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Cadernos de História da Educação

On-line version ISSN 1982-7806

Cad. Hist. Educ. vol.14 no.1 Uberlândia Jan./Apr 2015  Epub Mar 20, 2024

https://doi.org/10.14393/che-v14n1-2015-23 

Resenhas

CATECISMO E EDUCAÇÃO

Catechism and Education

Cézar de Alencar Arnaut de Toledo1 

Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas. Professor do Departamento de Fundamentos da Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Maringá.

caatoledo@ uem.br

1Professor do Departamento de Fundamentos da Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Maringá.Brasil

MOLINARIO, Jöel. Le catéchisme, une invention moderne. De Luther à Benoît XVI. Paris: Bayard, 2013. 247p.


O que teriam em comum Martinho Lutero, o Reformador religioso do século XVI e Joseph Ratzinger, que foi papa no início do século XXI? A princípio, é estranho pensar numa relação entre os dois, no entanto, o autor do livro: O catecismo, uma invenção moderna. De Lutero a Bento XVI, recentemente publicado na França, mostra que a noção de utilização do catecismo como meio de propagação e instrução da fé liga os dois religiosos, tão distantes no tempo. O tema desperta então, o interesse pela leitura. Ele nos instiga a investigar essas possíveis ligações.

Este livro, recém lançado na França, nos traz uma discussão sobre a história de uma pedagogia tipicamente cristã, o catecismo. Desde suas mais remotas origens até a pedagogia atual da transmissão da cultura religiosa mais característica do mundo ocidental, o cristianismo. A discussão sobre essa prática cristã nos remete à própria origem da cultura chamada hoje de ocidental.

O autor do livro é teólogo, conferencista no Instituto Teológico Católico de Paris, Diretor Adjunto do Instituto Superior de Pastoral Catequética, também de Paris, e membro do Instituto Superior de Formação para o Ensino Católico Francês. É autor de diversas obras sobre teologia, pastoral, catequese e estudos bíblicos, traduzidas em vários países e com boa recepção nos meios acadêmicos, além dos eclesiais. Trata-se de um autor que se caracteriza pela familiaridade que demonstra possuir com a História Religiosa do Ocidente e também com a doutrina cristã.

O livro é apresentado como uma reflexão sobre a história, a filosofia, e também a teologia. O autor considera que o catecismo é um dos maiores dados culturais da Modernidade. Para ele, as Igrejas Cristãs, que souberam inventar os elementos de inauguração da Modernidade, enfrentam hoje o desafio de fazer o Cristianismo sobreviver à Pós-Modernidade.

O livro, além da introdução, tem 7 capítulos e a conclusão, assim distribuídos:

Introdução (p.7-13): Apresenta as linhas gerais da reflexão e destaca dois momentos: o papel de Lutero na divulgação do recurso pedagógico e pastoral do catecismo e o Concílio Vaticano II, que estabeleceu as diretrizes atuais para a elaboração de manuais de divulgação da doutrina cristã aos iniciantes na fé.

Capítulo I (p. 15-61): É centrado nas origens do gênero. Os primeiros manuais destinados ao ensino das elites (majores), e da gente simples (minores), em versões diferentes, com Honório d’Autun, bispo, com o seu Elucidário, do início do século XII, e também Lourenço, um dominicano da segunda metade do século XIII. Estes antecederam Jean Charlier de Gerson (1363-1429), autoridade na Universidade de Paris e que escreveu duas obras seminais para a história do catecismo: Opus Tripartitum, dividido em três livros: O espelho da alma, Exame de consciência a partir dos pecados capitais, e A Medicina da Alma; sua outra obra é o A.B.C. da gente simples. Estas obras conheceram grande publicidade e divulgação. Durante o Concílio de Trento (1545-563) foram tomadas como base para as discussões sobre a instituição dos manuais para o ensino e divulgação da doutrina cristã ao povo, recurso largamente utilizado pelas ordens religiosas católicas e também pelos Reformados, a partir de então, como meio de unificação da ação pastoral e também de divulgação da fé cristã. Esses manuais insistiam na repetição das verdades cristãs, para a incorporação dos princípios religiosos, com um roteiro de perguntas simples e respostas curtas, que resumiam os princípios da fé cristã. Na sequência, o autor trata de uma questão que mobiliza os estudiosos dos Tempos Modernos, que é a questão da substituição da teologia pela pedagogia nos meios acadêmicos, especialmente no século XVI, período de grande efervescência cultural na Europa e que resultou em largas transformações na estrutura social, com reflexos importantes na religião e na religiosidade. Tais transformações resultaram num processo de Confessionalização da religião na Europa ocidental. Nesse processo, o catecismo exerceu um papel de destaque nas lutas pela hegemonia sobre a sociedade europeia. De um lado, a hierarquia da Igreja Romana e sua tentativa de renovação, por outro, as novas confissões cristãs, que, para se afirmarem, propunham novas (e antigas) formas de organização eclesial, o que resultou em guerras.

Lutero e seus dois Catecismos (Grande Catecismo, Pequeno Catecismo, ambos de 1529) são também tratados no capítulo. Eles se transformaram em marcos para os missionários e pastores. O grande sucesso da estratégia pedagógica é vista por Jöel Molinario como um dos mais importantes legados do cristianismo na Modernidade. Após o Concílio de Trento, a Igreja Católica incentivou a publicação e a divulgação da estratégia do ensino da doutrina por meio de catecismos e obteve assim, grande sucesso nas missões fora da Europa. Os Reformadores insistiam num ensino em língua vernácula, o que tornava a mensagem e a estratégia mais eficazes na divulgação das doutrinas Reformadas, nos meios sociais onde eram majoritários os grupos Reformados. O que tinham em comum era o fato de serem, tanto os catecismos católicos quantos os Reformados, das várias tendências, dirigidos aos crentes. Esses catecismos tiveram, segundo o autor, influência significativa na educação escolar que se desenvolveria nos séculos posteriores, especialmente nas regiões de forte presença de grupos ligados ao ideário Reformado da religião cristã ocidental (p. 60-61). A parte final do capítulo é reservada à discussão sobre as ideias de alguns historiadores da educação da atualidade na França, como Marie- Madeleine Compère, Dominique Julia e Roger Chartier, que apontaram a importância dos catecismos na formação do mundo Moderno no ocidente.

Capítulo II (p. 63-86): Esta parte do texto discute o período entre o Concílio de Trento e o Concílio Vaticano I (1869-1870). O recurso foi largamente utilizado e a maioria das dioceses produziu textos catequéticos. Estudiosos do tema dos catecismos na história da Igreja, como Jean-Claude Dhotel são avaliados nesse capítulo. A análise é mais centrada na produção dos manuais católicos do período. É dado um destaque para dois catecismos de autoria do jesuíta Roberto Francesco Romolo Bellarmino (1542-1621): Breve Doutrina Cristã, de 1597, e a Declaração Expandida da Doutrina Cristã, do ano de 1598, ambos escritos pouco antes da elevação de seu autor ao cardinalato, e que conheceram sucessivas edições até o século XIX. Os ensinamentos eram centrados na afirmação dos sacramentos como sinal de fé para os católicos. Logo após o Concílio de Trento foi decisiva a influência de São Carlos Borromeu (1538-1584), cardeal e arcebispo de Milão, que fundou os primeiros seminários diocesanos para a formação de padres segundo os cânones tridentinos. Sua atenção era sempre voltada à compreensão da fé pelos mais simples e pelos mais pobres.

Uma mudança significativa ocorreu em 1806, quando Napoleão (1769-1821) impôs um catecismo único para a Igreja da França. Esse catecismo imperial incorporou artigos da Concordata imposta por ele ao papado em 1801. Além da unificação do catecismo, a Concordata também determinava uma liturgia única para toda a França. Naquele momento, a centralização não era de todo inconveniente para a Cúria Romana, sempre ciosa de sua supremacia, no entanto, as relações entre o papado e o Imperador seriam depois, bastante difíceis e quase beligerantes quando, em 1809, Napoleão decretou a anexação dos Estados Pontifícios.

Inspirado no catecismo de Bossuet, o ministro do culto, Abade d’Astros, sobrinho de Napoleão, escreveu uma obra centrada em três noções: Dogma, Moral e Culto. A obra serviu de base e de reforço aos ideais mais conservadores e reacionários da Igreja na França. Era um grande plano de “racionalização” da religião, sob a tutela do estado napoleônico. Após a restauração da monarquia na França em 1814, Luís XVIII prometia paz no reino e uma política catolicizante. Tal programa de governo seguramente traria reflexos para a ação pastoral da Igreja e também no tom da pregação dos catecismos do período. O autor mostra que os cerca de 32.000 padres católicos contados em 1815, eram cerca de metade da quantidade que a Igreja Católica tinha na França em 1789, mas, contavam então, com ajuda certa do Estado para as garantias legais e pastorais. A restauração da monarquia na França representou também, um período de efervescência do catolicismo. O catecismo, especialmente o católico, ocupou, no período, um espaço de justificação das resistências ao aprofundamento das transformações sociais na França.

Capítulo III (p. 87-140): Nele o autor trata do período entre os dois concílios do Vaticano. Entre 1870 e 1965, ano do encerramento do segundo Concílio do Vaticano, teve início o mais largo processo de mudanças feito pela Igreja Católica em sua estrutura administrativa e também na ação pastoral. O final do século XIX viu a Igreja buscar com insistência, um catecismo universal. Para tal, a recuperação dos antigos catecismos, de Bossuet, de Bellarmino, e outros, de grande tiragem, oportunizou uma política de centralização pastoral. Nada ainda de aparecer nos textos dos catecismos populares, os temas já presentes em documentos da Igreja, de reconhecimento da opressão no mundo do trabalho industrial, por exemplo.

No início do século XX, a ação pastoral foi centralizada na criação de catecismos e na sua utilização. “A ignorância é a verdadeira causa da degradação dos costumes e a única causa do abandono da fé” (cf: p. 114, tradução livre). O tema, caro ao Papa Pio X (Giuseppe Melchiorre Sarto, 1835-1914, papa desde 1903), acabou se tornando a marca de seu papado e também da ação pastoral da Igreja nos primeiros anos do século XX. Esse esclarecimento, ou melhor, estudo sobre as “verdades da fé” marcou também, segundo o autor, a própria concepção de fé cristã na contemporaneidade. O autor indica que a publicação do Novo Código Canônico, em 1917, trouxe determinações claras sobre o catecismo, especialmente nos parágrafos 336, 1322, e 1329. Estas determinações, segundo ele, deram fôlego à marcha renovadora, porém lenta, que a Igreja teve no século XX. Ao fazer um balanço histórico do catecismo como criação moderna, o autor afirma:

O catecismo nasceu e se desenvolveu no espírito do Renascimento, com a noção de pedagogia dos Humanistas. Os Protestantes, e depois os Católicos, tiveram esta intuição moderna da necessidade de investir massivamente na educação centrada no indivíduo concreto. As Igrejas chegaram mesmo a criar as instituições portadoras desse projeto de educar todo o povo. Sob o nome de catecismo, foram fundadas as pequenas escolas paroquiais, marcas de uma nova era cultural e social, marcadamente democrática (p. 129, tradução livre).

Esse catecismo foi se desenvolvendo em direção ao indivíduo, segundo Jöel Molinario. A fórmula só foi questionada quando as estruturas da Igreja também o foram. Capítulo IV (p. 141-155): Trata das mudanças no catecismo após o Concílio Vaticano II. O autor faz referência à grande demanda por renovação, presente na Igreja em fins dos anos de 1950 e que se fizeram presentes também nos catecismos. O cenário conciliar só fez crescer a demanda por renovação. Os documentos conciliares mais destacados no tocante ao tema, segundo o autor, são: Dei verbum , e o Gaudium et spes, fontes diretas dos catecismos contemporâneos.

Capítulo V (p. 157-166): O curto capítulo é dedicado ao affaire do Catecismo Holandês. O caso se deu com a publicação em 1966 do Catecismo Holandês. O documento aprofundava a distinção entre catecismo e catequese feita pelo Concílio Vaticano II e contava com teólogos conhecidos e respeitados nos meios eclesiais entre seus colaboradores, como E. Schillebeeckx e P. Schoonenberg. O Nieuwe Katechismus causou enorme comoção e reações de muitas partes. Os estratos mais conservadores viram ameaçados os princípios tradicionais (e tradicionalistas) sobre a Virgindade de Maria e o Pecado Original, entre outros. O fato de valorizar mais a catequese de adultos tornou o Catecismo Holandês alvo de muitas críticas, segundo o autor. A convulsão teria reflexos na educação, certamente.

Capítulo VI (p. 167-210): Este capítulo trata da figura do cardeal Ratzinger e o Catecismo de 1983. O autor analisa uma conferência proferida pelo então cardeal em Paris no ano de 1983. Na conferência foram delineados os caminhos seguidos pelo catecismo. A insistência do cardeal no retorno aos Padres da Igreja marcou não apenas as edições seguintes dos catecismos, mas, influenciou também, a própria noção de ação pastoral da Igreja. Trata-se, segundo o autor, de uma referência.

Capítulo VII (p. 211-237): O último capítulo aborda o Catecismo da Igreja Católica, de 1992, a determinação mais recente da Igreja sobre o tema. A coordenação da publicação foi feita pelo então cardeal Ratzinger. O documento reflete o movimento de renovação do próprio catecismo como instrumento de pastoral e discute as influências daquela conferência proferida em Paris no ano de 1983.

Conclusão (p. 239-244): Nesta parte o autor afirma: “O catecismo é o testemunho privilegiado da ligação intrínseca que o cristianismo teve com a emergência do sujeito, com o desenvolvimento de sua autonomia e a sua racionalidade, com sua abertura universal” (p. 239, tradução livre). Esta afirmação do autor resume sua visão a respeito do tema tratado no livro. Para ele, esse testemunho contradiz a visão simplificadora do cristianismo como avesso a mudanças no início da Modernidade e também a visão, simplificadora, segundo ele, de que o catecismo seria um instrumento de resistência à Modernidade e à modernização. Para Molinario, a invenção Moderna de Lutero, o catecismo em sua forma atual, não teria sido possível sem a imprensa, sem o Humanismo, e sem as descobertas de novos mundos, todos eles fatores característicos da própria Modernidade.

Enfim, a leitura do texto é agradável e os argumentos do autor são sólidos e sóbrios. Desperta a curiosidade, o que pode levar a pesquisas profícuas sobre o tema do catecismo e de sua história, das ideias pedagógicas de extração religiosa, da documentação sobre a produção das ideias religiosas na sociedade moderna, das ordens religiosas e denominações religiosas cristãs que passaram a elevar a educação e a educação escolar ao patamar de determinante na sociedade e na religião mais especificamente. O livro interessa aos pesquisadores da área de História das Religiões, mas não só. A obra também é de grande interesse para os pesquisadores das áreas de História da Educação, História das Ideias, História da Leitura e outras áreas afins. Trata-se de uma pesquisa que instiga. Muito mais do que oferecer conclusões e definições prontas, mesmo centrando mais na tradição católica do catecismo, o autor nos leva a um percurso de questionamentos e indagações sobre o tema.

Recebido: 01 de Março de 2014; Aceito: 01 de Abril de 2014

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