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Educação e Filosofia

Print version ISSN 0102-6801On-line version ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.36 no.78 Uberlândia Sept./Dec 2022  Epub Jan 29, 2024

https://doi.org/10.14393/revedfil.v36n78a2022-66281 

Dossiê "Educação, produção de subjetividade e cuidado de si: a atualidade de 'A hermenêutica do sujeito'"

É preciso defender a amizade: provas de vida nas guerras de subjetividade das políticas de inimizade contemporâneas

In defense of friendship: life’s proofs in the subjecvity wars of the contemporary enmity policies

En defensa de la amistad: pruebas de vida en las guerras de subjetividad de las políticas de enemistad contemporáneas

Alexandre Filordi de Carvalho* 
lattes: 5589093016557658; http://orcid.org/0000-0003-4510-9440

Silvio Gallo** 
lattes: 3808560029763904; http://orcid.org/0000-0003-2221-5160

*Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professor Associado no Departamento de Educação da Universidade Federal de Lavras (UFLA). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq - Nível 2. E-mail: afilordi@gmail.com

**Doutor em Educação e livre docência em Filosofia da Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professor Titular da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq - Nível 1ª. E-mail: silvio.gallo@gmail.com


Resumo

Este artigo homenageia a atualidade do curso A hermenêutica do sujeito, proferido por Foucault no Collège de France em 1982. Sabe-se que o tema central do curso é o cuidado de si como tekhné tou biou, examinado pelo filósofo nos momentos socrático-platônico, helenístico e cristão. Porém tomaremos a questão da amizade, que atravessa as técnicas de si antigas analisadas por Foucault, para problematizar nosso presente. Após discutir a recepção que fazemos do curso quarenta anos depois, discutimos o atual momento do neoliberalismo e as políticas de inimizade por ele engendradas, de modo a pensar a prática da amizade como contraconduta, como prática de resistência. A amizade anarquista como forma de associação é tomada como máquina de guerra possível contra as atuais políticas de inimizade neoliberais.

Palavras-chave: Amizade; Técnicas de Si; Ética; Política; Anarquismo

Abstract

This article pays homage to the actuality of the course The hermeneutics of the subject, given by Foucault at the Collège de France in 1982. It is known that the central theme of the course is the care of the self as tekhné tou biou, examined by the philosopher in three moments: Socratic-Platonic, Hellenistic and Christian. However we will take the question of friendship, which crosses the ancient techniques of the self analyzed by Foucault, to problematize our present. After discussing our reception of the course forty years later, we discuss the current moment of neoliberalism and the enmity policies engendered by it, in order to think about the practice of friendship as a counter-conduct, as a practice of resistance. Anarchist friendship as a form of association is taken as a possible war machine against current neoliberal policies of enmity.

Key words: Friendship; Techniques of the Self; Ethics; Politics; Anarchism

Resumen

En este artículo prestamos homenaje a la actualidad del curso La hermenéutica del sujeto, presentado por Foucault en 1982 en el Collège de France. Se sabe que el tema que es el centro del curso ha sido la inquietud de sí como tekhné tou biou, examinada por el filósofo en tres momentos de la antigüedad: el socrático-platónico, el helenístico y el cristiano. Aún así, tomamos la cuestión de la amistad, que es transversal a las técnicas de sí antiguas analizadas por Foucault, para problematizar nuestro tiempo presente. Después de discutir la recepción que nosotros hacemos del curso cuarenta años más tarde, ponemos en debate el momento actual del neoliberalismo y sus políticas de enemistad, de manera a pensar la práctica de la amistad como contra conducta, como práctica de resistencia. Tomamos la amistad anarquista como como forma de asociación como posible maquina de guerra contra las políticas de enemistad neoliberales actuales.

Palabras clave: Amistad; Técnicas de Sí; Ética; Política; Anarquismo

Neste artigo, procuramos pensar o presente a partir de A hermenêutica do sujeito, quando se completam quarenta anos das aulas proferidas por Michel Foucault no Collège de France. Para tanto, fazemos um recorte em torno de um tema que, embora atravesse o curso, não era seu objeto central, a amizade. Se a amizade na extensão da cultura do cuidado de si era uma experiência de prova de existência no mundo, a demanda de transformação de si também inflexionava a transformação do mundo. E isso traz múltiplas implicações: vínculo, inserção na vida política, prazer como experimentação, dentre outras.

Lançamos como hipótese: em que medida é possível pensarmos na atualidade políticas de amizade que constituam sobre si mesmas experiências de provas contrárias às políticas de inimizade? O que são? Qual seu contexto? Qual seu alcance?

Para realizar tal intento, organizamos o texto em três movimentos: Em primeiro lugar, discorremos em torno de possíveis recepções d’A Hermenêutica do Sujeito quarenta anos depois de sua realização. Em seguida, na companhia de autores contemporâneos que problematizam nosso presente, procuraremos delinear o cenário da inimizade e suas políticas. Ao final, buscaremos nas inventividades de amizades, notadamente na prática anarquista da amizade como possibilidade de associações livres, possibilidades de resistência, na forma de uma articulação de lutas a um só tempo políticas, econômicas e éticas.

A hermenêutica do sujeito: que recepção procedemos quarenta anos depois?

Um tríplice contexto nos interessa a partir do curso A hermenêutica do sujeito. E ao mencionarmos a partir, enfatizamos não ser o curso em si o nosso escopo e tampouco as análises internas de seu vasto conteúdo. Trata-se, porém, de tê-lo em mãos à semelhança de Foucault com a filosofia: uma caixa de ferramentas.

Dentre as muitas ferramentas, privilegiaremos o uso extensivo-político da concepção de amizade eivada nesse curso de 1982. São as possibilidades de desmontagens e montagens analíticas a partir de como Foucault politizou a perspectiva da amizade, na truncada e complexa história crítica da cultura do cuidado de si, que constituem o nosso foco. Dito isso, ponderemos o tríplice contexto de nosso interesse.

Gostaríamos de situar a recepção da temática da amizade sob o diapasão das indagações finais suscitadas por Foucault na última aula de A hermenêutica do sujeito, em 24 de março de 1982. Precisamente, trata-se de seu parágrafo final. Destacamos dois aspectos. O primeiro refere-se ao tom ensejado para a concepção de vida, disposta, a nosso ver, não como a cortina a se fechar após o ato derradeiro da trama exaustiva de uma análise histórica. Ao contrário, ali a vida emerge como suspensão do ato final; intercurso prolongado sem suposição de enredo derradeiro; espécie de ponto que não é término, porém apenas mais um na sucessão de certo conjunto de pontos a compor o signo das reticências.

Na referida aula, vida é disposta como prova (éprouve). Já é o suficiente para anunciarmos: vida é polissemia. Isso porque a coextensão da vida à substantivação da prova supõe a miríade de ações do que é provar. Ser testado ou testar, ou seja, experimentar; passar por uma provação, no sentido de enfrentar situação a exigir empenho de força, capacidade, destreza, emoção etc.; degustar, como quem prova a nova receita; demonstrar a verdade, como quem autentica com razões, fatos ou provas; mas também ter conhecimento direto de certos estados, certas situações, emoções ou sensações. A vida como prova amplifica a experiência de como ela é testada, experimentada, enfrentada, conhecida, sentida, ensejada por verdades e incansavelmente submetida ao confronto de ser examinada.

Foucault (2004) sublinha, assim, a vida por atravessamento de provas que é o próprio mundo. O mundo é o que precisa ser provado para a vida dar prova de que passou pelo mundo. E tal como se o prova, a vida também é provada.

Em dois sentidos devemos entender que o bíos, a vida - quero dizer, a maneira pela qual o mundo se apresenta imediatamente a nós no decorrer de nossa existência -, seja uma prova. Prova no sentido de experiência, ou seja, no sentido de que o mundo é reconhecido como sendo aquilo através do que fazemos a experiência de nós mesmos, aquilo através do que nos conhecemos, nos descobrimos, nos revelamos a nós mesmos. E prova no sentido de que este mundo, este bíos, é também um exercício, ou seja, é aquilo a partir do que, através, a despeito ou graças a que iremos nos formar, nos transformar, caminhar em direção a uma meta ou uma salvação, seguir ao encontro de nossa própria perfeição. (FOUCAULT, 2004, p. 590)

Como se vê, a relação indissolúvel prova-vida-mundo é atestada pelos efeitos das incidências de efetivação de modos de ser variáveis conforme os cuidados próprios destinados a se produzir esta ou aquela vida no mundo. A suposição do trânsito das provas libera vida e mundo de concepções a priorísticas, deterministas ou finalistas. É com a consistência do que se experimenta que também é possível se formar, se transformar, obter certa meta, salvar-se1. E, desde as descobertas aportadas por Foucault no extenso cenário da cultura do cuidado de si, é possível um redimensionar das próprias condições de como a história do pensamento ocidental nos circunscreveu a determinadas condições de se pensar o que é viver.

Não é sem razão, e este é o segundo aspecto a nos interessar, o fato de Foucault concluir o curso A hermenêutica do sujeito redesenhando, com o caráter afiado de suas indagações, perspectiva problematizadora para o pensamento e a filosofia ocidentais. Dentre os aspectos por ele contemplados, destacamos a retomada da prova como “lugar de problema da filosofia ocidental”, sempre na relação prova-vida-mundo:

De que modo o mundo pode ser objeto de conhecimento e ao mesmo tempo lugar de prova para o sujeito; de que modo pode haver um sujeito de conhecimento, que se oferece o mundo como objeto através de uma tékhne, e um sujeito de experiência de si, que se oferece este mesmo mundo, mas na forma, radicalmente diferente, de lugar de prova? (FOUCAULT, 2004, p. 591, grifos nossos)

Com essa perspectiva, Foucault situa o lugar de prova como passagem de movimento incessante, fluxo de experimentação e inseparável de certa potência contestatória para tudo o que nos coloca em prova neste mundo e para tudo que podemos criar como prova para o mundo. Ademais encontramos a ideia do imprescindível exercício da tensão indagadora acerca de nossos destinos, das histórias que ainda podemos escrever sobre o palimpsesto de um mundo que não precisa se conformar à sua atual conformidade e dos lugares de prova que podemos experimentar em nós, com os outros e com o mundo.

Situar a temática da amizade no contexto acima é transportá-la para a condição irrecusável de nossa relação com o mundo. No entanto, uma vez que não há mundo sem prova, interessa-nos indagar quais tipos de provas a amizade pode suscitar ao mundo. E ao fazê-lo, também indagar: que tipos de transformações para o mundo são possíveis? Mas para pensarmos em transformações, não nos seria demandado, ao mesmo tempo, algum tipo de leitura do mundo? Ao empreendermos assim, contudo, não é forçosamente uma escolha política que estaria em jogo? Afinal de contas, em todas as experiências da cultura de si escolhas políticas estão envolvidas, no sentido que a política é uma forma de conduzir a si mesmo e aos outros.

Ora manter uma aproximação com essa chave interpretativa é imprescindível para o que se sucede, pois se trata de escolhas das provas por nós eleitas como teste, experimento, testemunho, lugar de passagem e superação de certo mundo. Sendo assim, o segundo contexto a nos interessar a partir do curso A hermenêutica do sujeito é uma situação coincidente com uma leitura de mundo e, sobretudo, ao contexto brasileiro.

No mesmo dia em que Foucault concluía diante de sua audiência no Collège de France o curso A hermenêutica do sujeito, o jornal francês Le monde circulava uma matéria que muito interessa para o escopo deste texto. Escrita por Stéphane Hessel, o seu título não deixa de nos causar, quarenta anos depois, terrível assombro acerca das condições políticas e socioeconômicas sob as quais nos encontramos: Que pode fazer a França para o terceiro mundo?2. Abordando o drama do que eufemisticamente passava a se denominar “países em desenvolvimento”, máscara conveniente às amarras do poder capitalista a destinar tais países à impossibilidade realizada de desenvolvimento, espécie de futuro mumificado de modo constante - sempre em desenvolvimento, posto que a condição de desenvolvido seria inalcançável - a matéria sublinhava alguns dos grandes desafios de referidos países:

A deterioração das condições de comércio, a explosão demográfica, o peso do endividamento, a inadaptação das estruturas políticas a um real controle da economia, a incapacidade do aparelho educativo de responder às exigências que o confrontam. (HESSEL, 1982, n. p.)

Nesse contexto histórico, início dos anos de 1980, momento de deflagração do neoliberalismo e do neoconservadorismo, encabeçados pelas serpentes da Medusa do capital internacional Margareth Thatcher, representando o imperialismo econômico europeu, e Ronald Reagan, o imperialismo estadunidense (STEGER; ROY, 2010), é curioso ver nas tintas de Hessel (1982, n. p.) a denúncia de que os países industrializados, convergindo para a “nova ordem econômica internacional” - leia-se neoliberalismo planetário - “não souberam ajudar o terceiro-mundo a sair do subdesenvolvimento”.

Hessel (1982, n. p.) também ressalta a contradição existente entre o fato de o Ocidente ter projetado para todo o planeta seus “modelos” e a sua incapacidade de “eliminar as formas mais escandalosas de miséria e de exploração ou de gerar um novo fôlego para o conjunto da economia mundial”. Nesse caso, o que prevaleceu foram reduplicações de modelos convenientes à manutenção da segurança dos países desenvolvidos e da insegurança dos países em desenvolvimento, o que já não era novidade para Foucault (2015), ao evidenciar em A Sociedade Punitiva, curso de 1973, a lógica existente entre manutenção de segurança em detrimento da insegurança e vice-versa.

Seja como for, quarenta anos depois da indagação Que pode fazer a França para o terceiro mundo?, entre diagnóstico e metástase do modelo ocidental, prevalecem: a amálgama da racionalidade burocrática; do consumismo; da meritocracia; dos golpes de Estado conforme a conveniente adesão imposta aos ideários políticos da nova ordem econômica internacional, amparadas pelos braços institucionais das políticas, por exemplo, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial (BM), Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID); da escotomização do avanço da pobreza e da precarização; sem mencionar a dissolução de condições produtivas nacionais, em detrimento da racialização da mão de obra internacional a custos baixíssimos; e, não menos importante, da aniquilação da presença do Estado como fiador da seguridade social em ampla escala e das redes de proteção social, inclusive as de solidariedade humana (ALLIEZ; LAZZARATO, 2016; CHAMAYOU, 2020; KLEIN, 2007; PIKETTY; 2022; STANDING, 2017; ZUBOFF, 2019).

Dilatando tal perspectiva, o terceiro contexto de nosso interesse, a partir de A hermenêutica do sujeito, recai na atualização vertiginosa, quarenta anos depois, da situação de mundo encontrada na referida reportagem e a sua persistente realização no cenário contemporâneo. Pensamos ser os termos finais de Foucault no curso de 1982 um sinal importante a nós fornecido contra toda estase de pensamento ou de ação por ele mobilizada. Ainda mais, sinal contra toda apatia com as implicações acerca de se oferecer a si mesmo a este mundo como forma radicalmente diferente de lugar de prova deste/neste mundo, situando-se no mundo, entretanto, visando à constituição de outro mundo.

Assumimos assim que o próprio Foucault estaria forjando condições, a partir de seus experimentos com outras histórias e analíticas de saberes, para nos equipar, no sentido da dar condições ou equipamentos eficazes, para certas lutas. Entendidas no registro daquilo que se prova, as lutas emergem numa espécie de encruzilhada de possibilidades para se escrever outras histórias e outras vidas para este mundo e neste instante de mundo. Em outro texto do mesmo ano de 1982 (O sujeito e o poder), o filósofo afirmava haver três tipos de lutas determinantes: aquelas contra as formas de dominação; aquelas contra as formas de exploração; e, finalmente, aquelas contra as formas de sujeição, sendo que estas estavam se tornando cada vez mais predominantes (FOUCAULT, 2014, p. 123). Haveria, pois, que se preparar para todas essas lutas, equipando-se para que elas pudessem ser enfrentadas de modo digno.

Ao modo de Foucault, passaríamos a indagar: a que nos associamos e nos destinamos, prontos para enfrentar? Mas o que precisamos enfrentar? Como, para tanto, nos preparamos e com quais provas? Que situações de provas tem o mundo nos oferecido? Com quais tipos de experiências de nós mesmos nos entregamos ao mundo, entretanto, como formas radicalmente diferentes de histórias no nível dos acontecimentos?3

Há uma pletora de pesquisas voltadas para a tentativa de se atualizar o entendimento, a crítica e a busca de produção de estratégias contestadoras da conjuntura atual da vida no mundo contemporâneo (BERARDI, 2015, 2020; BROWN, 2019; BUTLER, 2019; HOSANG; LOWDENS, 2019; KLEIN, 2017; PIKETTY, 2022; ROSE, 2011; STANDING, 2017). Apesar de múltiplas chaves de leitura, encontramos nelas um investimento de compreensão acerca da aceleração das pistas deixadas por Hessel (1982). Quarenta anos após A hermenêutica do sujeito, as apostas iniciais do neoliberalismo como nova ordem econômica se hipertrofiaram e abusivamente passaram a se mostrar como via única e homogênea de gestão produtiva material e social, estratégia política e condição imperiosa da normalização do fosso social instituído, no âmbito planetário, entre incluídos e excluídos economicamente. Não obstante, também assinalando para o impacto direto e irreversível nos processos de subjetivação que se formam como lugar de prova, exercício e condição de experiência nossos4.

No enfoque deste artigo, privilegiaremos o contexto geral das análises que Mbembe (2021) desenvolveu acerca das políticas da inimizade contemporâneas. Não é novidade para nenhuma leitura de A hermenêutica do sujeito o papel de destaque da amizade na cultura do cuidado de si. Perpassando o contexto socrático, epicurista e estoico, a amizade emerge não como casualidade de afetos a se constituírem, mas como condição política e estratégia de cuidado de si, implicando o outro em um círculo relacional inapelável e em uma localização de cumplicidade subjetiva cujo móbile é a prova de si no âmbito do aperfeiçoar-se, conforme a ética empenhada para esta ou aquela finalidade.

Também é sobejamente conhecida a recepção da amizade empreendida por Foucault na forma de uma estilística de si mesmo (ORTEGA, 1999); inventividade própria atravessada por modos de vidas a afrontar as linhas de forças de dominação subjetivas, sobretudo aquelas voltadas para o uso dos prazeres (FOUCAULT, 1994a).

Não iremos perseguir os passos realizados por Foucault acerca das distintas concepções de amizade deslindadas em A hermenêutica do sujeito. Tampouco entraremos pela perspectiva do uso da amizade que Foucault empregava em suas próprias experiências de cuidado de si mesmo, em sua estética homoafetiva, em sua erótica ou em suas amizades5. O objetivo central é o de considerar a amizade no sentido inalienável da constituição de nossa experiência subjetiva, podendo ser considerada como plano político de vida, no sentido proposto por Foucault, e, desde então, circunscrita à potência de lugar de prova, por sua vez, a nosso ver, radicalmente diferente de sua transformação atual em política da inimizade.

Ao procedermos dessa maneira, mobilizamos uma questão de fundo: se as transformações sociais ocorridas entre o término de A hermenêutica do sujeito e o tempo presente corroeram, dentro da peculiar aceleração do neoliberalismo, as políticas da amizade; e se passamos a viver no contexto das políticas da inimizade, que tipos de provas podemos pensar para a amizade, se em tais provas a própria amizade se transforma em experiência, exercício e estratégia que podem oferecer ao mundo um sujeito de experiência de si, porém, na forma radicalmente diferente do que a vida tem sido no mundo?

A compreensão do que são as políticas da inimizade é um passo fundamental para caminharmos na direção do alcance de experiências cuja vida assinale concomitantemente para outras políticas de amizade e o contrário também. Por sua vez, tais políticas de amizade emergem no plano das contracondutas ou insurgências, dado ser a amizade uma ameaça às estabilidades das instituições ocidentais, claro está, dispositivadas na racionalidade de seus poderes disciplinares e de suas governamentalidades unívocas. Não são sem propósitos os termos de Foucault (1994b, p. 744): “o exército, a burocracia, a administração, as universidades, as escolas etc. - no sentido que essas palavras hoje possuem - não podem funcionar com amizades tão intensas”.

As grandes instituições confiscam a amizade pelo fato de ser ela força de criação político-existencial sem programa estável e metafinalidades. Trata-se, no fundo, das estratégias dominantes de sufocamento de criação política para as vidas ainda não conformes ao mundo. Em todo caso, tais instituições, encilhadas pelo neoliberalismo atual, sempre “tentam fornecer à criação política a forma de um programa político com o fim de assumir (s’emparer) o poder” (FOUCAULT, 1994b, p. 746). Como a amizade, assim, poderia ensaiar para a vida, no amplo e complexo contexto de sua condição social, política e material, possibilidades micropolíticas de afirmação de criação política fora dos circuitos vigentes das políticas de inimizade? Ao cabo, ao que nos parece, atualizamos assim umas das formas necessárias da perspectiva abaixo assumidas por Foucault (1994b, p. 746): “uma das coisas que precisamos preservar, a meu ver, é a existência de certa forma de inovação política, de criação política e de experimentação política, mas fora dos grandes partidos e do programa normal ou comum”. E não seria a amizade uma dessas formas possíveis?

Outra pista a se considerar encontra-se na resposta que Daniel Defert (2021, p. 153), companheiro de Foucault, fornece a Alain Brossat quando indagado: “Pode-se falar, talvez, de uma política de amizade em Foucault?”:

Sim, totalmente. Em primeiro lugar, ele tinha uma prática da amizade. Penso que este era um dos valores mais fortes de sua vida: uma amizade que estava ligada a formas concretas de solidariedade, sem exclusividade política. (DEFERT, 2021, p. 153)

Políticas da inimizade e guerras de subjetividade no contexto neoliberal

Em entrevista, Berardi (2018) afirmou que o capitalismo financeiro se assenta no fim da amizade. Seu diagnóstico tem correlação com o fato de que os benefícios financeiros dependem cada vez mais da dissolução do bem comum, da solidariedade e de uma rede de proteção social mútua comum, que exige a confiança de cada um em outrem, princípio elementar da convivência. Em outro contexto, Berardi (2015, p. 178) deflagrava uma indagação comovente: “Mas quando a competição se converte no mecanismo que organiza as relações na sociedade e existe a percepção de que o outro é algo incorpóreo, funcional e puramente operacional, o que pode ocorrer depois?”.

Ora, se amizade é um vínculo psíquico, afetivo, temporal, marcado pelo prazer da presença mútua de subjetividades revestidas por afeição, solidariedade, ternura e cumplicidade, livres de constrangimentos e partilhadas obrigatórias, investida por experimentação sem constrangimentos na relação que se constitui, logo enxergamos na amizade uma boa dose de dedicação voluntária perpassada por formas de cuidados mútuos e provas de dedicação. Os consentimentos que a amizade afirma também revelam, concomitantemente, o lugar da singularidade de cada um/a e a consonância intersubjetiva pela própria diferença, não se esperando da amizade os mesmos efeitos da equivalência subjetiva da ordem do dia, pautadas por dimensões miméticas, na expressão de Rose (2011), cujos modos de ser devem ser recorrentes aos mesmos dispositivos de escolhas, êxitos, autorrealizações, sucessos, aspirações, espécie de vida anexada a um projeto de adequação modelar e homogeneizadora. Portanto, a amizade é contraprodutiva ao modelo vigente de competição; de disputa de todos contra todos, em nome da meritocracia e dos marcadores ególatras de sujeição expropriadora e discriminatória, justamente, complementa Berardi (2018), porque

a solidariedade é a maior ameaça para o capitalismo financeiro. A solidariedade é o lado político da empatia, do prazer de estarmos juntos. E quando as pessoas gostam mais de estar juntas do que de competir entre si, isso significa que o capitalismo financeiro está condenado. Daí que a dimensão da empatia, da amizade, esteja a ser destruída pelo capitalismo financeiro. (BERARDI, 2018, n. p.)

A amizade é atacada por não se reduzir a um valor negociado na bolsa da governamentalidade neoliberal pelo simples fato de negar as necessidades prementes e mediadas por intermédio das demandas de seus investimentos subjetivos. Como espaço possível de experimentação e de enriquecimento de processos de subjetivação, a amizade corrói a sanha de dominação sistêmica e dos poderes de sujeição porque, na extensão de sua composição, o que se prova é diferente dos manejos de eficiências das demandas miméticas reduplicadas pelas exigências vigentes de se “ser normal” (ROSE, 2011). E o modo de ser normal da norma neoliberal circunscreve-se nas políticas da inimizade.

Em Como viver juntos (2002), curso proferido por Barthes no Collège de France entre 1976 e 1977, aprendemos que a amizade está empenhada na construção inalienável de uma “filoplastia”, ou seja, de condições peculiares de seu entorno, a matéria plástica de sua composição. A filoplastia denota a singularidade das experiências de amizade cujos coeficientes de expressão próprios nunca são equivalentes conforme cada prova de amizade. A filoplastia equivale às singularidades das múltiplas experiências de amizades apresentadas por Foucault ao longo de A hermenêutica do sujeito, uma vez que serão variáveis conforme o empenho destinado à relação amigável, o que demanda o cuidar da constituição da amizade, sem desprender de si mesmo toda uma série de dedicação, exercícios e cuidados de si, bem como, mutuamente, da parte do outro.

Ademais a filoplastia também envolve a “idiorritmia selvagem”, sempre segundo Barthes (2002). Se idios significa particular, próprio, o que ritma a amizade é a particularidade de sua experimentação. Dando ao mundo outros ritmos existenciais, outros contornos afetivos e investimentos de vinculação distintos daqueles ritmados pelo neoliberalismo, a amizade inaugura uma idiorritimia selvagem, antepondo-se aos ritmos civilizatórios dos mesmos coeficientes existenciais vigentes. “Idiorritmo selgavem”, nos auxilia Barthes (2002, p. 77) a compreender, “pode se definir rigorosamente pela ausência de burocracia, nenhum germe de um poder estático, nenhuma transmissão (relais) reificada, institucionalizada, coisificada entre o indivíduo e o microgrupo”.

Preservar seu próprio ritmo é algo do qual somos privados desde o nascimento (GUATTARI, 2012). O ritmo degrada-se na medida que a temporalidade não nos pertence, por força de obrigações a funcionar confiscando a idiorritimia. Trata-se de experiência fundamental e necessária para os processos de adaptação à subjetivação neoliberal, cujos circuitos de ligação rítmica impõem, de modo global e ubíquo, a desestruturação das singularidades em detrimento da adaptação funcional. No contexto da hybris adaptativa neoliberal, a amizade se transforma no askètérion do idiorritmo, isto é, em um lugar onde se pode praticar a ascese constitutiva de si e, tendo no outro amigo, o vínculo possível voltado à “dimensão ético-transgressiva da amizade [que] consiste na recusa das formas impostas de relacionamento e de subjetividade” (ORTEGA, 1999, p. 170, acréscimo nosso).

A experiência da filoplastia, então, delineia-se na proporção de sua constituição como prova de vida, no sentido proposto por Foucault. Uma dessas provas abrangem a segurança estável do idiorritmo produzido entre amigos(as), espécie de território por intermédio do qual a amizade fornece a si mesma à sua plasticidade. Tal aspecto é de suma relevância em um contexto de insegurança sistêmica. Aliás, as análises de Standing (2017), não sem razão, imputam a referido contexto relação com a emersão de formas antidemocráticas e neofascistas, pois as formas de insegurança social são coextensivas ao medo das diferenças, com todos seus marcadores subjetivos. Se “com a modernidade e o triunfo da sociedade mercantil, do individualismo, a amizade foi marginalizada” (DOSSE, 2021, p. 8), com o triunfo do neoliberalismo, a amizade se transformou em políticas de inimizade. Nos termos precisos de Klein (2017, p. 115), “o neoliberalismo é aquilo com que a falta de amor se parece com a política”. E é na compreensão do mundo ao redor e perpassado por tais políticas que também se encontram possibilidades de criação de provas distintas para o mundo e a vida.

Em um texto inédito, depositado no IMEC na cota GTR 28.14, datado de 1985 e intitulado Da esquizoanálise institucional, Félix Guattari escreveu assim: “A história nos propõe também verdadeiras ‘guerras de subjetividade’, não percebemos o seu alcance se não consideramos as mutações que estão em jogo” (GUATTARI, 1985). A ideia de guerras de subjetividade sumariza as mutações que estão em jogo na contemporaneidade neoliberal. Não apenas porque a empatia, a percepção do outro, a desidratação da presença do outro, em vez de sua virtualização anestesiada e exposta aos guetos de convicções, são coincidentes com tal cenário. Entretanto o ponto vertiginoso é que as guerras de subjetividade têm por casamata, bunker, fortificação blindada ou, se preferirem, buraco negro, a imaginação açulada pelo ódio. E “com a imaginação açulada pelo ódio, as democracias liberais se alimentam constantemente das mais variadas obsessões a respeito da verdadeira identidade do inimigo” (MBEMBE, 2021, p. 93). Não sem motivos, as mobilizações em torno do identitarismo, o “frenesi identitário”, nas expressões de Berardi (2020, p. 173), vão funcionar como bomba de fragmentação, fazendo do modo de ser diferente à identidade instituída e negociada por seus valores aceitáveis alvo indistinto de sua capacidade destrutiva.

Dentre a miríade de possibilidades de compreendermos as políticas da inimizade analisadas por Mbembe (2021) e as guerras de subjetividade nelas armadas, travadas e, infelizmente, normalizadas, destacamos três ciclos, que se encontram entrecruzados: a consolidação de um mundo de relações desvinculantes, em boa medida, terreno fértil para a inversão da democracia; a indiferença às singularidades do outro, sintoma da vida supérflua, tanto em seu valor como em seu reconhecimento; e, como consequência, a aniquilação de qualquer inimigo por morte não velada por justiça.

Quem é o inimigo hoje? É qualquer antagonista à subjetividade capturada pelo frenesi identitário, por sua vez, condizente com a vassalagem neoliberal cujo mote é: “quem não é por nós é contra nós”. Em outros termos, o inimigo foi produzido socialmente, de modo insistente e localizado em estratégias de apartheid subjetivos, desde muito cedo. Na criação dos inimigos, prevalecem-se “vetores por excelência da descerebração contemporânea, por toda parte eles fazem com que os regimes democráticos, ao abrir a boca, exalem um hálito fétido e, em delírio furioso, levem vidas de bêbados” (MBEMBE, 2021, p. 84).

A metáfora nos diz muito: trata-se da insensibilidade, da desorientação, das atitudes abusivas, da perda do juízo ou da capacidade de discernir, da dissolução do “mal-estar da cultura”, cedendo lugar aos vômitos da ignomínia, enfim, trata-se de torpor frente à presença do outro, de todo aquele cujo crime é a simples discordância, que pode ser de gênero, de cor de pele, de idioma, de escala social, de entendimento etc.

Ademais quem leva a vida de bêbado perdeu o contato com a realidade. Sem prova de realidade não há prova de si para o outro. Prevalece-se, assim, o delírio como impossibilidade de contato consigo mesmo e com a alteridade. Eis a lógica desvinculante a operar nas guerras de subjetividade: é muito fácil atacar e aniquilar o inimigo estando anestesiado diante de sua própria plasticidade existencial. Aqui, nenhuma filoplastia é possível; apenas há neicoplastia6, o ódio, a discórdia e a impossível convivência tomados por entorno.

Sem vínculos, a amizade apaga-se não como um rosto na orla do mar, mas como mensagem deletada instantaneamente, cuja ação não condiz com traços de revisão ética, porém, de um arrependimento que dificilmente terá lugar, pois bêbado não possui consciência. Onde os bêbados conduzem a vida de outros bêbados, a indiferença à diferença emana como vitalismo em que dúvidas e incertezas não vêm ao caso. Não seria, por isso mesmo, a descerebração contemporânea o reflexo da perda completa da crítica como limite aos excessos de governo? Afinal, sem dúvidas e incertezas qualquer crítica é natimorta. Ou quando a crítica tenta fazer-se valer, ainda que respirando por aparelhos, os bêbados, com suas milícias, sentenciam-na, torturam-na e executam-na. Desde já, é fácil perceber por que “a inimizade constitui agora o cerne das democracias liberais e como é pelo ódio que elas têm a impressão de vivenciar um presente puro, uma política pura, pela via de meios eles mesmos puros” (MBEMBE, 2021, p. 111). Pureza reativada também a partir da propagação de micro Shoahs, microapartheids, microgulags, microfascismos, micronazismos vestidos de microódios dessensibilizadores.

O impacto não poderia ser outro:

As democracias liberais dependem nos dias de hoje, para sua sobrevivência, da divisão entre o círculo dos semelhantes e dos dissemelhantes, ou então entre os amigos e “aliados” e os inimigos da civilização. Sem inimigos, é difícil para elas se manterem de pé por conta própria. Se tais inimigos realmente existem ou não é irrelevante. Basta criá-los, encontrá-los, desmascará-los e expô-los à luz do dia. (MBEMBE, 2021, p. 91)

Nesse mundo de relações desvinculantes, a invenção da inimizade demanda cada vez mais inimigos para fortalecer os ecos do identitarismo persecutório. O neoliberalismo, para tanto, não diminui o Estado, ao contrário, agiganta-o, porém, aparamentando-o com estratégias funcionais justificadoras, ainda que absolutamente irracionais e destituídas da realidade precária da maioria da população, para salvaguardar a defesa interna, logo, excludente de suas fronteiras. Sendo assim, renova-se a aurora das instituições que, como já alertara Foucault, não podem mesmo suportar a amizade.

Em quase todos os lugares, portanto, o discurso é de suspensão, de restrição e até mesmo de revogação ou abolição pura e simples - da Constituição, da lei, dos direitos, das liberdades civis, da nacionalidade, de todos os tipos de proteções e garantias que até recentemente eram tidas como asseguradas. (MBEMBE, 2021, p. 71)

Ora, tendo as políticas da inimizade a chancela do anteparo das instituições por elas cooptadas, é patente a forma de sua legalidade, no sentido de criar jurisprudências de subjetivações capazes de justificar o injustificável. O paradoxo é mero detalhe, pois sem discernimento não se trata de querer superá-lo, mas de usar o injustificável em nome da pureza justificável, mencionada acima por Mbembe, na proporção de defesa de causa própria. É como se no século XXI as instituições de direito e de seguridade social se transformassem na Igreja da Contrarreforma, produzindo inquisições prêt-à-porter ou sob medida aos seus inimigos, inclusive os inventados.

Nesse ciclo das políticas de inimizade, a indiferença pavimenta a negociação das incertezas de nosso tempo. A certeza, ao contrário, passa ser uma esquiva subjetiva à adesão imaginária pelo ataque, não ao que causa a desorientação na vida psíquica, afetiva, social ou material, mas aos fantasmas idealizados como causa de incertezas. É a representação do outro, a pessoa do outro, a singularidade do outro, o espelho distorcido que é quebrado em mil pedaços.

Talvez esteja aí o contexto para entendermos uma afirmação de Foucault na Hermenêutica, quando na aula de 17 de fevereiro de 1982 proferiu a seu auditório as seguintes palavras:

[...] é possível suspeitar que haja uma certa impossibilidade de constituir hoje uma ética do eu, quando talvez seja esta uma tarefa urgente, fundamental, politicamente indispensável, se for verdade que, afinal, não há outro ponto, primeiro e último, de resistência ao poder político senão na relação de si para consigo. (FOUCAULT, 2004, p. 306)

Uma ética do eu em nossos tempos neoliberais só poderia levar a essa recusa do outro, a uma política da inimizade, calcada na competitividade a qualquer custo, de modo totalmente alheio a esta necessária resistência ao poder político, na medida em que uma relação de si para consigo não é possível senão tendo no horizonte o outro, o amigo, aquele com quem e através de quem pode-se fazer a prova de vida e a realização de um mundo amigável.

Em meio aos cacos e com tantos cacos, a vida não demanda mais prova de valor. Desfazer-se dele passa a ser ação banal, já que as justificativas encontram seu fundamento na própria inimizade. Para o progresso, o ataque é a justa medida de tudo. Culmina-se, contudo, o ataque com o cheque em branco de que as vidas inimigas não merecem ser vividas. As políticas de inimizade, assim, proclamam a cada dia a mesma constituição de seu império: há muitas vidas supérfluas cuja aniquilação é apenas efeito colateral da sobrevida do outro que não deve estar aqui, nem lá ou ali.

O diagnóstico de Mbembe (2021) é preciso:

Vida supérflua, portanto, essa cujo preço é tão baixo que não possui equivalência própria, nem em termos mercantis e muito menos em termos humanos; essa espécie de vida cujo valor está fora da economia e cujo único equivalente é o tipo de morte que lhe pode ser cominada. (MBEMBE, 2021, p. 68)

As políticas da inimizade não reconhecem vítimas, apenas estorvos, espécie atualizada de Homo sacer que podem ser sacrificados facilmente. Poderíamos nomear tal perspectiva de complexo de Chico Mendes ou de Dorothy Stang ou de Marielle Franco ou de Bruno Pereira ou de Dom Phillips ou de Miguel Otávio; também pode ser complexo de Chacina da Candelária ou de Chacina do Jacarezinho; quem sabe, ainda, de Ruanda ou de África do Sul ou de Síria ou de Povos Indígenas ou de Palestinos e sucessivamente, a lista parece não ter fim. Seja como for, nesse ciclo das políticas de inimizade, “de regra, trata-se de uma morte à qual ninguém se sente obrigado a reagir. Em vista desse tipo de vida ou desse tipo de morte, ninguém sente nenhum senso de responsabilidade ou justiça” (MBEMBE, 2021, p. 68).

O ciclo subsequente é mero aperfeiçoamento do anterior, porém, anteparado pela fuga covarde e cúmplice da justiça. Quando o inimigo se destina à morte não velada pela justiça, as estratégias de desorientação e de insegurança (KLEIN, 2007) se direcionam para “acentuar o caráter funcional do terror e possibilitar a destruição de qualquer vínculo social que não seja o da inimizade” (MBEMBE, 2021, p. 65). A dobra habitual de recepcionar a vida como algo supérfluo apenas reforça a noção de extermínio do outro em forma subvencional da radicalidade política do que se considera simples ameaça a seu conglomerado. A moral das políticas da inimizade é escandalosamente imoral e inapelável à dor insepulta.

O ciclo do ódio não para de se enovelar e de espalhar seus nós por toda parte. Poucos infortúnios ainda são considerados injustos. Não há culpa, nem remorso, nem reparação. Tampouco existem injustiças que devemos reparar, ou tragédias que possamos evitar. Para unir, é preciso necessariamente dividir; e cada vez que dizemos “nós”, devemos a todo custo excluir alguém, despejá-lo de alguma coisa, proceder a algum tipo de confisco. (MBEMBE, 2021, p. 70)

Mas deste mundo de políticas de inimizade não somos obrigados a dele fazer o nosso mundo. Ao contrário, esse mundo é um lugar de provas para as quais podemos igualmente criar outras provas, sobretudo na direção de que há vida possível fora dos circuitos das políticas de inimizade. A amizade passaria a ser, assim, tanto prova quanto experiência e exercício de formas de se viver voltadas a inovar onde as cristalizações das relações de poder institucionalizadas, imobilizadas e normalizadas gangrenam.

É importante que não nos assustemos com o termo inovar, ele não tem nada a ver com a obsolescência da produtividade neoliberal e suas demandas de aceleração das demandas, embora tenha sido por ela capturado e significado dessa forma. Inovar é função partícipe em toda experimentação. Foucault fez do termo o localizador de tudo que é preciso passar pelo exame, especialmente como lugar de atitude mais refletida, prudente, analítica e capaz de teorizar a prática. Ao ser indagado: “Quais são os princípios que guiam a sua ação?”, ele pode responder: “a recusa, a curiosidade e a inovação” (FOUCAULT, 2013, p. 155). Pois bem, se recusamos as políticas de inimizade também é pelo fato de termos a curiosidade de compreender como funcionam e que elas podem ser contestadas. As formas possíveis ainda a ser inventadas dizem respeito à virtualidade de que “sempre haverá pontos em que as pessoas se revoltarão ou resistirão” (FOUCAULT, 2013, p. 151). Para tanto, a inovação consiste em “não se inspirar em nenhum programa prévio e buscar às vezes em certos elementos de nossa reflexão e na maneira que agimos o que nunca foi pensado, imaginado, conhecido etc.” (FOUCAULT, 2013, p. 144).

Nesse caso, porém, ainda levaríamos a bom termo o que Foucault dizia acerca das experiências políticas de amizade nas relações homoafetivas, e nos perguntaríamos: o que podemos inventar?

Eles estão diante do outro sem arma, sem palavras de acordo, sem nada que lhes garanta os sentidos do movimento que eles levam um para o outro. Eles precisam inventar de A à Z uma relação ainda sem forma, e que é a amizade: isto é, a soma de todas as coisas por meio das quais se pode, um ao outro, ter prazer. (FOUCAULT, 1994a, p. 164)

Uma ética dos amigos na produção de uma vida outra

No ciclo de cursos do Collège de France7 do qual faz parte A hermenêutica do sujeito, a ênfase nas técnicas do viver e nas possibilidades de mudar de vida, fazendo-se o comandante de seu próprio caminho, como no refrão da canção de Lenine: “Não deixo a vida me levar/Quem leva a vida sou eu”8, é uma constante. Tal exploração das técnicas de si que podem mudar o sujeito e reorientar sua vida culmina, no curso de 1984, com a exploração da parresia cínica como afirmação de uma “vida outra”. Por oposição à “outra vida” anunciada por Sócrates a seus discípulos, os cínicos exercitam uma vida outra, aqui e agora, denunciando as hipocrisias da vida cotidiana. E esse viver de outro modo é também a afirmação de que o mundo pode ser outro, pode ser transformado pela ação de si sobre si mesmo e sobre o mundo, na relação com os outros. Se a filosofia platônica afirmava um “outro mundo” (o das Ideias) como verdadeiro e uma “outra vida” (após a morte) como verdadeira, os cínicos mostram no espaço público o exercício de uma vida outra e de um mundo outro como possibilidades concretas, bastando, para isso, agir. Na última aula do curso, em 28 de março, Foucault afirmaria:

Só pode haver verdadeira vida como vida outra, e é do ponto de vista dessa vida outra que vai se fazer aparecer a vida comum das pessoas comuns como sendo precisamente outra que não a verdadeira. Vivo de uma maneira outra, e própria alteridade da minha vida eu lhes mostro que o que vocês buscam está em outro lugar que não aquele em que buscam, que o caminho que vocês pegam é um caminho outro em relação ao que deveriam pegar [...] E a tarefa da veridicção cínica é portanto convocar todos os homens que não levam a vida cínica a essa forma de existência que será a verdadeira existência. Não a outra, que se engana de caminho, mas a mesma, a que é fiel à verdade. (FOUCAULT, 2011, p. 277)

O derradeiro curso da vida de Foucault é encerrado com o início de uma exploração do tema da parresia no cristianismo, retomando e dando continuidade à exploração iniciada no curso de 1980, que deveria ter continuidade. Nessa última aula, que fecha um ciclo e deveria abrir outro, uma outra inversão é destacada. A conclusão da aula é peremptória:

Verdade da vida antes da verdadeira vida: foi nessa inversão que o ascetismo cristão modificou fundamentalmente um ascetismo antigo, que sempre aspirava a levar ao mesmo tempo a verdadeira vida e a vida de verdade e que, pelo menos no cinismo, afirmava a possibilidade de levar essa verdadeira vida de verdade. (FOUCAULT, 2011, p. 297)

Ora sabemos que o cristianismo construiu as bases da sociedade moderna, tanto quanto aos modos de subjetivação quanto ao próprio exercício de poder, haja vista que o mesmo Foucault delineou os caminhos de construção de uma biopolítica e dos Estados governamentalizados a partir da experiência do poder pastoral9. Não seria exagero, pois, encontrar no cristianismo e em suas práticas éticas e políticas o germe do neoliberalismo que hoje vivemos, instituindo as políticas da inimizade.

Para o combate a essa política, voltemos ao texto do mesmo ano da Hermenêutica, já citado, no qual Foucault delineia os três tipos de lutas: contra a dominação (luta política); contra a exploração (luta econômica); e contra a submissão/subjetivação (chamemos, a esta, de luta ética). Ainda que naquele momento o filósofo tenha chamado a atenção para a predominância da “luta contra as formas de sujeição - contra a submissão da subjetividade” (FOUCAULT, 2014, p. 123) sobre as outras duas que, embora não tivessem desaparecido já não tinham prevalência, parece-nos que o momento hoje, quatro décadas depois, é um tanto distinto. Sim, as lutas contra as formas de sujeição produziram efeitos: tivemos avanços nos movimentos feministas, nos movimentos LGBTQIA+, nos movimentos antirracistas, para citar apenas alguns dos mais proeminentes. No Brasil, em especial, a produção de políticas públicas afirmativas nesse período significou conquistas importantes e, por certo, já não vivemos como vivíamos em 1982. Por outro lado, podemos ver o recrudescimento do conservadorismo e mesmo a emergência de um neoconservadorismo como efeitos desses avanços: parte da sociedade, não satisfeita com as ações afirmativas, age no sentido de tentar fazer retroceder os passos adiante que foram conquistados, de forma árdua.

A busca de retrocesso frente aos avanços conquistados, centrada na política da inimizade, encontra correlato na luta contra a exploração (no Brasil, o crescimento da miséria de parte significativa da população, como resultado dos jogos neoliberais, é assustador) e na luta contra a dominação política, frente ao crescimento mundial e local de práticas fascistas, com ações de política governamental que fecham espaços, participam e clamam por ações cada vez mais autoritárias. Hoje parece que as três modalidades de luta destacadas por Foucault só fazem sentido se forem enfrentadas em conjunto, de modo entrelaçado. É preciso “recusar o que somos” (FOUCAULT, 2014, p. 128), politicamente, economicamente, eticamente, de modo transversal, como ele próprio apontou.

Afirmamos neste artigo ser preciso defender a amizade; mas, por quê, se a amizade é uma constante no debate filosófico ocidental? Para citar apenas alguns destaques, ela é a base da ética e da política em Aristóteles; floresce nos jardins de Epicuro; cimenta as relações entre os estoicos; e recebe, talvez, seu mais belo elogio quando, no Renascimento, Montaigne fala de sua amizade por Étienne de La Boétie em seus Ensaios nos seguintes termos10: “se insistirem para que eu diga por que o amava, sinto que o não saberia expressar senão respondendo: porque era ele; porque era eu” (MONTAIGNE, 2016, p. 220). Na modernidade, as referências começam a se tornar mais raras, haja vista que a prevalência de um poder pastoral que depois habitará o âmago dos Estados governamentalizados a coloca em segundo plano, até chegarmos à situação atual em que são as inimizades que constroem a política.

O amigo homenageado por Montaigne escreveu no século XVI o mais contundente e belo ensaio contra a tirania, opondo a ela, justamente, a amizade. Atentemos para esta passagem do Discurso da servidão voluntária:

É certamente por isso que o tirano nunca é amado, nem ama: a amizade é um nome sagrado, é uma coisa santa; ela nunca se entrega senão entre pessoas de bem e só se deixa apanhar por mútua estima; se mantém não tanto através de benefícios como através de uma vida boa; o que torna um amigo seguro do outro é o conhecimento que tem de sua integridade, as garantias que tem são sua bondade natural, a fé e a constância. Não pode haver amizade onde está a crueldade, onde está a deslealdade, onde está a injustiça; e entre os maus, quando se juntam, há uma conspiração, não uma companhia; eles não se entre-amam, mas se entre-temem; não são amigos, mas cúmplices. (LA BOÉTIE, 1982, p. 35-36)

A amizade institui um outro tipo de relação social, política, que não é a dominação de uns por outros. Aqueles que desejam dominar ou ser dominados compartilham apenas o temor, a cumplicidade na exploração; por outro lado, aqueles que vivem uma relação vertical, sem exploração de uns por outros, constituem outra sociabilidade, baseada na amizade, na estima de uns pelos outros, num apoio mútuo que constrói um senso de comunidade. Façamos um salto de cinco séculos para voltar ao nosso presente; a tirania mudou suas faces, mas continua entre nós. Hoje, em nome das “liberdades individuais” e do livre fluxo de comércio, as políticas da inimizade e da concorrência de mercado reinstituem uma política da cumplicidade, baseada na exploração, no lucro, na vantagem, em que a negação e o apagamento do outro tornam-se comuns. Assim como no “contra-um” de La Boétie11, hoje é necessário lutar “contra-muitos” e a amizade segue sendo uma arma potente.

Edson Passetti (2003) ressalta que:

O amigo é o melhor inimigo. Nada se compara a esse acontecimento desestabilizador que atravessa a certeza provisória e ameaça a formalidade. Será mesmo a amizade a melhor das coisas que levamos da vida? Podemos responder brevemente dizendo que nada permanece com tanto vigor, dentre as diferentes formas de relacionamento por nós estabelecidos como a amizade. (PASSETTI, 2003, p. 15)

A amizade de que nos fala Passetti, leitor de Foucault e com olhar atento para as explorações do cuidado de si12, é aquela que atravessa as relações libertárias de afirmação da vida, a amizade anarquista, que não conhece a imposição de um sobre o outro, que aposta na verticalidade do atravessamento de afetos. Essa forma especial de amizade implica na construção de outras sociabilidades, que articulam as lutas políticas, econômicas e éticas13.

No interior da sociabilidade libertária constituidora de práticas diversas de associações com base na amizade encontraremos sublevações ao conhecimento e às suas verdades construídas. Essas associações, em especial, fazem parte de uma história do intercâmbio federativo que realiza a vida, segundo os anarquistas, na insegurança e perigos, provocando a rebelião contra o que Foucault caracteriza por poder pastoral: a integração de práticas de si em práticas pedagógicas, médicas, psicológicas, sociológicas ou políticas. (PASSETTI, 2003, p. 69)

Na Hermenêutica, na já citada aula de 17 de fevereiro de 1982, Foucault explorou, ainda que de passagem e de modo superficial, algumas tentativas modernas de retomada de uma ética centrada na preocupação consigo, fundante da relação com os outros, como uma espécie de reação ao ascetismo cristão, no qual “só pode salvar-se quem renuncia a si” (FOUCAULT, 2004, p. 304). Resistindo a uma tal renúncia a si mesmo, alguns esforços chamam a atenção. Um dos marcos elencados é Montaigne, no século XVI, e alguns expoentes no século XIX. Expôs Foucault a questão desta forma:

Mas podemos reler toda uma vertente do pensamento do século XIX como a difícil tentativa, ou uma série de difíceis tentativas, para reconstituir uma ética e uma estética do eu. Tomemos, por exemplo, Stirner, Schopenhauer, Nietzsche, o dandismo, Baudelaire, a anarquia, o pensamento anarquista etc., e teremos uma série de tentativas, sem dúvida inteiramente diversas umas das outras, mas todas elas, creio eu, mais ou menos polarizadas pela questão: é possível constituir, reconstituir uma estética e uma ética do eu? (FOUCAULT, 2004, p. 305)

No século XIX, as tentativas de construção de uma “ética e estética do eu” são, já, uma reação ao liberalismo que vinha se consolidando desde o século XVII, afirmando o princípio das liberdades individuais, mas com o foco nas relações comerciais, no “mercado”, preconizando a mínima interferência política (por parte do Estado) na economia. Nas linhas diversas apontadas por Foucault, veremos Baudelaire e o dandismo investindo em uma estética do eu, como uma afirmação de si; Stirner e Nietzsche14, por sua vez, recusando as imposições políticas da sociedade sobre a autodeterminação - Stirner afirmando a singularidade do “único”, proprietário de si mesmo, e Nietzsche afirmando a expressão da vontade de poder ativa, daquele que é capaz de dizer sim a si mesmo -; a anarquia e os anarquistas, por sua vez, investindo numa relação do eu com a comunidade, de uma forma que nem o coletivo possa colocar-se para além do indivíduo singular, nem esse sobre o coletivo. Ora a única forma de viabilizar esse tipo de comunidade de “eus” que expressam sua singularidade e diferença através de um coletivo que reúne a todos, sem apagar nenhum deles, é através da força da amizade, que coloca em prática a “mútua estima” e o “entre-amor” já destacados por La Boétie séculos atrás. Tratam-se linhas de fuga à política liberal que, um século e meio depois, metamorfosear-se-ia no neoliberalismo contemporâneo, levando às últimas consequências a afirmação das individualidades que não se abrem ao outro. Como que se precavendo à futura política da inimizade, essas linhas de fuga novecentistas já apostavam na amizade como resistência e criação de uma vida outra.

A amizade desejada pelos anarquistas é a forma suprema de associação, que preconiza a multiplicidade de relações que se federam, produzindo círculos cada vez mais amplos, mas sem um fundamento, um princípio (arkhé)15, sem centralização e sem a criação de absolutos. Segundo Passetti (2003, p. 240), “quem deseja miríades de associações, deseja o menor”, isto é, não há a imposição de uma verdade única, de uma forma perfeita, mas experimentações (provas) sempre renovadas, retomadas, reinventadas e sem estagnação. De modo que não há associação anarquista sem amizade, enquanto a amizade, de fato, só é possível de modo anárquico. Continuamos com Passetti:

Para dar um fim à igualdade política e à desigualdade econômica, duplo de inimizades destrutivas, é preciso acabar com o soberano centralizado (rei, povo, proletariado). A emancipação humana colocaria a possibilidade de uma autonomia que estancaria a reprodutibilidade das hierarquias pela afirmação da autoridade fundada em saberes horizontalizados, científicos ou não, advindos da comparação, escolha e opção pela decisão mais justa. Não havendo descanso para as injustiças, não há como tomar a melhor decisão a não ser considerando-a do ponto de vista da amizade. Mas, uma amizade para além da camaradagem acontece quando se afirma a desistência pela verdade verdadeira, o que de saída implica continuidade do pluralismo de anarquismos, como miríade e não busca por hegemonias. (PASSETTI, 2003, p. 240)

Se no século XIX os projetos de constituição de uma “ética do eu” pareciam a Foucault complicados, talvez seja chegada a hora da urgência de sua afirmação, para fazer frente às políticas da inimizade emanadas dos jogos neoliberais. Se tais políticas se centram na negação e no apagamento do outro, através de uma necropolítica que funda a afirmação da vida de uns na promoção da morte de outros, criando inimigos a serem combatidos para que alianças políticas tornem possível uma certa coletividade autoritária, urge defendermos a amizade como arma ético-política. Urge resgatar e construir práticas de si que coloquem a vida sob prova, na abertura da relação com outras formas de vida, exercício de e na multiplicidade, pois, como canta Tom Zé, “quero a unimultiplicidade/onde cada homem é sozinho/a casa da humanidade”16. Esse um que cada um é sozinho, porém, se associa a outros uns, pela amizade, criando comunidades múltiplas.

Tentando concluir: é preciso defender a amizade

Partimos d’A Hermenêutica do sujeito, tomando a questão das provas de vida, para pensar nosso presente, na vertical de nós mesmos, que já não é presente pensado por Foucault quarenta anos atrás. Desenhavam-se ali as linhas que constituíram o emaranhado no qual hoje vivemos; mas o que o filósofo fez foi nos indicar pistas, possibilidades de pensar e agir para que enfrentássemos nossos próprios problemas.

Após delinear a recepção do curso de quatro décadas atrás, dedicamo-nos a pensar na companhia de alguns contemporâneos as políticas de inimizade que foram sendo construídas pelas maquinarias político-sociais do neoliberalismo. Tragados que fomos pelos discursos de ódio, por uma necropolítica de destruição do outro como única maneira de afirmar-se a si mesmo, vimos na recuperação da amizade a necessária resistência a esses tempos e a possibilidade de criar outros mundos e outras vidas.

Estamos afirmando, desde o início, ser preciso defender a amizade. E preciso, também, para encerrar, dizer de que amizade se trata. Recorremos uma última vez a Passetti:

A amizade não é um absoluto, uma ideia, uma utopia, um consolo para nossas relações particulares, nem trampolim para o verdadeiro justo. Ela precisa estar liberta do privado e não pode estar submetida à função pública do Estado. Não é algo especial de homens de bem, um bem ou refúgio seguro. A amizade só existe no presente como algo que se faz por amigos, pessoas guerreiras que não visam à destruição de si nem à preservação da associação. Visam sim, libertariamente, dar cabo das relações de poder sabendo que ninguém, no seu interior, é autônomo, mas que são possíveis novos super-homens. Os amigos associados existem minimamente organizados por meio de relações de horizontalidade que não são garantias para que se evite a cristalização. São os melhores inimigos, um em relação aos outros e em relação à associação, que somente permanece como um complô contra o Homem, a Sociedade e o Estado se não se formalizar. (PASSETTI, 2003, p. 275)

A amizade necessária no século XXI é imanente, anárquica (contrária aos princípios regentes), arma de guerra contra as políticas de inimizades perpetradas pelo neoliberalismo. Não quer e não pode se cristalizar, tomar a forma definitiva de uma associação em nome da qual se deva lutar. Não. É mais uma máquina de guerra que faz sua guerrilha cotidiana contra o neoliberalismo e suas formas de vida, que se apresenta para nós como único mundo possível, como única vida possível. Mas mundos outros são possíveis, vidas outras são possíveis, e fazer sua prova na chama das amizades que se inventam para que sujeitos se produzam a si mesmos, como contracondutas, é a tarefa que se nos coloca.

“O homem [e a mulher]: o ar que ele[a] respira, um dia aspira”. São palavras de René Char (1983, p. 766, acréscimos nossos). Entre respirar políticas de inimizade e de amizade não é tão somente sobre a plasticidade do mundo e da vida que damos provas. Em questão encontram-se delineares do que optamos por aspirar para nós, os outros, a vida, o mundo e o devir.

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1A abrangência temática da salvação extrapola a possibilidade analítica deste artigo. Perpassando todo o curso, desde a sua menção no final da segunda hora da aula de 20 de janeiro, Foucault começa a desenvolver a questão de maneira mais específica na primeira hora da aula de 3 de fevereiro. Ao longo do contexto do cuidado de si, a salvação emerge como prática da vida filosófica, no sentido de salvaguardar (Sózein) a si mesmo de perigos, proteger-se, assegurar bem-estar ou o bom estado de alguma coisa, de alguém ou de uma coletividade. A amizade também se inseria no plano das atitudes e posturas da salvação. Seja como for, o termo remete à própria vida, neste mundo. “Nesta noção de salvação que encontramos nos textos helenísticos e romanos não há referência a algo como a morte ou a imortalidade ou um outro mundo. Não é por referência a um acontecimento dramático ou a um outro operador que nos salvamos. Salvar-se é uma atividade que se desdobra ao longo de toda vida e cujo único operador é o próprio sujeito” (FOUCAULT, 2004, p. 226).

3Perspectivamos aqui as análises que Foucault empreendeu no mesmo curso acerca da relação da paraskeué (equipamentos) e da traduzida por Sêneca como instructio, isto é, instrução ou formação. Na aula de 20 de janeira de 1982, Foucault situava a questão: “A instructio é esta armadura do indivíduo em face [dos] acontecimentos e não a formação em função de um fim profissional determinado. Portanto, nos séculos I e II, encontramos este lado formador da prática de si” (FOUCAULT, 2004, p. 115). Ao longo de todo curso, Foucault retoma a noção de paraskeué, ampliando seu alcance e problematização em sua história da cultura do cuidado de si. Interessante notar que na última aula do curso, 24 de março de 1982, Foucault retoma a questão abordando o “equipar-se com discursos verdadeiros” (FOUCAULT, 2004, p. 569), enquanto na aula anterior, passamos a saber que “a paraskeué permite aos indivíduos enfrentar, ou pelo menos estarem prontos para enfrentar, todos os acontecimentos da vida na medida em que eles se apresentem” (FOUCAULT, 2004, p. 304). Para a atualização da paraskeué no sentido da formação em educação ver Carvalho (2020).

4Do ponto de vista da recepção neoliberal do pensamento de Michel Foucault há exemplos absurdos. Em A última lição de Michel Foucault: sobre neoliberalismo, a teoria e a politica (La dernière leçon de Michel Foucault: sur le néoliberalisme, la théorie et la politique), Lagasnerie (2012) chega a sustentar que Foucault faz do neoliberalismo uma revolução crítica e voltada para a transformação do mundo pela “insubmissão” à toda forma de governar. O neoliberalismo é salvação contra o Estado e todas as suas perversões. Para ele, Foucault aborda o homo œconomicus para “inscrever-se em uma mecânica de certos egoísmos”, sem jamais “cessar os processos de maximização de sua utilidade em nome de exigências apresentadas como ‘superiores’” (LASGANERIE, 2012, p. 154). É como se Lagasnerie dissesse que, para Foucault, o homo œconomicus do neoliberalismo é a própria realização do Übermansche nietzschiano. Eis um exemplo do que o neoliberalismo é capaz de fazer: torcer a crítica e o pensamento em função de sua autodefesa, custe o que custar. Certamente esta não foi uma lição de Foucault, quanto mais a última.

6Na história do pensamento ocidental, Empédocles foi quem opôs Philia (φιλíα) a (Νεικός) (discórdia; ódio), conforme Pontalis e Laplanche (2016, p. 501). Valemos da noção de Νεικός para a anteposição de filosplastia à neicoplastia e vice-versa.

7Referimo-nos aos cursos de 1980 (Do governo dos vivos) a 1984 (A coragem da verdade), passando por Sexualidade e verdade (1981), A hermenêutica do sujeito (1982) e O governo de si e dos outros (1983), nos quais o tema geral das técnicas de si é investigado a fundo, seja no modo de subjetivação cristão, seja nos modos de subjetivação da antiguidade clássica.

8Trata-se do refrão da canção Quem leva a vida sou eu, do álbum Carbono, de 2015. A letra completa pode ser consultada aqui: https://www.letras.mus.br/lenine/quem-leva-a-vida-sou-eu/.

9Para acompanhar este percurso, ver os cursos de 1976 (Em defesa da sociedade), 1978 (Segurança, território, população) e 1979 (O nascimento da biopolítica).

10Trata-se do capítulo XVIII dos Ensaios, intitulado “Da amizade”. Ao elogiar seu amigo já desaparecido é a esta forma superior de relação entre os seres humanos que o filósofo renascentista homenageia.

11O Discurso da servidão voluntária, libelo contra o governo absolutista, foi ainda em seu tempo denominado como Contra-Um, evidenciando a luta contra a tirania. Montaigne, no ensaio “Sobre a amizade”, já citado, comenta esse título dado por aqueles que fizeram circular o texto na época.

12A obra de Passetti aqui citada, publicada em 2003, foi escrita em 2000, como tese para concurso de Livre Docência na PUCSP. O texto, portanto, é anterior à publicação do curso A hermenêutica do sujeito (mesmo na França, onde foi lançado em 2001) e suas referências sobre o cuidado de si são o segundo e o terceiro volumes da História da sexualidade, bem como textos de Foucault publicados nos Dits et Écrits.

13Outro anarquista brasileiro que apostou na força política da amizade como instauradora de novas relações foi Roberto Freire. Não nos debruçaremos sobre suas ideias neste artigo, mas recomendamos uma visita a sua obra, em especial ao pequeno livro Utopia e paixão - a política do cotidiano, fruto da gravação de conversas entre dois amigos: o próprio Freire e Fausto Brito.

14Max Stirner ficou conhecido como o “filósofo do egoísmo”, por seu livro O único e sua propriedade, de 1844. Importante ressaltar, porém, que esse egoísta antimetafísico é aquele que afirma que “a minha causa é a causa de nada”. As aproximações de Nietzsche a Stirner, embora não afirmadas, são surpreendentes; pode-se ter uma dimensão delas na compilação de textos de Albert Lévy e Bernd Laska sobre o tema. No livro de Passetti (2003, p. 261), lemos: “Anima-se uma amizade por parte dos únicos associados - não uma amizade abstrata, um valor positivo transcendental -, como relações inconclusas entre amigos, entre guerreiros que não buscam paz para si ou para os outros. Nietzsche, anunciado por Stirner, começa a tornar contornos mais visíveis, ao mesmo tempo que Stirner se torna o simulacro avistado por Nietzsche”.

15Aqui precisamos fazer referência — embora este não seja nosso foco — ao belo livro de Catherine Malabou, Au voleur! Anarchisme et philosophie, que passa em revista as apropriações da filosofia contemporânea do princípio anarquista de negação da arkhé (daí a origem da palavra an-arkhé), que desde a antiguidade grega significa o princípio, o fundamento. A denúncia de Malabou é que filósofos como Schürmann, Levinas, Derrida, Foucault, Agamben e Rancière roubam o anarquismo como movimento político, ao proporem um “anarquismo filosófico” que nenhuma relação teria com aquele.

16Tom Zé compôs a canção Unimultiplicidade para o I Fórum Social Mundial, em janeiro de 2001, em Porto Alegre. A recriou em 2022, no álbum Língua Brasileira.

Recebido: 10 de Julho de 2022; Aceito: 26 de Outubro de 2022

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