Introdução
O artigo socializa resultados conclusivos de pesquisa desenvolvida em Programa de Pós-Graduação em Educação1, sobre a institucionalização da educação que se iniciou em 1955, no Vale do Ivinhema, no distrito de Batayporã (fundado em 1953)2, no sul do antigo Mato Grosso3. A pesquisa inscreve-se no campo da história das instituições escolares e buscou conhecer as características singulares do aparecimento e do funcionamento da escolarização em uma localidade e instituição específica, que não haviam sido estudadas.
Como recorte temporal foi definido o período de 1955 a 1974. A data inicial marcou o começo do funcionamento da instituição escolar, com sua criação oficial como Escola Rural Mista, transformada no mesmo ano em Grupo Escolar. O limite final, em 1974, deveu-se ao momento em que Grupo foi integrado ao Ginásio Estadual de Batayporã (criado em 1969), passando as duas instituições a funcionar com nova estrutura e denominação: Escola Estadual de 1º Grau “Jan Antonin Bata”, inserida na Rede Estadual de Educação e em conformidade com a Lei nº 5.692, de 11 de agosto de 1971 (BRASIL, 1971).
A preocupação com a educação escolar, em questão na pesquisa, dirigiu-se para a relação entre o projeto de colonização e o aparecimento da instituição e para algumas das práticas que em seu interior se desenrolaram e lhe permitiram uma existência singular.
Alguns conceitos foucaultianos constituíram ferramentas analíticas e essa adoção implicou considerar os escritos sobre a escola e os ditos dos sujeitos como narrativas do nosso tempo e que contribuem para problematizá-lo. Assumir um diálogo com essas análises tem várias implicações, entre as quais se destacaram para a pesquisa ora socializada: a recusa da busca de uma origem e de uma noção de poder como algo que se detém e que emanaria de instituições como o Estado.
O poder foi concebido como relações de forças, que se exerce em diferentes espaços-tempos sociais. Pode assumir formas palpáveis, pois se distribui na sociedade, materializa-se em instituições, em punições, em dominações; alcança o sujeito e invade o cotidiano, controlando os corpos e as mentes. Dialogando com Foucault (2004, p. 161), pode-se explicitar que o poder não deve ser pensado somente como algo negativo, ao contrário, ele é produtivo: “[...] o poder produz; ele produz realidade; produz campos de objetos e rituais da verdade. O indivíduo e o conhecimento que dele se pode ter se originam nessa produção”.
Nesses termos, a noção de dispositivo foi tomada como uma rede de poder-saber que se delineia pelo conjunto complexo e heterogêneo de práticas discursivas e não discursivas (como a instituição escolar) e que se articula às demais estruturas sociais, econômicas e políticas. Desse modo, pode-se afirmar que a educação participa da rede que conforma o dispositivo; é um dos seus elementos. O dispositivo é um mecanismo com a capacidade de orientar, controlar, intervir nas condutas e no que as pessoas expressam. Esses conceitos e outros, tomados de empréstimo aos estudos foucaultianos, permitem afirmar o processo de institucionalização e a própria escolarização como dispositivos e a escola como sua parte visível.
As fontes documentais e eleitas para a pesquisa foram localizadas no arquivo da Escola Estadual “Jan Antonin Bata” e no Centro de Memória “Jindrich Trachta”, ambas as instituições localizadas no município de Batayporã4, como livros de chamada, relatórios, livro de aparelhamento escolar e fotografias. Foram ainda consideradas como fontes algumas narrativas de sujeitos que contribuíram especialmente na feitura e no funcionamento da instituição escolar nas décadas iniciais.5 As fontes - documentais, imagéticas e orais - não foram hierarquizadas, sendo tomadas como produtoras da realidade e dos sujeitos de que tratam.
As narrativas dos sujeitos enfatizadas não foram concebidas como “expressão de individualidades”, como algo homogêneo ou como “unidade subjetiva”. Tratou-se de entender a memória como “[...] composta de fragmentos de múltiplas vivências e experiências ao nível individual e coletivo” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2007, p. 200), enfim, tomaram-se as memórias como multiplicidades; como posicionamentos dos sujeitos, sempre constituídos na relação com os outros.6
Historicizar essas memórias individuais e coletivas é, de certa maneira, interpretá-las em suas múltiplas significações; propor uma elaboração do passado, entre as possíveis, conforme conceitos adotados como operadores de análise.
Para conhecimento da arquitetura e dos modos de organização das edificações, foram utilizadas fotografias de época, que, para Lima e Carvalho (2009, p. 36), podem significar um “recorte casual que escapou aos textos, [e] ofereceria o acesso ao ambiente e aos tipos humanos que frequentavam o local”. As fotografias encontradas no acervo do Centro de Memória “Jindrich Trachta” registram cenas das salas de aula e do cotidiano escolar, das edificações, de festas cívicas, encontros com autoridades, características do lugarejo, de estabelecimentos comerciais, de automóveis e carros de boi, da extração de madeira e de famílias residentes na cidade.
Nas imagens que retratam a Escola Rural Mista, depois denominada Grupo Escolar de Batayporã, pode-se observar, pelo menos em parte, as pessoas envolvidas e as atividades valorizadas, além de outros aspectos do cotidiano escolar e da cidade. As fotografias disponíveis nos arquivos consultados parecem ter tido a função de “registrar eventos e situações importantes para a preservação da memória da instituição” (SOUZA, 2001, p. 80) e da cidade, nas primeiras décadas de seu funcionamento.
Seguindo o referencial teórico-metodológico adotado, pode-se ressaltar que a pesquisa sobre a Instituição não pretendeu buscar sua origem cristalina, algo que teria surgido sem embates, relações de forças, movimentos de munícipes e outros. Tratou-se de tentar mapear seus começos dispersos, inscritos em discursos e práticas diversos, dos quais a instituição escolar é apenas um dos efeitos.
Para uma aproximação do objetivo, o texto foi organizado em duas partes. Na primeira, o trabalho enfocou questões relativas à fundação da Colônia e, na segunda, foram descritas e analisadas as condições de criação da Escola e os aspectos pinçados de seu funcionamento nas duas primeiras décadas.
1. Discursos sobre colonização e a constituição da cidade de Batayporã
O objetivo nesta parte foi abordar os aspectos centrais do dispositivo de nacionalidade e a noção de progresso que lhe corresponde, em voga na primeira metade do século XX. Foram apontados elementos referentes ao processo de colonização da região do Vale do Ivinhema até a criação da cidade de Batayporã.
No dispositivo inscreveu-se o processo de colonização ocorrido nos anos de 1940 e 1950, no sul do antigo Mato Grosso. Considerar esse processo implicou uma aproximação dos discursos sobre a Companhia Viação São Paulo Mato Grosso (CVSPMT) e alguns dos projetos por ela realizados, além do aparecimento da Colônia de Samambaia, posteriormente distrito de Batayporã, como dos colonos que nela se fixaram.
Desde os fins do século XIX no Brasil7, com o objetivo de fazer uma “história oficial da nação”, foram criadas instituições como o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), em 1839, visando a demarcar os espaços do território brasileiro. Galetti (2012, p. 33, grifo da autora) afirma que, no país, “[...] uma parcela significativa de intelectuais e dirigentes políticos, sobretudo a partir da segunda metade do século XIX, passaria a perceber os sertões da pátria - ou simplesmente o sertão - como o outro geográfico da Nação”. Essas e outras proposições circularam ao longo da primeira metade do século XX, sendo usadas para justificar a colonização de terras consideradas “não conhecidas” do território brasileiro.
Os anos de 1930 a 1945 foi o período em que Getúlio Vargas governou o país. Em 1937, iniciava-se o Estado Novo e, no ano seguinte, foi lançada a campanha denominada “Marcha para o Oeste”, que almejava unir a nação na conquista dos lugares inexplorados. Foi nesse contexto
que Mato Grosso se tornou objeto das atenções nacionais. Perpassada de uma série de conteúdos místicos e construções imaginárias, a campanha possibilitava apresentar uma imagem homogênea de nação e do Estado superador dos conflitos sociais. (GUILLEN, 1996, p. 39).
Porém, segundo o autor, a Marcha ocultava que o Oeste se encontrava permeado por relações de poder complexas, como a presença das companhias de extração de erva-mate, as usinas de açúcar, as fazendas de gado e outras propriedades de exploração no sul do Mato Grosso. Havia ainda uma acentuada preocupação com a identidade nacional, com a integração e unidade das áreas de fronteira e os chamados “sertões”.
Desde a primeira metade da década de 1930, Getúlio Vargas dera início à valorização do campo e do homem da pequena propriedade, iniciando as políticas de colonização, que propunham uma assistência inicial aos colonos, que abrangiam o trabalho, a educação primária aos seus filhos e a saúde, para se tornarem independentes. Em Mato Grosso, esse “cerco” se deu principalmente pela empresa Matte Laranjeira, que dominava boa parte do sul do Estado (GUILLEN, 1996)8.
Esse “esquadrinhamento dos corpos” era necessário para controlar os colonos e civilizá-los para a convivência social. O processo de disciplinamento pretendia fazer dos colonos pessoas mais hábeis para o trabalho e para o sucesso da política de colonização, orientando-os para as novas formas de se portar em sociedade. Segundo Guillen (1996, p. 43), o Estado Novo, ao dar visibilidade ao sul do antigo MT “[...] com a Marcha, tentava imprimir uma imagem de futuro: finalmente integrada ao corpo da Nação, a região da fronteira alcançaria o progresso e o desenvolvimento que parte do país desfrutava”.
Para a efetivação dessa estratégia, que visava principalmente à colonização de terras e à povoação dos “sertões vazios e inóspitos”, contou-se com a atuação de empresas e de companhias colonizadoras objetivando, entre outras questões, o povoamento das terras devolutas9. Entre essas empresas esteve a CVSPMT, envolvida na atividade de colonização, inclusive de uma parte do antigo sul do Mato Grosso.
A CVSPMT foi fundada em 1908, em substituição à firma Diederichsen & Tibiriçá.10 Em 1941, passa a ser propriedade do tchecoslovaco Jan Antonin Bata (ZILIANI, 2010).11 Tinha como finalidade atividades industriais e comerciais e de exploração de terras devolutas no Estado de São Paulo e Mato Grosso, visando a criar colônias e vender terras devolutas.12 No Estado do Mato Grosso, as colônias que dariam origem às cidades de Bataguassu e de Batayporã foram fundadas, respectivamente, em 1946 e 1953. De acordo com o autor, a Companhia fez circular em 1942, por meio de seu impresso, o Jornal Ordem e Progresso (2010), a oportunidade de compra de terras na região do Vale do Ivinhema, sul do antigo Mato Grosso. O impresso utilizou o discurso em circulação de que havia “terras boas” a serem exploradas. As publicações desse Jornal serviam bem ao ideal do Estado Novo e de suas estratégias de colonização: “[...] nosso trabalho e da nossa capacidade que são unicamente dirigidos no sentido de satisfazer os nossos desejos de servir, sempre na frente, o desenvolvimento do País” (JORNAL ORDEM E PROGRESSO, 2010, p. 191).
Em 1953, o imigrante tchecoslovaco Vladimir Kubik, funcionário da CVSPMT, foi encarregado de selecionar um lugar adequado para iniciar a venda de lotes de terras, especialmente para a criação de gado e a extração de madeira, dando início ao núcleo da Colônia. Em 1954, surge um novo personagem na colônia de Batayporã, o também tchecoslovaco Jindrich Trachta13, que ficou responsável pela venda das terras, atendimento aos colonos e proprietários das “novas” terras e de elementos de infraestrutura, além de atividades fabris, agrícolas e de criação de animais.
Ressalta-se que a regulamentação de Batayporã como distrito ocorreu no mesmo ano da criação da Colônia, em 1953, momento em que Bataguassu14 alcançou sua emancipação político-administrativa. O distrito possuía no final da década de 1950, além da fazenda sede da Companhia, prédios de serrarias, olarias, fábricas de amido, hotel, igreja, casas residenciais, pequenos comércios e uma escola.
No Livro de Matrícula, Frequência Diária e Aparelhamento Escolar (GRUPO ESCOLAR DE BATAYPORÃ, 2015b), da Escola Rural Mista de Batayporã, há registro do perfil dos pais dos alunos matriculados. Pode-se afirmar que as famílias de migrantes e de imigrantes que se instalaram na Colônia eram de origens bem diversas, como a nordestina, paulista, mato-grossense, paranaense, japonesa, portuguesa e espanhola, além dos tchecoslovacos que lá residiam, evidenciando o “caldeirão” cultural que a compôs. A função principal que afirmavam exercer era a de lavradores, mas havia também motoristas, padeiros, domésticas, carpinteiros, sapateiros, policiais, barbeiros, comerciantes, açougueiros, juiz de paz, pensionistas, farmacêuticos e “donas de casa” (GRUPO ESCOLAR DE BATAYPORÃ, 2015b). Segundo as narrativas dos alunos entrevistados, seus pais plantavam café, milho, arroz, feijão-de-corda, além de criar galinhas e porcos. O pai de um deles trabalhava como administrador das terras da Companhia.
Esse documento traz ainda dados sobre religião, instrução e profissão dos colonos, pais dos alunos do período de 1957-1964, conforme declarados no ato das matrículas. Pode-se constatar que a maioria dos colonos era analfabeta, principalmente as mulheres que se dedicavam ao cuidado dos próprios lares ou trabalhando na casa de outras famílias, seguidos de alguns com ensino primário e outros poucos com o ensino secundário.
Esse retrato geral dos anos iniciais da Colônia, com a chegada de migrantes/imigrantes oriundos de diferentes regiões do país, crentes nos chamados da Companhia e nos discursos oficiais da época sobre “desenvolvimento” e “progresso” da nação, evidencia a funcionalidade das estratégias utilizadas.
2. Educação no Brasil e no Estado
O objetivo nesta parte foi o de retomar as linhas gerais da educação no país, visando a analisar a escolarização primária oferecida em Batayporã, no período de 1955 a 1974, materializada em uma instituição escolar, inicialmente denominada Escola Rural Mista de Batayporã e, em seguida, Grupo Escolar de Batayporã.
Desde o início do século XX, em especial, a educação da população constituía condição ao desenvolvimento da nação; enunciado que circulava em diferentes discursos. O analfabetismo da parte pobre da população era visto como um mal que inviabilizava a “civilização” e a “evolução” do país. Entendido como “[...] doença social, a falta de escolarização era a ideia força de uma razão clínica em processo permanente de apropriação por parte dos que consideravam o analfabetismo o pai de todos os males da nação” (FREITAS; BICCAS, 2009, p. 41).
Existiam no final do século XIX as chamadas escolas isoladas e as rurais15 em funcionamento no país, paulatinamente substituídas por um “novo” modelo de escola denominada “Grupo Escolar”, que surge inicialmente em São Paulo e no Rio de Janeiro. Ao longo das duas primeiras décadas do século XX, esse modelo de escola surge em vários outros Estados do país, inclusive em Mato Grosso uno. Foram criados com a expectativa de contribuir para o país desenvolver-se economicamente e apresentados como modelo de ruptura com o passado imperial: “[...] projetavam para o futuro, projetavam um futuro, em que na República, o povo, reconciliado com a nação, plasmaria uma pátria ordeira e progressista” (FARIA FILHO; VIDAL, 2000, p. 25).16
As chamadas Leis Orgânicas do Ensino (BRASIL, 1942-1946 apud IGNACIO, 2006),17 desse período, tiveram seus efeitos duas décadas depois de serem promulgadas, isto é, na segunda metade dos anos de 1950, momento em que a Escola estudada foi criada. Segundo Freitas e Biccas (2009, p. 115), trouxeram como novidades: a padronização do currículo nacional, o tipo de arquitetura escolar, os uniformes, a verificação da higiene dos estudantes e outros aspectos; além de disseminar um “sentimento de patriotismo e da nacionalidade”. Em 1951, foi aprovada a Lei Orgânica do Ensino Primário do Estado de Mato Grosso, Lei nº 452 (MATO GROSSO, 2001), que regulamentou a oferta do ensino primário no Estado do Mato Grosso.
Acordos entre o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP) e o governo mato-grossense possibilitou, segundo Brito (2001), a construção de 161 prédios na zona rural entre 1947 e 1953, e, nesse período, mais 23 estavam sendo construídos e 30 ainda não haviam sido iniciados.
A ocupação do Estado do Mato Grosso deu-se de forma mais intensa a partir da década de 1950, isso porque se intensificou a exportação de alimentos derivados da pecuária e agricultura para outros lugares do Brasil e do mundo, iniciativas colonizadoras no sul do Estado e a construção da malha ferroviária entre a cidade de Corumbá e a Bolívia. Com tais empreendimentos, a população aumentou na zona rural do Estado, o que fez com que as escolas rurais isoladas se multiplicassem pelo território estadual. Brito (2001) afirma que a administração pública reconheceu a importância dessas escolas rurais, investindo na melhoria do ensino no interior do Mato Grosso. A instituição escolar do distrito de Batayporã, implantada em 1955, fez parte dos dados levantados por essa autora.
A primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDBE), Lei nº 4.024 (BRASIL, 1961)18, foi promulgada em 1961, após treze anos de uma conturbada fabricação; definiu a estrutura da educação a ser ofertada no país, mas não deu a ênfase esperada pela sociedade civil organizada à escola pública.
Em 1962, o governador do Estado do Mato Grosso Fernando Corrêa da Costa regulamentou, por meio do Decreto nº 319/1962 (MATO GROSSO, 1962b), o Programa do Ensino Primário, que definiu as diretrizes gerais para o ensino de cada disciplina, estabelecendo também os deveres e direitos dos alunos e professores nas instituições de ensino primário do Estado.
Segundo o secretário de Educação, Cultura e Saúde Hermes Rodrigues de Alcântara, em Carta enviada ao governador em fevereiro de 1962, era necessário que:
O ensino primário em Mato Grosso sofresse substancial modificação em seu organismo. Para as Escolas Rurais e Isoladas Urbanas foram elaborados programas especiais, [...]. Os programas dos Grupos Escolares e das Escolas Reunidas, com significativos aperfeiçoamentos, fundamentam-se nos mais avançados sistemas de ensino do país (MATO GROSSO, 1962a, p. 4).
Essa legislação, em conexão com outros acontecimentos, compõe o mapa da educação daquele período, evidenciando que as prescrições, ou “concessões” nelas contidas, representavam, simultaneamente, os avanços e os limites em curso e que estavam longe de atender as demandas da população que já havia tomado para si o enunciado da educação escolar como imperativo ao desenvolvimento e como possibilidade de uma vida melhor.
Para o alcance do objetivo, no contato com as fontes documentais, imagéticas e orais, foram analisadas algumas de suas características: o processo de instalação da escola com as suas mudanças de nomenclatura e organização, as transformações na localização e nas edificações, a rotina escolar, o perfil dos professores, alunos e direção, o controle do comportamento dos alunos e o ensino moral e cívico.
2.1 Criação e funcionamento inicial da Escola
A preocupação com a educação escolar nesta parte dirigiu-se ao aparecimento da instituição, em especial, para práticas e discursos que lhe garantiram uma existência singular.
A institucionalização da educação para as crianças, na configuração sociopolítica denominada Batayporã, materializou-se com o aparecimento de uma instituição escolar, criada em 1955, denominada Escola Rural Mista de Batayporã19, posteriormente Grupo Escolar de Batayporã, criado pelo Decreto nº 2.066, de 4 de março de 1955 (MATO GROSSO, 2015). Observou-se que a criação oficial da Escola e mesmo sua transformação em Grupo Escolar ocorreram no mesmo ano e antes de o lugarejo emancipar-se administrativamente. Aspectos que podem evidenciar a urgência e importância que foi dada à educação naquele local.
A alfabetização das crianças também começou a funcionar antes mesmo de oficializada a criação da escola e de forma improvisada, por iniciativa da comunidade, em uma sala do único hotel existente no lugarejo. Contava no início com setenta alunos de diferentes idades, evidenciando a demanda existente e a adoção da educação escolar como “necessidade”.
Com a denominação de Escola Rural Mista, a Instituição parece ter funcionado por pouco tempo, pois, em março de 1955, como já citado, foi criado o Grupo Escolar de Batayporã. Porém, a denominação Escola Rural Mista continuou aparecendo na escrituração até 1962. No Livro de Chamada de Alunos (ESCOLA RURAL MISTA, 2015), a denominação “Escola Rural Mista” aparece até o mês de abril e, desta data em diante, o termo Grupo Escolar aparece nos registros do mesmo documento, evidenciando que foi rápida a mudança na nomenclatura da Instituição.
Desde a Constituição Federal de 1946 (BRASIL, 1946), estava oficialmente assegurada a gratuidade do ensino primário e de os outros níveis de ensino que apresentassem falta de recursos, determinando que os governos federais, estaduais e municipais deveriam aplicar um percentual mínimo na educação. Em Batayporã foi observado que até parte da década de 1960 não houve investimentos para a escola por parte dos governos, exceto o pagamento de professores. Falta de apoio que não se restringia ao município em questão ou à instituição estudada.
Conforme relato da Primeira Professora do Grupo (ENTREVISTA, 2014)20, a CVSPMT ajudou na construção do prédio da Escola com a compra dos materiais permanentes. Nas narrativas dos demais entrevistados, observou-se a necessidade de evidenciar que a Escola tinha, desde seu começo, alguma relação com a Companhia, mas enfatizaram a participação decisiva da comunidade local. A ênfase à Companhia aparece, em especial, na narrativa do aluno Davi (2014), filho de funcionário da Companhia; com ele aparece uma indicação direta de valorização do apoio da empresa na construção e manutenção da Instituição, entretanto, o apoio parece ter sido restrito.
Pela importância dada à educação escolar já naquele momento histórico, pode-se afirmar um interesse da Companhia pela Instituição, tendo como condição a permanência das famílias e a efetivação do projeto de colonização em curso. Mas essa constatação não parece ter se materializado em investimentos, antes tal prática discursiva se efetivou à custa do esforço da “população” e essa parece ter sido de fato a estratégia.
Observou-se ainda que alguns documentos21 da escrituração escolar do primeiro ano de funcionamento da Instituição, como livros de chamada e de matrícula, eram impressos do Estado de São Paulo, sinalizando, além da pouca assistência governamental, a dificuldade de acesso, dos que ali residiam e dos envolvidos com a educação, a capital Cuiabá, onde se localizava a administração estadual.
Pelas informações disponibilizadas, os livros, cartilhas, giz e outros materiais para a realização das aulas não eram disponibilizados pelo governo. Também não foram obtidos registros de recursos ou outro tipo de fornecimento de merenda para os alunos. Identificou-se ainda que, até a primeira metade dos anos de 1960, não existia uma caixa escolar como previsto desde o Regulamento da Instrução Pública Primária do Estado de Mato Grosso (MATO GROSSO, 1927).
Até a emancipação político-administrativa de Batayporã, não foram localizados comprovantes da participação do governo estadual na manutenção da instituição escolar, porém, nas narrativas, aparecem informações de que alguns pais de alunos, quando podiam, colaboravam com a doação de alimentos ou material escolar, como lápis, borracha e cadernos para alunos de baixa renda, que eram maioria. Além da Primeira Professora (2014), que afirmou comprar durante vários anos materiais como lápis, cadernos, borracha e até cartilha para os seus “alunos mais pobres”, vindos do Estado de São Paulo, considerando as distâncias entre as cidades do então Mato Grosso.
Outro aspecto considerado na pesquisa foi a arquitetura, os edifícios, a localização da Escola na organização espacial da cidade e seu mobiliário, como a parte material de seu funcionamento (FRAGO; ESCOLANO, 2001).
A sede da Escola nos anos de seu funcionamento mudou de localização. Partindo da análise de fotografias disponíveis no Centro de Memória e narrativas dos sujeitos, foi possível concluir que ela iniciou seu funcionamento em 1955, em um quarto da única pensão existente na pequena cidade. Todos os alunos eram alfabetizados em um mesmo espaço físico. A Primeira Professora (2014) afirmou que chegou um momento em que aquele espaço, no hotel, se tornou “[...] muito pequeno e quente para tantas crianças”.
Em 1957, foi construída a primeira edificação destinada para a Escola (Figura 1), feita de madeira, com duas salas pequenas, piso de terra batida e um banheiro fora do prédio. Estrutura singela que pouco se diferenciava de outras escolas rurais do período. Como evidencia Garnica (2011, p. 70), geralmente os estabelecimentos rurais “[...] funcionavam em cômodos de madeira, constituídos por apenas uma sala, sem a existência (ou com existência precária) de sanitários, cozinha e pátio”.
Ainda assim, o cenário modificou-se com a construção dessa edificação, feita gratuitamente por dois carpinteiros portugueses que residiam na cidade. A construção não contou com o apoio financeiro do governo do Estado, mas com materiais cedidos pela Companhia e pela comunidade. Somente no final da década de 1960 é que o governo municipal construiu um prédio de alvenaria em outro espaço no mesmo terreno, para o funcionamento da Escola.
Com o apoio de Frago e Escolano (2001, p. 47), pode-se afirmar que a escola “[...] em suas diferentes concretizações, é um produto de cada tempo e suas formas construtivas são, além dos suportes da memória coletiva cultural, a expressão simbólica dos valores dominantes nas diferentes épocas”. Nos poucos registros fotográficos localizados sobre o prédio de madeira é possível observar o mobiliário e a distribuição dos alunos no espaço, além de seus vestuários. Em uma das imagens há uma professora em pé na porta e seus 44 alunos, alguns com postura ereta e outros conversando, alguns descalços e outros, não. Observa-se, desse modo, que não havia exigência do uso de uniforme naquele momento.
Os alunos utilizavam, como carteira nas salas de aula, uma mesa fixada ao assento (banco), que acomodava, em geral, duas crianças. Em uma das fotos, três crianças acomodam-se nas carteiras escolares, mas essa distribuição pode ter sido organizada apenas para que todos aparecessem na fotografia. Em outras imagens aparecem em duplas de meninos ou de meninas.
Segundo narrativa do aluno Davi (2014), somente em dias de exames sentavam-se juntos meninos e meninas, para que não houvesse a oportunidade de “conversas e cópias” durante a prova. Segundo narra, eram “dias de nervosismo”, às vezes até chorava, pois tinha de compartilhar a mesa do exame com uma menina, visto que eles não tinham uma relação de “amizade” e “intimidade”.
Dialogando com Frago e Escolano (2001), pode-se afirmar que a arquitetura escolar constitui um “programa”, que controla os espaços, educa pela instauração de determinadas regras e imposição de hábitos, valores.
Mesmo os alunos sentando-se juntos durante as aulas, as práticas de ensino-aprendizagem não eram coletivas, mas individualizadas, pois o professor era o único responsável pelas atividades, “esquadrinhando-os” por meio de seus cadernos, de avaliações e notas, do controle do comportamento, em sua postura diante da sala de aula e todas as suas anotações escritas sobre cada aluno. Processo esse capaz de separar os corpos dos sujeitos, mesmo tão próximos. Para Foucault (2004, p. 123), nas instituições é importante
estabelecer as presenças e as ausências, saber onde e como encontrar os indivíduos, instaurar as comunicações úteis, interromper as outras, poder a cada instante vigiar o comportamento de cada um, aprecia-lo, sancioná-lo, medir as qualidades ou os méritos.
Cada uma e toda a arquitetura institucional contribuem para “compor” e “conformar” os indivíduos como sujeitos de tipos específicos (ROSE, 2001) e constitui elemento material do que denominamos “dispositivo de escolarização”.
O Grupo Escolar de Batayporã não apresentava uma fachada grandiosa, escadarias, entradas para meninos e meninas, entre outros aspectos que foram pensados para esses edifícios construídos por todo o Brasil, do final do século XIX ao início do século XX, conforme apontam Buffa e Pinto (2002), Faria Filho e Vidal (2000) e Souza (1998). Segundo Faria Filho e Vidal (2000, p. 31-32):
Em lugar da suntuosidade exibida no início da República, a luta pela democratização da escola fazia-se sentir em prédios funcionalistas, tecnicamente projetados para uma educação rápida e eficiente, com lugares específicos para acolher maquinário, como mimeógrafo, e propiciar um controle do corpo docente através de mecanismos administrativos cada vez mais capilares, e nas soluções mais rústicas, que associavam ensino formal à casa do professor, nas zonas rurais.
Além da arquitetura, o “tempo escolar” foi inaugurado com a criação dos grupos escolares no país. Com eles, o tempo ganhou importância na organização do ensino. Faria Filho e Vidal (2000, p. 32) afirmam que “[...] o tempo escolar se associa às horas em que se permanece na escola, contabilizado em sinetas, recreios, cadernos, da mesma maneira que nos ponteiros do relógio”. A divisão do ano letivo em aulas, períodos, dias, semestres, férias, também evidencia essa distribuição e o controle temporal.
Sem a obrigação de fornecimento de merenda por parte dos governos, estadual e municipal, os alunos levavam para a escola o que “tinham em casa”. No final da década de 1960, começou a ser fornecido leite para os alunos. Posteriormente, segundo narra o aluno Davi (2014), a escola havia estabelecido um acordo com uma marca de macarrão, para servi-lo durante a merenda. Porém, para que isso ocorresse, os pais precisavam comprar o mesmo macarrão para consumo em suas casas. Mais uma indicação de que havia parco apoio financeiro dos governantes e que a escola buscava ou usava essas alternativas para funcionar e atender os alunos matriculados.
Por meio das fontes, constatou-se que a Escola ficava distante das casas de parte dos alunos e que estes percorriam quilômetros para assistir às aulas. Mesmo com a distância de sua casa para a escola, o aluno Mario (2014) afirma que “amava ir à escola”, pois brincava um pouco e quando estava lá se sentia livre dos trabalhos na lavoura que realizava com seus pais. Narrativa que aponta um significado dado para a escola por um filho de lavrador, em acordo com enunciado que começava a se firmar, segundo o qual “lugar de criança é na escola” e não no trabalho; mas naquela localidade estava ainda distante a perspectiva formativa e profissionalizante que já circulava no país sobre a função dessa instituição social.
2.2 Professores e metodologia de ensino
Neste item foram pinçados aspectos referentes às condições de trabalho, formação e seleção de professores e do ensino.
Recordando, em diferentes discursos, incluindo o oficial, o papel da escola e o dos professores indicavam a educação/instrução como condição para a formação das crianças para a vida em sociedade. Na Mensagem (MATO GROSSO, 1952) proferida pelo governador Fernando Corrêa da Costa à Assembleia Legislativa, observa-se a importância dada aos conhecimentos e ao ensino:
Porque ensinar, mesmo que sejam noções apenas dos programas de ensino implica ter conhecimentos que não se cifram sómente [sic] à leitura, à escrita e à contabilidade, mas de higiene, saúde, domínio da terra e dos assuntos sociais mais de interesse da coletividade em que atua o professor [...]. (MATO GROSSO, 1952, p. 26).
Nos anos iniciais de funcionamento da Escola, apenas uma professora lecionava, mas, nos anos seguintes, outros professores foram contratados para exercer a docência. Até 1963 não foram encontrados registros, nem narrativas, de que havia outros funcionários, como servente, porteiro e inspetor. Segundo a Primeira Professora (2014), a função de diretora foi ocupada por ela durante, pelo menos, a primeira década de funcionamento da Instituição sem, contudo, ter sido nomeada ou receber o salário condizente com o cargo de direção. A justificativa dada foi a de que “era a professora mais antiga”. Sobre esse aspecto nenhum registro foi encontrado (nem o Diário Oficial das nomeações), referente ao período em que ela informa ter ocupado as funções de professora e de diretora. Prática distante do previsto na legislação, que estabelecia que para ser diretor de uma escola pública o professor deveria comprovar experiência na docência de pelo menos três anos, além de passar por concurso público (BRITO, 2001). A primeira professora da Instituição tinha formação primária e estudou as séries iniciais do ginásio, sem concluí-lo. Somente no final da década de 1960, como apontado, uma professora “formada” (normalista) assumiu oficialmente a função de diretora da Escola.
A Professora Maria (2015), primeira normalista da cidade, assumiu aulas e a direção do Grupo Escolar na segunda metade da década de 1960 e permaneceu no cargo até 1969, quando passou a dirigir o Ginásio Estadual de Batayporã22. Segundo narrativas, logo após a criação do Ginásio, seis professores habilitados, vindos da cidade paulista de Alvares Machado em São Paulo, foram para Batayporã dar aulas, convidados pelo prefeito da cidade.
Com os dados das entrevistas e de outros registros disponíveis, observou-se que os professores raramente participavam de cursos ou aperfeiçoamentos oferecidos pelo governo do Estado nas cidades de Campo Grande e Cuiabá. Um dos principais motivos era a desobrigação da referida formação e a distância de Batayporã das cidades onde as capacitações eram oferecidas.
Em relação ao pagamento dos profissionais do Grupo, a primeira professora narra que, durante os anos que trabalhou, quando precisava receber o salário era “outro problema”, pois não havia estrada entre Batayporã (distrito) e Bataguassu (município) onde costumava ir receber, pois para chegar até lá tinha que ir “beirando” as fazendas e que, em dias chuvosos, era mais difícil chegar ao destino. Afirma também que, em decorrência da distância, ficava “até cinco meses sem receber” (PRIMEIRA PROFESSORA, 2014).
Quanto ao ensino, recorrentes obstáculos foram encontrados para a educação dos alunos, pois, como nos primeiros anos eram salas multisseriadas, havia crianças iniciando a alfabetização e outras já dominando a escrita e a leitura.23 A principal referência para o ensino era a cartilha Caminho Suave. A própria professora a comprava para uso dos alunos, evidenciando a inexistência de indicação e gratuidade de uma cartilha específica por parte do poder público do Estado, como também a exigência de seguir uma cartilha específica. Segundo a professora, havia trabalhado com essa cartilha antes de ir para Batayporã, portanto, a escolha dela seguia a sua própria alfabetização e escolarização.
A cartilha Caminho Suave teve sua primeira publicação em 1948 e foi amplamente utilizada e aceita no país até meados de 1990. Segundo Peres e Ramil (2015), ela consistia em alfabetizar os alunos a partir das imagens impressas. Conforme os autores, a cartilha relacionava
a forma das tipografias das letras ou sílabas das palavras ao formato de sua respectiva imagem contribui para a memorização da criança, que associa as formas das fontes da tipografia utilizada na palavra às da imagem representada, pois os caracteres ocupam praticamente o mesmo espaço e assumem formato muito parecido, ao encaixar-se dentro de um detalhe da figura. (PERES; RAMIL, 2015, p. 63).
Além da cartilha, a professora utilizava o ditado, para o ensino da escrita. O acréscimo de conteúdos e atividades aparece somente no final dos anos de 1960. A Ficha do Estabelecimento, Boletim de Produção e Dados (GRUPO ESCOLAR, 2015a), sobre os alunos, contém informações de que em 1967, nos meses de março e abril, foram realizadas, respectivamente, quatro aulas de canto e uma de sabatina.
A distribuição espaço-temporal, o cuidado com a higiene e o comportamento, os exercícios morais, as orações diárias, as escriturações sobre o comportamento e outras práticas que se desenvolviam na Instituição estudada acabaram por compor e conformar os sujeitos.
Segundo Foucault (2004), a escola, como uma instituição social “fechada”, é um lugar mantido pela ordem disciplinar que visa a adestrar o corpo e a mente pela obediência, docilidade e produtividade para o trabalho e a vida em sociedade.
Na escassa escrituração escolar localizada, que trata das notas dos alunos, percebe-se que havia um número expressivo de “notas baixas”, principalmente no item chamado “Aplicação”. As notas de Aplicação eram a soma das notas de comportamento e as notas das matérias lecionadas pelos professores; com a qual era realizada a média aritmética. Analisando os dados, concluiu-se que alguns alunos não iam bem, pois não se “comportavam” conforme as regras estabelecidas. Em um dos depoimentos dos alunos, contudo, pode-se localizar uma forma de resistência a esse disciplinamento e controle presentes na Instituição:
às vezes, de você querer ir ao banheiro e aqui, por exemplo, não tinha banheiro dentro da escola, era aquelas casinhas né de sítio mesmo, porque aqui era como se fosse um sítio né, e a gente as vezes queria sair, dar uma voltinha fora do recreio e não tinha como, você não podia sair, você tinha o recreio e tal e as vezes quando você estava muito apertado, então a gente fazia. E uma das travessuras que eu cansei de fazer, eu pegava giz e cortava com a gilete e fazia uns comprimidinhos assim [gesto de pequeno com as mãos] né, e falava professora, preciso tomar meu remédio. Então vai [a professora dizia], e aí eu ia lá, tomava uma água, ficava por ali e voltava como se estivesse com cara de doente e tal. (ALUNO DAVI, 2014, p. 5).
Dialogando com Foucault (2013), pode-se refletir que a “posição de sujeito” ocupada pela professora (e outros professores) lhe garantia ou exigia certa autonomia no exercício de sua função como “educadora”; posição que implicava o controle de seus alunos, em especial ou se necessário, pela disciplina. Mas, é preciso problematizar essa conduta dos professores, visto que eles mesmos eram submetidos a determinadas regras, se não do departamento de educação ou da inspeção escolar, mas de seus próprios colegas, quando estes ocupavam a posição de chefia, como diretor ou, ainda, pelo controle da própria conduta. Nesse sentido, a Ficha do Estabelecimento - Boletim de Produção e Dados (GRUPO ESCOLAR, 2015a) permite observar o tipo de informações requeridas aos professores ao ministrar aulas no Grupo Escolar que, além da formação acadêmica, se dirigiam ao estado civil, à experiência e às atividades realizadas em sala de aula.
Há também na escrituração escolar registros detalhados sobre os alunos, como data de matrícula, peso, altura, idade, naturalidade, sexo, série, de que escola vieram (escola particular ou pública); registros que faziam parte das atribuições da escola; além de dados dos familiares, como profissão, religião, escolaridade e outros. Detalhamento que permite evidenciar que, por meio de diferentes registros e medidas, estavam “todos” os sujeitos capturados nessa escritura escolar.
Por mais de uma década, em Batayporã, ao terminar a 4ª série, os alunos deixavam de estudar, caso seus pais não tivessem condições financeiras de enviá-los para estudar em Bataguassu (cidade mais próxima) ou em outra cidade, condição da maioria dos moradores; situação que aparece nas narrativas dos alunos sobre a década de 1960, momento em que as primeiras crianças haviam concluído o curso primário.
2.3 Educar e instruir para a vida em sociedade: moral e civismo na Escola
Neste tópico foi analisada a responsabilização dos professores para com a formação moral e cívica das crianças, por meio de discursos e práticas que se efetivavam na Escola e nas atividades comemorativas da pequena cidade. Tarefa que implicava a existência de professores “cheios de virtudes”, que serviam de modelo a ser seguido, exemplos de “cidadãos que trabalhavam pela pátria”. Aspecto reforçado na Mensagem (MATO GROSSO, 1952) do governador Fernando Corrêa da Costa, citada anteriormente.
Na chegada à Escola, diariamente, os alunos eram recebidos com um momento de “acolhida”, no qual cantavam o Hino Nacional e hasteavam a Bandeira do Brasil, bem como faziam oração pelo dia que estava começando. Depois da acolhida, eles eram levados para a sala de aula para as atividades pedagógicas.
O recreio não era livre, mas controlado por meio de atividades dirigidas, recreativas ou não, que exploravam outras formas de cuidado sobre o corpo das crianças e dos adolescentes que estudavam naquela escola. Dirigindo o olhar para os alunos, pode-se perguntar como agiam, resistiam e lidavam com certo cerceamento espaço-temporal.
Nas entrevistas com a professora do Grupo e alunos, esses aspectos aparecem em algumas passagens, nas quais afirmam a frequente realização de festividades cívicas, comemorando, por exemplo, o Dia da Bandeira; momentos em que se realizavam desfiles com batalhões infantis marchando e tocando um instrumento diante das autoridades que estavam presentes nos desfiles oficiais (imagem que ainda nos é familiar). Professores e alunos entrevistados demonstram entusiasmo e orgulho de terem participado dessas práticas, desses ritos, porque se estava “homenageando um fato histórico do Brasil”.
Nesse sentido, essas atividades, consideradas extraclasses, contribuíam para a formação das crianças e dos adolescentes matriculados na Instituição, ou, com apoio de Rose (2001), para compor e conformar subjetividades infantis, nesse caso, patriotas. Com as entrevistas realizadas, além de fotos encontradas no Centro de Memória “Jindrich Trachta”, foi observada a presença desses atos que ocorriam na Escola, desde a acolhida diária com a execução do Hino Nacional e hasteamento da Bandeira do Brasil, até as comemorações do Dia de Tiradentes e de 7 de Setembro, por exemplo. Em duas imagens identificadas como sendo de 1955, aparecem os meninos e as meninas (separadamente) uniformizados, indicando a participação da Escola em evento oficial da cidade.
Não obtivemos informações que permitissem afirmar se o uniforme era utilizado somente em dias “especiais” ou nas “datas comemorativas”, mas é possível afirmar que nesses dias eles o usavam. Essas datas, além de vitrine dos feitos da escola, segundo as narrativas dos sujeitos entrevistados, explicitam que havia contatos políticos entre funcionários e governantes, para contratação e indicação de funções dentro da escola ou da educação em geral.
Dessa formação aparentemente “complementar” é possível inferir que a escola e os professores eram responsáveis, além de outros inúmeros aspectos, pela constituição do imaginário e da memória nacional, instruindo a si mesmos e aos seus alunos em valores como o respeito aos signos e símbolos da Pátria.
Dialogando com a produção de outros autores sobre a temática, Vidal (2006, p. 9) evidencia que os grupos escolares “fundaram uma representação de ensino primário que não apenas regulou o comportamento, [...], de professores e alunos no interior das instituições escolares, como disseminou valores e normas sociais (e educacionais)”.
Além de consolidar e reforçar nas crianças exemplos de “heróis patrióticos” a serem seguidos, por terem lutado em prol do país, essas práticas implicavam, ao mesmo tempo, a tentativa de constituição de cidadãos dóceis, disciplinados, aptos a viverem em sociedade e condizentes com os interesses da República:
a escola pública tornou-se palco de realização das comemorações cívicas, mais um dentre os traços inequívocos de aliança da escola primária com a República e com os valores cívico-patrióticos. Tais festas tinham como objetivo solenizar algumas datas “notáveis” da nossa história. (SOUZA, 1998, p. 265).
Conforme Souza (1998, p. 241), pode-se afirmar que:
A escola republicana instaurou ritos, espetáculos, celebrações. Em nenhuma outra época, a escola primária, no Brasil, mostrara-se tão francamente como expressão de um regime político. De fato, ela passou a celebrar a liturgia política da República; além de divulgar a ação republicana, corporificou os símbolos, os valores e a pedagogia moral e cívica que lhe era própria. Festas, exposições escolares, desfiles dos batalhões infantis, exames e comemorações cívicas constituíram momentos especiais na vida da escola pelos quais ela ganhava ainda maior visibilidade social e reforçava sentidos culturais compartilhados.
Observa-se certo “governamento” dos corpos das crianças e dos adolescentes, correlato da noção de “instituição”. Inscritos nessas relações de poder ou de governo do outro, presentes na relação professor-alunos, havia também os espaços de resistências ou de “liberdade” controlada:
Embora a vigilância possa não ocorrer a todo instante, ela é sentida permanentemente. O indivíduo constantemente vigiado aprende a vigiar a si mesmo, internaliza as relações de poder, aprende a disciplinar seu corpo e sua forma de vida, tornando-se, assim, o seu próprio guardião. (MORAES, 2008, p. 61-62).
O Grupo Escolar de Batayporã configurou-se como um ambiente de preservação e cultivo de valores cívicos e patrióticos, contribuindo em certa medida para a constituição de subjetividades infantis “educadas” de um modo específico.
Considerações finais
O artigo socializa resultados sobre a institucionalização da educação na cidade de Batayporã, no sul do antigo Mato Grosso, hoje, Mato Grosso do Sul, materializada na existência de um grupo escolar, que apareceu em 1955, inserida em um projeto de colonização, no momento em que a localidade era distrito e, portanto, ainda não havia alcançado sua emancipação político-administrativa.
Com o apoio de noções foucaultianas, o processo de escolarização que se desenrolou no interior da instituição educacional de Batayporã foi tratado como um dispositivo, que, de modo semelhante a outras instituições sociais, pelas suas práticas, rituais, simbolismos, coloca os corpos dos sujeitos como objeto de poderes e de saberes específicos.
Considerando os resultados apontados, pelo contato com os sujeitos singulares que fizeram parte da história da Instituição e com as fontes documentais e fotográficas analisadas, pode-se considerar que a Instituição estudada, em sua materialidade, contribuiu para a fixação dos migrantes e imigrantes naquele local e momento histórico e que esse acontecimento não ficou no passado, pois permanece sendo elemento que compõe as lembranças da história do lugar e das pessoas que a consolidaram.
Tentativas de manter vivos esses acontecimentos em suas lembranças são expressas pela criação do Centro de Memória “Jindrich Trachta” em Batayporã ou no resgate e guarda de alguns dos documentos que registram os feitos da escola nos primeiros anos de sua existência material, quando poderiam legalmente tê-los incinerados.
Mesmo parecendo-se com outras instituições escolares que funcionaram naquele período, interessou indagar suas particularidades em meio às tentativas homogeneizadoras das políticas, da legislação, das nomenclaturas e das ordens estabelecidas.
A pesquisa realizada e o conhecimento dela resultante não esgotam as possibilidades de outras investigações mais específicas, pois a aproximação dos discursos e práticas que constituíram a Instituição estudada não se esgotaram; a tarefa de historicizá-la permanece.