O entendimento das reformas do aparelho de Estado no Brasil e do novo ordenamento jurídico que com base nela sobreveio, impondo as reformas das instituições republicanas, bem como os processos de regulação e controle da sociedade exige a compreensão das dimensões políticas e econômicas que são centrais para se estudar o ocorrido na universidade estatal, na pesquisa e na ciência no país. Destaca-se a necessidade de melhor entendimento das relações centro-periferia para explorarmos de que maneira nosso passado dependente se atualiza no momento atual.
Ao referirmo-nos à reforma do aparelho de Estado iniciada, legalmente, com o Plano Diretor de Reforma do Aparelho de Estado de 1995, devemos encontrar muitos elementos no contexto mundial que se vem modificando desde a década de 1970 até o presente. O regime de predominância financeira é sua razão imediata. Porém, as especificidades históricas do capitalismo periférico e dependente são igualmente relevantes. Sem embargo, do forte impacto da mundialização financeira nas instituições brasileiras, há que se considerar as condições estruturais do Estado Capitalista, bem como do capitalismo brasileiro para a compreensão mais completa do que aconteceu no país desde o início da década de 1990.
As relações entre o Estado capitalista e a propriedade privada demandam uma exposição mais pormenorizada. Isso impõe a compreensão das mutações da propriedade privada individualizada, acabando com a propriedade/direito de usufruto e estabelecendo um espaço socioeconômico de predomínio do capital para setores nunca vistos na história do capitalismo, como a propriedade do conhecimento, a financeirização da educação, da saúde, da seguridade, até mesmo da água que necessitamos para viver que, jamais poderiam estar sob a alienação de uns poucos em detrimento do restante da humanidade, na condição de propriedade individualizada.
É importante diferir a apropriação individual de algo para usufruto e propriedade privada individual dessa mesma coisa. Algo, coisa que pode ser uma cadeira, computador, etc. Quando há apropriação por alguém da cadeira para usufruto, não é possível outra pessoa ocupar a cadeira ao mesmo tempo que a primeira e o objetivo dessa apropriação consiste numa necessidade de quem a ocupa. Por vezes o usufruto permite o uso por várias pessoas ao mesmo tempo. Ouvir música de um mesmo áudio ou ver televisão. Usar a rua ao mesmo tempo que muitas outras pessoas o fazem, ainda que haja um limite imposto pela materialidade da existência da rua, e os exemplos cotidianos se multiplicam pelos bairros, praças e coretos das cidades. Contudo, é importante fixar aqui que a apropriação para usufruto é para uso de quem se apropria naquele momento do bem. Trata-se da apropriação de um bem comum, um bem público estatal ou não.
Diferentemente, a propriedade privada individual dá direito de posse à pessoa que a detém, independente se esta pessoa vai ou não usar, se vai ceder a outrem por algum dinheiro ou, mesmo, vender o que é de sua propriedade. Isto é, a propriedade individual pode transformar por força de constituições, de leis, um bem em mercadoria.
A propriedade privada estabelece o direito de posse exclusiva de uma coisa ou processo, quer seja usado ativamente, quer não. Nas raízes da troca de mercadoria reside o pressuposto de que ativamente não quero ou não preciso da mercadoria que ofereço para a troca. Na verdade, a própria definição de mercadoria é esta: algo produzido para o uso de outra pessoa. Os direitos de propriedade conferem o direito de vender (alienar) aquilo que se possui. (HARVEY, 2016, p. 47-48)
Na história de emergência e existência históricas do capitalismo, pela importância de governo e de Estado, surge a diferença entre direitos de usufruto - de uso ativo do bem - e o direito de propriedade exclusiva e permanente.
Esta diferença foi se reproduzindo e permeando a cultura e a sociabilidade até se institucionalizar como lei ou norma de conduta ao longo da história do capitalismo por força da nova economia que se consolidava. Populações indígenas da América do Norte, da África, da Austrália usavam a terra como usufruto e deixavam para trás a terra que fora produtiva, migrando para outros lugares onde a terra ainda possibilitava a produção. Contudo, a expansão do capital impôs o “assenhoramento das Terras” nesses lugares por força do Estado e seu poder coercitivo e jurídico. Muitas populações se viram impossibilitadas de migrarem ao encontrarem cercas e muros, indicando a transformação da terra como direito de usufruto para a condição de propriedade privada de um Estado nacional. Neste processo Estado e propriedade privada vão constituindo uma novíssima formação social, em que o ordenamento jurídico garantido por um Estado se encontra como eixos fundantes de sua composição.
O que é importante marcar com esta argumentação é a própria construção do aparelho legal. A emergência do capitalismo produz, de forma coercitiva e persuasiva, a condição de propriedade privada ao que é produtivo, ao que agrega valor. Ver o que Locke, em seu Tratado sobre o Governo Civil, escreve sobre a propriedade:
Aquele que se alimentou com bolotas que colheu sob um carvalho, ou das maçãs que retirou das árvores na floresta, certamente se apropriou deles para si. Ninguém pode negar que a alimentação é sua. Pergunto então: Quando começaram a lhe pertencer? Quando os digeriu? Quando os comeu? Quando os cozinhou? Quando os levou para casa? ou quando os apanhou? E é evidente que se o primeiro ato de apanhar não os tornasse sua propriedade, nada mais poderia fazê-lo. Aquele trabalho estabeleceu uma distinção entre eles e o bem comum; ele lhes acrescentou algo além do que a natureza, a mãe de tudo, havia feito, e assim eles se tornaram seu direito privado. Será que alguém pode dizer que ele não tem direito àquelas bolotas do carvalho ou àquelas maçãs de que se apropriou porque não tinha o consentimento de toda a humanidade para agir dessa forma? Poderia ser chamado de roubo a apropriação de algo que pertencia a todos em comum? (2006, p. 43)
Locke, insuspeito liberal clássico, argumenta em favor de que os direitos de propriedade emergem da produção de algo realizado pelo trabalho humano. Em outro momento, o autor, argumenta sobre a sua doutrina res nullius, segundo a qual “a propriedade privada da terra que produz valor (ou seja, que envolve aplicação de trabalho social para a produção de mercadoria é considerada legítima.” (HARVEY, 2016, p. 49). Poderíamos citar a Dieta Renana de Marx, cinco textos escritos sobre a “Lei do Furto” na Gazeta Renana em que o jovem autor, então, refletia sobre o processo progressivo de transformação da apropriação privada da natureza e do que dela se conhecia socialmente, saber produzido de forma cooperativa e na condição de usufruto da terra. Muitos são os exemplos que se podem encontrar na história da consolidação do capitalismo em que os eixos fundantes da nova formação social se encontram abraçados de forma dialética o Estado e a propriedade privada. Recorro novamente a Harvey (2016) sobre a questão:
No entanto, entre os direitos de usufruto e os de propriedade privada há uma abundância de direitos de propriedade comum ou consuetudinários, em geral confinados a uma coletividade (como a uma comunidade rural, ou, mais amplamente, a todo um regime cultural). Esses direitos não são necessariamente acessíveis a todos, mas pressupõem formas de governo compartilhadas e cooperativas entre membros da entidade política. O fim dos direitos de usufruto e o infame processo de cercamento dos bens comuns levaram à predominância de um sistema de direitos de propriedade privada individualizada, respaldada pelo poder estatal, como a base de relações de troca e comércio. Essa é a forma consistente com a acumulação e a circulação do capital. (p. 49)
Contudo, no âmbito da racionalidade do capital está consolidado o sistema de propriedade privada individualizada. Trata-se de construção necessária, sem o que nem o valor de troca e tampouco o dinheiro teriam algum sentido e seriam legítimos segundo direitos com origem no Estado.
Importa perceber que o processo de produção do capital impõe a continuidade de mudanças nas formas de Estado para que a expansão do regime de propriedade privada sempre se expanda no espaço, no tempo e em lugares sociais onde jamais esteve. É o caso do conhecimento, da saúde, da seguridade, da educação, da formação humana nos espaços públicos por meio de práticas cotidianas, todas esferas que foram alcançadas pelo regime de propriedade privada individualizada.
Neste mesmo texto, ao tratarmos do regime de predominância financeira, observamos a mudança institucional e econômica experimentada no Brasil face à sua aderência ao regime atual do capitalismo e a ameaça que ele representa para o Planeta e toda humanidade.
A entrada do investimento externo direto (IED) alterou substancialmente a economia brasileira, exigindo a expansão da propriedade privada individualizada, porém em formas distintas das que existiram e fetichizadas de algo novo exigido na fantástica era da globalização. Marx em sua obra escreveu que este processo de ampliação deste regime é uma constante no capitalismo. Posto que, sem o regime de propriedade privada individualizada, não há valor de troca e tampouco dinheiro no marco da reprodução do capital. A mundialização do capital realiza-se por meio da predominância do capital portador de juros sobre o capital em funções e sobre o capital produtor de valor.
A vertigem de fazer dinheiro com base no próprio dinheiro sem a mediação do trabalho trouxe uma compressão sobre o trabalho social e sobre o trabalho vivo. Isto é, a financeirização da economia no âmbito mundial impôs a necessidade e a construção de novos espaços para a realização do capital-papel, dos títulos que não passam de promessas de pagamento e uma aposta que o capital-dinheiro se valorizaria no futuro. O capitalismo tornou-se uma roleta global. Este fato trouxe estrutural vulnerabilidade ao sistema econômico mundializado. Por isso, a urgente necessidade de controle em tempo real de muitos processos de trabalho, do sistema monetário mundial e a extensão de serviços na esfera da circulação do capital que se amplia e demanda sistemas organizacionais, tecnologias de informações, inaugurando um espaço grande para a indústria de novas tecnologias.
Contudo, antecede tal processo as garantias estatais e institucionalidades para garantia da entrada de capital financeiro e IED no Brasil e a estabilidade econômica para que o retorno fosse garantido com repatriação de lucros, deixando no país a menor parte que ainda é carreada para o pagamento da dívida pública nacional e internacional, bem como os seus serviços na forma de juros.
Destaca-se, contudo, que a necessidade maior que se impõe para o país em face da aderência à predominância financeira consiste na produção estrutural de novos espaços para a propriedade privada individualizada. Fato de estrutural razão e que exige a mudança da forma do Estado brasileiro, por duas razões.
A primeira consiste na construção institucional de direitos a novas formas de propriedade. Neste ponto, Bresser-Pereira revelou sua capacidade intelectual aguda em sua produção intelectual a serviço da criação de tal institucionalidade. Viajou para os Estados Unidos e lá estudou e pesquisou as teorias econômicas para América Latina e as reformas institucionais realizadas nesse continente. Redige o livro que iria se constituir na base acadêmico-teórica do Plano Diretor para a Reforma do Aparelho de Estado Economic Crisis and State Reform in Brazil: Toward a New Interpretation of Latin America, publicado originalmente em inglês em 1995, nos Estados Unidos e traduzido e publicado no Brasil, em 1996, pela Editora 34 com o título Crise econômica e reforma do estado no Brasil: para uma nova interpretação da América Latina.
Neste livro, dado ao público depois do documento político, Bresser-Pereira produziu a necessária aliança com a academia brasileira, e ao mesmo tempo, conseguiu a legitimidade política para as reformas das instituições republicanas brasileiras. Todo o desenho da reforma do aparelho de Estado e das instituições republicanas está muito bem realizado e com produção teórica rigorosa, ainda que passível de muitas críticas como se pode ver. Mas, aqui, o autor mostra a institucionalidade e necessária construção das novas formas de propriedade privada individualizada, exigência do processo de aderência do país ao regime de predominância financeira.
A segunda está imbricada na primeira e operacionaliza a criação do aludido espaço. A construção da institucionalidade das novas formas de propriedade privada individualizada tornou-se, ao mesmo tempo, a sua operacionalização. Bresser-Pereira, ao criar dois núcleos exclusivos do Estado e dois setores não exclusivos do Estado ou competitivos, produzia a redução da participação do Estado na esfera pública, deixando ao capital financeiro um enorme espaço para a expansão da propriedade privada individualizada. (Cf. SILVA JÚNIOR, 2017)
Este processo é também a transformação de direitos sociais em direitos de propriedade individualizada. Fantástica prestidigitação teórica do mágico Bresser-Pereira. Modificou, com a reforma do aparelho, a racionalidade da gestão pública no país, tornando-a gerencialista nos moldes da gestão de uma corporação privada. De fato, o Estado se tornava um escritório para a gestão do Brasil como plataforma de produção de valor tal como vínhamos argumentando em outros trabalhos (Cf. SILVA JÚNIOR, 2017). Tal racionalidade pôs-se para todas as instituições republicanas, especificamente para a universidade estatal. O que aqui foi sinteticamente apresentado encontra-se nos demais trabalhos do autor e colegas pesquisadores da Rede Universitas/Br. Porém, antes, de passarmos a este constructo, faz-se necessário abordarmos a especificidade do capitalismo latino-americano e sua condição estrutural periférica. (CF. SILVA JÚNIOR; SGUISSARDI, 2001; SILVA JÚNIOR, 2011; CATANI; OLIVEIRA, 2002; SGUISSARDI; SILVA JÚNIOR, 2009; MANCEBO; SILVA JÚNIOR; SCHUGURENSKY, 2016; SILVA JÚNIOR, 2017).
As expressões pré-capitalismo e capitalismo tardio, como exemplos, são o resultado de análises de extração marxistas que encontram lugar numa exacerbada ortodoxia ou que não conseguem domar a complexa realidade com as categorias de Marx. Neste último caso, as descrições empíricas correm ao largo do rigor teórico, enquanto no primeiro as explicações exacerbam a teoria, deixando a realidade em posição submissa, caindo a análise no abstracionismo ou no ecletismo epistemológico.
Ambas as expressões citadas são de fato o capitalismo na periferia mundial, que transcorre de forma singular. Assim, se para compreender uma categoria simples é mister compreender a mais avançada, sua contradição é, também, verdadeira. O entendimento pleno da categoria simples enriquece a compreensão da categoria mais desenvolvida. É fundamental considerar que se um evento se transformou em outro historicamente, há a presença do antigo no que sucedeu o velho. Contudo, é fundamental compreender a originalidade do novo. Este imperativo metodológico do materialismo histórico é fundamental para compreendermos a dependência das formações históricas periféricas, aqui, a América Latina, bem como a produção intelectual, segundo esta tradição teórica, nos países desse continente e sua dependência estrutural quando entram no capitalismo através do comércio exterior.
Destaca-se que no caso do comércio exterior, é preciso compreendê-lo, também, como a expansão das contradições capitalistas para as nações periféricas e que impactam fortemente as formas históricas de tais formações periféricas e organizam suas configurações de classes e a suas relações com a propriedade privada. Há uma relação indissociável entre o Estado e a propriedade privada e, consequentemente, forma a maneira como as relações de classe se fazem. Do que decorre, que o Estado nas formações periféricas tem características singulares quando comparado com a forma histórica do Estado nas formações capitalistas centrais e sua relação com as da periferia capitalista.
A América Latina, particularmente o Brasil, entra para o capitalismo mundializado, e com esse movimento, avança no seu próprio desenvolvimento capitalista. Essa aderência se faz quando as economias centrais iniciavam seu processo de expansão industrial. No centro há, portanto, um aumento da população urbana em razão do aumento dos trabalhadores industriais e dos do setor de serviços. Isso traz dois problemas para o capitalismo em seu centro. A população rural diminui, aumentando a urbana, o que vai impor a escassez de oferta e aumento da demanda de bens primários (alimentação, vestuário, etc.) e matéria prima para uma indústria em expansão.
No mesmo período, a América Latina tem seus ciclos históricos e econômicos que vão regionalizar os países do continente e, ao mesmo tempo, configurar as classes em cada um dos países segundo sua especificidade histórica. O Brasil (ver FURTADO, 2007) teve três longos ciclos, da cana de açúcar, do ouro e do café.
O primeiro ciclo irá movimentar principalmente o Nordeste, o segundo, o Centro-Oeste e Minas Gerais e também São Paulo. Já o ciclo do café influenciará a formação social de São Paulo e Minas Gerais. Porém, o que importa reter aqui, são as relações entre o Brasil e as economias do centro do capitalismo. O país inicia suas relações com os países centrais por meio do comércio exterior (importação e exportação). Exportávamos bens primários e importávamos bens manufaturados. Em cada região este processo se fez de uma forma diferente da outra, e, estabeleceu relações diferentes no âmbito nacional. Isto é, há uma diferença entre as formas com que as classes se ligaram à burguesia internacional. Mas, é lícito dizer, que todas estabeleceram relações com a burguesia internacional com a base econômica do comércio exterior antes mesmo de se configurarem com uma burguesia nacional (MARINI, 1973; FERNANDES, 1976; e FURTADO, 2007). O que implica dizer que a relação de classes no Brasil se estabeleceu sob uma relação assimétrica com as economias centrais e, portanto, sofrerá as consequências disso, segundo Marini (1973): a Dependência dos países periféricos.
O argumento central está posto nas relações de troca internacionais. Os países centrais perceberam um aumento de sua produtividade por meio das inovações tecnológicas e organizacionais e passaram a importar os bens primários. Nestas relações, há vantagens para as economias centrais, posto que puderam impor um preço para as manufaturas que era superior ao valor social do trabalho incorporado nas mercadorias que o Brasil importava. Enquanto o Brasil, na produção da cana-de-açúcar, do ouro e do café, explorava diretamente a força de trabalho no campo, de forma predominante. As burguesias nacionais aceitaram a troca desigual e assimétrica imposta pelas economias do centro. Fato que definirá como produzir no país e como se estabeleceu a dependência econômica e política entre o centro e o Brasil, marcadas por uma relação assimétrica e de dependência (MARINI, 1973; FURTADO, 2007). Na troca internacional transferíamos o valor auferido pelo trabalho social brasileiro produzido pela exploração do trabalho e pelo eventual aumento de produtividade que tivéssemos no país.
O que se expôs acima nos permite afirmar que a redução do custo social do trabalho no Brasil, corresponde o mesmo nas economias centrais. Isto é, ao transferirmos valor - por meio do trabalho vivo e do aumento de produtividade -, também diminuíamos o custo social do trabalho nas economias centrais. Assim exposto, as exportações do país se configuraram como “superexploração do trabalho brasileiro”. Este fato é estrutural nas economias da América Latina e, particularmente, no Brasil. Esse traço marcará, de forma estrutural, o capitalismo brasileiro, a relação entre as classes e a formação do Estado, como já argumentamos anteriormente ao analisarmos as relações entre Estado e propriedade privada.
Outro aspecto que deve ser destacado aqui consiste em que o aumento de produtividade também está marcado por este traço do capitalismo periférico no Brasil. O que implica dizer que as novas tecnologias e os avanços científicos, já emergem no país indissociavelmente ligados e, de alguma forma dependentes, das relações assimétricas que se estabeleceram desde o início, quando o capitalismo se consolida na América Latina e, especificamente, no Brasil. Isso terá continuidade, de forma mais acentuada, no âmbito da mundialização do capital.
Sader afirma que:
O modelo de acumulação de capital das sociedades dependentes latino-americanas é enfocado (por Marini) na sua dupla ótica, ambas intrinsecamente articuladas: fornece fatores de produção que permitem a reprodução de capital nas economias centrais do capitalismo e, ao mesmo tempo, condiciona as burguesias da periferia, inferiorizadas na competição pelo mercado internacional, a induzir em nossas formações o processo de superexploração do trabalho. Integra-se, assim, o processo de acumulação em escala mundial e processo de acumulação em nível nacional, com características típicas da extração do excedente que a caracteriza. (SADER, 2009, p.31, grifos nossos)
Tal processo analisado por Marini (1973) torna-se tão ou mais relevante no período de globalização da economia sob o predomínio do capital portador de juros, quando as burguesias se internacionalizam e deixam o mercado interno e os governos, sob pressão do Fundo Monetário Internacional (FMI) acompanham o mesmo movimento. Isso se faz por meio da ênfase na exportação e do consumo interno dos setores de elite no país, adicionando-lhes às finanças, isto é, os muitos produtos financeiros nacionais e internacionais. A consequência imediata disso consiste na regressão do país à exportação de bens primários e à profunda desindustrialização brasileira desde o plano real.
A outra consequência, articulada a primeira, reside na superexploração do trabalho, agora, atacando os direitos dos trabalhadores. Em seguida, uma terceira consequência está na busca da inovação tecnológica para um país em processo acelerado de desindustrialização. As universidades e centros de pesquisa atuam fortemente nesta área, porém, para quem? Para as corporações mundiais que têm suas filiais aqui no país. Novamente, o aumento de produtividade decorrente de novas tecnologias torna-se valor para as economias centrais. Ou ainda, reduzem o custo social do trabalho nos países centrais que enfrentam altíssimas taxas de desemprego, à custa da superexploração do trabalho no Brasil. Sader afirma sobre os direitos trabalhistas:
Os direitos trabalhistas, conquistados a duras penas através de longas lutas do movimento sindical, foram atingidos de forma privilegiada pelas políticas neoliberais, revelando da forma mais crua seu caráter classista. Como um de seus resultados, na América Latina a maior parte dos trabalhadores não tem carteira de trabalho assinada (...) ou deixaram de ter. Assim, não são cidadãos, no sentido de serem sujeitos de direitos econômicos e sociais. Não podem associar-se, não podem recorrer à justiça do trabalho, não possuem direitos elementares, como um nível mínimo de remuneração salarial, férias, décimo terceiro salário, licença-maternidade e todos os direitos previdenciários e assistenciais conquistados em décadas anteriores. (SADER, 2009, p.35)
É importante registrar que este texto acima citado é de 2009. Portanto, as condições de precarização das relações do trabalho e a sua intensificação já estavam dadas há mais tempo e a esquerda brasileira e no mundo encontrava-se frágil, enquanto grande parte dos intelectuais acadêmicos estava mergulhada no fetiche da busca de novas tecnologias e de novas formas de empreendedorismo para os trabalhadores. A análise feita sobre a predominância financeira ganha aqui, a clareza do detalhe na periferia do capitalismo. O que permite entender melhor a globalização e suas consequências para o Brasil caracterizado por um capitalismo periférico e sob o tacão da Dependência. A reforma do aparelho do Estado seguirá esta racionalidade, ao mesmo tempo em que vai operacionalizar a dependência ao centro capitalista, especialmente ao capital financeiro.
Eram dadas as condições que, com base na reforma do aparelho do Estado, bem como para as universidades e a educação em geral que possibilitaram todas as leis que institucionalizaram o fim dos direitos do trabalho, que privatizaram, mercantilizaram e ideologizaram a educação superior e a pesquisa como se viu acontecer no governo Temer e o que já se prenuncia de forma acentuadamente no atrapalhado, mas preciso programa de governo do presidente eleito em 2018.
É impossível não fazer referência ao livro de Michael J. Roberto, The Coming of the American Beremoth (2018), em que o autor mostra com clareza que o coração do fascismo está estreitamente articulado ao capitalismo monopolista-financeiro, se fazendo uma realidade perversa sob a epifania da livre iniciativa dos mercados e da propriedade privada individualizada. Um brasileiro bem informado não demora a ver a realidade de seu país e associá-la às tendências políticas e econômicas colocadas em movimento pelo grupo de líderes políticos mundiais Trump, Makron, Macri, Therese May, Putin, e outros que estão por vir, na Alemanha, com a despedida de Angela Merkel da política na Alemanha e em toda a Europa.