Na experiência histórica brasileira, o projeto de pensar o passado para a construção do imaginário nacional efetivou-se no período que se seguiu à nossa autonomia política, com a necessidade de definir o nascente Estado brasileiro. As circunstâncias daquele momento histórico criavam um ambiente propício às ideias e às ações que fortalecessem o vínculo com a pátria.
O interesse por uma escrita da história nacional e sua divulgação tem íntima relação com este movimento, e a criação, em 1838, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), constituiu o início da estreita ligação entre historiografia e Estado que se consolidou no decorrer do Segundo Reinado. O Instituto deveria dedicar-se à escrita da história do Brasil, e ao Estado competia garantir a construção dessa história (GOMES, 1996). Logo, a construção da história de forma sistematizada na perspectiva da nação viabilizou-se no interior do processo de consolidação do Estado Nacional.
Inicia-se então uma produção de livros escolares de história do Brasil com o pressuposto de que o conhecimento da história do país seria o primeiro passo para estimular o amor à pátria. Portanto, as diversas formas de elaboração da imagem de nação podem ser percebidas nos limites de sua criação histórica nos livros didáticos, e essas formas constituem o tema deste artigo.
Pertencem a este período os dois compêndios sobre a história nacional que, embora concebidos fora do âmbito do IHGB, tiveram suas trajetórias marcadas pela interferência desta instituição. Foram os livros de História do Brasil publicados para o ensino brasileiro nas primeiras décadas do século XIX e que correspondem à primeira fase da historiografia didática nacional2: o Resumo de Historia do Brasil, de Henrique Luís de Niemeyer Bellegarde, de 1831, e o Compendio da Historia do Brasil, de José Ignacio de Abreu e Lima, publicado em 1843 em dois volumes na sua primeira edição, e que serviram de fontes para este estudo3. Tais livros foram adotados no Colégio de Pedro II4, instituição modelar do ensino secundário no país5.
Uma característica importante deste período é que os autores dos primeiros compêndios de história nacional não se inspiraram em historiadores brasileiros. Suas fontes principais foram livros de autores estrangeiros que escreveram sobre o Brasil. Naquele momento o IHGB iniciava seu trabalho de coleta e catalogação das fontes documentais do passado nacional e promovia concursos para incentivar a produção histórica, como o prêmio oferecido a quem apresentasse o melhor plano para escrever a história do Brasil, na década de 18406. Ou seja, não havia naquele momento uma obra de síntese de autor nacional sobre a história brasileira, mas mesmo assim apareceram livros didáticos que lançaram as bases de uma pedagogia da nação. Para esta produção, os autores contaram com trabalhos pioneiros sobre a história brasileira, produzidos por eruditos e literatos estrangeiros do século XIX, como a obra History of Brazil de Robert Southey, publicada em três volumes (1810, 1817, 1819) e traduzida para o português apenas em 1862 (IGLÉSIAS, 2000).
O livro didático, como artefato histórico e cultural e veículo do saber institucionalizado na conformação de um discurso histórico, serviu aos diferentes projetos de nação. A modalidade desse discurso articulou fatos, suprimiu outros, enalteceu personagens e esqueceu outras tantas figuras anônimas que construíram nosso passado/ presente/ futuro (GASPARELLO, 2004)7. A inserção do livro didático no processo histórico moderno da escolarização evidencia seu caráter de referência histórica que confere a este objeto uma dimensão privilegiada no estudo histórico da educação e constitui um corpus específico na história das disciplinas escolares, na perspectiva da construção social do currículo e da cultura histórica do seu tempo. Le Goff (1992, p. 47-48) destacou como a relação entre o livro escolar e a cultura histórica constitui objeto da produção historiográfica:
A história da história não deve se preocupar apenas com a produção histórica profissional, mas com todo um conjunto de fenômenos que constituem a cultura histórica, ou melhor, a mentalidade histórica de uma época. Um estudo dos manuais escolares de História é um aspecto privilegiado, mas esses manuais praticamente só existem depois do século XIX (grifos meus)
No século XIX, a História ensinada como História Universal no Colégio de Pedro II serviu à continuidade de um modelo escolar que identificava o conhecimento com as humanidades clássicas, e tal modelo foi legitimado socialmente reforçando uma identidade de elite. Esta característica contribuiu para a unidade e para a identificação do grupo dirigente em relação a uma cultura considerada universal8. Neste processo, os livros didáticos foram dispositivos que serviram para a longa continuidade desse modelo, ao consolidarem um roteiro temático que privilegiou o enfoque da identificação com as raízes históricas europeias, associado a determinados marcos cronológicos do passado que teceram a trama genealógica da história escolar.
A contribuição de Elias (1994) sobre o significado do termo processo na experiência histórica apoia a perspectiva de que o processo educacional contribui para o fortalecimento de padrões e modelos da e para a sociedade, em determinado momento histórico. A sociologia eliasiana também nos permite compreender como os símbolos, valores, crenças e costumes de uma cultura são interiorizados pelos indivíduos deste grupo como parte de si próprios. Neste sentido, o modo como as instituições educativas são configuradas e exercem a força de suas práticas cotidianas constitui um importante elo na rede de interdependências da criação de uma cultura comum, compartilhada pelos indivíduos (sociais) que passam pelo processo de formação e que resulta no fortalecimento de processos de identificação a um grupo.
O que caracteriza a construção da identidade é o seu caráter de processo, o que possibilita apreender diferentes concepções e práticas de uma identidade brasileira ao longo de sua história. A formação de uma identidade nacional resulta de um processo complexo de símbolos, tradições, rituais e memória histórica, para a qual concorrem as várias experiências sociais e culturais que os indivíduos partilham ao longo de sua vida. A compreensão do nacionalismo em seu aspecto de processo social implica perceber a interdependência dos diferentes grupos sociais, que conformam, reproduzem e que fazem emergir novas identidades sociais. Trata-se de um fenômeno profundamente arraigado na cultura, quando se configura uma identidade cultural para indivíduos sociais. Como observou Elias (1997), implica ainda em uma ação de diferenciação - na distinção de um ambiente vizinho e sua oposição a ele, bem como na fixação de limites.
O estudo de Hall (1998) sobre o tema fortalece a compreensão do papel das representações sociais na formação e transformação das identidades. Para o autor, “uma cultura nacional é um discurso - um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos” (HALL, 1998, p. 50). Nessa linha, Guibernau (1997, p. 83) analisou que dentre as funções preenchidas pela identidade, a identidade nacional torna as relações possíveis com os outros, na medida em que “a nação aparece como um fundo comum no qual vivem e trabalham os indivíduos com uma cultura comum, criando um mundo significativo”. As culturas nacionais produzem sentidos sobre “a nação”, com os quais os indivíduos de uma comunidade podem se identificar e construir identidades. Nessa perspectiva, como observou Anderson (1983), a identidade nacional é uma “comunidade imaginada”.
A cultura “nacional” tornou-se uma característica-chave da industrialização e um dispositivo da modernidade. Sob a ação do Estado moderno, instalou-se um movimento de criação de uma cultura homogênea e de instituições culturais nacionais, como por exemplo, um sistema educacional nacional.
Generalizou-se um processo que fortaleceu uma forma escolar de educação - sistema de aulas, cursos, séries, currículo -, com normas de acesso e permanência, regulamentações de planos de estudos e programas, provas, exames, a formação de um corpo de profissionais, entre outros. Como Vincent, Lahire e Thin (2001) alertaram, a emergência da forma escolar constituiu um novo modo de socialização - o escolar. Um modo que não cessou de se estender e generalizar, tornando-se um modo de socialização dominante de nossas formações sociais. Nesse contexto, a formação de uma cultura nacional contribuiu para a criação de padrões de alfabetização universais e generalizou uma única língua vernácula como o meio dominante de comunicação (HALL, 1998).
Segundo Hobsbawm (1990), no século XIX os conceitos de nação, pátria e seus afins estavam ainda sendo criados e reelaborados no discurso político e social europeu. No Brasil, os intelectuais ligados ao IHGB irão se empenhar em produzir uma historiografia com uma visão homogênea do Brasil e conformadora de uma nação brasileira, definida em sua identidade como ligada a uma tarefa civilizadora iniciada com a colonização portuguesa. A construção da identidade dos antigos colonos9 aos civilizados europeus, o jogo das semelhanças e das diferenças, que caracterizou o movimento que aspirava à individuação ou ao “recorte da identidade” do corpo político do Império Brasileiro, enfatizou as semelhanças ao grupo escolhido (MATTOS, 1990).
Para construir a nação, a história e a geografia foram convocadas no ensino. Como instrumentos de legitimação da nacionalidade que se buscava definir, os estudos históricos (e geográficos) beneficiaram-se, como campos de saber, com as possibilidades abertas ao campo e responderam ao desafio. Tratava-se de articular a dimensão material do Estado-nação - o seu território - com a dimensão intelectual e simbólica da escrita de uma História, bem como com a consolidação de uma memória: inventar suas tradições, construir os marcos da nação: suas origens, heróis e personalidades exemplares da nacionalidade. Uma identidade construída com referência ao passado, como indica Hobsbawm (1998, p. 22):
Ser membro de uma comunidade humana é situar-se em relação ao seu passado (ou da comunidade), ainda que apenas para rejeitá-lo. O passado é, portanto, uma dimensão permanente da consciência humana, um componente inevitável das instituições, valores e outros padrões da sociedade humana.
A operação histórica realizada levou em conta as expectativas sobre o futuro dessa nação. O guia e modelo desta tarefa foram encontrados na história do mundo ocidental. Nesta perspectiva, a Europa, símbolo de cultura e civilização, tornou-se paradigma dessa construção histórica:
A história da colônia assim interpretada não é tão somente a história de uma conquista... Mas ela é, prioritariamente, a constatação da superioridade de uma cultura, de uma civilização, de um modo de vida e pensamento, sobre outras formas primitivas que acabam por ser interpretadas como um estado de barbárie (ODÁLIA, 1997, p. 45).
Em relação ao território - herdado dos tempos coloniais - seria preciso preservá-lo por inteiro salvando-o do perigo de desagregação, um risco possível se não fosse combatido o que João Ribeiro (1900) chamou de “espírito das capitanias”. Para concretizar o objetivo maior - garantir a unidade do Estado-nação - tornou-se necessária a construção de uma identidade pelo espaço (MORAES, 1991). Com a definição do território em sua unidade, como o “corpo da pátria”10 herdado da colonização, e a forma de governo, que garantia a unidade e a preservação de valores aristocráticos, a tarefa seguinte seria assegurar os contornos “civilizados” das elites nacionais.
A ideia de civilização estava associada à apropriação de uma cultura considerada superior e que caracterizava as nações “civilizadas”. As elites intelectuais do Primeiro Reinado tinham estudado na Europa; além da marca europeia da antiga metrópole, tudo as ligava ao Velho Mundo: as Universidades de Coimbra e Paris, os Seminários e Colégios dos jesuítas, com sua cultura humanística, foram os referenciais fundantes utilizados pelas nossas elites para pensar o nacional e construir as representações que definiriam o homem de cultura da nova nação.
Para os historiadores e demais pensadores e cientistas sociais, tornou-se uma tarefa complexa dar conta da história nacional de um país construído sob as bases tanto de um processo de colonização europeia quanto da escravidão; portanto, nos contornos da pluralidade de diferentes grupos que se relacionaram nos termos de uma hierarquia social, da discriminação e dos preconceitos de toda ordem. Houve um grande esforço, por parte dos nossos intelectuais, para conciliar o conhecimento científico do século XIX com a realidade do país, como Odália (1997) já observou. Nesta tarefa, entram em ação as escolhas:
São valores que deverão ser escolhidos e atingidos, são opções sociais, étnicas, políticas, econômicas, antropológicas etc. que deverão ser feitas. Uma Nação não é um simples aglomerado de indivíduos; não é somente uma presença territorial ou uma unidade e continuidade espaciais. Ela é algo mais amplo e sofisticado (ODÁLIA, 1997, p. 35).
No entanto, concordamos com Gomes (1996, p. 21) que não se trata apenas de um “maquiavélico exercício de manipulação de massas”, ou seja, os elementos simbólicos e os sentimentos mobilizados não são escolhas arbitrárias. Ou seja, tais elementos estão vinculados a tradições cujas raízes se encontram no passado de comunidades com identidades que têm de ser levadas em conta.
Os livros didáticos e a história da nação
Além de se constituir como importante dispositivo no mundo escolar - instituidor de saberes e de práticas -, o livro didático expressa, como objeto de cultura, o complexo conjunto formado pelas manifestações do campo cultural, artístico, político e ideológico de uma época. Como fonte de pesquisa, permite a análise dos diferentes modos como os homens se relacionaram com o seu passado e como o legitimaram para o ensino. A história ensinada nos livros didáticos com a perspectiva nacional deu ênfase nos aspectos e nos personagens considerados construtores da nacionalidade.
No ensino secundário, a história escolar atendeu a grupos privilegiados que se destinavam aos estudos superiores e aos cargos importantes na administração pública e favoreceu o desenvolvimento de uma identidade e de um sentimento de pertença a um grupo distinto dos demais, no interior de um país socialmente desigual e com uma diversidade de grupos considerados “inferiores” na escala social (pretos, mulatos, índios, brancos pobres).
Os pesquisadores do livro didático destacam seu caráter de invenção cultural que, como objeto instituído e legitimado socialmente para o campo escolar, tornou-se construtor e divulgador de cultura, conhecimentos simbólicos e ideologia. Um papel reforçado com a expansão do seu uso na escolarização e com o aparecimento de novas publicações, especialmente dedicadas ao ensino.
Em diferentes momentos, a elite intelectual assumiu a missão de revelar a verdadeira realidade nacional e a de definir as suas bases futuras (LUCA, 1999). A tarefa urgente de organizar a nação parecia constituir uma tarefa que pertencia naturalmente às elites.
Dela os intelectuais têm ainda mais motivos para participar, na medida em que constitui um fato indissoluvelmente cultural e político: forjar um povo também é traçar uma cultura capaz de assegurar a sua unidade (PÉCAUT, 1990, p. 15).
Dentre os historiadores brasileiros, Francisco Adolfo Varnhagen (1854) foi o primeiro a fazer um discurso fundante do passado colonial brasileiro de uma forma coerente e estruturada, baseada em pesquisa exaustiva de fontes históricas. Sua obra foi concebida como contribuição ao processo de formação da nação brasileira, tornando-se por isso mesmo referência obrigatória e servindo de modelo para os autores didáticos da segunda metade do século XIX.
Embora Bellegarde e Abreu e Lima pertencessem à elite cultural de sua época, eles não foram professores do Imperial Colégio de Pedro II. Na segunda metade do século XIX, tornou-se usual aos docentes do Colégio, principalmente os de História, escreverem seus livros didáticos. Apesar de o Resumo de Bellegarde (1831) ter sido indicado para a instrução primária das escolas da Corte e de o Compêndio de Abreu e Lima (1843b), embora não tenha sido recomendado pelo IHGB, os livros destes dois autores foram adotados no Imperial Colégio até a publicação das Lições de História do Brasil de Joaquim Manuel de Macedo (1861), então professor catedrático de História Universal e do Brasil daquela prestigiada instituição11.
O Resumo de História do Brasil de Bellegarde (1831) é anterior à criação do Instituto Histórico e Geográfico (IHGB), e é produto de uma tradução do Resumé de l’histoire du Brésil, de Jean-Ferdinand Denis (1798-1890)12. Denis era sócio correspondente do IHGB e muito considerado entre os membros do Instituto, com os quais mantinha correspondência.
O livro de Bellegarde/ Denis (1831) trazia a narrativa do passado sob a ótica de uma história nacional - até um passado ainda recente, contemporâneo de seus leitores, já que a escrita abrangia os eventos até 1828. Bellegarde, situado em posição privilegiada no círculo do poder cultural e político, obteve para seu livro o beneplácito do IHGB - o lugar social da produção histórica e geográfica - e teve apoio formal do Estado, com a aprovação do Resumo para uso nas escolas. Seu livro se tornou, assim, o primeiro de história nacional adotado no ensino brasileiro após a independência - na escola elementar e no secundário do Colégio de Pedro II13.
No Resumo (1831, p. 21), a história nacional é apresentada em seis épocas. A primeira, que não constava do original francês, mostra, sob o título O Brasil antes da conquista, um autor crítico que aponta os malefícios da ação conquistadora dos portugueses e os dos europeus em geral no que diz respeito aos indígenas da América, bem como denuncia “sua quase total aniquilação”.
A partir da “segunda época”, já seguindo o texto francês, o texto revela um espírito crítico em relação aos conquistadores: “Segundo o costume, começou por dar nome ao país, antes de saber o que ele tinha entre os primitivos habitantes” (p. 41). Define o país com capacidade de defesa e de progresso: “Um povo pequeno e sem recursos, mas cheio do mais nobre patriotismo” (p. 91). As referências aos negros que fugiam da escravidão são positivas, devido “à tirânica injustiça de seus senhores” (p. 140), e conclui que “os audazes africanos” do Quilombo de Palmares atestavam possuir “o verdadeiro valor” de “todas as espécies do gênero humano” (p. 91).
O movimento mineiro, depois conhecido como Conjuração Mineira, tem um lugar modesto no Resumo, sendo criticado pela “singular incúria” das suas principais figuras, embora registre o fato como “notável por ser o primeiro que no Brasil envolve a idéia de independência” (p. 170). O domínio espanhol torna-se marco referencial de duas épocas e palco de acontecimentos importantes para a nação, como o despertar do patriotismo.
Para tratar do tema O Brasil Império Constitucional Independente, o tom é de exaltação à forma pela qual “um povo ardente e nobre” realizou a transição para a autonomia, diferente da “deplorável sorte de seus míseros vizinhos” (p. 212). O destaque não é tanto o rompimento do laço colonial, mas sim o fato de tal rompimento ter sido realizado sem alterar o governo monárquico, ou seja, com “o mesmo Príncipe, a que por direito indisputável, tinha de primeiro caber a coroa do Tríplice Império” (p. 212). Tal fato é ressaltado pela sua singularidade: “Entre os espetáculos que mais enlevam na história das nações, se distinguirá sempre a Independência do Brasil” (p. 211).
O texto de Denis/ Bellegarde constitui um primeiro modelo de livro didático de História do Brasil, que se apresenta como “resumo”14 com vistas ao ensino com finalidades patrióticas, sem especificar um grande número de datas nem de nomes - algumas datas e nomes aparecem nas margens, ao lado do texto escrito. Além disso, esse resumo vem em linguagem simples e bem escrita, contendo uma seleção de eventos políticos considerados os mais significativos da trajetória nacional na formação da unidade Brasil, antiga colônia que teve uma independência considerada sui generis.
O compêndio mais importante da fase inicial da historiografia didática nacional também foi publicado por um militar, General José Ignacio de Abreu e Lima (1796-1869). Pernambucano, era filho do famoso Padre Roma, José Ignacio Ribeiro de Abreu e Lima, integrante da Revolução Republicana de 1817. Abreu e Lima viveu intensamente os eventos da primeira metade do século XIX, com participação destacada nas guerras de independência das colônias espanholas; por esta razão era comum, entre seus críticos, fazerem referência a ele como sendo o “General de Bolívar”.
Um exemplar do Compêndio, da edição completa de 1843, foi oferecido ao IHGB pelo autor, “como tributo de respeito e acatamento”15. O livro recebeu de Varnhagen (1844) uma crítica severa, aprovada pelo Instituto. No parecer “Primeiro Juízo”16, Varnhagen considerou o texto de Abreu e Lima, em grande parte, como simples reprodução do livro do historiador francês Beauchamp17 e que Varnhagen tinha como mero plagiador da obra de Southey, History of Brazil18.
O próprio termo Compêndio, que dá título ao livro, evidencia a categoria literária a que o livro se filiava, bem como a sua finalidade: obra dedicada ao ensino, para o estudo dos jovens brasileiros. Esta intenção, também declarada no prefácio, dá indicações do sentimento nacionalista de Abreu e Lima como também sua preocupação pedagógica: como homem letrado e conhecedor das velhas coisas da pátria, o autor queria divulgar - e a forma compêndio parecia ser a melhor opção - a história nacional e os construtores desta nacionalidade para garantir o amor à pátria e aos seus heróis pela mocidade brasileira.
Os marcos referenciais e definidores da história da nação estão aí discriminados: descobrimento; início da colonização; o domínio espanhol separando os dois períodos coloniais dos séculos XVI e XVII; o domínio holandês e as guerras contra o invasor; o Brasil como sede do governo português; a independência, o primeiro reinado, a maioridade de D. Pedro II.
As ilustrações são dos personagens considerados simbólicos na história nacional e que se tornarão presentes nos livros didáticos posteriores: D. Pedro I (no verso da folha de rosto); Cristóvão Colombo; Pedro Alvares Cabral; Dom Antônio Felipe Camarão e Henrique Dias.
Inspirado no autor da Corografia Brasílica19, Abreu e Lima inicia o caminho que se tornou roteiro obrigatório para todos os historiadores didáticos do século XIX: o primeiro capítulo era consagrado ao enaltecimento da beleza e da extensão do país: “os seus montes são coroados de magníficos bosques, e seus vales revestidos de perpétua verdura” (1843a, p. 27).
O termo brasileiro é utilizado pelo autor para se referir ao indígena, destacando que este lutou ferozmente contra os invasores e opressores, os portugueses. Essa concepção será radicalmente combatida pelo historiador Varnhagen (1844) no IHGB e ficará ausente dos livros didáticos no período seguinte, que irá consolidar o modelo de nação identificada com os aspectos “civilizadores” da ex-metrópole.
Na narrativa sobre os conflitos entre colonos e jesuítas, o General escritor posiciona-se a favor dos padres e de uma pedagogia cristã ao assinalar que “a moral e a religião são os únicos fundamentos reais das sociedades” (1843a, p. 63), descrevendo os colonos como “ambiciosos e sem humanidade”20.
Os escravos negros são objeto de atenção quando se tornam valorosos soldados, como na guerra contra os holandeses e no quilombo de Palmares. A valentia dos negros do Quilombo é vista com certa admiração e é associada ao caráter de humanidade dos negros sublevados. No entanto, estes formariam uma “horda negra que, tornando-se poderosa, pode resistir aos holandeses vitoriosos e aos portugueses por mais de meio século” (1843a, p. 219).
Em alguns trechos, o autor refere-se aos negros em situação de movimentos de rua, como no episódio das turbulências no batalhão dos estrangeiros da Corte: “uma porção de homens de cor, livres e escravos, de motu próprio cooperou com a tropa nacional; mais de cem estrangeiros foram mortos e muitos outros feridos” (1843b, p. 58). A rua, a turbulência, o gosto pela participação em situações violentas, são imagens associadas aos homens de cor, escravos ou libertos.
Apesar de posicionar-se pela monarquia, Abreu e Lima (1843a, p. 291) destaca no Compêndio o caráter patriótico dos revolucionários de 1817: “Foram conduzidos ao Recife os mais ilustrados patriotas...” A dificuldade de uma revolução republicana é debitada, em grande parte, ao argumento que será repetido inúmeras vezes pelos partidários da solução monárquica: o costume do povo pela monarquia21.
Sobre a independência, Abreu e Lima constrói uma justificativa nos moldes monárquicos com o príncipe herdeiro: “[...] e sem que se contasse com a cooperação do Príncipe, parecia impossível obter algum resultado” (1843b, p. 5). Em posição à primeira vista contrária à sua trajetória de General nas guerras latino-americanas, e, pelo pertencimento a uma família ligada a revolucionários republicanos, Abreu e Lima fortalece o discurso da defesa da monarquia e da Casa de Bragança frente ao perigo que poderia advir de um prematuro governo democrático: “A sua elevação ao trono foi mui provavelmente o meio de preservar o Brasil de uma anarquia ainda mais fatal do que a que tem assolado as outrora colônias espanholas” (1843b, p. 76). Além disso, ele fortalece um dos argumentos decisivos a favor desta visão e que será reproduzido nos compêndios, mesmo nos da Primeira República: “o regime a que o povo estava acostumado era o monárquico” (1843b, p. 77).
Em seu texto, alguns pressupostos da existência de uma nação estavam sendo garantidos, principalmente nos termos da identificação Estado-nação-território. O discurso de Abreu e Lima demonstra a força da base territorial como dimensão inerente na estrutura do conceito moderno de nação: “Éramos de fato independentes, porque havíamos arrojado do solo brasileiro até o último soldado português, dominávamos na terra e nos mares” (1843b, p. 46).
Na análise das turbulências da soldadesca, formada pela classe a mais ínfima da sociedade, o texto é o de um general que precisa manter a ordem. Sob esta ótica, a disciplina e a hierarquia são sempre privilegiadas, as ações da legalidade são reconhecidas como necessárias e corretas, mesmo sendo comandadas pelo partido ao qual se opõe:
Convém igualmente confessar, que as pessoas mais influentes do partido, que triunfou, não abusaram da vitória; e bem longe de levarem a efeito suas propaladas vinganças contra os portugueses, foram as primeiras a interporem-se entre a gentalha e seus pretendidos inimigos. (p. 81)
O autor, o compêndio e suas histórias entrelaçadas pertencem ao seu tempo, feito de luta, de esperança e de construção. Suas posições têm a marca de um tempo conflituoso que exigia decisão e ação: resultaram de princípios fortalecidos na experiência histórica que o autor ajudou a construir, na militância das armas da guerra e na das armas da palavra.
Doze anos depois de Bellegarde, Abreu e Lima ampliou a literatura histórica e didática, com estudo, com apoio de fontes e com testemunho pessoal. A nação que emerge de seu compêndio não é pacífica, os heróis erram e cometem crimes e lutam por seus interesses. O índio é o brasileiro que luta contra os invasores e opressores; os colonos são ambiciosos e cruéis na caça ao índio; o negro torna-se fugitivo e audaz; homens ilustres e destemidos que morrem pelo ideal republicano; patriotas que salvaram a integridade nacional com a monarquia. E, na população do século XIX, o General enxerga um povo com classes diferentes, escravos e libertos, que participam de movimentos de rua.
Considerações finais
Os primeiros livros de intelectuais brasileiros sobre a história do Brasil nesta fase tiveram um forte cunho nacionalista, conforme também atestam a vida e o trabalho de seus autores, imbuídos do ideal patriótico do nacionalismo romântico do início do século XIX.
A história escolar no século XIX está situada no interior de um ensino secundário ainda em formação e intimamente ligada ao conjunto das representações que os diversos atores sociais, em suas práticas culturais e políticas, construíram sobre a sociedade brasileira. O saber histórico escolar configurou-se nos livros didáticos a partir de injunções internas e externas ao processo de escolarização, no jogo dos interesses e das expectativas do campo cultural e político, sob o controle dos grupos dirigentes. Este artigo procurou fortalecer a compreensão de que o processo de construção da história nacional como disciplina escolar passa pelo estudo dos livros didáticos.
Como veículo fundamental para a divulgação da imagem de nação construída a partir de referenciais históricos considerados legítimos e verdadeiros, o livro didático de História do Brasil participou do amplo processo de fabricação de um imaginário sobre a nação. Este aspecto simbólico na teia da memória social permite compreender os livros didáticos como formadores de identidades sociais (ELIAS, 1997). Na escrita da história nacional, os autores brasileiros, como Abreu e Lima e Bellegarde, tiveram o passado colonial como referência para tecer os fios de uma nação imaginada segundo os parâmetros do século XIX. Seus textos forjaram uma história patriótica, dedicada a formar jovens brasileiros, idealmente brancos e representados como herdeiros dos seus ascendentes europeus. Embora apontando erros e desvios de colonizadores e colonos, a identidade que se buscou formar naquele momento, em uma sociedade escravocrata e monarquista, foi a dos que pertenciam ao mundo dos senhores, e por isto visíveis na história escrita para ser ensinada.
Segundo Elias (1997), na Europa a imagem ideal de nação foi construída principalmente por um olhar para o passado, ficando o futuro em segundo plano. No Brasil, os historiadores e autores didáticos fizeram um duplo movimento: perscrutaram o passado, mas com os olhos no futuro. Tanto o passado quanto o presente não correspondiam à imagem de nação da qual tivessem orgulho de pertencer. O modelo escolhido foi o da semelhança com o das nações que se distinguiam como “superiores” e “civilizadas” devido à sua etnia branca, à sua cultura e à sua riqueza - os parâmetros dos vencedores e dos conquistadores. Mais do que reconstruir o passado, foi necessário encontrar nele os indícios de um futuro radiante. Mas os processos de construção de identidades, em seu movimento histórico e de renovação constante, vão tornar visíveis as ambiguidades, os conflitos e as contradições de uma sociedade humana em sua complexidade.