Introdução
Inserido no debate curricular que envolve a Educação (Física) brasileira desde o final dos anos 1980, o currículo cultural (CC) se anuncia como uma proposta-aposta que fomenta o diálogo entre a escola e as questões que permeiam a sociedade multicultural, globalizada e profundamente desigual em que vivemos. Resumidamente, se caracteriza pelo modo como seus artistas-professores formulam e dão vida1 à prática pedagógica por meio das traduções que efetuam das bases epistemológicas que lhe conferem sentido.
O CC se alinha às denominadas teorias pós-críticas do currículo2, um amplo conjunto de campos teóricos organizado a partir da “virada linguística”, cujo traço em comum é tomar a linguagem como produtora do real. Pode-se dizer que o CC tematiza as práticas corporais3 por meio de vivências, leituras e escrituras de novas formas de pensar, fazer e dizer sobre elas, a fim de indagar e desestabilizar as relações de poder que as constituem e os modos como as culturas as produzem e influem os que delas participam, apreciam, criticam ou menosprezam (NEIRA, 2015;NEIRA; NUNES, 2006, 2007, 2009a; 2009b; 2020).
Com centralidade na cultura, o CC coloca em evidência os modos de subjetivação criados pelas brincadeiras, danças, lutas, esportes e ginásticas, tensionando a forma como os discentes e também docentes se percebem no mundo, possibilitando que os limites que fixam suas identidades sejam colocados sob suspeita, escancarados, alterados, transgredidos. Não por menos, suas preocupações abrangem a afirmação da diferença e, com ela, a luta por melhores condições de vida. Aposta na produção de novas tecnologias culturais que potencializem práticas de liberdade e ações solidárias face aos imperativos governalizantes e fascistas que nos assombram (NUNES, 2018; NEIRA, 2019; NEIRA; NUNES, 2020; NUNES; SANTOS, 2021). Em termos de Agamben (2017), o CC aposta em forma-de-vida4.
Com base nessas intenções, seus sujeitos5 são agenciados por princípios ético-políticos que os levam a desenvolver encaminhamentos didático-metodológicos. Tanto uns como outros nunca se encerram em seus próprios termos (NUNES, 2016a). Como a linguagem jamais captura o significado das coisas do mundo, mas sim, as produz, as faz circular ou interditar, os princípios e encaminhamentos não são apartados da prática, tampouco são universais. São produções discursivas derivadas dos embates acerca do significado da educação nestes tempos e se encontram em permanente tensionamento.
Por estar em constante movimento, o CC exige que se continue a pensar, dizer, fazer de outro modo, transgredindo seus limites para, assim, ser mais coerente com o que propõe6. Suas mais recentes produções incitaram-nos a apurar o olhar sobre o já dito, a fim de localizar fragilidades teóricas, confusões epistemológicas, explicar o mal explicado, acalmar as ideias apressadas. É urgente reescrever o que foi publicado para que seus artistas-professores possam empregar as ferramentas produzidas e operar a docência com maior rigor científico-pedagógico.
Pautados nas concepções de linguagem e discurso que ancoram o CC, não podemos desconsiderar que os sujeitos (que colocam a proposta-aposta em ação na escola e nos eventos formativos ou aqueles que a ele se opõem) estão sempre imersos numa arena em que se disputam as determinações sociais e históricas e o desejo de sempre serem sujeitos do que dizem. Isso quer dizer que os sujeitos do CC (e os seus detratores) vivem o conflito entre a importância de pertencerem a um discurso que é tido como verdadeiro e válido e a necessidade de se colocarem como sujeitos autônomos do discurso, viabilizando tentativas de produzir um discurso aceitável, promovendo a sua dispersão. Os discursos ocorrem de diferentes modos, inclusive contraditórios ao proposto, exatamente por ser a dispersão uma de suas condições. Afinal, qualquer discurso é incompleto, instável e sujeito às disputas por sentido. Um discurso tanto pode comunicar o sentido pretendido, como culminar em outro em um processo infinito, sem começo absoluto (fundação) ou final (teleológico). Porém, o discurso precisa de estabilidade para que a subjetividade se instaure (aquela que se posiciona e se identifica com os discursos do CC) e coerência para que se tenha a crença daquilo que é dito é plenamente compreendido pelos outros. Há mais! Como ensinou Foucault (2006), o discurso precisa se inscrever no verdadeiro e, para ser aceito, necessita demonstrar estar de acordo com uma ordem discursiva que lhe dê sustentação.
Face ao exposto e diante da larga disseminação da proposta,opresenteartigosededicaàanálisedaproduçãocientíficasobreum dos seus encaminhamentos didático-metodológicos7 mais controversos, o mapeamento. Na literatura, o mapeamento possibilita a definição da prática corporal objeto da tematização, além de promover as problematizações que constroem seu percurso, logo, ele é tanto a porta de entrada do fazer pedagógico do CC como aquilo que permite aosenvolvidos traçarem o caminho da tematização. Entretanto, em alguns textos, a produção científica sobre o assunto se mostra confusa, inconsistente e se hibridiza com outras teoriascurriculares. Algumas obras chegam alimitar a definição no CC, desaguando numa certa pluralidade de seu uso e significado, gerando entendimentos como “conhecimentos prévios” ou “conhecimento da realidade”.
A fim de evitar que o mapeamento fique restrito aos limites estabelecidos nesses textos ou contaminado pelos seus sentidos, objetivamos apresentar outra possibilidade de compreendê-lo. Talvez, seja viável reparar algumas linhas da rota traçada pelo CC em seu mapa; cuidar mais da sua dispersão sem pretender controlá-la ou impedir sua transgressão. Esperamos que os produtores e pesquisadores do CC reconheçam a importância de problematizar as verdades em todos os aspectos, inclusive sobre o que se escreve a respeito da proposta; que não efetuem qualquer tradução da prática, mas aquela que só é possível a quem coloca a própria existência e todas as forças e condições que a operam dentro dela por entender a trajetória disputada da construção do significado; que não aceitem a imitação, a repetição do mesmo, a identidade e que possam viver a diferença, isto é, estar aberto a mudança.
Para tal empreitada, a partir de revisão sistemática da literatura produzida acerca do CC, em primeiro lugar, analisamos o modo como o mapeamento foi abordado, identificamos as inconsistências, explicitamos as noções conceituais para sua compreensão em acordo com as bases epistemológicas do CC e, finalmente, utilizamos a força da diferença para incorporar outras ferramentas que permitem a produção dos mapas.
Mapeamento: os limites
Nas obras em que Neira e Nunes (2006; 2009a; 2009b) propõem o CC; naquela organizada por Neira (2007), na qual é publicado o primeiro relato de experiência; na de Neira (2011a), que investigou os princípios e encaminhamentos mediante narrativas produzidas pelos professores que colocam o CC em ação e nas que divulgam as experiências com a proposta (NEIRA; NUNES, 2009b; 2012; 2014; 2016a; 2016b; NEIRA, 2016; 2018; 2019; 2020; 2021), o termo mapeamento é apresentado sem qualquer referencial teórico. A ausência abre brechas para traduções apressadas e influências de outras teorias pedagógicas, principalmente as progressistas e tecnicistas, ambas hegemônicas na história da educação brasileira desde os anos 19308, colocando o CC à mercê das “contaminações” da racionalidade instrumental, a qual critica.
Em Neira e Nunes (2006), o mapeamento é apresentado na seção destinada às orientações didáticas, inicialmente como “coleta de informações do patrimônio da cultura corporal9 da comunidade” e, na sequência, como “pesquisa de campo”. O termo é mencionado como título de um quadro explicativo com perguntas que devem ser feitas pelo professor com o objetivo de reunir os dados que lhe permitirão definir a prática corporal a ser tematizada. A explicação sugere a coleta de informações a respeito das características estruturais e administrativas da escola para que sejam consideradas no planejamento das aulas.
Ao discorrer sobre a avaliação, o texto confunde o mapeamento com diagnóstico dos conhecimentos disponíveis aos estudantes. Não à toa, ele é assim utilizado pelos docentes e outros autores do CC em vários momentos. No limite, o mapeamento é apresentado como registro dos dados coletados das observações de campo acerca das práticas corporais; é a descrição de algo que estava desde sempre ali a espera de ser mapeado, denotando a verdadeira essência da realidade em que a prática pedagógica ocorre.
Percebe-se nos primeiros passos do CC marcas das teorias tradicionais de currículo (SILVA, 1999), nas quais o conhecimento aguarda ser desvendado, acessado, revelado ou apresentado ao sujeito mediante o método científico empregado por um sujeito neutro e com domínio pleno da razão10.
A obra organizada por Neira (2007) reúne pesquisas com o CC e inaugura a divulgação de registros da prática. No relato de experiência denominado Projeto Futebol "Soçaite", embora o termo mapeamento não seja empregado, o que se percebe nas linhas introdutórias é, novamente, a noção de coleta de dados. No terceiro livro dedicado à proposta, Neira e Nunes (2009a), de forma bastante densa, aprofundam e ampliam o referencial teórico e apresentam os princípios curriculares11 para a construção da prática pedagógica. Referem-se ao mapeamento como “o primeiro passo”, deixando a cargo do leitor o que venha a ser a partir dos discursos pedagógicos presentes na cultura escolar.
O trabalho seguinte decorreu de uma proposta curricular para o município de São Paulo. Ao contrário das anteriores, Neira e Nunes (2009b) deixam de lado a fundamentação teórica para ilustrar princípios e ações didáticas com fragmentos extraídos de relatos de experiências. A intenção expressa é a de melhorar a compreensão por parte dos professores, tendo em vista fazer acontecer o CC. Em meio a exemplos, surge a seguinte definição: “o mapeamento é a avaliação diagnóstica, os primeiros registros que comporão o diário de campo, relatório ou portfólio do professor ou professora e, por que não, dos alunos e alunas”.
O caráter da obra e a restrição imposta ao termo acabam por instrumentalizá-lo, aproximando-o, mais uma vez, das teorias tradicionais de currículo (SILVA, 1999), assim como para o estabelecimento da confusão de suas fronteiras epistemológicas. Afinal, mapeamento, em sua dispersão, é apropriado por diversas áreas, da medicina à administração, passando pela segurança pública. Todas elas com sentido estrito de fazer diagnose, ou seja, coletar informações sobre o que acontece de maneira a subsidiar a tomada de decisões.
Mais adiante, Neira (2011b, p. 107), após analisar relatos de experiência de professores que colocam em ação o CC, detalhou:
Mapearquerdizeridentificarquaismanifestaçõescorporaisestãodisponíveisaos alunos, bem como aquelas que, mesmo não compondo suas vivências, encontram-se no entorno da escola ou no universo cultural mais amplo. Mapear também significa levantar os conhecimentos que os alunos possuem sobre uma determinada prática corporal. Não há um padrão ou roteiro obrigatório a ser seguido, durante o mapeamento, os professores empreendem variadas atividades.
Entretanto, páginas à frente, restabeleceu a confusão: “uma vez que o mapeamento diagnosticou a cultura de chegada, os registros elaborados pelos docentes facilitam a identificação das insuficiências e alcances das atividades de ensino desenvolvidas” (p. 159).
Antes de avançar na discussão, cabe ressaltar que a concepção de avaliação do currículo cultural (outra questão controversa) foi satisfatoriamente abordada em Escudero (2011) e Müller (2018). O que nos interessa agora é evidenciar o perigo que a instrumentalização do ato de mapear pode gerar àqueles que escrevem e experienciam o currículo cultural, qual seja, afastá-los do que tenciona essa perspectiva. Do mesmo, confundi-los no tocante às noções conceituais produzidas por Stuart Hall, Michel Foucault, Jacques Derrida, Gilles Deleuze e Félix Guattari. Autores que ao seu modo questionaram as noções de cultura, sujeito, verdade e conhecimento produzidas na Modernidade e contribuíram tanto para a problematização dos limiares das teorias tradicionais e críticas de currículo, quanto para a fabricação das teorias pós-críticas (SILVA, 1999; LOPES, 2013), logo, do currículo cultural (NEIRA; NUNES, 2006).
O limiar discursivo estabelecido na produção germinal do currículo cultural indica a presença da força do pensamento tecnicista embrenhada em uma proposta que nega as metanarrativas, os determinismos e o salvacionismo, traços das teorias curriculares elaboradas no século passado. O deslize é absolutamente compreensível. Afinal, no “trabalho de parto” a cisão umbilical não foi suficiente para apagar os vestígios de outras formas de fazer a educação que constituíram e constituem os docentes que se propõem a fazer ou pesquisar o CC. Logo, trazem consigo afetos da escolarização básica e superior que não contemplaram discursos pedagógicos "pós". Vale a penas esmiuçar esse processo para melhor entendermos como o tecnicismo educacional impacta a compreensão de mapeamento.
Nas primeiras décadas do século XX, autores de matriz liberal como John Dewey e os pensadores do movimento da Escola Nova passaram a defender que a aprendizagem ocorresse a partir dos interesses e necessidades dos alunos. Concepção que Ralph Tyler, no limiar dos anos 1940, salvaguardou na sua obra centrada na sistematização de objetivos educacionais bem definidos, experiências de aprendizagem organizadas e instrumentos de avaliação coerentes. Ao elaborar objetivos para instrução, Robert Mager deu prosseguimento à mudança de comportamentos, prioritariamente cognitivos, mas também, afetivo-sociais e caracterizou o processo avaliativo que deveria conter explicitamente o comportamento observável dos alunos, especificar as condições nas quais o mesmo deve ocorrer e definir o padrão de rendimento aceitável como critério de mensuração, segundo o qual o nível de desempenho do aluno é considerado satisfatório.
No final dos anos 1950, o psicólogo David Ausubel conceituou a aprendizagem significativa, a qual considera o conhecimento prévio do aprendiz, aquele relacionado ao conteúdo que se pretende ensinar, que o sujeito adquiriu em sua cultura ou em algum momento na escolarização. O conhecimento prévio funciona como ponto de ancoragem para o que será ensinado. A avaliação consiste no ponto de partida para as atividades do sujeito da aprendizagem, confluindo, em certa medida, com a teoria da equilibração majorante de Jean Piaget.
A avaliação diagnóstica surge naquele contexto com a intenção de verificar os conhecimentos considerados prévios aos alunos para dar início ao ensino e distinguir avaliação de medida de desempenho12. Não obstante, na prática médica, a diagnose tem por intenção detectar os problemas existentes para que se possa buscar a resolução por meio de procedimentos padronizados. Na educação isso não é diferente. Afinal, a noção de conhecimento prévio indica ausência, distorção em relação ao conhecimento que deve ser assimilado, considerado verdadeiro. A avaliação diagnóstica busca constatar o nível de compreensão que os alunos possuem acerca dos conteúdos de ensino e o nível do desenvolvimento das habilidades cognitivas, afetivas e motoras, a fim de subsidiar o planejamento das aulas tendo em vista a superação das condições verificadas. Trata-se de uma aprendizagem centrada no aluno, tomado como sujeito consciente, cujo desenvolvimento é linear e universal. Essa visão sobrevive ao tempo e às mudanças sociais, se fazendo presente há mais de cinquenta anos, persistindo na concepção de avaliação somativa e na avaliação formativa, tanto na pedagogia neotecnicista baseada no desenvolvimento de competências e habilidades como na pedagogia crítica13.
Necessidades e interesses abriram fendas para o recrudescimento da noção de educação compensatória formulada nos primórdios da revolução industrial, e termos como carência cultural, insuficiência, déficit, dificuldade de aprendizagem, entre outros que, em certa medida, depreciam o repertório de saberes dos alunos ou, minimamente, classificam-nos, gerando a instabilidade na relação docente/discente. Nos primeiros escritos do CC isso parece acontecer. Naquele momento, em meio às potencialidades que promove, o CC toma insuficiências de aprendizagem e de organização como pontos a serem observados e superados por meio da atividade de ensino, minimizando o que se propõe.
Também se percebem rastros freirianos14. O método de alfabetização de adultos15 desenvolvido por Paulo Freire principia do universo vocabular dos educandos. Essa ação deve ser realizada no transcorrer de encontros informais com a comunidade. Objetiva-se partir do saber do educando sobre a realidade em que atua. Essa base permite ao educador promover a mediação desses saberes com o universo cultural mais amplo, levando o educando a reconhecer-se enquanto sujeito que conhece a própria realidade e atua sobre ela.
A ideia de valorizar os saberes dos alunos colonizou o fazer das pedagogias modernas, tanto aquelas centradas no professor e no conhecimento, como as centradas no aluno. Sem dúvida, o fato gerou a mudança da relação professor versus aluno para professor e aluno, do processo de ensino para o processo de ensino-aprendizagem. Não é por acaso que um dos princípios ético-políticos do CC é o reconhecimento do patrimônio cultural corporal da comunidade16 (DUARTE; NEIRA, 2020).
Essa confusão epistemológica tem duas explicações. Em primeiro lugar porque, de modo geral, entende-se que o mapa é um artefato cuja função é demarcar um lugar. Em suas diversas definições, ele é dado como um tipo específico de desenho (plano); é datado histórica e localmente; visa a facilitar a orientação no espaço e fornecer informações sobre ele. O mapa mostra uma área de uma determinada perspectiva. Sua referência é produzida de ângulos específicos, o que limita e, por isso, forja o que se quer ver. Em geral, é visto de cima, do topo, por quem estabelece os limites do território mapeado. Em suma, é uma imagem do lugar numa escala bem menor que a real sem, contudo, dela diferir e, para tanto, transforma coordenadas geodésicas em planos que, por efeito, produzem distorções do observável (isso é explícito no mapa-múndi). Usado de diferentes formas, o mapa é um instrumento que transmite segurança, confiança, dá a rota correta e as alternativas de fuga. Afasta as incertezas e permite o controle e dominação sobre o território que se quer compreender para governar. Como consequência, o significante mapeamento é vago e costuma ser adotado como sinônimo de descoberta (mapeamento genético), mas também como alternativa para elucidar relações complexas (mapeamento conceitual). Enfim, em termos foucaultianos, é uma estratégia de saber-poder.
Segundo, porque a avaliação diagnóstica é constituída por etapas definidas. Na sondagem se verifica a existência de pré-requisitos necessários à aprendizagem. Com os dados em mãos, o professor planeja as atividades adequadas ao desenvolvimento do aluno e faz o retrospecto do que o aluno fez, informando-o o que aprendeu e como aprendeu. Essa etapa facilita o ajuste do currículo, pois averigua em que grau os conhecimentos prévios foram acionados e o que se deve fazer para superar as dificuldades encontradas, tornando-as necessidades, logo, objetivos. Quando executada antes de iniciar o ensino de um determinado conteúdo, a avaliação diagnóstica fornece informações que alimentam o replanejamento. Em suma, como decorrência da própria estrutura linear do currículo por disciplinas, a avaliação diagnóstica é mais uma atividade de controle do processo de escolarização.
Como se observa, em algumas publicações que abordam o CC, o mapeamento é concebido como meio para apresentar a realidade como dada, concreta, tanto das práticas e espaços mapeados como dos conhecimentos dos sujeitos envolvidos. Se assim for, o mapeamento insere-se no paradigma da ciência moderna, calcado na razão, na consciência, no sujeito soberano. Nesse sentido, ele simplesmente contém os dados de um lugar e permite o diagnóstico sobre o que deve ser superado ou governado.
Paradoxalmente, nos pressupostos teóricos do currículo cultural todo conhecimento é tomado como acontecimento, nos moldes da genealogia nietzschiana (NUNES, 2018; NEIRA, 2019; NEIRA, 2022). Para Nietzsche, enquanto acontecimento, o conhecimento não tem uma origem no objeto, nem no sujeito cognoscente. Ele decorre das suas condições de existência: o encontro de forças diversas que tanto apresentam sua procedência como permitem sua emergência. Seguindo os passos de Nietzsche, Foucault (2006) amplia essa noção e afirma que a efetivação do conhecimento não é natural, tampouco da ordem da revelação, descoberta. Ela decorre de um conjunto de regras arbitrariamente constituídas que determinam o que pode ser dito e o que não pode, que distinguem o verdadeiro do falso. O que há são regimes de verdade. Por isso, a ciência é questionada (sem negar a sua validade) como árbitro único e definitivo do que venha a ser conhecimento. O CC considera as incertezas e a produção de conhecimentos de grupos culturais diversos, ou seja, os saberes científicos e os não científicos (NEIRA, 2020), a fim de compreender os regimes de verdade e seus jogos de força que definem a realidade (as práticas corporais) em cada época e lugar, bem como a verdade do sujeito (no tocante a sua relação com as práticas corporais) - (NUNES, 2018). Não existem conhecimentos insuficientes ou distorcidos. Afinal, seguindo Foucault, o significado das palavras não mantém nenhuma relação natural com as coisas e os significantes não escondem em si uma realidade a ser desvelada pelo processo de significação, pela relação entre o sujeito cognoscente e o objeto a ser conhecido. O que se tem são perspectivas de vida, formas diversificadas de significar o mundo, produzidas e impostas pelas culturas que se alteram no contato dentro e entre elas, em meio às lutas pela definição do que a realidade e as coisas do mundo significam. Assim, o modo como uma criança, uma adulta, um idoso, uma representante de um grupo étnico, um cientista, um eleitor, um adepto do esporte, da luta, da dança etc. veem o mundo, suas práticas e a si mesmos, depende dos significados que acessam e as formas como fazem o significante representar, e todas são, nos seus termos, verdade(s)17.
Algumas das produções sobre o CC (NEIRA, 2011b; LIMA, 2015; BORGES, 2019; VIEIRA, 2020) indicam o aparente alinhamento do mapeamento às pedagogias que critica ou que pretende superar. Em muitos momentos, o CC é uma hibridização de tendências pedagógicas e de teorias curriculares (NEIRA, 2011b; BARBOSA; NUNES, 2014), em outros, localiza-se entre teorias críticas e pós-críticas (OLIVEIRA JÚNIOR, 2017; OLIVEIRA JÚNIOR; NEIRA, 2017), assim como seu modo de fazer varia de fórmulas pré-concebidas, invenções e laissez-faire18 (BONETTO, 2016).
Em apenas dois trabalhos o seu significado se aproxima dos termos pós, borrando os limites fechados pelos outros textos. O primeiro é um vídeo19 institucional com orientações para professores produzido em 2008 pela Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, cuja finalidade é subsidiar a implantação da política curricular e, o segundo (NEVES, 2018), resulta de uma autoetnografia e etnografias realizadas em escolas situadas na periferia paulistana.
Ambas as produções se referem ao termo como a escrita que a professora ou o professor podem fazer a respeito das práticas corporais, dos sujeitos, das condições do bairro, dos marcadores identitários, dos significados produzidos na e pela comunidade, das condições das fronteiras culturais, dos afetos que circulam. A partir dos dados que produz, dos significados que interpreta, que em termos nietzschianos nada mais é do que uma produção de sentidos, a(o) docente seleciona uma prática corporal cuja condição de existência, seus códigos de comunicação e linguagem20 possam ser articulados com o projeto político da escola e, assim, tematizá-la em conjunto com os alunos e alunas. Enquanto escrita, explicam que a ação de mapear é constante, assim como o processo de significação, pois outras representações emergem diante das problematizações que as vivências suscitam, tanto as que ocorrem nas aulas como aquelas que mobilizam estudantes e educadore(a)s a verem o mundo para além dos limites das aulas.
O mapeamento como arte de criar mundos
Enquanto um mapa é compreendido como um objeto, um artefato cultural, a cartografia é tomada como um conjunto de estudos e operações que, por meio de observações diretas e interpretações de documentos, visa à construção de mapas e outras formas de comunicar fenômenos, territórios e aspectos socioeconômicos, bem como a difusão e modo de utilização e estudo desses registros. A teorização pós-crítica ressignifica esses conceitos.
O mapeamento no CC é uma arte de produzir mapas, uma cartografia, entendida como ferramenta para escrever, pensar, ler e atuar no mundo; ferramenta que à medida que permite ao professor descrever o território, o inventa. Mapear é criar ficções e, assim como faz o escritor José Luiz Borges21, conduz a aventuras múltiplas, cria mundos. É a ação de partida para viagens (aulas) inesperadas no CC que, como tal, precisa ser elaborada, planejada. O mapeamento permite aos viajantes (docentes e discentes) pensarem e artistarem o plano da viagem, do estudo, das aulas e contribui para a reelaboração ininterrupta do traçado diante dos percalços da caminhada, da navegação, da experiência da viagem aos prazeres e desprazeres do acontecimento-aula, dos conhecimentos e das invenções. Abre ao professor a possibilidade de (re)traçar seu caminho, suas escolhas, ou seja, tomá-lo como tecnologia que lhe permita ver-se, narrar-se, governar-se e, assim, pensar em um cuidado de si na ação docente, quiçá pode fazer o mesmo com os discentes. O mapeamento é uma atividade ética, que não se apoia em modelos determinados, tampouco em fins metafísicos e moralizantes. Para tanto, ressignifica a noção de cartografia de Gilles Deleuze, que desenvolveu uma concepção peculiar a partir das conversas com Michel Foucault. Deleuze (2012) se referia ao colega como cartógrafo. Essa denominação decorre do uso que Foucault fez da arqueologia e da genealogia como cartografia dos discursos, isto é, uma descrição histórica e panorâmica de domínios discursivos que constituem os jogos de força produtores das estratégias de saber-poder e como esses jogos constituíram e constituem os dispositivos que operam, regulam, delimitam a sociedade ocidental moderna e, quiçá, suas influências globalizantes. Uma cartografia/pensamento.
Na introdução de Mil platôs, obra em parceria com Felix Guattari, encontramos referências à cartografia como princípio do rizoma, tido como conceito para operar o pensamento em oposição à representação, quando entendida como reflexo do real22. Inspirado na Botânica, o pensamento rizomático não possui um centro de onde se possam traçar linhas, ou melhor, um centro (o sujeito da consciência - o professor de EF) que dá origem e conduz o pensamento de forma linear, progressiva, hierárquica. O rizoma nega os binarismos consciência e inconsciência, natureza e história, corpo e alma, que marcaram a tradição do pensamento moderno para afirmar multiplicidades, porém, não toma as categorias de diferença, variação e subdeterminação como formas de oposição ao uno (unidade natural do ser, das coisas, identidade e determinação), tradicionalmente debatidas na Metafísica. O pensamento deleuze-guattariano é uma atividade ética, na qual não há modelos, tampouco fins transcendentes. Recusa qualquer conforto moral ou direção histórica, como querem as pedagogias modernas, quer sejam as críticas ou tradicionais.
Deleuze e Guattari concebem o rizoma como um caminho/pensamento no qual as ideias, os conceitos, criam um plano sem hierarquias, sem continuidade, ao mesmo tempo conectado e aberto à mudança, à contingência, à transformação. O rizoma apresenta múltiplas (adjetivo) entradas, o que indica pensar com o múltiplo (substantivo)23, recusando a realidade e a linguagem como instâncias representativas, e o sujeito como estrutura enunciativa. Reforça-se, então, que o docente não é soberano na produção do mapa, na escolha de seus traçados, nem tampouco o mapa é a cópia do lugar que observa.
Os autores pensam os mapas como objetos estéticos, que podem ser dobrados, abertos de diferentes formas. Jamais se fecham em si mesmos, nos seus enquadramentos e limites. São modificáveis, nunca se definem; servem para produzir interpretações, inquietações; incorporam crenças e valores culturais ao figurarem e reconfigurarem o espaço. São poéticos, estratégicos, políticos, em hipótese alguma, canônicos. Sendo produções repletas de sentidos, os mapas não podem ser tomados como verdades absolutas. Sendo maleáveis, é impossível toma-los como cópia, imitação ou plágio. Podem mostrar e produzir caminhos, mas não podem contê-los. Em suma, mapas se referem a conjuntos de linhas diversas que funcionam ao mesmo tempo entre corpos de qualquer natureza, produzindo o pensamento.
Vejamos o seguinte exemplo: um mapa de um patrimônio cultural e intangível do Brasil, o samba (música); que congrega a prática corporal samba (dança). O traçado desse mapa mostra diferentes linhas que compõem a relação entre o samba e o sambista. O samba é um território próprio. O sambista, outro território. Há, nesse fluxo, linhas duras ou molares, que organizam os territórios: o território “samba”, com seu ritmo, suas sincopas, suas ancestralidades, suas histórias de origem, seus espaços de prática, suas letras que narram o cotidiano de muita gente; e o território “sambista”, com sua ginga, malemolência, passadas, olhares, roupas e adereços, história de vida marcada a ferro, suor e resistência. Também há linhas flexíveis ou moleculares que promovem as negociações necessárias para estabilizar os territórios (as estratégias do sambista para com o samba e vice-versa - o modo como dança, canta, toca, assiste e o modo como a ancestralidade, o espaço, a música marca a cadência para quem dança, canta, toca, assiste). Finalmente, há linhas de fuga, que permitem desmanchar as relações, traçando um devir (devir-sambista do samba e devir-samba do sambista)24. Tanto o samba, quanto o sambista estão sempre escapando de qualquer tentativa de captura. Isso é possível observar nas suas transformações (escolas de samba; samba-de-roda, samba-canção, samba-enredo, partido alto, pagode, finalidades, espaços, coreografias, arranjos musicais, instrumentos) e nas suas influências (bossa-nova; funk dos pancadões; carnaval; festas), nas quais tanto há jogos de contenção (daí suas novas configurações) como afirmação da diferença (daí as possibilidades do devir). Essas linhas são impartíveis e imanentes umas às outras. Um mapa será, portanto, o conjunto de linhas como composição de forças do encontro entre samba e sambista. A cartografia é o acompanhamento das linhas, é o caminho/pensamento que permite a análise de suas forças, que não cessam, pois estão sempre em movimento. Não por menos, nesse movimento, a marcação do surdo e a chamada do repique levantam almas, sacodem a poeira e fazem com que muitos deem a volta por cima, se reinventem, se ressignifiquem, um processo permanente de criação.
Para Deleuze e Guattari, ao configurar o território, a cartografia inventa um mundo, produz seus lugares, territorializa e desterritorializa significados, cria interpretações contaminadas do espaço, dos sujeitos, das práticas. Abala os limites da representação. Ela vem sendo usada como possibilidade para traçar percursos inimagináveis para a pesquisa, engendrando o artista-pesquisador25.
Os autores disponibilizam elementos para vislumbrar e, assim, criar o mapeamento no CC como ato de traçar um caminho/pensamento/prática. Prática docente que implica na produção do pensamento sobre o território que habita seu trabalho. Prática do pensamento que ao descrever as ficções do espaço, das características das práticas, da escola, das aulas, dos saberes, dos praticantes, dos artefatos, dos afetos, dos jogos de força etc., inventa possibilidades de viver o território de outros modos. Ademais, sendo múltipla, a escrita/pensamento do mapa nunca é definitiva.
O mapa criado é sempre ligado a outros mapas e nunca pode ser enquadrado, definido, limitado. O mapa é uma representação, em termos foucaultianos, enquanto prática discursiva e não discursiva, aberto à dispersão e ao jogo da diferença, logo aberto às novas escritas, pensamentos, olhares, pois, no caso, a vida, as práticas corporais, os sujeitos, estão sempre em trânsito, em mudança, em luta pelo controle do significado colado na representação por meio das relações de poder, em permanente devir e, ao mesmo tempo, transgredindo os limites que definem a representação. Nessas condições, o mapeamento afasta-se, contrapõe-se ao divulgado como registro da coleta de informações, avaliação diagnóstica ou cópia da realidade investigada26.
Na escrita-currículo do professor-artista do CC, o mapeamento cria possibilidades para que o mapa a ser traçado nas aulas atente ao acaso, às contingências que emergem no devir-aula. Nessas condições, convoca seus sujeitos, sujeitos da arte-pesquisa-docência-currículo, a fazer uma reflexão bem peculiar. Uma vez cientes da problemática do traçado delineado, que outros caminhos poderiam ocorrer e, com isso, outras vivências, outras experiências de si, outras formas de pensar, os sujeitos que escrevem o currículo empreendem uma cognição capaz de conhecer em profundidade os processos que o constituíram, a força dos discursos enunciados, seja pelo professor ou pelos alunos, seja pelas práticas corporais que circulam na aula ou fora dela, a fim de que esse encontro possa ser cuidado e favorável à forma-de-vida. Como estratégia da escrita-currículo, o mapeamento deve ser mais capaz de inventar formas de ver e falar acerca do mundo do que propriamente reconhecê-lo para transmitir verdades por meio de métodos, técnicas de ensino, seleção e formas de organização dos conhecimentos.
Se na cartografia convencional se escrevem mapas dos territórios a fim de governá-los, o princípio da cartografia permite ao CC a confecção de mapas a fim de desmobilizar as formas de governo, o poder. Justamente por isso, no CC, se mapeiam as práticas corporais, seus códigos, significados, sujeitos, relações, agenciamentos, desejos, enfrentamentos e cruzamentos entre forças, jogos de verdade, modos de objetivação e subjetivação, a fim de fomentar produções, em termos foucaultianos, tanto de uma estética de si como de práticas de liberdade (NUNES, 2018). Pautado no pensamento cartográfico de Foucault, Deleuze e Guattari, ou melhor, criando a partir de suas noções conceituais, o mapeamento no CC produz interpretações que operam como ferramentas para desmontar os dispositivos de poder, práticas que desemaranham suas tramas e potencializam a resistência aos seus modos de objetivação e subjetivação, enfim, de promoção de forma-de-vida.
Se o CC se ancora (também) na filosofia da diferença, o mapeamento encontra na cartografia deleuze-guattariana a possibilidade de fazer da escrita-currículo uma escrita/pensamento, uma docência-artística. O mapeamento possibilita o mergulho na geografia dos afetos, dos movimentos e intensidades que marcam as relações entre alunos, alunas, professores, professoras, culturas e conhecimentos. O mapeamento, assim, não se limitaria a um processo informativo anterior às aulas. Ele é o próprio espírito das aulas e acontece o tempo todo, como fazem crer algumas passagens das obras citadas.
Não pretendemos descrever passos ou etapas a serem seguidos, tencionamos sugerir alguns encaminhamentos a partir das experiências vividas (NEIRA; NUNES, 2006, p. 247).
Os tópicos a seguir não podem ser lidos e compreendidos de forma moderna, ou seja, universal, reducionista e mecânica. As discussões que seguem devem ser tomadas como linhas de fuga que abrem múltiplas possibilidades para a escrita do currículo (NEIRA; NUNES, 2009a, p. 234).
Para realizar o mapeamento, o professor pode ousar da maneira que quiser, não existe um único jeito de se fazer, a multiplicidade de possibilidades será definida por ele, pode utilizar uma música, um vídeo, uma imagem, uma vivência, um bate-papo. E geralmente ao anunciar o que será tematizado, os próprios estudantes já manifestam seus olhares sobre a prática corporal escolhida, atribuindo diferentes significados sobre ela e seus participantes (NEVES, 2018, p. 73).
Mapear: olhar o mundo, criar ficções
Construir mapas, tramar os caminhos e as aventuras do CC é, antes de tudo, mergulhar nos desejos, nas marcas e jogos de força que fixam limites, nas fronteiras culturais que fecham a representação para colocá-la no jogo da diferença e abrir a possibilidade da ressignificação (sempre temporária) das práticas corporais e de si mesmo. Essa condição, colocam Neira e Nunes (2009b), implica que docentes do CC assumam uma atitude etnográfica, isto é, em alguma medida, acessem a cultura em que a prática corporal ocorre e interpretem seus códigos e linguagens, a fim de promover leituras ancoradas nos saberes produzidos e atentos às forças que a governam. Isso quer dizer adotar na pesquisa a atitude do vadio e da vadia27 (SANTOS, 2021), que ao escancararem sua "forma-de-vida" são vistas como ameaças à ordem estabelecida.
Ao contrário do etnógrafo clássico, que ficava imerso nas culturas de povos denominados primitivos, ou do flâneur europeu que caminha na urbe, adotar a atitude do vadio e da vadia representa o modo de ação do etnógrafo urbano destas terras, que em tempo de impactos promovidos pelas novas tecnologias de comunicação, pela intensificação dos dispositivos de controle, com o escancaramento do permanente estado de exceção em que nos encontramos, confronta-se com um mundo saturado de informações, de estratégias de regulação, necropolíticas e biopolíticas contraditórias, atravessado pelo capitalismo globalizado, mas, também, pela alegria e resistência dos saraus da periferia, rodas de samba, grafites, torcidas de futebol, bancos das praças, adesivos das traseiras dos caminhões, modas de viola, piadas e tantas outras possibilidades que tornam inoperantes os dispositivos de domínio e poder. Aqui arriscamos a propor que etnógrafos-cartógrafos adotem como exemplo as atitudes do vadio e da vadia, figuras híbridas e, ao mesmo tempo, nômades. Andam na vida, fazem mapas, cartografias sociais, a fim de resistir e potencializar forma-de-vida.
A atitude da vadiagem consiste em sair dos muros da escola e sentir os cheiros, os aromas, os odores e sem critérios de seleção, mas com a sensibilidade aflorada, vislumbrar pessoas em seu território, suas marcas identitárias, alegrias e horrores. Não se trata de delinear o cotidiano. Vadiar, nesse caso, é estar aberto ao inesperado, perceber o que não se vê no visível. É traçar, em termos deleuze-guattarianos, linhas que desterritorializam e reterritorializam espaços de modo completamente diferentes ao já dado; não mais imitação, mas captura de códigos, aumento de valências, verdadeiros devires que empurram a desterritorialização cada vez mais longe (DELEUZE; GUATTARI, 2000). Como propõe Foucault (2009), é transgredir limites, afirmando-os ilimitados.
Quando adotam a atitude da vadiagem, o professor e a professora se dão conta dos dribles mágicos dos campinhos de terra, olham para o céu em busca das manobras “dos” pipas, partilham da emoção dos infantis que se equilibram no meio-fio das calçadas, observam as disputas de corridas de palito de sorvete nas corredeiras das sarjetas, escutam as batidas do pancadão, a cadência do samba, sentem o remelexo do forró e o ritmo frenético do psy, pulam do céu para o inferno das amarelinhas riscadas no chão, recortam as roupas das fotos das revistas para vesti-las nas bonecas e bonecos de papel, descem a ladeira de skate, colocam o rei em xeque embaixo de uma árvore e a bola na caçapa da vida, participam da reunião familiar no quintal para uma apresentação de dança dos crianças, observam a imitação dos heróis e heroínas dos desenhos animados. Acompanham as senhoras mais velhas, as crianças mais novas, os jovens, as adultas, as pessoas trans, queers, fluidas… vão com tudo e com todas e todos na tentativa de cartografar territórios e significados, compreender os sentidos dos artefatos e valores que criam afiliações, se lançando em múltiplas temporalidades e espacialidades, quer com as roupas de personagens midiáticos do cosplay, quer com as dos ídolos do basquete ou do futebol, quer com cortes de cabelo que reforçam a negritude ou a juventude.
Pensar o etnógrafo/cartógrafo a partir da atitude do vadio e da vadia é estar aberto às narrativas dos sujeitos comuns, escondidas em meio às representações que circulam na urbe. Por conta disso, não há perguntas fixas, métodos determinados, roteiros pré-estabelecidos, sem, no entanto, abandonar os saberes (científicos ou não) para realizar tal empreitada. O que se tem é a curiosidade, o desejo de imergir nas cenas que se articulam entre apartamentos, casas, barracos, ruas, vielas, becos, barrancos, praias, montanhas e sertões. Ver a vida fluir no entorno da escola e o pulsar dos sujeitos da cultura. O que importa é sentir, ver e ouvir narrativas múltiplas em tempos e espaços próximos e distantes, assim como escutar os silêncios. Importa aceitar o desafio de saber interpretar o que tudo isso diz sobre a vida local e a relação dos sujeitos com a sociedade mais ampla. Todo esforço para fazer um mapa e trazer para o currículo as impossibilidades da identidade e a potência da diferença com as memórias pessoais, coletivas, sociais, bem como as práticas discursivas, não discursivas, linguageiras ou ainda não capturadas pelas linguagens que as produzem e as fazem circular. Traçar a cartografia das práticas corporais, seus sujeitos, espaços, artefatos, assim como da escola, das aulas, da docência, dos encontros é mapear a política e a poética dos lugares em que se situa.
Por enquanto, é assim que estamos a pensar, escrever, dizer, fazer o mapeamento no CC.