Introdução
Na cidade do Rio de Janeiro, no decurso dos anos 1920, houve uma série iniciativas que tinham por intuito forjar uma nova tradição de urbanidade, marcada pela busca de (re)significar as reformas do espaço público promovidas pelas administrações municipal e federal nos anos iniciais do século XX (SILVA, 2015). Nesse cenário, de modo cada vez mais intenso, incutir e espraiar condutas e comportamentos concebidos como adequados tornaram-se estratégias encaradas como centrais para a harmonização do cotidiano carioca.
Foi nessa arena, caracterizada por entrelaçamentos cada vez maiores dos tempos e espaços citadinos com as práticas e saberes trabalhados no âmbito escolar, que, em janeiro de 1927, Fernando de Azevedo tomou posse como Diretor Geral da Instrução Pública da cidade, cargo no qual permaneceu até outubro de 1930. Uma das marcas de sua gestão, na qual se enfatizou a ideia de “renovação escolar”, foi a defesa da necessidade de que as crianças e jovens ocupassem uma posição ativa no processo de aprendizagem. Nesse olhar, ao professor caberia canalizar, disciplinar e articular os interesses dos alunos, empregando-os como referenciais para o desenvolvimento de sua intervenção (AZEVEDO, 1929; VIDAL, 2000).
Para Azevedo e demais educadores que se apresentavam como “renovadores”, a articulação da escola com o cotidiano dos alunos era uma dimensão de grande importância. Na sua compreensão, era necessário buscar a vinculação com outras experiências de escolarização social, a fim de compartilhar influências benéficas. Assim, não surpreende que tenham destacado circunstâncias que poderiam, de algum modo, contribuir para o ensinamento de modos adequados de viver e se portar na cidade: excursões aos campos, fazendas, jardins públicos; visitas a museus e fábricas; demonstrações de exercícios físicos; conversão de aspectos do cotidiano citadino em conteúdos programáticos escolares; entre outros (NUNES, 1994, 1996, 2000; SILVA, 2009, 2015, 2020).
Nesse quadro, sob a lógica das ações de governo, concentrar as apostas na difusão da escolarização primária significava confiar na possibilidade de que os ensinamentos advindos dos preceitos educativos encarnados nos corpos e comportamentos da comunidade escolar seriam espraiados e apreendidos pela população. Daí a insistência do debate educacional em uma questão que se apresentava como importante desde o século XIX: a necessidade de atrelar a instrução à educação1. Vejamos algumas manifestações dessas discussões publicadas na revista A Educação2.
Para José Escobar 3: “A instrução, comparada à educação é uma gota de água no oceano” (1923, p. 511). Já Carneiro Leão4 insistia que “a instrução primária não é apenas um aprendizado de primeiras letras, mas um meio de orientar o jovem para a vida” (1923, p. 386). Pires Ferrão5 inferiu: “realmente, menos mal causa à sociedade o analfabeto que aquele outro indivíduo possuidor de uma rudimentar instrução mal orientada” (1924, p. 6). Carlos Alberto Porto Carreiro6 também enfatizava que “a instrução em certo grau, desacompanhada da educação constitui perigo individual e social dos mais graves” (1925, p. 476). Jonathas Serrano7 não se afastava dessa compreensão: “instrução sem educação é antes uma arma perigosa do que benefício para o indivíduo e para o agregado social” (1925, p. 572).
Entre as diferentes vozes, ao longo dos anos 1920, percebe-se a associação do ensinamento dos saberes elementares (leitura, escrita e contar) com as preocupações relativas ao disciplinamento dos comportamentos e à moderação dos hábitos. Nessa linha, fortaleceu-se, inclusive, a concepção de que os conteúdos escolares, caso não fossem devidamente direcionados, colaborariam para que a população se contaminasse, o que acarretaria transtornos ao Brasil, como um todo, e à cidade do Rio de Janeiro, de modo particular (PIRES FERRÃO, 1924, p.6).
Pensando no intuito de harmonizar o cotidiano carioca, já não bastava que os habitantes fossem instruídos; era necessário que se tornassem educados. Fernando de Azevedo, por diversas vezes, insistiu que a “escola nova não [era] apenas um aparelho de instrução” (1958, p. 77)8, mas, sim, uma instituição que deveria investir na “educação integral orientada para um fim determinado e em harmonia com os novos ideais”, entre os quais destacava tanto a relevância da higiene, da saúde, do trabalho, da educação física, da moral, do patriotismo serem trabalhados cotidianamente quanto a imprescindibilidade dos próprios professores e alunos desempenharem o papel de divulgadores e estimuladores da renovação educacional.
É nesse escopo que entendemos a aproximação de Fernando de Azevedo com o escotismo. Convém realçar que, por diversas vezes, o educador registrou a importância do movimento escoteiro e a simpatia que nutria pelas reflexões de Robert Baden-Powell (NASCIMENTO, 2004a). Assim sendo, não surpreende que na legislação que regulamentou a Reforma da Instrução Pública9 tenha sido incluído um título dedicado exclusivamente ao tema, prevendo-se o funcionamento de uma entidade para estimular o envolvimento dos alunos:
Art. 648 - Fica criada a Federação Escolar de Escoteiros, como uma instituição auxiliar de educação física, moral e cívica, constituída de alunos de 11 anos completos, que dela quiserem fazer parte, com o assentimento, por escrito, dos respectivos pais.
Art. 649 - o escotismo será aplicado nas escolas públicas como instrumento de educação complementar nos alunos de ambos os sexos, entre a idade de 8 a 16 anos.
Parágrafo Único: a aplicação dos princípios de escotismo será rigorosamente feita de acordo com as bases lançadas por Baden Powell.
A importância do escotismo nos anos 1920 já tem sido investigada10, bem como sua articulação com as iniciativas entabuladas no âmbito do esporte (HEROLD; MELO, 2018), outra prática que passou mais fortemente a ser relacionada com os princípios educacionais que estavam a ser forjados (LINHALES, 2009). Tendo em conta tal relevância, bem como a vinculação de Azevedo com o movimento escoteiro, este artigo objetiva discutir alguns pontos de vista e aspectos referentes à operacionalização da Federação Escolar de Escoteiros (FEE) e da Federação Escolar de Bandeirantes (FEB) (criada a posteriori, não explicitamente prevista na legislação da Reforma).
De acordo com Telma Valério (2013, p. 93), a FEE “tinha por objetivo, além de estreitar o vínculo entre escola e comunidade, complementar a educação física, moral e cívica das crianças”. Como a proposta foi posta em prática? Quais discursos cercaram sua implementação? Como se deu a criação da FEB?
Com a expectativa de indiciar possíveis respostas a esses questionamentos, prestigiamos como fontes alguns periódicos publicados no Rio de Janeiro entre os anos de 1928 e 1930, assim como a legislação educacional da época. Esse recorte temporal corresponde ao período de funcionamento da duas Federações estudadas. Para o desenvolvimento desta análise, estivemos atentos às reflexões de Luca (2005) sobre as materialidades das informações que circulavam nos periódicos, encaradas como pontos de vista sobre o tema.
A emergência das duas Federações
A criação e funcionamento da FEE foram pormenorizadas na Reforma da Instrução Pública de 1928. No correr desse ano, implementaram-se ações tendo em vista sua concretização. Em junho, Mário Sérgio Cardim - “ardoroso e convincente propagandista do escotismo no Brasil, desde 1914, após sua estadia na Inglaterra” (O PAIZ, 16 out. 1928, p. 7)11 - foi nomeado para liderar a iniciativa. Em setembro, Fernando de Azevedo fez publicar as instruções para organização da entidade (JORNAL DO BRASIL, 6 set. 1928, p. 20).
Conforme previsto na Reforma, a ideia era que a FEE tanto operasse de acordo com os princípios formulados por Baden Powell quanto estivesse articulada com a União dos Escoteiros do Brasil (UEB). Apregoava-se que a proposta fosse implementada nas escolas públicas da cidade do Rio de Janeiro para os alunos que já tivessem completado 11 anos de idade. As instruções procuravam enfatizar que se tratava de coadunar duas instâncias (a escolar e a não escolar), o que não era exatamente uma tarefa fácil em função de questões operacionais e culturais - os dois âmbitos possuíam dinâmicas distintas de funcionamento que deveriam, de algum modo, buscar uma sinergia.
Percebe-se que Fernando de Azevedo e Mário Cardim atuaram intensamente no sentido de envolver a comunidade escolar na proposta, recomendando a inspetores, diretores e professores que os regulamentos deveriam ser “rigorosamente obedecidos para evitar que providências isoladas possam perturbar a perfeita organização da Federação Escolar de Escoteiros” (JORNAL DO BRASIL, 18 set. 1928, p. 21). Tratava-se primeiro de difundir os ideais do escotismo, somente depois empreendendo os esforços de organização dos núcleos e das atividades. Era nítida a preocupação de garantir que a iniciativa estivesse alinhada com os princípios educacionais expressos na Reforma.
Na ocasião, o escotismo já contava com muitos simpatizantes que consideravam que suas propostas tinham potencial para intervir em questões candentes do país (NASCIMENTO, 2004). O movimento passava por um momento de maior estruturação. Criada em 1924, a UEB passou a acolher associações semelhantes à FEE, tais como entidades estaduais (por exemplo, a Federação Fluminense de Escoteiros) e de credos (como a Federação Evangélica e a Associação de Escoteiros Católicos).
Não surpreende, portanto, que a UEB, por intermédio de uma de suas principais lideranças, Gabriel Skinner12, tenha demonstrado entusiasmo para com a proposta da Diretoria Geral de Instrução Pública. De pronto, a entidade representativa do movimento escoteiro saudou enfaticamente a iniciativa de Cardim de mandar imprimir e distribuir pelas escolas vários documentos de difusão das propostas do escotismo (O PAIZ, 17 out. 1928, p. 4).
Depois de um período inicial de estruturação e sensibilização, em dezembro de 1928, foi inaugurado o pioneiro núcleo de escoteiros da FEE, na Escola Prudente de Morais, tendo como chefe a Professora Maria Loureiro Dias Costa13. A cerimônia, que contou com presença de muitas autoridades municipais e do escotismo nacional, foi marcada por apresentações atléticas e grande caráter cívico. Celebrava-se que a Federação dava seus primeiros passos mais efetivos.
As perspectivas eram alvissareiras. Pelos jornais, é possível indiciar que se aventava construir uma sede para a FEE (GAZETA DE NOTÍCIAS, 28 nov. 1928, p. 4), bem como instalar uma Escola de Instrutores para melhor capacitar os professores que se envolvessem com a iniciativa (JORNAL DO BRASIL, 2 nov. 1928, p. 16). De modo complementar, discutia-se como atrair os alunos e pais. Para Armindo Maritas, chefe escoteiro, dever-se-ia evitar qualquer forma de imposição. Os jovens teriam que ser atraídos pela proposta ao verem o funcionamento dos núcleos, um “método, embora moroso e de muito trabalho, (...) melhor porque se formam melhores escoteiros” (O JORNAL, 26 out. 1928, p. 12).
Com efeito, era necessário não somente mobilizar os estudantes, mas, fundamentalmente, o corpo técnico escolar, sensibilizando-os para a proposta. Em janeiro de 1929, em reunião realizada na Escola Deodoro, presidida por Fernando de Azevedo, contando com grande presença de inspetores escolares, bem como do diretor da Escola Normal e Subdiretor Técnico da Instrução Pública, Jonathas Serrano, Mário Cardim enfatizou “as vantagens do escotismo, como auxiliar da educação física, moral e cívica da infância” (CORREIO DA MANHÃ, 10 jan. 1929, p. 8) e fez uma exposição sobre o programa a ser adotado já no início do ano letivo. A ideia era implementar núcleos nas 281 escolas de ensino primário da municipalidade.
No olhar de Azevedo e Cardim, passara a fase de sensibilização. Era urgente, então, colocar em prática a criação e atuação dos núcleos, um processo para o qual procuraram detalhar todos os procedimentos, entre os quais os uniformes a serem adotados (CORREIO DA MANHÃ, 6 fev. 1929, p. 3), inspirados em modelos que vieram da França e foram adaptados ao clima nacional.
Um cronista encarou a iniciativa como “prova evidente do adiantamento da organização do escotismo nas escolas públicas do Distrito Federal” (JORNAL DO BRASIL, 1 jan. 1929, p. 19). Pelas lideranças, era considerada também como uma forma de propaganda. Posteriormente, se percebeu que havia razão nessa percepção, tornando-se o uso de uniformes um dos fatores de visibilidade destacados (CORREIO DA MANHÃ, 31 mai. 1929, p. 9).
Outras reuniões de sensibilização foram realizadas com professores, também com o intuito de ouvi-los acerca das dificuldades de implantação da proposta, bem como prestar contas dos seus avanços. Perceba-se algo que merece registro. Num desses encontros, Cardim convidou os “membros do magistério municipal que fazem, presentemente, o curso de educação física, pelo método Joinville, na Escola de Sargentos” (GAZETA DE NOTÍCIAS, 9 mai. 1929, p. 5) para participarem da dinamização dos núcleos de escoteiros. Tratava-se de uma ação que almejava desenvolver a educação física a partir de uma proposta concebida como mais apropriada: o Método Francês14.
Da mesma maneira, seguiram sendo distribuídos documentos de esclarecimento e exaltação ao movimento escoteiro. Cardim firmou, ainda, um acordo para que a Livraria Alves editasse obras sobre o escotismo (CORREIO DA MANHÃ, 5 mai. 1929, p. 11).
Além disso, Mário Cardim passou a visitar escolas a fim de convencê-las a se envolver com a proposta. Merece destaque seu diálogo com as direções dos Institutos Ferreira Viana e João Alfredo, estabelecimentos de grande importância naquele final de década (CORREIO DA MANHÃ, 28 abr. 1929, p. 9). Chegou mesmo a se surpreender com os avançados núcleos de escoteiros que encontrou nas duas instituições.
Para dar melhor formação aos docentes interessados em se envolver com a organização de núcleos, uma vez mais Cardim recorreu à UEB, especialmente a Gabriel Skinner (CORREIO DA MANHÃ, 17 abr. 1929, p. 7). Em conjunto, foi traçado um ambicioso plano de atuação entre a prefeitura e a União (CORREIO DA MANHÃ, 21 abr. 1929, p. 8). Chefes escoteiros deram início às atividades em algumas escolas, sendo também os responsáveis pelos prognósticos e avaliações. Além disso, foi lançada a convocatória para o “Curso de Instrutores” (CORREIO DA MANHÃ, 21 mai. 1929, p. 8).
Como estímulo, previu-se o registro de mérito a título de promoção para os docentes que se envolvessem com as ações da FEE, mais um indício dos fortes intuitos de operacionalizar a iniciativa (CORREIO DA MANHÃ, 26 abr. 1929, p. 8). Ao final, houve mais de 300 inscritos (O PAIZ, 1 jun. 1929, p. 4), um número que ultrapassou a expectativa inicial e foi encarado como sinal alvissareiro, prognóstico do sucesso da proposta.
A ideia era oferecer 32 lições de 12 pontos nos quais seriam tratados princípios e possibilidades de intervenção, divididas em três fases: teórica, prática e administrativa. Os aprovados numa avaliação final, depois de realizarem um estágio com um chefe já habilitado que estava a atuar numa escola, receberiam o título de “Instrutor de Escotismo” (JORNAL DO BRASIL, 24 abr. 1929, p. 17).
Antes mesmo de ter início o Curso, professores da rede municipal começaram a circular por eventos escoteiros, a convite dos chefes da UEB, para melhor conhecer a dinâmica do movimento (CORREIO DA MANHÃ, 3 mai. 1929, p. 8). Cardim acompanhava amiúde todos esses passos. Perceba-se o cuidado, a organização e o rigor da iniciativa. As lideranças pareciam ciosas de que tudo saísse da melhor forma possível (CORREIO DA MANHÃ, 10 abr. 1929, p.3).
Novos apoios surgiram. Por exemplo, Arnaldo Guinle15, na condição de presidente de um dos mais bem estruturados clubes do Rio de Janeiro, o Fluminense Futebol Clube, que também possuía seu grupo de escoteiros, franqueou todas as instalações da agremiação para as atividades da FEE (GAZETA DE NOTÍCIAS, 24 mai. 1929, p. 2).
Essas ações parecem ter logrado êxito. Em várias ocasiões, se registrou o avanço do interesse por parte do corpo técnico, discente e pais (O PAIZ, 11 mai. 1929, p. 4). Em maio de 1929, o balanço era positivo. Ainda que houvesse diferenças entre os distritos escolares, identificou-se que participavam dos núcleos da FEE cerca de 4.000 alunos oriundos de 13 distritos (CORREIO DA MANHÃ, 31 mai. 1929, p. 9).
Em junho de 1929, celebrou-se o primeiro encontro de núcleos das escolas Deodoro, José de Alencar e Prof. Frazão, realizada na Escola Rodrigues Alves, todas do 3º distrito (Sacramento). Foram mais de 70 meninos participando de uma típica celebração escoteira com todos os seus rituais (JORNAL DO BRASIL, 19 jun. 1929, p. 16).
Em agosto daquele ano, na Quinta da Boa Vista, promoveu-se uma grande demonstração pública dos progressos da FEE. Anunciou-se que avançara o curso de instrução para professores. Perspectivava-se que logo a iniciativa chegaria a um número maior de escolas (O PAIZ, 2 ago. 1929, p.4). Os mais otimistas estimavam que poderiam ser até 30 mil envolvidos, incluindo “fadas e bandeirantes” (JORNAL DO BRASIL, 17 mai. 1929, p. 8).
De fato, em junho, uma novidade ampliara o alcance da iniciativa - anunciou-se a criação da Federação Escolar de Bandeirantes (FEB) tendo em conta também envolver as meninas que não eram abarcadas pela proposta dos escoteiros (O PAIZ, 9 jun. 1929, p. 12), ainda que suas participações estivessem previstas na Reforma de 1928. A iniciativa parece ter sido resultado de uma solicitação das envolvidas com o bandeirantismo16.
Como no caso dos escoteiros, a Federação de Bandeirantes do Brasil participou ativamente da iniciativa. Chefes dariam instruções às professoras para que assumissem os núcleos escolares. O modelo de funcionamento seria muito similar à FEE. Uma particularidade: decidiu-se que na FEB também se aceitaria a inscrição de meninos mais novos (O PAIZ, 24 e 25 jun. 1929, p. 6), que seriam liderados pelas docentes, reproduzindo-se o modelo do ensino primário.
No Brasil, o movimento bandeirante emergiu em 1919, no Rio de Janeiro. Desde o início, foi conduzido por mulheres que perspectivavam um papel feminino mais protagonista e ativo. A esse respeito, cumpre registar que Jerônima Mesquita, liderança do bandeirantismo no país, Presidente da Federação das Bandeirantes do Brasil, também envolvida com o funcionamento da FEB, era uma das líderes do sufragismo. A despeito de alguns enfoques conservadores, se considerados a partir de parâmetros atuais, há que se ter em conta que:
o movimento bandeirante teve um importante papel como instituição de educação não formal feminina, na medida em que possibilitou que essas mulheres realizassem tarefas para além do espaço doméstico e que, certamente, lhes proporcionou experiências que dificilmente seriam vivenciadas fora da instituição. Outra questão importante é que como entidade estritamente feminina, o Movimento Bandeirante deixa uma pertinente contribuição à história das mulheres (CARVALHO, 2014, p.174).
Em julho de 1929, nos moldes do que ocorrera com o movimento escoteiro, começou o curso de instrutoras, contando com mais de 80 professoras inscritas. As escolas José de Alencar, Deodoro e Rodrigues Alves rapidamente se envolveram com a proposta (JORNAL DO COMÉRCIO, 11 jul. 1929, p. 6). Em agosto, promoveu-se a primeira grande cerimônia pública da FEB (O JORNAL, 16 ago. 1929, p. 6), organizada no estádio do Flamengo, na ocasião localizado na Rua Paissandu, na esquina com Rua Guanabara, atual Pinheiro Machado, próximo, portanto, da sede do Fluminense que acolhia atividades da FEE.
Nos meses finais de 1929, vemos a sequência das ações das duas Federações. Mesmo enfrentando dificuldades diversas, percebe-se que seguiram as tentativas de consolidar as experiências em andamento e ampliar os núcleos por outras escolas e distritos da cidade. A FEE e a FEB eram constantemente elogiadas. Por quais motivos? Que importância teriam no olhar de lideranças e cronistas? É o que discutiremos a seguir.
Olhares sobre as Federações
Decorridos pouco mais de quinze anos da intensificação daquela concepção político-administrativa acentuada na gestão de Francisco Pereira Passos, quando mais intensamente se passou a atrelar as medidas de higienização e “progresso” às práticas de reconfiguração urbana que tencionavam solapar um setor da cidade, “arredia e alternativa, possuidora de suas próprias racionalidades e movimentos, vivenciada e construída, principalmente, por escravos, libertos e pobres” (CHALHOUB, 1990, p. 28), a década de 1920 foi marcada pelos desencontros naquilo que fora projetado.
Por outras palavras, a antiga capital do Brasil foi invadida por um turbilhão de acontecimentos cotidianos que, em comum, escancaravam as incompletudes, insuficiências e contradições dos projetos de reforma empreendidos: aumento desenfreado de práticas ilícitas; expansão desencontrada das ocupações alternativas; fortalecimento das reivindicações operárias; levante de militares, para ficarmos em alguns exemplos (SILVA, 2009).
Esse quadro de tensões concorreu para que o Presidente Epitácio Pessoa decretasse uma medida que, pelo menos desde 1920, já estava sendo cogitada: o estado de sítio. Sobre essa década, bem destaca Paulilo (2014, p. 181).
Ao fundo de quase meia década de estado de sítio, que foram os anos de 1922-1926, a historiografia veio perceber um movimento de contestação insistente do poder de Estado, uma resposta às tentativas de consagrar o pacto oligárquico. [...] as investidas realizadas contra o governo federal ou suas instituições oficiais, durante quase toda a década de 1920, exibiram de forma reiterada o equívoco da República, a sua verdade incompleta.
Essa dinâmica confusa que se manifestava no cotidiano concorreu, decisivamente, para as aproximações que houve entre o campo educacional e o escotismo. Na visão de educadores e lideranças escoteiras, a FEE e a FEB poderiam contribuir com os esforços de educar, controlar e disciplinar a população da, na ocasião, capital do país. Nas palavras de um cronista: “o Brasil, para ser mais respeitado e mais forte, precisa, além do café, do mate, da borracha, de laticínios, da castanha e de minerais, da força física, moral e cívica dos seus filhos, as bases em que assenta a doutrina do escotismo” (CORREIO DA MANHÃ, 6 fev. 1929, p. 3).
Frente a tais intencionalidades que, estrategicamente, tencionavam entrelaçar as apreensões educacionais com os preceitos do movimento escoteiro, não é de se estranhar que tanta atenção tenha sido direcionada para a oferta de cursos de formação para instrutores. Mais do que convencer os docentes, parecia necessário capacitá-los para entender o método, pautado em experiências e grande mobilização corporal. Ao mesmo tempo, essas duas dimensões aproximavam a proposta de uma visão renovada da atuação escolar que, no olhar de alguns educadores, tanto se apresentava como necessária.
A noção de patriotismo, por exemplo, foi constantemente veiculada e exercitada nas iniciativas das duas Federações. Todavia, procurava-se manter certas distinções. No “Decálogo para dirigentes do escotismo da Federação Escolar de Escoteiros”, no seu artigo 1º, explicitava-se: “O escotismo não é absolutamente um movimento de caráter militar” (O PAIZ, 27 abr. 1929, p. 8). Ressaltava-se que pontos em comum não deveriam ser interpretados como confusão de princípios.
Nesse mesmo documento, se esclarecia que a FEE era neutra no que tange a assuntos religiosos e partidários. Contudo, reconheceu-se a importância da educação política da juventude, especificamente no tocante à educação moral e cívica. Apontou-se que a ideia de democracia deveria nortear o funcionamento dos núcleos, estando os dirigentes comprometidos com esse princípio.
Um dos aspectos mais interessantes desse documento é a defesa de uma educação equilibrada e moderada. Sugere-se que se deveria evitar “qualquer espécie de excesso: excesso de exercícios ou esforços desproporcionados com a resistência física infantil, excesso de disciplina, excesso de exibição, excesso de paixão” (O PAIZ, 27 abr. 1929, p. 8).
Além disso, se enfatizava que as atividades deveriam se revestir de caráter prático. Azevedo e Cardim procuravam fazer uma leitura dos princípios do movimento escoteiro a partir dos ideais de renovação educacional em debate na época (SILVA; VIDAL; ABDALA, 2020). Na imprensa, registrou-se constantemente que se compreendia o escotismo como uma estratégia de “educação simultânea do corpo e do espírito, da inteligência e do caráter” (O PAIZ, 16 mai. 1929, p. 5).
No caso da FEB, os periódicos buscavam ressaltar, provavelmente para dirimir resistências dos pais, que as doutrinas “baseiam-se nos mesmos princípios da organização de escoteiros, se bem que as aplicações sejam necessariamente diferentes. O escopo é o mesmo: formar uma geração feminina forte de corpo e alma, útil a si mesma, à Pátria, à família e à humanidade” (O PAIZ, 6 jun. 1929, p. 5).
A princípio, a iniciativa reconhecia uma nova postura e um maior protagonismo social feminino. De outro lado, se afirmou que a ideia era que as meninas se tornassem “mais vigorosas para poder melhor desempenhar a sua missão social de boas mães de família, e, com o intelecto mais desenvolvido, colaborar com o homem no engrandecimento moral e material do Brasil” (O PAIZ, 9 jun. 1929, p. 12). Nesse olhar, as mulheres ainda ocupariam uma função coadjuvante.
Houve, todavia, quem entendesse a iniciativa como indicador de que a “educação feminina atualmente está nivelada à do homem e a sua eficiência de trabalho em todos os ramos de atividade” (O PAIZ, 11 jun. 1929, p. 4). Sob essa perspectiva, elas não eram inferiores ou auxiliares, mas partícipes em mesmo grau no processo necessário de “reação aos males sociais que nos afligem”.
A todo o tempo, cronistas, educadores e lideranças, no que tange ao movimento bandeirante, procuravam se equilibrar entre as novidades educacionais e a persistência de visões do passado. Em geral, exaltavam a iniciativa, esgrimindo parâmetros de valorização semelhantes àqueles destinados ao escotismo. Todavia, promoviam adaptações.
Destacavam a preocupação com o desenvolvimento físico, mas eventualmente o relacionavam à maternidade. Elogiavam o aspecto da formação de caráter, mas se preocupavam em pensar na parceria em muitas ocasiões submissa aos homens. Citavam a importância de preparação para o mundo do trabalho, mas não deixavam de lembrar que não deveria ser abandonado o mundo doméstico e as obrigações do lar (JORNAL DO COMÉRCIO, 25 ago. 1929, p. 13).
Tais adaptações promovidas indiciam algumas das tensões, lutas e contradições que estiveram envolvidas nas apropriações que o campo educacional prestigiava em relação tanto ao movimento bandeirante, em particular, quanto às representações de feminino, em geral naquele final de década. De toda maneira, como no caso da FEE, eram muito elogiadas as ações da FEB.
Considerações Finais
Segundo Baden-Powell, essas deveriam ser as características preponderantes de um projeto educacional:
É a educação para vida que é necessária, desde que realizações escolásticas ajudam apenas um pouco, enquanto a vida tem de ser vivida por cada indivíduo que nasce no mundo. A educação ainda tende a preparar os meninos e as meninas para os padrões dos exames, mais que para as necessidades da vida; e por vida quero dizer não meramente como ganhar a vida, mas como viver, como aproveitar e tirar o melhor proveito da vida, ser feliz e útil (apud HEROLD JUNIOR; VAZ, 2012, p.175).
Educar para a vida. Esta parece ser uma chave interessante para considerar as aproximações da Reforma da Instrução Pública e do campo educacional com o escotismo. Como foi explorado, a instrução dos saberes elementares (ler, escrever e contar) era defendida como um passo introdutório. Mais importantes, contudo, se afiguravam aquelas dimensões relacionadas à formação do caráter, ao estímulo à moderação dos hábitos, ao despertar do sentimento cívico, ao exercício do disciplinamento moral, à preocupação com o desenvolvimento equilibrado e à defesa de que fosse evitado qualquer espécie de excesso.
A esse respeito, é interessante acompanhar a exposição de ideias de Azevedo em entrevista concedida ao jornal A Noite (23 jan. 1930, p. 1):
A alfabetização, pura e simples, não constitui, hoje, ideal em matéria de educação. A linguagem, a escrita e o cálculo - imprescindíveis instrumentos de expressão - não se podem considerar fundamentos da educação, que se baseia antes, na higiene física e mental, na formação do caráter, do sentimento cívico, do espírito de cooperação e de solidariedade social, enfim no desenvolvimento do indivíduo de maneira que possa melhorar a sua vida e contribuir para a prosperidade do meio a que pertença. Estes é que são os verdadeiros fundamentos da educação básica comum que deve ser dada a todos (escola única).
Ora, o fim que se propõe a educação moderna, ainda que elementar e básica, é aparelhar o cidadão de elementos que possam habilitá-lo a conduzir-se por si mesmo e a melhorar a vida no duplo sentido - da sua vida e da vida social. O que quer dizer, em poucas palavras, que, dentro dos nossos ideais de educação, a educação propriamente dita prepondera sobre a instrução, procurando-se, nesta um meio de ampliar e elevar aquela.
Percebe-se que, no olhar do educador, a higiene física e mental, bem como o caráter e a solidariedade social, eram os alicerces fincados para destacar alguns dos papéis que deveriam ser desempenhados pela educação. Tratam-se de indicadores que contribuem para uma compreensão mais acurada sobre o que seria o educar para a vida tão enfatizado no debate educacional daquele momento.
Ainda no que tange à temática, convém acompanhar o que se encontrava registrado nas prescrições reunidas nos “Programas para os Jardins de Infância e para as Escolas Primárias”, redigidas por Azevedo em 1929:
Todo professor, de acordo com os ideais da escola nova, é um educador: o professor que, dando a sua lição, julgou concluída a sua tarefa, não é digno da profissão que exerce, no interesse público. A ele é que cabe contribuir para a educação moral e cívica, pelo exemplo constante e pelas oportunidades que lhe dá o ensino a seu cargo. Não há matéria, não há atividade escolar, não há solenidade que não dê ensejo a uma lição de moral ou de civismo. Incutir no espírito do aluno a consciência do dever e da responsabilidade; formar-lhe o caráter; criar e desenvolver o espírito de brasilidade; despertar-lhe a consciência dos deveres de cidadão (AZEVEDO, 1929, p. 13).
Para o Diretor Geral da Instrução, os professores eram os responsáveis pela inculcação e difusão da educação moral e cívica entre os alunos. Por esse veio, os preceitos educativos explorados concorreriam para estimular “a consciência do dever e da responsabilidade [e] criar e desenvolver o espírito de brasilidade”.
De acordo com Marta Carvalho (2003) é a partir, e em função, dessas considerações que se torna possível realçar que a educação do corpo para uma vida saudável e moralizada e a formação cívica despontaram como aspectos preponderantes nas aproximações tencionadas pela Diretoria Geral de Instrução Pública da cidade do Rio com o escotismo. Indícios dessas dimensões podem ser percebidos na criação da FEE e da FEB, com menções explícitas à educação física, moral e cívica e ao próprio Baden-Powell.
Acerca desses aspectos, tencionamos demonstrar que foram as exigências sociais - a insistência na necessidade de organizar, disciplinar e harmonizar a experiência citadina - que induziram a uma aproximação do escotismo com as representações relacionadas à (re)significação dos saberes e práticas da escolarização primária. A rigor, se apregoava a necessidade de que a escola se aproximasse do cotidiano dos alunos. Melhor ainda, que esse fosse, de algum modo, convertido em campo de exploração para a intervenção educacional (NUNES, 1994; SILVA; 2009; PAULILO; SILVA, 2012).
Nesse quadro, estava em cena o ideal de fazer com que os alunos percebessem elementos do cotidiano como circunstâncias passíveis de serem experimentadas e apropriadas para o desencadeio do processo de aprendizagem (VIDAL, 2000). Tratava-se, portanto, de fazer com que a vivência do aluno fosse submetida a uma experiência educativa, a partir da qual se promoveria uma forma de exame, sancionando o que se aproximava da verdade escolar e rechaçando aquilo que dela se afastava/desviava/desvirtuava.
Trata-se de algo que foi sistematizado pelo próprio Fernando de Azevedo nos “Programas para os Jardins de Infância e para as Escolas Primárias” (1929, p. 13), no tópico intitulado educação física, moral e cívica: “A escola nova não é apenas um aparelho de instrução: tem por fim dar uma educação integral orientada para um fim determinado e em harmonia com os novos ideais”. Para este fito, prossegue: “o próprio aluno, no pelotão de saúde, ou o escoteiro, é um elemento eficaz na divulgação de hábitos”.
Educação e escotismo convergiam, assim, para uma direção muito próxima: investir na preparação dos alunos e das alunas para assegurar um futuro harmônico, educado e higienizado para a cidade. A FEE e a FEB foram tentativas de potencializar essa relação considerada alvissareira.