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Educação e Filosofia

Print version ISSN 0102-6801On-line version ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.36 no.78 Uberlândia Sept./Dec 2022  Epub Jan 29, 2024

https://doi.org/10.14393/revedfil.v36n78a2022-65341 

Resenhas

A invenção do tempo: diálogos no precipício do texto

Bernardo Gomes Barbosa Nogueira* 
lattes: 8970715085414975; http://orcid.org/0000-0002-8882-6223

Eunice Maria Nazarethe Nonato** 
lattes: 7829989727493141; http://orcid.org/0000-0003-3583-3777

Edmarcius Carvalho Novaes*** 
lattes: 1839934028603060; http://orcid.org/0000-0002-1901-0167

*Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerias (PUC-MG). Professor de Direito e no Programa de Pós-Graduação em Gestão Integrada do Território da Universidade do Vale do Rio Doce (Univale). E-mail: bernardo.nogueira@univale.br

**Doutado pela Universidade Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Professora no curso de Pedagogia e no curso de Mestrado em Gestão Integrada do Território da Universidade Vale do Rio Doce (Univale). E-mail: eunice.nonato@univale.br

***Doutorando em Ciências Humanas na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor, pesquisador e Gestor na (UNIVALE). E-mail: edmarcius@hotmail.com

HAN, Byung-Chul. Favor fechar os olhos: em busca de um outro tempo. Machado, Lucas. Petrópolis: Vozes, 2021.


A obra em questão, Favor fechar os olhos: em busca de um outro tempo, de Byung-Chul Han, nascido na Coreia e radicado na Alemanha, onde é professor de Filosofia e Estudos Culturais na Universidade de Berlim, se trata de uma reflexão filosófica acerca das questões que envolvem o paradigma digital contemporâneo atrelado à problemática do tempo, e, mais propriamente, acerca do ato natural de fechar os olhos ante a coação permanente pelo visual, pela vigilância.

O ensaio de Byung-Chul Han está dividido em cinco capítulos, os quais poderíamos nominar de cinco tempos: O tempo do silêncio, O tempo bom, O tempo da festa, O tempo do outro e Em um tempo inoportuno; à partida se pode observar os títulos como uma espécie de ideia reguladora, ou seja, como uma dimensão de alteridade, de algum modo, inspirada em um pensamento ético como o de Emmanuel Lévinas. Nesta resenha crítica, procuramos esboçar reflexões possíveis advindas desse trabalho.

O tempo do silêncio

Estamos ausentes de narrativas. Talvez seja essa uma forma de iniciarmos esse primeiro tempo trazido no ensaio de Han. O autor inicia seu trabalho advertindo que a construção de sentido estaria afinada à necessidade de uma conclusão, ou seja, reconhecer que “o início e o fim do processo formam um conjunto [Zusammenhang] dotado de sentido, uma unidade dotada de sentido, quando eles se prendem um no outro” (HAN, 2021, p. 12). Para logo caminhar à questão da narrativa, a dimensão desta é trazida à baila exatamente pelo seu oposto: o autor entende que a narrativa seria uma conclusão, logo a ausência de conclusões dada pelo imediato e o constante processo de vigília produzem essa ausência.

A detecção dessa ausência conduz a reflexão à questão do tempo. De algum modo, podemos dizer de uma relação com o tempo aproximada do conceito de duração, se concebermos esse conceito como desprendido daquilo que a noção moderna aproxima da noção de progresso. Aqui poderíamos acenar a Zygmunt Bauman e suas inspirações acerca da liquidez da existência, assim como poderíamos acenar aos escritos críticos ao neoliberalismo de Pierre Dardot e Christian Laval.

Para Norbert Elias (1998, p. 07), “o relógio é um processo físico que a sociedade padronizou”. O autor aponta que o tempo é algo que perturba os homens, pois eles não o compreendem. Sendo assim, é um objeto misterioso que não pode ser visto ou tocado, por isso o tempo é gerador de angústia.

Para Elias (1998), o homem insiste em demarcar os fatos de sua vida e assume o tempo como uma importante invenção, pois os fatos da vida e o cotidiano precisam ser vividos, pontuados, recordados. No entanto esses acontecimentos não são organizados em um tempo cronológico, já que muitos acontecem ao mesmo tempo e sem sincronia. Desse modo, o tempo não é só uma invenção humana, ele é um processo sobre o qual os homens se adaptam vivendo as múltiplas experiências em cada civilização. Portanto o tempo pode ser social, civilizatório, um construto importante emaranhado no processo educativo. Assim o tempo, enquanto categoria conceitual, é parte da condição humana que o idealizou e marca talvez a maior das capacidades humanas, a de aprender e transformar, tal como concebido por Han: “o início e o fim do processo formam um conjunto” (HAN, 2021, p. 11).

Gostaríamos de meditar um pouco a esse respeito, uma vez que o autor do ensaio nos empresta elementos interessantes para percebermos que, junto da narrativa, os rituais e as cerimônias também possuem seu tempo próprio, quer dizer, nos parece que sublinha um tempo que não poderia ser furtado por essa incessante acumulação de presentes, os quais, ao fim e ao cabo, são como fogos fátuos: duram o tempo preciso para provocar a alienação e o desejo pela próxima explosão.

Unido à questão dos rituais e das cerimônias, o autor propõe também uma reflexão sobre a aceleração e, por essa via, distingue o tempo da narrativa em face do tempo do processador. Aquele não se deixa captar pela aceleração, sob pena de se perder ontologicamente enquanto narrativa; já este indica exatamente a incidência da crítica do autor: ao processar aditivamente, de algum modo, impede a narrativa, que não se encaixa na produtividade de um progresso irrefletido - impedindo a verticalidade, a singularidade, o que é o mesmo dizer, a diversidade -, de um tempo homogêneo, raso e, ao mesmo instante, incessantemente novo, o que aponta para a contradição performática na qual estamos inseridos.

O tempo do processador, ao destruir a chance de memória, ao mesmo tempo, impede qualquer chance de por vir, uma vez que está sempre e presentemente aprisionados no agora, naquilo que se acostumou contemplar com o termo hipertrofia do presente (HARTOG, 1997). Uma espécie de alienação individual no agora, dentro da qual as pessoas submergem, impedidas de construção de laços, de afetos, senão, aqueles que as conduzam ao progresso - impedidos de sonhar, posto que sempre de olhos abertos. Assim se perde uma dose de humanidade em um presente amorfo e sem diálogo, sem narrativa, sem ritos e/ou cerimônias.

Poderíamos dizer que o reclame inicial do autor se dá exatamente no problema da ausência do termo. Não havendo fim, a existência se converte em uma sucessão de eventos sempre novos e ao mesmo tempo sem fim. Em não existindo conclusão, eclode a impossibilidade da crítica de instantes novos em novos instantes, e o que sobra é apenas aquilo que ainda não foi tocado pelo próximo anúncio, pela próxima notícia catastrófica que não produz assombro, senão nutre a apatia-excitada, uma espécie de limbo existencial dentro do qual concorrem dois afetos opostos e ao mesmo tempo convergentes: cansados e apáticos porque constantemente excitados, em ponto de excitação porque em constante apatia e exaustão.

A partir da percepção de um tempo sem narrativa, de uma subjetividade aprisionada em si, o autor vai dizer que a ela falta o cuidado, termo trazido de Heidegger e que sugere exatamente o que acima trouxemos: um tempo sem referencial qualquer, senão a si mesmo e seu progresso, levando o humano a atentar contra sua ontologia, que dentro da perspectiva trazida pelo autor, se alia à dimensão da alteridade, quer dizer, sem referencial, sem o negativo, sem o outro, há um contentamento de si. Em sua própria alienação, há um perdimento do mundo, uma satisfação com qualquer ato que desloque - estamos diante de uma espécie de absolutismo do eu.

Não apenas o tempo narrativo é uma conclusão. Também o instante que contenta e satisfaz é uma conclusão, pois ele é fechado em si próprio. Ele não tem, por assim dizer, nada à sua volta. Ele repousa em si mesmo e se satisfaz consigo próprio. Assim, ele é sem passado e sem futuro, sem lembrança e sem espera, ou seja, sem ‘cuidado’ [Sorge] no sentido heideggeriano. Essa ausência de cuidado [e preocupação] contenta. (HAN, 2021, p. 13; grifo nosso)

A questão do silêncio é inserida neste momento do ensaio quando o autor, junto de Roland Barthes, em seu A câmara clara, ensina que

a fotografia tem de ser silenciosa. Isso não é uma questão de ‘discrição’, mas de música. A subjetividade absoluta só é alcançada em um estado de silêncio, no esforço pelo silêncio (fechar os olhos significa trazer a imagem à fala no silêncio). (HAN, 2021, p. 14-15)

Assim vimos convergir dois problemas anotados por Han, quais sejam, a ausência do silêncio, que por sua vez evoca a ausência de ritmo, de música, dialogando com a ausência de conclusão: “o inquietante na experiência de tempo atual não é a aceleração como tal, mas, sim, a conclusão faltante, ou seja, a falta do ritmo e do compasso das coisas” (HAN, 2021, p. 13). Impossibilitado de conclusão, resta um aprisionamento neste tempo sem tempo, no descompasso que é a própria sucessão de imagens que coagem à manutenção dos olhos abertos e se constitui como a própria ontologia contemporânea. Hiperatento e hipervigilante padece o humano de sua chance de invenção, que requer o mencionado estado de silêncio, o sono, categorias já furtadas pelo tempo neoliberal.

O tempo bom

Na mesma toada do capítulo anterior, o autor nos oferece agora uma reflexão acerca da ideia cuja memória virtual não possui história, isso significa dizer, em seu idioma próprio, uma ausência de conclusão. De algum jeito, importa ao autor indicar que a memória do tempo contemporâneo se encontra entulhada, ao invés de se colocar em camadas as quais, por sua vez, poderiam produzir sentido. Elas se encontram entulhadas umas ao lado das outras, ou postas de maneira amontoada, o que se distingue diametralmente de qualquer hipótese de produção de sentido, de narrativa.

Distinta do saber e/ou do conhecimento, a informação, como produto dessa máquina de desmemória, impinge uma sorte de eventos consumíveis os quais impedem a duração, ao lançar para longe a reflexão e, por isso, impede a construção da memória, tornando-a um produto a mais a ser consumido de maneira quase instantânea. Assim, novamente, o autor mostra a ausência de conclusão e a informação opera a deslocar o pensamento para a borda que sempre aguarda a próxima inundação de si. Sem chance de concluir, estamos sempre a mirar o precipício, porém sem chance de contemplar, uma vez que a contemplação exige ontologicamente a demora, o passo atrás, categorias já expelidas pela lógica da ausência do tempo, da ausência, portanto da conclusão.

Não havendo a ideia do fim, aliás, em melhores palavras, como aquele sequer é pensável, há sempre uma torrente a lançar o tempo para adiante. Dessa maneira, como nele não há nada, senão sua movimentação, o que o sustenta é, ao fim, a sua própria aceleração, constituindo um tempo contínuo e rápido, sob pena de perder o timing, quer dizer, acelera-se para não se perder a inércia. E é isso que Han nos ensina: “onde o tempo perde o ritmo, onde ele se lança sem parada e sem direção no aberto e no vazio, desaparece, também, todo tempo certo o todo tempo bom” (HAN, 2021, p. 22).

A essa perda do tempo bom, o autor alude a uma citação de Marcel Proust em Em busca do tempo perdido, momento no qual o escritor traz uma frase interessantíssima para a reflexão aqui: “Por muito tempo, eu fui dormir na hora certa” (HAN, 2021, p.23). Assim essa hora certa significa no tempo certo, ou seja, comparece a noção mesma de kairós entre os gregos antigos, e, ainda, nos permite relembrar a noção aristotélica de Eudaimonia e mesmo de eupraxia, termos absolutamente caducos se postos em diálogo com o tempo contemporâneo, sem atrito e sem conteúdo.

Referenciamos Aristóteles aqui para informar, a partir de sua Ética a Nicômaco, mais precisamente no livro X, acerca da ideia de felicidade como fim último do humano, bem como, com este mesmo autor, poderíamos acenar para a ideia de que os homens não se reúnem na polis apenas para praticar negócios, mas, sim, para buscarem a vida boa. Vida boa e tempo bom que se distanciam do sujeito do cansaço trazido por Han tanto na obra sobre a qual estamos a meditar como no seu A sociedade do cansaço. Esse sujeito, muito distante, por exemplo, do que nos ensina Aristóteles, se perde em suas dimensões mais elementares, quer dizer, lançado para além da hipótese de conclusão, uma das dimensões mais elementares do humano é capturada, dando prova de que a ausência de conclusão eclode de forma direta nas próprias capacidades de se constituir enquanto humanos. Isso nos ensina o autor em questão:

O sujeito do desempenho exaurido (...) adormece como uma perna adormece. Isso não é uma conclusão (...) hoje, fecham-se os olhos, quando se os fecham de algum modo, por cansaço e exaustão. Seria mais apropriada a formulação: os olhos simplesmente fecham, o que não é uma conclusão. (HAN, 2021, p. 23-24)

Nessa mesma direção, Jonathan Crary, em seu Capitalismo tardio e os fins do sono, aponta que o sono estaria em rota contrária à do tempo insosso do neoliberalismo, ou seja, ele se contrapõe à produtividade, ao consumo, pois encerra em si o ciclo que requer Han quando fala sobre as conclusões: o sono seria o termo do dia e em uma fase, como a contemporânea, que exalta a vida em 24/7 (sete horas em um dia), não há respeito a essa lógica. Assim a relação harmônica que o corpo requer é diretamente aviltada quando há uma recusa dos fins. A produtividade contínua, assemelhada aos modelos fabris, lança sobre o humano essa coação pela ausência de conclusão, inertes, não adormecem e não sonham, uma vez que, segundo Han, os olhos simplesmente fecham.

O sono é um hiato incontornável no roubo de tempo a que o capitalismo nos submete. A maior parte das necessidades aparentemente irredutíveis da vida humana - fome, sede, desejo sexual e, recentemente, a necessidade de amizade - se transformou em mercadoria ou investimento. O sono afirma a ideia de uma necessidade humana e de um intervalo que não pode ser colonizado nem submetido a um mecanismo monolítico de lucratividade, e desse modo permanece uma anomalia incongruente e um foco de crise no presente global. (CRARY, 2016, p. 20)

O sono e a conclusão seriam um refúgio ao processo de domesticação do tempo neoliberal. Isso é o que nos aponta o capítulo O tempo bom, talvez, o tempo ainda não mediado ou furtado pela necessidade da produção.

Aílton Krenak ensina que aquele que dorme, e possivelmente sonha, estaria a se preparar para a vida desperta a partir do sonho, levando para ela toda a carga de profundidade experienciada nos sonhos. Ora nada mais interessante ser dito em um momento que de acordo com o próprio Han se vive em uma sociedade do dopping.

Krenak traz para a questão do sonho a dimensão do afeto, ao afirmar que o “sonho é um lugar de veiculação de afetos” (KRENAK, 2020, p. 37) e, nesse sentido, um sonho afeta o mundo transformando-o, abrindo brechas para que o que se convenciona chamar real possa ali se colocar, mas agora já outro, desconstruído pela transa com o afeto sonho. Ali onde o humano é povoado pelo segredo, pela magia e pela alteridade, a razão neoliberal não compreende senão como a próxima mercadoria.

O tempo da festa

O tempo bom não há, bem como o tempo da festa. Nesse capítulo, Han estabelece uma reflexão inicial a partir do problema de hoje, de o tempo não comportar paradas. Estas podem se colocar como momentos de conclusão. Para o autor, esse acúmulo inadvertido não produz sentido e, portanto, é incapaz de finalizar algo. Logo, nesse rumo, ele traz, a título de exemplo, a pessoa depressiva, incapaz de decidir e tornando-se inabilitada para escolher. A demora, o demorar-se, categorias afinadas à possibilidade de escolha, estão alijadas no sujeito depressivo, uma vez que, cooptado pela inaptidão da escolha, do fim, do termo, é lançado pelo labirinto das indecisões, e, obrigado a decidir, não se mexe. Outra vez o paradoxo de nosso tempo: o excesso dos estímulos obriga a enxergar; fatigados, não se pode escolher.

A essa questão o autor assinala que o pensamento se perde enquanto tal e se aproxima da mera calculabilidade. Sem demora, sem reflexão, as ações seguem o rumo a ser determinado pelo próximo post, clique ou evento catastrófico e normal: “A massa de informação que se acelera sufoca, então, o pensamento. Também o pensamento carece de um silêncio. É preciso poder fechar os olhos” (HAN, 2021, p. 29-30). Em descompasso com essa atitude, o sujeito do desempenho se encontra esboroado em um sem fim de coações, impelido a sempre produzir, em um eterno retorno ao nada e se furta a chance de escolher - uma espécie de condenação de Sísifo dos tempos contemporâneos.

Doente, em burnout, o tempo da festa se perde, pois, como ensina o autor, esse tempo não seria o tempo do relaxamento ou algo assim. Não poder-se-ia ler a festa apenas como mero intervalo ao tempo do trabalho, quer dizer, a festa, enquanto celebração advinda historicamente do contexto religioso, não poderia ser capturada como mera passagem do tempo profano - o tempo do trabalho - sob pena de se tornar um mero utensílio daquilo que supostamente seria o avesso. Nesses termos, enquanto oposto do tempo do trabalho, aquele tempo não poderia por ele ser determinado.

À reflexão acerca do tempo da festa, poderíamos acostar o que nos ensina Theodor Adorno em seu Indústria Cultural e Sociedade, no capítulo Tempo livre. Ora, mesmo que em direções distintas, se reconhece aqui uma totalização do tempo, que significa para Adorno, mesmo no dito tempo livre, estarmos em verdade “prolongando as formas de vida social organizada segundo o regime do lucro” (ADORNO, 2002, p. 106), e para Han: “O tempo do trabalho é um tempo sem conclusão, sem início e sem fim (...) A pausa não marca, como pausa do trabalho, um outro tempo. Ela é apenas uma fase do tempo de trabalho (...) O tempo do trabalho se totaliza como o tempo” (HAN, 2021, 32-33).

Ao cabo desse tempo, o autor nos direciona para a próxima digressão acerca do tempo do outro. Logo, em clara alusão ao pensamento de Emmanuel Lévinas, Han destaca não haver combate à aceleração com seu suposto contrário, a desaceleração. Esta seria apenas uma consequência daquela; de outra monta, o autor aponta uma necessária revolução temporal, o que significaria a gestação de um tempo do outro, com aroma que vem sem a fábrica de cheiros que não nos deixa respirar.

O tempo do outro

O autor inicia o capítulo ensinando que para Hegel o amor como absoluto é uma conclusão. Em uma espécie de trânsito, de transe, de transa, de morte, de vida, haveria a morte que ama no outro. Porém, nessa morte, segundo Han, não haveria apropriação violenta do outro, mas, sim, vida, como a própria dádiva do outro, ou seja, há na relação uma pressuposição de renúncia, de entrega do si, para uma conclusão em algo distinto do ego que quer dominar: “O amor como conclusão absoluta pressupõe um abandono [Aussetzen] do si. Ele é metamorfose [Verwandlung]. O abraço amoroso é outro signo visual da conclusão” (HAN, 2021, p. 38-39).

Essa digressão pelo amor nos chama a pensar junto de Alain Badiou e Nicolas Truong, no pequeno livro Elogio ao amor. Nele, dentre inúmeras contribuições para o tema, podemos colher pensamentos que mesmo em outro diapasão apontam a reflexão do amor para longe dos confins do ego. Nesse sentido:

Ele é uma proposta existencial: construir um mundo de um ponto de vista descentrado em relação à minha mera pulsão de sobrevivência ou de meu interesse bem compreendido (...) Se, apoiado nos ombros daquela que amo, eu vejo, digamos, a paz entardecer num lugar montanhoso, os prados de um verde dourado, a sombra das árvores (...) e sei, não pelo seu semblante, mas no próprio mundo tal como ele é, que aquela que eu amo vê o mesmo mundo e que essa identidade faz parte do mundo, e o amor é justamente, nesse exato momento, o paradoxo de uma idêntica diferença, então o amor existe e promete continuar existindo. Eu e ela estamos incorporados e este Sujeito único, o Sujeito de amor, que trata o desdobrar do mundo pelo prisma da nossa diferença, de modo que esse mundo advém, nasce, em vez de ser tão somente aquilo que preenche meu olhar pessoal. (BADIOU & TRUONG, 2013, p. 21-22)

A conclusão dita por Han ou esse Sujeito único anotado desde Badiou e Truong indica o desenvolvimento da meditação acerca desse tempo. O tempo do outro, como tempo do amor, desloca a questão para uma seara ainda não cooptada por completo, uma vez que se dá em pleno estado de transformação, pois, mesmo em sua conclusão, quer dizer, mesmo nos atos simbólicos do amor, seja um abraço ou a forma de olhar o mundo a partir de dois, todas essas requerem o avesso do tempo amorfo que impede de fechar os olhos; ou não seria exatamente assim que procedemos quando estamos nesse tempo do outro: silenciamos e fechamos os olhos, como se ali não coubesse a coação da produtividade capital ou o ego que determina e aniquila o presente tornando-o uma colagem fugaz ao preencher o feed das redes sociais?

Em continuidade à reflexão, Han direciona seus ditos para a questão da comunicação. Para o autor, ela se impõe como local de produção de sentido, logo a chance de escape da morte, ou seja, ao conferir sentido, inaugura o tempo, faz morada, habita o mundo e se permite concluir: “O diálogo representa uma forma bela de conclusão. Por isso ele pode promover o sentido” (HAN, 2021, p. 39). Assim, ao contrário do diálogo, as redes digitais são incapazes de diálogo, pela necessidade mesma que ela possui de se manter sempre em estado de alerta, em estado de impassiva e eterna comunicação, isto é, a contradição dos tempos digitais é que o excesso da comunicação falha no seu ponto mais elementar: ela não se cala para deixar vir o outro. Há uma imposição que emperra o diálogo e aniquila a diversidade - conclusões evidentes de um tempo acelerado, celerado, sem sentido e em constante movimentação.

Contra isso, Han enuncia do tempo do outro, contra a falta de tempo habitual, pois essa falta de tempo está aliada à necessidade de posse do tempo, aquele tempo que “eu tomo para mim”. Por outro lado, o tempo do outro é um tempo gratuito, uma dádiva, aquilo que não cede às intempéries do cálculo, da eficiência, daquilo que pode ser quantificado segundo a lógica neoliberal. Esse tempo do outro, segundo Han, seria a chance de libertação do sujeito, seja da exaustão, seja da depressão - em palavras do próprio autor: “O eros vence a depressão” (HAN, 2019, p. 12).

Em um tempo inoportuno

No último tempo, derradeiro e conclusivo do ensaio, o autor anota uma experiência ocorrida no CTM Festival de música experimental e eletrônica. No referido festival, uma banda de death metal estava preocupada com o modo como iria encerrar a música a ser tocada, pois não seria “verdadeiramente possível encerrar de maneira dotada de sentido uma música à qual não inere estruturalmente nenhuma conclusão” (HAN, 2021, p. 45-46). A banda, no entanto, se alivia no momento em que há uma sobrecarga nos alto-falantes e, posteriormente, eles se queimam. Com essa estória, Han encerra seu ensaio em tom alarmante. O seu tempo inoportuno se apresenta, então, de maneira catastrófica, como a destruição dos alto-falantes; não há o termo da canção, ou melhor, há um termo inoportuno, como, ademais, parece caminhar nosso tempo, nosso mundo, que por impossibilidade de concluir, pela ausência de sentido, acaba por se acelerar cada vez mais.

O tempo inoportuno é o tempo da conclusão que sem impõe, tragicamente, sem que possamos nela durar, sequer existir.

Outras considerações

Para um pouco mais de reflexão, provocados novamente por Elias (1998, p. 20): “Embora os seres humanos não sejam civilizados por natureza, possuem por natureza uma disposição que torna possível, sob determinadas condições uma civilização, portanto uma auto regulação individual de impulsos do comportamento momentâneo, condicionado por afetos e pulsões, ou o desvio desses impulsos”, consideramos O tempo do silêncio, O tempo bom, O tempo da festa, O tempo do outro e Em um tempo inoportuno elementos centrais da condição de seres em constante processo de construção de si e do outro. Esse inacabamento e inconclusão são parte do início e do fim, são o conjunto do nosso desafio de eternos construtores do tempo, das aprendizagens e dos rumos inconclusos da vida.

Referências

ADORNO, Theodor. W. Indústria Cultural e sociedade; seleção de textos Jorge Mattos Britto de Almeida; tradução Julia Elisabeth Levy [et. al]. São Paulo: Paz e Terra, 2002. [ Links ]

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Coleção: Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1987. [ Links ]

BADIOU, Alain; TRUONG, Nicolas. Elogio ao amor. Tradução Dorothée de Bruchard. São Paulo: Martins Fontes, 2013. [ Links ]

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2001. [ Links ]

CRARY, Jonathan. 24/7: capitalismo tardio e os fins do sono. Tradução Joaquim Toledo Jr. São Paulo: Ubu Editora. 2016. [ Links ]

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Editora Boitempo, 2013. [ Links ]

HAN, Byung-Chul. A agonia do eros. Petrópolis/RJ: Vozes, 2019. [ Links ]

HAN, Byung-Chul. Favor fechar os olhos: em busca de um outro tempo. tradução de Lucas Machado. Petrópolis/RJ: Vozes, 2021. [ Links ]

HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis/RJ: Vozes, 2017. [ Links ]

HARTOG, François. Regimes d’historicité; présentisme et expériences du temps. Paris: Seuil, 1997. [ Links ]

LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito: trad. José Pinto Ribeiro. - 3ª ed. - Lisboa: Edições 70, 2008 [ Links ]

NORBERT, Elias. Sobre o Tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. [ Links ]

KRENAK, Ailton. A vida não é útil. Pesquisa e organização Rita Carelli. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. [ Links ]

Recebido: 07 de Abril de 2022; Aceito: 27 de Outubro de 2022

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