filosofia, de maneira geral.
Em síntese, como pontuam Gallo e Kohan, pensar o ensino de filosofia como território da filosofia consiste em problematizar esse lugar-comum de transmissão do professor de filosofia como reprodução, ressaltando a característica duplamente filosófica de sua prática de professor: filosófica em relação à pesquisa dos pressupostos que envolvem o exercício de ensinar e aprender filosofia e, em outro sentido, filosófica como uma relação, uma prática, que também é estabelecida em sala de aula:
[...] Um professor que apenas reproduza, que apenas diga de novo aquilo que já foi dito não é, de fato, um professor de filosofia; o professor de filosofia é aquele que dialoga com os filósofos, com a história da filosofia e, claro, com os alunos, fazendo da aula de filosofia algo essencialmente produtivo. Portanto, a filosofia não é produzida em uma parte e ensinada noutra, ela é sempre produzida e ensinada ao mesmo tempo. [...] Mesmo - ou melhor, sobretudo - quando o assunto é a história da filosofia ou a filosofia de outro filósofo, a transmissão é um não-lugar da filosofia, porque ela não pode ser enfrentada externamente, como aquilo que um outro faz: ou ela se exerce, se pratica, ou se faz outra coisa. Todos os filósofos da história fizeram isto, por isso são ao mesmo tempo filósofos e educadores, os melhores ensinantes da filosofia! Quer melhores professores de filosofia que os textos filosofantes dos bons filósofos? O professor que não assume como filósofo não tem a menor chance de ensinar filosofia, assim como o professor que não se reconhece como pesquisador não poderá fazer outra coisa do que reproduzir aquilo que outros pensam, uma marca da antifilosofia (GALLO; KOHAN, 2000, p. 182-183).
Esse posicionamento filosófico com o ensino de filosofia é apresentado não como uma atitude individual, proposta de um sujeito-autor, mas uma dinâmica coletiva, uma virada filosófica com o ensino de filosofia. Essa mudança de perspectiva, do pedagógico para o filosófico, reposiciona a função do professor e promove um estatuto filosófico à sua prática. O professor de filosofia não pode ser mais um repetidor, um mero transmissor de teses, já que o ato filosófico, intrinsicamente educativo, impele-o ao exercício da capacidade crítica e criativa especificamente característica à filosofia. Com isso, quer-se inaugurar um território na tradição filosófica, que implique tanto uma produção teórica com os problemas filosófico-educativos, quanto permita a invenção do filosofar como ensino e aprendizagem. E é nesse sentido que Gallo analisa os acontecimentos nos últimos anos na apresentação da coletânea do I Simpósio sobre o Ensino de Filosofia da Região Sudeste:
A prática educativa tem sido inerente à Filosofia ao longo da história; em nome de que a desprezamos, quando se trata de formar o professor de filosofia? Será essa uma “tarefa menor”? O professor de Filosofia não deve ser, de alguma maneira, filósofo (isto é, alguém que pratica a filosofia)? Ou bastaria a ele conhecer os temas, problemas e autores da história da Filosofia para poder ensiná-los? Faz sentido, no caso da Filosofia e de seu ensino, essa separação entre teoria e prática? Nos últimos anos os filósofos professores de Filosofia brasileiros vêm se preocupando com questões como essas. Trata-se, quer me parece, de um movimento de pensar filosoficamente o ensino de filosofia. Um movimento em que os filósofos têm tomado para si a responsabilidade de pensar a prática docente, em seus vários níveis. Um movimento de dar cidadania, no território da Filosofia, à problemática do ensino que, até aqui, só encontrava asilo no território da educação (GALLO, 2004, p. 10 - grifos nossos).
Assim, esses textos nos sinalizam a existência de um movimento político-filosófico significativo à área do ensino de filosofia, que permitiu a emergência de contornos e potencialidades fundamentais à abertura de um campo científico-filosófico em nossa realidade. Embora se buscasse territorializá-lo dentro dos próprios limites institucionais da filosofia, não se tratou, e ainda não se trata, de apenas adquirir um passaporte para que o ensino de filosofia se torne uma questão canônica, operada segundo os limites e os registros tradicionalmente postos pela filosofia acadêmica. O que se almeja é a invenção e consolidação de um novo lugar dentro da filosofia, cujas condições sejam imanentes à filosofia que é praticada como ensino e aprendizagem, um espaço a partir do qual se faz possível questionar essa filosofia maior acadêmica e seus pressupostos históricos que continuam a separar o fazer do ensinar e aprender filosofia.
Considerações finais
A escrita deste texto foi provocada, fundamentalmente, pela convivência com os membros do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, com os quais se discute o estatuto epistemológico do campo científico-filosófico. Para conhecer o que somos, assumimos a estratégia de entender nossas heranças, os discursos que atravessam e dão sustentação para muitas de nossas pesquisas. Isso nos parece útil também à luta pela cidadania-filosófica. Levando em consideração que um campo científico-filosófico não se faz sem a participação e o investimento vital direto dos agentes que o constituem, demonstrar essa historicidade e como os agentes dos diferentes núcleos de pesquisa do ensino de filosofia estão envolvidos nos grandes acontecimentos na área nos ajudaria a explicitar a força dos diversos grupos e de suas pesquisas, e os espaços que já foram conquistados.
Em um primeiro momento, olhamos para as pesquisas de Velasco, suas percepções sobre o campo, ressaltando sua importância ao movimento político-filosófico da área na contemporaneidade. Apesar de continuarmos a lutar por uma cidadania-filosófica, não podemos deixar de ressaltar que muito se tem conquistado nos últimos anos. Se olharmos as duas décadas anteriores, tal como fez Velasco (2020a), veremos que, entre os anos de 1996 até 2008, temos esse agenciamento entre os professores-pesquisadores que permitiu a organização dos fóruns regionais, de eventos especializados na área, a publicação de literatura, o desenvolvimento de novos grupos de pesquisa, a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar da ANPOF e a orientação de pesquisas de iniciação científica, mestrado e doutorado com a temática, proporcionado o aparecimento de novos quadros de pesquisadores na área. Na década seguinte, criam-se as revistas especializadas na temática, o mestrado profissional, ampliam-se os grupos de pesquisadores e os trabalhos de pesquisa e extensão desenvolvido pelos membros do GT com o ensino de filosofia.
Em segundo momento, recuperamos alguns elementos da literatura da área que mostram uma perspectiva de emergência do campo, do início de uma territorialização do ensino de filosofia como responsabilidade da filosofia, território de investigação e pesquisa genuinamente filosófico e lugar onde as práticas de ensinar e aprender filosofia não são separadas do exercício de filosofar. Seguimos as pistas deixadas por alguns professores-pesquisadores de filosofia, isto é, professores-filósofos que foram agentes importantes nesse processo de articulação da área, cuja percepção dos desenvolvimentos históricos do campo “Ensino de Filosofia” nos apontam para a passagem da década de 1990 e início dos anos 2000. Como diz Silvio Gallo no prefácio do livro organizado por Elisete Tomazetti, Ensino de Filosofia: experiências, problematizações e perspectivas (2015), “não chega a duas décadas a tomada em sério das questões do ensinar e do aprender filosofia como problema de pesquisa, como objeto de pesquisa filosófica séria”. Na primeira década de desenvolvimento, o debate permaneceu “mesclado com o debate em torno de sua justificação”, mas, aos poucos, foi “se consolidando também um trabalho de pesquisa em torno do ensino de filosofia desta disciplina, tomado como genuíno trabalho filosófico” (GALLO, 2015, p. 13).
No entanto, de forma a pensar o campo “Ensino de Filosofia”, cabe-nos pontuar que, apesar de termos mostrado textos que interpretam esse agenciamento coletivo entre os professores-filósofos o ponto histórico da emergência de um campo na área do ensino de filosofia no Brasil, seria importante investigar como outros grupos percebem esse e outros acontecimentos políticos e epistemológicos na área. Por certo que os documentos recuperados e a narrativa apresentada ecoam em muitas pesquisas desenvolvidas dentro do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar e também na área, não só ressoando em Velasco mas inclusive em nós, que escrevemos esse texto e desejamos que assim o agenciamento tivesse acontecido. Uma narrativa que parece ecoar, principalmente, da atuação no campo de dois grupos, Filosofia na Escola (UnB), fundado no final de 1997 e desenvolvido na Faculdade de Educação dessa universidade (FÁVERO et al, 2004, p. 282), e o Grupo de Estudos sobre o Ensino de Filosofia (GESEF), cuja data de gestação é 1993, organizado pelos professores de filosofia da Unimep, Piracicaba (GALLO, 2012, p. 12-13). Apesar disso, um campo de conhecimento é marcado pelas disputas entre as várias perspectivas de seus membros e grupos, ou seja, constitui-se por uma luta concorrencial com a filosofia, em busca de uma territorialização do ensino de filosofia, e também uma disputa entre grupos de pesquisa. Por isso, perguntamo-nos quais seriam as percepções de outros grupos sobre esse agenciamento político-filosófico dos professores-filósofos e sobre a própria emergência do campo.
Ora, se considerarmos que a grande maioria dos professores-filósofos participantes desse movimento integravam os departamentos de Educação e os programas de pós-graduação em Educação e não de filosofia, não poderíamos dizer que a emergência do campo se daria em outro momento, menos por uma perspectiva disciplinar da filosofia e mais próxima de uma perspectiva da educação filosófica? Caso atentemos aos grupos de filosofia para criança, ao exemplo do Centro Brasileiro de Filosofia para Crianças (CBFC) ou o Centro de Filosofia - Educação para o Pensar -, a percepção do campo e de sua emergência seria a mesma? Ou ainda, se analisarmos desde a ótica do SEAF, poderíamos ter outra perspectiva dos acontecimentos do campo? E se olhássemos para outros grupos, da UNICAMP, de Renê Silveira Trentin, Roberto Goto e Cesar Nunes, da UFPR, de Geraldo Horn, e de tantos outros que precisaríamos ainda nomear? Talvez outras histórias pudessem ser contadas e outros vetores apareceriam traçando linhas no campo.
Nesse sentido, atendo-nos, especificamente, à movimentação ocorrida com a LDB/96, cabe-nos investigar quais eram os discursos produzidos pelos diferentes grupos que antecedem e sucedem a LDB/96, de modo a analisarmos como eles se dobram e disputam forças dentro do agenciamento dos professores-filósofos. As disputas e o dissenso entre os diferentes grupos não significariam também que não houve alianças político-filosóficas. Então, acreditamos ser potente ao estudo epistêmico do campo a investigação em torno de diferentes perspectivas, cujas narrativas podem se diferenciar, oferecendo-nos, consequentemente, uma percepção mais complexa do fenômeno e um tensionamento que caracterizaria a inserção de cada um dentro do campo.
Sendo assim, reconhecemos que, mesmo com o esforço despendido desse texto, há ainda muito por fazer, caso se procure mapear as articulações e as investidas que permitiram a emergência da área e seu desenvolvimento, isto é, essa invasão territorial criada pelos professores-filósofos na filosofia institucionalizada. Sabemos que a história contada por nós é ainda parcial, mas, neste momento, é a possível de ser contada. O que nós podemos dizer é que pensar filosoficamente o ensino de filosofia no Brasil como uma das forças do campo foi, e ainda permanece na atualidade, uma política-filosófica, adotada pelos professores-filósofos das mais diferentes regiões do país, que busca forçar os limites e os espaços hegemônicos da filosofia acadêmica, tensionando nossos colegas, nossas universidades, as agências de fomentos e nós mesmos, de modo que possamos reconhecer a necessidade de pensar filosoficamente o ensino de filosofia.