Introdução
É consensual o pensamento de que ao fazer pesquisa, nos diferentes territórios epistêmicos, o pesquisador se faz e se refaz, também, ao realizá-la. Na área de História da Educação não é diferente. No ato mesmo de realização da pesquisa, neste caso, o historiador da educação se vê diante de um passado humano que, como afirma Rüsen (2001), “não está estruturado na forma de um constructo que possamos compreender como história” (RÜSEN, 2001, p. 68), de maneira que ao pesquisador está posto o desafio de interpretar o passado e, nesse movimento, fazer dos ‘feitos’, das ações humanas a história (RÜSEN, 2001).
Na tradição historiográfica francesa esse ‘fazer histórico’ ganhou forte impulso com a emergência da chamada Escola dos Annales, no início do século passado, cujo movimento inicial foi distanciar-se da história historicizante centrada nos acontecimentos, deslocando o olhar dos aspectos políticos para os econômicos, para a organização social e a psicologia coletiva, além de se esforçar em aproximar a história das outras ciências humanas (DOSSE, 1992; BOURDÉ; MARTIN, 1983). Essa renovação historiográfica ganhou território amplo nas pesquisas em décadas posteriores, abrindo caminhos para o surgimento da chamada Nova História. Esta corrente historiográfica vem propor um novo jeito de “fazer a história”, começando por atribuir protagonismo aos sujeitos, antes ocultados pela narrativa histórica das grandes sínteses, tornando possíveis as investigações voltadas para as particularidades regionais e locais, além de abrir espaço na pesquisa para os “novos problemas”, “novas abordagens” e “novos objetos” (LE GOFF; NORA, 1976).
Nesse horizonte, o presente texto discorre acerca do debate teórico-metodológico na produção historiográfica, no campo da história da educação, em nível local/regional sem perder de vista a sua relação com o global, tendo em vista a necessidade posta há muito tempo pela historiografia, de que as realidades resultantes da ação do homem, sobre o espaço e o tempo, devam ser analisadas, também, a partir singularidades manifestadas em seu micro espaço. Trata-se de um trabalho resultante de uma pesquisa de doutorado que investigou as políticas públicas de educação do município de Vitória da Conquista-Bahia, no período entre 1945 e 1963, cuja opção teórico-metodológica adveio, sobretudo, dos horizontes abertos pela Nova História. Nesse sentido, conforme afirma Ariès (2011), “os Annales hoje são algo diferente do que foram no passado” (p. 278), de maneira que, ao longo de suas sucessivas gerações, esse movimento historiográfico tornou-se mais amplo, trazendo para o seu campo de estudos fenômenos significativos de nossa história contemporânea. Assim, buscamos aportes, entre outros estudos, no trabalho de Pierre Goubert (1992), cuja abordagem sobre a História Local, enquanto gênero historiográfico1, nos permite voltar o olhar para a realidade local e interpretá-la como a história de “toda uma sociedade, não apenas dos privilegiados que a governaram, julgaram, oprimiram ou ensinaram” (GOUBERT, 1992, p. 48). Goubert contribuiu para que tais possibilidades teórico-metodológicas trouxessem novas perspectivas de investigação, inclusive, no campo da História da Educação. Nesse aspecto, a escrita da história da educação na dimensão local não deixa de reconhecer o município como entidade político administrativa com vida própria, entretanto, articulado com as ações políticas e educacionais em nível nacional/global, rompendo com a dicotomia entre o centro e a periferia, o local e o global. E embora o recorte temporal da referida pesquisa tenha como limite o ano de 1963, nos limites deste texto faremos apenas um breve “desenho” do que foi a educação no município conquistense, até a primeira metade do século XX.
La Nouvelle Histoire2 e o ressurgimento da História Local
Philippe Ariès, um dos nomes conhecidos da historiografia francesa, recupera em um de seus escritos a gênese da História Social francesa, quando acontece a renovação da ciência histórica, no início do século XX. Era um tempo em que a “história tradicional se interessava quase exclusivamente por indivíduos, por camadas superiores da sociedade, por suas elites (os reis, os homens de Estado, os grandes revolucionários), e pelos acontecimentos (guerras, revoluções), ou pelas instituições (políticas, econômicas, religiosas) dominadas por tais elites” (ARIÈS, 2011, p.273). Nesse cenário, a História Social se apresenta como um contraponto à História Tradicional, tendo o seu campo de investigação voltado para a “massa da sociedade, deixada de lado pelos poderes, por todos aqueles em posição de subjugados”. (p. 273). Tratava-se de romper com a história política de viés positivista, a história historicizante ou événementielle que, por um lado, era o que Le Goff denominou de uma história-narrativa e, por outro, “uma história de acontecimentos, uma história factual, teatro de aparências que mascara o verdadeiro jogo da história, que se desenrola nos bastidores e nas estruturas ocultas (...)” (LE GOFF, 1990, p.31). É nessa dinâmica que surge, em 1929, a chamada École des Annales, movimento historiográfico francês agrupado em torno da revista Annales d’Histoire Economique et Sociale, lançada em Estrasburgo.
Tendo como fundadores Marc Bloch e Lucien Febvre, a Escola dos Annales se ‘evolui’ em várias gerações e, em 1946, impõe-se com uma nova sigla passando a chamar-se Les Annales. Economies. Societés. Civilizations (BOURDÉ; MARTIN, 1983). Nessa nova versão a sua notoriedade se eleva, sobremodo, com a criação de um instituto de investigação e de ensino, a VI Seção da École Pratique des Hautes Études, em 1947, presidido por Lucien Febvre e, posteriormente, por seu discípulo Fernand Braudel. Ao incorporar pesquisadores de diferentes campos de pesquisa em uma busca pluridisciplinar, a Escola dos Annales esforça-se por aproximar a História das outras ciências humanas, sobretudo, da Sociologia, da Antropologia e da Geografia. Esta última teve em Braudel o seu mais notável discípulo. A sua obra “O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Filipe II” é a expressão de um historiador impregnado das lições da geografia humana, ou seja, a Escola dos Annales busca na Geografia a construção de uma nova abordagem para a interpretação dos fatos históricos, situando-os não apenas em um tempo histórico, mas também, em um espaço. Não por acaso, a revista Annales d’histoire économique et sociale teve como inspiração os Annales de Géographie, de Vidal de La Blache (BURKE, 1991).
Depois de 1968, Braudel cerca-se de um comitê onde figuram Jacques Le Goff, Emmanuel Le Roy Ladurie e Marc Ferro, e é na década de 1970, que a Escola dos Annales alcança a sua terceira geração, sob o comando do medievalista Le Goff em parceria com Georges Duby. Já em 1974, Le Goff, em parceria com Pierre Nora, propõe um novo “Fazer História”, título de uma coletânea de artigos que trazem em si a essência dos Annales, posto que os mesmos colocam “novos problemas”, esboçam “novas abordagens” e distinguem “novos objetos”. Em 1975, a era Braudel ficou para trás quando a VI Seção da École Pratique des Hautes Études se tornou a École des Hautes Études en Sciences Sociales, presidida por Le Goff, sendo substituído, em 1977, por François Furet (BURKE,1991). Aqui a chamada Nova História emerge como a ‘herdeira da Escola dos Annales’, conforme apontam Bourdé e Martin (1983) e ganha território amplo na pesquisa histórica.
Não obstante, a Nova História tem “pais”, conforme afirma Le Goff (1990). Para este historiador as “Novas considerações sobre a história”, de Voltaire, em 1744, já teciam severas críticas a uma história em que ele “só aprendia acontecimentos”, era preciso “saber a história dos homens, em vez de saber-se uma pequena parte da história dos reis e das cortes” (VOLTAIRE, s/d, apudLE GOFF, 1990). Também o prefácio dos “Estudos históricos”, de Chateaubriand, em 1831, é, para Le Goff, um verdadeiro manifesto da Nova História. Nele o pensador se mostrava insatisfeito com os analistas da antiguidade, posto que esses “não introduziam em suas narrativas o quadro dos diferentes ramos da administração: as ciências, as artes, a educação pública eram rejeitadas do domínio da história” (LE GOFF, 1990, p. 38).
Entretanto, Jules Michelet e Fraçois Simiand são considerados como os grandes precursores da Nova História. Michelet dirigiu críticas diretas à história como ele a via nos homens eminentes que a representavam. A sua postura tratava-se da “recusa de uma história essencialmente política e a aspiração a uma história total e profunda” (LE GOFF, 1990, p. 41). Comumente, Simiand em seu memorável artigo “Método histórico e ciência social”, tece críticas aos “três ídolos da tribo dos historiadores”: “o ídolo político”, “o ídolo individual” e “o ídolo cronológico” (LE GOFF, 1990), ou seja, ele denuncia a construção historiográfica em que é dada importância exagerada aos fatos políticos, às guerras, ao estudo de um indivíduo em sua origem particular, ao mesmo tempo em que oculta o fenômeno social, o sujeito comum e as suas relações.
É incontestável que o movimento dos Annales se prolongou por sucessivas gerações, a ponto de se falar em uma possível quarta geração, que seria a Nova História Cultural, no final dos anos de 1980. Esta fase, liderada pelos historiadores Roger Chartier, Jacques Revel e a historiadora Lynn Hunt, além do italiano Carlo Ginzburg que se soma ao grupo, busca a investigação das “práticas culturais”, indo além das “mentalidades”. Nesse horizonte, Jim Sharpe (1998), aponta a “história vista de baixo”3 como mais um projeto nascido da influência dos Annales e que se comprovou extraordinariamente frutífero, na medida em que “abre a possibilidade de uma síntese mais rica da compreensão histórica, de uma fusão da história da experiência do cotidiano das pessoas com a temática dos tipos mais tradicionais de história” (SHARPE, 1992, p. 54).
É nesse movimento de intermitentes gerações que a Escola dos Annales abre espaço para o estudo do local. Delimitar, explicar as lacunas, os silêncios da história, e assentá-la tanto sobre os vazios, quanto sobre os cheios que sobreviveram (LE GOFF, 1990) constitui uma das tarefas nobres da Nova História. Essa nova tendência que abordaria o ‘pequeno espaço’ se fortalece nos anos de 1950 e ficou conhecida na França como ‘História Local’ (BARROS, 2006). É nessa esteira que a Escola dos Annales descobre o domínio da história demográfica, que assenta em séries de nascimentos, de casamentos e de falecimentos, logo depois da Segunda Guerra, e encontra-se em várias teses, conforme asseveram Bourdé e Martin (1983). É o que faz Pierre Goubert em uma de suas mais notáveis produções: Beauvais e o Beauvaisis nos séculos XVI ao XVIII, cuja contribuição para os estudos historiográficos locais é incontestável.
A História Local e a História da Educação
A tese de Goubert Beauvais e o Beauvaisis de 1600 a 1730 (1960) põe em evidência uma façanha da demografia histórica: a de que ela foi capaz de inventar os seus próprios métodos. É nesse trabalho que ele marca uma viragem historiográfica e, ademais, oferece um modelo para avaliar o movimento de populações em um tempo em que não se pensava na precisão das estatísticas. Para Bourdé e Martin (1983), Goubert não renunciou à procura do global, mas quis atingi-lo numa base espacial mais restrita, no âmbito de estudos regionais. Essa premissa se confirma no fato de que em sua obra, o todo de uma sociedade é estudado e apresentado com notável rigor científico e pormenores. Goubert foi um dos discípulos de Bloch que adotou “o espírito dos Annales” e, embora tenha se especializado na história do século XVII, ao estudar com Bloch permaneceu fiel ao estilo da história rural de seu mestre. Todavia, é em seu eminente artigo publicado originalmente na obra Historical Studies Today (1972), intitulado “A História Local”, que Pierre Goubert problematiza a pesquisa histórica elegendo como foco de discussão a história local. Nesse artigo, o historiador francês caracteriza a história local como sendo
aquela que diga respeito a uma ou poucas aldeias, a uma cidade pequena ou média (um grande porto ou uma capital estão além do âmbito local), ou a uma área geográfica que não seja maior do que a unidade provincial comum (como um county inglês, um contado italiano, uma Land alemã, uma bailiwick ou pays francês) (GOUBERT, 1992, p.01).
Segundo ele, a História Local teve os seus tempos áureos na França. Praticada com cuidado, zelo, e até orgulho, ela foi mais tarde desprezada, principalmente nos séculos XIX e primeira metade do XX, pelos partidários da história geral, cujos métodos históricos usuais se ocupavam dos problemas das classes mais altas, ou seja, de uma história “interessada nos que fizeram as leis (...), naqueles que governavam e não nos governados, no clero e não nos fiéis, nas histórias de homens de letras descrevendo suas regiões e não na própria realidade da região” (GOUBERT, 1992, p.48). No entanto, respaldada pelo novo olhar da Nova História que elege “novos problemas” e “novos objetos” para a pesquisa, a História Local ganha território amplo nas pesquisas históricas e, enquanto possibilidade teórico-metodológica, vem se contrapor a uma história que “foi escrita a partir do centro” (CERTEAU, 1973 apudSCHMITT, 1990, p. 261) e busca trazer para a cena histórica o sujeito da “história vista de baixo”. Assim, a História Local retorna à cena a partir de um novo interesse da História Social, qual seja, “a História de toda uma sociedade, não apenas dos privilegiados que a governaram, julgaram, oprimiram, ensinaram” (GOUBERT, 1992, p.48).
Por conseguinte, a história local não se opõe à história global ou a “macro história”, o seu recorte apenas designa uma delimitação temática marcada por particularidades históricas, culturais, políticas, etc., quase sempre ocultadas por generalizações maiores. A grande valia da história local está, sobretudo, em seu diálogo fecundo com a história global, posto que
não existe [...] hiato, menos ainda oposição, entre história local e história global. O que a experiência de um indivíduo, de um grupo, de um espaço permite perceber é uma modulação particular da história global. [...] o que o ponto de vista microhistórico oferece à observação não é uma versão atenuada, ou parcial, ou mutilada, de realidades macrossociais: é uma versão diferente. (REVEL, 1998, p. 16).
Comumente, a história em sua abordagem local abriga também o aspecto regional. Conforme Janaína Amado, região aqui é entendida como “a categoria espacial que expressa uma especificidade, uma singularidade, dentro de uma totalidade: assim, a região configura um espaço particular dentro de uma determinada organização social mais ampla, com a qual se articula” (AMADO, 1990, p.13). Outrossim, Pesavento (1990), amparada nos pressupostos do materialismo dialético, afirma ser a história regional a síntese das múltiplas determinações, ou seja, existe uma especificidade localizada que é econômico-social como espaço de exercício do poder e de construção da autoimagem de um grupo. Sendo assim, o estudo histórico de uma região implica a análise de uma singularidade na totalidade (PESAVENTO, 1990). Nessa perspectiva, vale salientar que a história local e regional, em sua formulação contemporânea não apresenta a dimensão geográfica como foco, ou lhe atribui o papel de condutora da ideia, como fizera Braudel. O objeto de estudo da História Local e Regional volta-se para o homem no seu cotidiano historicamente construído, e não o espaço, como propunha estudar o paradigma inicial (HUNT, 1992), para situar-se nas ações humanas tecidas no espaço de uma região ou localidade.
A coincidência entre a região examinada e uma unidade administrativa tradicional, como um pequeno município, permite por vezes que o historiador resolva as suas carências de fontes em um único espaço, ali mesmo se apropriando de informações concernentes às relações que plasmaram os grupos sociais investigados, sem, contudo, ‘mirar-se na árvore e, ao mesmo tempo, ocultar a floresta’. Assim sendo, na pesquisa acerca das políticas públicas de educação do município de Vitória da Conquista, que deu origem a este texto, ao pensarmos o local como um espaço de abrangência geográfica restrita, cujos sujeitos e práticas sociais expressam hábitos, costumes, tradições que lhes conferem uma identidade, a educação emerge como uma amálgama social importante, cuja função, em especial na dimensão municipal, está voltada tanto para o desenvolvimento social e econômico, quanto para a legitimação do poder local. Mais que isso, ao definirmos Vitória da Conquista como o lugar, o contexto, a agência, os sujeitos/beneficiários, o projeto/investimento (CARVALHO; CARVALHO, 2012), vemos que a pesquisa histórica, na área de História da Educação em uma dimensão micro, focaliza o município como uma instância do planejamento e consolidação de projetos educativos, escolares, político-pedagógicos com características próprias, além de trazer para a cena histórica os sujeitos que idealizam, planejam, realizam e disputam espaços de poder, por fim, nos remete ao significado da ação histórica protagonizada por esses agentes.
Com o foco nas ações locais, do ponto de vista educacional, como as nomeações de professores, a criação de escolas em lugares específicos, a influência de chefes de famílias tradicionais locais nas políticas educacionais, o apadrinhamento na contratação dos profissionais da educação, as relações público-privado etc. a escrita da história da educação local não deixa de reconhecer o município como instituição com vida própria, entretanto articulado com as ações políticas e educacionais em nível nacional/global. Foi a partir dessas orientações que, ao propormos investigar uma dimensão da história da educação do município de Vitória da Conquista, nos comprometemos com a escrita de sua história, de modo a dar forma à sua memória educacional, já que não há memória espontânea (NORA, 1993). Nesse horizonte, não desprezamos o trabalho dos memorialistas4, cujas produções dão conta das especificidades locais/regionais, de modo que uma das vias percorridas para a interpretação da história da educação do município veio da produção de historiadores locais, jornalistas e poetas, que forneceram um “material útil” (GOUBERT, 1992) para a escrita. Essas narrativas, crônicas, notícias e poesias sobre o cotidiano da cidade e de sua gente reverberam em “provas” que alteram algumas ideias ‘gerais’, preconceitos e aproximações que, frequentemente, prevalecem na ausência de investigações mais precisas (Idem, 1992).
A pesquisa em História da Educação na dimensão local
Ao elegermos o local como perspectiva de abordagem para a História da Educação no município de Vitória da Conquista-Bahia, construímos, de início, um breve “desenho” do que foi a educação no município até os idos de 1945. Trata-se do recorte de uma pesquisa de doutorado que investigou as políticas públicas de educação do município supracitado, no período entre 1945 e 1963. Para darmos conta desse “desenho”, recuamos no tempo cronológico da pesquisa, começando pela criação das primeiras escolas no município, ainda no século XIX. Para isso, recorremos à pesquisa documental, inclusive fazendo uso da imprensa local do período investigado, o que nos possibilitou o cotejamento com as fontes oficiais5, na medida em que a mesma dava projeção às ações dos governantes municipais, a partir da divulgação de suas políticas para a educação local e de suas relações políticas nas esferas estadual e federal. A construção desse ‘desenho’ da educação no município representou uma condição para avançarmos em nossa investigação a partir do ano de 1945 até o ano de 1963. No entanto, não nos ocupamos em dar maior profundidade à discussão, tampouco construí-la com a intenção de uma atividade comparativa dos períodos. Buscamos, tão somente, construir um ponto de partida para a nossa análise, evitando as generalizações tão frequentes nesse tipo de narrativa.
Naquele contexto, Vitória da Conquista apresentava uma realidade educacional precária, com poucas condições de responder às demandas por educação, já que era quase inexistente, nesse período, a presença do Estado na garantia desse direito. Trata-se de um período em que as relações sociais e políticas ainda se manifestavam sob forte apelo ao autoritarismo coronelista, muito em voga naqueles tempos, de modo que essas relações senhoriais inviabilizaram, quase que totalmente, um projeto educacional de maior alcance no município. Sabe-se que a primeira escola pública no município foi instalada no ano de 1832, pela Assembleia Legislativa da Província da Bahia. Era uma escola de “chão batido”, que funcionava em um
cômodo térreo parecido com um corredor de 3 metros de largura e 10 de comprimento, todo esfumaçado e desprovido de utensílios, pelo que se assentavam os meninos em tábuas, pedras e caixões colocados em roda de uma velha mesa mandada fornecer com dois bancos pela municipalidade. A matrícula dessa escola era de 35 e a frequência de 20. Por não terem livros, liam as crianças em pedaços de gazetas ou manuscritos grudados em papelão. (AGUIAR, 1888, apud VIANA, 1982, p.434).
Conforme Silva (1996), nesse contexto muitos criadores de gado e fazendeiros passaram a residir nos povoados, a fim de colocarem seus filhos na escola. O mesmo autor dá conta de que tempos depois, em 1908, havia uma cadeira mista na cidade de Conquista6 para alunos do sexo masculino e feminino, e que se denominava Aula Municipal. No livro de matrícula,
nas folhas 3 e 4, estão matriculados 51 alunos. Na folha 5, do ano de 1909, existem 45 alunos matriculados, havendo um decréscimo de 6 alunos. Nas folhas 9, 10 e 11, no ano seguinte, esta matrícula sobre para 78 alunos, para voltar a decrescer em 1911, quando se verifica a soma de 66 alunos matriculados nas páginas 12 e 13. Este número cai ainda mais em 1912, para 59 alunos, voltando a subir um pouco em 1914, quando há matriculados 62 alunos. [...] Em 1915, há um novo decréscimo, existindo, no mesmo livro de matrículas, tão somente 49 alunos. (SILVA, 1996, p. 15).
Essa mesma cadeira foi fechada no ano de 1909, em função de um conflito armado entre facções políticas no município, conhecidas como “Meletes e Peduros”7. Somente algum tempo depois, a Intendência veio a providenciar duas escolas para a comunidade urbana: uma estadual e outra municipal, cujo número de matrícula, nas duas, somava mais de cem alunos.
Não obstante, o município adentrou o século XX sem muitos avanços nesse setor, de modo que o cenário educacional só começou a ganhar impulso a partir da década de 1920. Aqui os estudos de Aníbal Lopes Viana (1985), historiador local e jornalista, se mostraram ‘material útil’ (GOUBERT, 1992) para esta pesquisa, na medida em que revelam particularidades, mas que, também, refletem ideias mais gerais. Em seus relatos, o autor dedica um espaço à história da criação de escolas privadas no município, sinalizando, assim, para a força do ensino privado nas primeiras décadas do século XX. Foram 12 escolas privadas criadas entre 1916 e 1940, por professores, professoras, famílias abastadas e fazendeiros, em espaços urbanos e rurais. O ensino oferecido era o das primeiras letras, o primário e o ginásio.
A chegada de Anísio Teixeira à Inspetoria Geral do Ensino, na Bahia, nos anos vinte, veio com certo otimismo. Ao ser nomeado inspetor geral, no governo de Francisco Marques de Góes Calmon (1924-1928), Anísio se mostrou empolgado com a ideia de um “localismo educacional” (ABREU, 1960, p. 14), se empenhando na aprovação da Lei nº. 1.846, de 14 de agosto de 1925, de reforma da Instrução Pública na Bahia, além do Decreto nº. 4.218, de 30 de dezembro de 1925, que aprova o regulamento do ensino primário e normal. Anísio propõe, por meio da lei, a unificação dos serviços educacionais estaduais e municipais, estabelecendo em seu capítulo II (Do Ensino Municipal), Artigos 70 a 738:
a) Ensino primário (a cargo dos municípios e do Estado) constitui-se um só e único serviço, sob a direção geral do Estado; b) A competência de ‘criar, manter, transferir e suprimir escolas de instrução primária’ dos municípios é reconhecida, nos limites da lei; c) Unificados os serviços, todos os professores passam a ser funcionários estaduais. (...); d) O município fica obrigado a destinar 1/6 da sua receita para a educação primária, podendo ainda criar contribuições especiais para a educação; e) O tesouro do Estado pagará aos professores a partir dos recursos recolhidos mês a mês pelos municípios à Fazenda estadual. (BAHIA, 1925).
No entanto, a despeito de a referida lei prever uma relação mais descentralizada nas questões educacionais entre Estado e município9 (Arts. 70 e 71), ela não se materializou no cotidiano da maioria dos municípios baianos como deveria, dada a estrutura deficiente destes, tanto do ponto de vista material, quanto financeiro. No caso de Vitória da Conquista, mesmo após a aprovação da Lei Estadual nº. 1.898, de 4 de agosto de 1926, que “Autoriza o Poder Executivo a mandar construir nos municípios do estado, prédios destinados às escolas públicas, estações fiscaes, collectorias e cadeias públicas, mediante contractos celebrados entre as respectivas Intendências Municipaes” (BAHIA, 1926; TEIXEIRA, 1928), não localizamos quaisquer documentos que indicassem a construção de tal estrutura no município, até o final do mandato do Governador Góes Calmon, em 1928. Ademais, em um relatório10 encaminhado ao governo do Estado por Anísio Teixeira, em 1928, supõe-se que a construção dos referidos prédios escolares encontrava dificuldades de custeios, conforme indica o referido relatório:
qualquer outro processo torna a construcção do predio esccolar excessivamente pezado para os orçamentos ordinarios, e dahi a eterna delonga em satisfazer essa suprema necessidade de um systema escolar em Estado, como o da Bahia, de progresso nascente e de rendas ainda diminutas. (TEIXEIRA, 1928).
No mesmo documento, o município de Vitória da Conquista aparece entre um grupo de 17 municípios com “adiantada construção” (TEIXEIRA, 1928) do prédio escolar, pelo Estado. Entre o fim do governo Góes Calmon na Bahia (1924-1928) e o advento do governo Vargas, a partir de 1930, não há registros no município de Vitória da Conquista da construção de novos prédios escolares pelo Estado. Esse desenho da educação municipal permaneceu precário por longa data. Todavia, o movimento político local, nos anos 30, rendeu ao município uma relação política estreita com a política em nível estadual. Um fato que corrobora essa proposição foi a nomeação do prefeito Arlindo Mendes Rodrigues, de 1933 a 1936, pelo então Interventor Juracy Magalhães. Nessa conjuntura, a educação pública em Vitória da Conquista não foi deixada de lado, uma vez que o seu quadro permaneceu precário, pelo menos até a década de 1930. Em uma nota, publicada no jornal “A Notícia” (11/04/1930), o redator, professor Euclydes Dantas, em apelo ao Secretário do Interior, descreve o quadro como “deficiente o ensino, mesmo primário no município de Conquista. Urge o preenchimento das vagas existentes e a criação de mais escolas, para a cidade e para o interior da comuna (...). Estamos certos de que o nosso apêlo será atendido tal a importância e urgência do caso. (...)”. (Jornal A Notícia, 1930, apudVIANA, 1985, p. 455).
É bem verdade que a Constituição de 1934 ampliou, consideravelmente, as dimensões político-administrativas dos municípios, revigorando a sua política de arrecadação11, já que sem uma “renda própria” a sua autonomia ficaria mais distante de ser alcançada. Está no Artigo 13, da referida Constituição, não apenas a menção da forma de organização dos municípios, mas também, o conjunto de medidas que lhes garantem a autonomia financeira. Entretanto, na década de 1930, o município de Vitória da Conquista ainda não contava com uma intelligentsia que definisse os contornos do projeto de educação que atendesse as demandas educacionais da população em seus diferentes estratos sociais. Mesmo que o setor urbano tenha se ampliado, o poder público local não avançou em seu projeto educacional para o município, não indo além da construção de algumas escolas e contratação de professores, sem alterações notáveis, inclusive na velha estrutura de mando.
Foi, todavia, na gestão do prefeito Luiz Regis Pacheco Pereira, entre 1938 e 1945, indicado pelo interventor federal no Estado, Landulfo Alves de Almeida, que a educação municipal deu tímidos sinais de crescimento. Vale, no entanto, lembrar que na Constituição de 1937 o federalismo “sai totalmente de cena”, de uma forma que houve um fortalecimento do Executivo federal e o consequente enfraquecimento dos governos estadual e municipal. No entanto, os municípios da Bahia, cujos gestores ‘andavam de mãos dadas com a interventoria’ do Estado, como foi o caso de Régis Pacheco, em Vitória da Conquista, as políticas públicas de educação conseguiram alcançar tímido avanço, inclusive após a criação da Secretaria de Educação e Saúde do Estado, pelo Decreto nº. 9.471, de 22/4/193512.
Assim, face ao movimento que agitava o meio educacional na esfera estadual, o governo municipal buscou reestruturar o ensino local conferindo ao município um aspecto parecido com o que Justino Magalhães denominou de “município-pedagógico”13 (MAGALHÃES, 2015, p. 45). Tomamos de empréstimo essa categoria do autor, por entendermos que o município “não tendo a quem repassar a obrigação e lidando diretamente com as demandas dos cidadãos, acaba por assumir a educação e organizá-la dentro de seus limites” (GONÇALVES NETO; CARVALHO, 2015, p. 13), não se reduzindo a sua ação apenas às questões de natureza político-administrativa. É nessa perspectiva que alguns atos assinados pelo governo municipal ganharam visibilidade.
Em um Ato de número 36, assinado em 09 de fevereiro de 1939, o prefeito criou, de uma só vez, cinco escolas, sendo duas na cidade e três na zona rural. Segundo o mesmo documento, o município teria a obrigação de fornecer mobiliário e pagamento de “locação escolar às escolas que houver creado” (ARQUIVO PÚBLICO MUNICIPAL, 2018), conforme exigência de um decreto estadual de nº. 11.121, de 13/10/193814. Em outro Ato, nº 37, datado de 10 de fevereiro de 1939, o Executivo Municipal abre um crédito especial de oito contos de réis (8:000$000) para cobrir as despesas das escolas criadas, sendo seis contos de réis (6:000$000) “para pagamento do professorado municipal, dos meses de março a dezembro de 1939; dois contos de réis (2:000$000) para locação escolar e compra do mobiliário para as referidas escolas” (ARQUIVO PÚBLICO MUNICIPAL, 2018). O mesmo documento estabelece uma diferença salarial entre os professores das escolas da sede, que receberiam um salário de cento e cinquenta mil réis (150$000) mensais; e os da zona rural, um salário de cem mil réis (100$000) mensais, evidenciando uma valorização salarial dos professores da sede em detrimento dos da zona rural. Não constam no documento analisado as razões que justificam tal política salarial, no entanto, o mesmo sinaliza para a problemática do ensino rural, frequentemente secundarizado no tratamento dispensado a ele pelo poder público.
Já em um Ato de número 121, de 03 de julho de 1939, há uma menção à Cruzada Nacional de Educação15, a partir da qual se realizava bailes beneficentes para a manutenção de escolas para crianças pobres, em cada uma das municipalidades do Brasil. O ato assinado pelo prefeito municipal declara que a Prefeitura realizou o referido baile na cidade, no dia 02 de julho do corrente ano. A década de 1940, contudo, adentra sem mudanças substanciais na educação municipal, exceto pelas várias nomeações de professores feitas no segundo semestre do ano de 1939 e primeiro de 1940, somando ao todo oito nomeações. No ano de 1940, o Decreto nº. 109, de 27 de julho, aumenta o ordenado dos professores, para o exercício de 1941, de um conto e trezentos e vinte mil réis (1:320$000) para um conto e oitocentos mil réis (1:800$000) anuais, “ficando os professôres na obrigação de satisfazer as despezas [sic] de locação escolar” (ARQUIVO PÚBLICO MUNICIPAL, 1940). Percebe-se aqui uma mudança nas disposições do Ato nº. 36 (9/2/1939) mencionado, ao negar o pagamento de “locação escolar”, conforme exigência do Decreto Estadual de nº. 11.121, de 13/10/1938, ficando a mesma responsabilidade por conta dos professores contratados.
É fato que políticas públicas sem recursos se tornam declaratórias e potencialmente inócuas (CURY, 2007). Nesse aspecto, com vistas à manutenção das escolas municipais, ainda no ano de 1940, o Executivo Municipal encaminha à Câmara de Vereadores um Projeto de Decreto-lei nº. 66, de 02 de maio de 1940, cuja proposta seria criar “a taxa de 2% sobre todos os impostos para a manutenção das escolas públicas municipais” (ARQUIVO PÚBLICO MUNICIPAL, 1940). O texto do projeto declara estar em consonância com o Decreto-lei federal nº. 1.202, de 08 de abril de 193916, embora este não faça referência à destinação de recursos, especificamente, para a educação.
A despeito da Constituição de 1934 exigir, em seu artigo 156, “nunca menos de dez por cento” da renda resultante dos impostos do município, “na manutenção e no desenvolvimento dos sistemas educativos” (BRASIL, 1934), o referido projeto justifica que a aprovação da taxa se deve ao “intuito desta Prefeitura dotar as escolas municipais (...) de material necessário e dotar o município de mais algumas escolas”, além de argumentar que “as rendas deste município não correspondem, em vista de serem relativamente pequenas, às prementes exigências de um aparelhamento escolar municipal como convém e de creação de novas escolas, necessidade de urgência reconhecida” (ARQUIVO PÚBLICO MUNICIPAL, 1940). Nesse sentido, Werebe (1970) aponta que os preceitos constitucionais, no tocante ao financiamento da educação, nem sempre foram encarados com a devida seriedade, inclusive pela própria União, tendo esta evitado tais dispêndios por longo tempo, a partir da década de 1940. Também as quotas estaduais, no mesmo período, foram inferiores aos 20% constitucionais, em dez anos, mesmo havendo entre eles, alguns que excederam tais obrigações (p. 68). No entanto, Werebe (1970) aponta que os dados globais dos municípios, entre 1940 e 1959, mostraram que as porcentagens (médias) destinadas à educação sempre foram superiores às quotas estabelecidas pela Constituição. Entretanto, os números das rendas tributárias da maioria das unidades (seja estadual ou municipal), segundo a autora, são irrisórios (WEREBE, 1970).
É bem verdade que a vinculação de percentuais dos impostos federativos para a educação, garantida pela Constituição de 1934, sofreu um ataque pela Constituição de 1937, que impôs a desvinculação dos mesmos recursos, o que representou um retrocesso nas políticas públicas de manutenção da educação. Todavia, a instituição do Fundo Nacional do Ensino Primário17, em 1942, trouxe certo alívio para a situação orçamentária do sistema educacional, inclusive nos municípios onde as políticas educacionais dos Estados encontravam eco. O Decreto-lei nº. 4.958, de 14 de novembro de 1942, que criou o referido fundo, estabeleceu o Convênio Nacional do Ensino Primário, assinado em 16 de novembro de 1942 pelo Ministro da Educação e representantes dos Estados. De acordo com Cury (2018), tal convênio só seria acionado pelo Decreto-lei nº. 5.293, em 1º de março de 1943, que, em razão da tramitação burocrático-jurídica, ele passa a valer em agosto de 1945, determinando que,
A União prestaria assistência técnica e financeira no desenvolvimento deste ensino nos Estados, desde que estes aplicassem um mínimo de 15% da renda proveniente de seus impostos em ensino primário, chegando-se a 20% em 5 anos. Por sua vez, os Estados se obrigavam a fazer convênios similares com os Municípios, mediante decreto-lei estadual, visando repasse de recursos, desde que houvesse uma aplicação mínima inicial de 10% da renda advinda de impostos municipais em favor da educação escolar primária, chegando-se a 15% em 5 anos. (BRASIL, 1943).
Na Bahia, esse convênio ganha eco em 1946, quando o Interventor do Governo do Estado firma o Convênio Estadual de Ensino Primário, a princípio, com representantes de 110 municípios baianos (MENEZES, 1999). Assim, diferente da União e dos Estados, no período entre 1940 e 1958, a esfera municipal foi quem mais aumentou as suas verbas educacionais em relação ao crescimento das suas rendas com impostos, ou seja, esse aumento nas rendas “foi vinte e seis vezes, enquanto das verbas com educação foi de quase quarenta e seis vezes” (WEREBE, 1970, p.70). Nesse aspecto, o Executivo Municipal em Vitória da Conquista, por meio do Projeto de Decreto-lei nº. 66 supracitado, buscou a sua justificativa para a criação da referida taxa sobre os impostos, a partir da “necessidade de urgência reconhecida” (Id.,Ibid., 1940), revelando um desejo de criação de novas escolas, face ao orçamento exíguo do município.
A chegada do primeiro Ginásio
Na edição de 22 de agosto de 1937 do jornal O Combate, a notícia da vinda de um ginásio para a cidade de Conquista ocupou lugar de destaque. O jornal se fez voz da comunidade local que, por sua vez, ganhou eco na Câmara de Vereadores.
Toma vulto a idéia de um Ginásio nesta cidade. [...] A respeito da fundação de um Ginásio em conquista, foram espalhados nesta cidade, em dias da semana passada, boletins concitando o povo desta terra para a realização desta idéia e pedindo a cooperação de todos, sem distinção de credo político ou religioso. [...] Que todo conquistense auxilie na realização de obra tão útil ao progresso da nossa querida terra. (JORNAL O COMBATE, 1937).
O aspecto mobilizador de uma parte da população deu forma ao que ficou conhecido como o “Ginásio de Conquista” e, posteriormente, o “Ginásio do Padre”. No entanto, o percurso para se chegar ao projeto final levou alguns anos. O ginásio se consolidou a partir das linhas mestras do ensino secundário estabelecidas pela reforma Francisco Campos18, de 1931, cuja definição desse nível de ensino era aquele destinado à “formação do homem para todos os grandes setores da atividade nacional”, construindo no seu espírito todo um “sistema de hábitos, atitudes e comportamentos” (SCHWARTZMAN; BOMENY; COSTA, 2000, p. 206).
A referida instituição de ensino veio transferida do município de Caetité para Vitória da Conquista, em 1940, passando a cidade a ter o seu primeiro ginásio, dirigido pelo seu fundador Padre Luiz Soares Palmeira, daí o nome “Ginásio do Padre”, onde foi formada boa parte dos filhos da elite conquistense. De acordo com Viana (1982), em 1940 o Pe. Luiz Soares Palmeira, Otto Mayer e o inspetor federal Anfrísio Áureo de Souza estiveram na cidade, reunidos, para orientar os primeiros exames de admissão, em que se submeteram às provas 70 candidatos. Desses, apenas 28 foram aprovados para a formação da primeira turma do ginásio. (Figura 1).
O Ginásio de Conquista oferecia o primeiro ciclo do ensino secundário que, de acordo com a reforma Francisco Campos, correspondia às quatro séries do curso ginasial. Como uma instituição privada, o colégio era frequentado por aqueles que podiam custear os seus serviços, que iam desde o curso convencional, até as despesas de internato e exame de admissão. Sobre o regime de internato, o jornal O Combate, em edição de 09 de dezembro de 1944, divulgou uma nota informando sobre a inspeção federal do ginásio.
GINÁSIO DE CONQUISTA, SOB INSPEÇÃO FEDERAL. Diretor: Pe. Luiz Soares Palmeira. Inspetor: Dr. Anfrísio Áureo Souza. Regime: interno masculino e externo misto. Curso: primário, admissão e secundário ginasial. Obs.: Reabriu o internato, não aceitando, pois, alunos em pensões ou casas particulares, a não ser nos casos previstos nos novos estatutos. (JORNAL O COMBATE, 1944).
O ginásio nasce no movimento de expansão do ensino privado, sobretudo, na década de 1930, motivado pelas aspirações de mobilidade das camadas médias urbanas. Nesse sentido, esse primeiro ginásio vem com a intenção de confirmar a política e os ideais pedagógicos da época, pautados no desenvolvimento das aptidões à invenção e à iniciativa, na formação moral, assim como no espírito de modernização da sociedade. Houve uma busca em adaptar o sistema educacional às mudanças efetivadas na sociedade desse contexto por parte dos diversos governos estaduais que, a despeito da forma mais centralizada de governo pelas interventorias, inclusive durante o Estado Novo, buscaram fazer com que o ensino respondesse ao crescimento e à modernização do país, já que mais pessoas buscavam se educar.
Ao traçarmos um “desenho” da educação escolar no município de Vitória da Conquista, até os idos de 1945, constatamos na documentação que houve um esforço, ainda que tímido, das autoridades e da população em ampliar o número de escolas nesse período. Havia o entendimento de que somente a instrução iria promover o desenvolvimento social e econômico do município, assegurando-lhe uma posição de destaque na região. Nesse movimento, a cidade tomava ares de centro urbano o que exigia da população, por conseguinte, certo nível de instrução.
Stephen J. Ball (2001) ressalta que a análise de políticas exige uma compreensão que se baseia no geral e no local, e que essas relações necessitam ser construídas na percepção do papel do Estado. Nesse sentido, a despeito das determinações constitucionais acerca da educação, sobretudo, na Carta de 1934, reservarem um espaço para os poderes públicos locais planejarem as suas políticas educacionais, não constatamos mudanças substanciais na estrutura educacional do município nesse período, ainda muito dominado pela força do coronelismo, tanto no Estado, quanto na região. Isso fez com que o mesmo mantivesse, basicamente, a velha arrumação política da Primeira República, com práticas sociais que perpetuaram o modelo oligárquico, inclusive em sua forma de organizar a educação. Não por acaso, durante décadas, as escolas permaneceram funcionando em varandas de casas de família, a despeito de Anísio Teixeira, em sua passagem pela Inspetoria Geral do Ensino, no final da década de 1920, encampar uma luta para que o prédio escolar e as suas instalações atendessem, “pelo menos, aos padrões médios da vida civilizada [...]" (TEIXEIRA, 1935, p. 39).
Todavia, vale ressaltar que as reformas educacionais em nível nacional, ocorridas a partir de 1930, com a criação do Ministério da Educação e Saúde Pública, ao estabelecer normas comuns para a organização da educação em todo o país, teve certo alcance no município, na forma de organização do ensino local, nas escolas estaduais e, em especial, no ginásio criado, esse contando com o acompanhamento de um inspetor federal. Ademais, a imprensa deu conta de que foi notório o desejo da população local por mais escolas no decorrer da década de 1930, possivelmente motivada pelas mudanças políticas no plano nacional, com o movimento revolucionário de 1930, que sinalizou para uma “modernização” no país, nos campos político, econômico e educacional, embora tais propostas não tenham encontrado a plena adesão esperada por parte dos grupos dominantes do coronelismo local.
Não obstante, o município seguiu favorecido pelas políticas de educação do Estado, que buscaram unificar os serviços educacionais estaduais e municipais, iniciadas no governo Góes Calmon, em 1925. Trata-se de exigências que obrigavam as autoridades locais a responderem com ações direcionadas à criação de normas para a organização da educação municipal, sendo um imperativo a expansão da rede escolar, que, de fato, se iniciou no município, sobretudo, a partir da gestão do prefeito Régis Pacheco, em 1937. Houve, portanto, intenções e disputas que influenciaram o processo político, gerando um contexto de influência (BOWE et. al., 1992, apudMAINARDES, 2006) em que os grupos de interesse entraram em disputa a fim de “influenciar a definição das finalidades sociais da educação e do que significa ser educado” (MAINARDES, 2006, p. 51).
Conclusões
Construir esse ‘desenho’ da educação no município de Vitória da Conquista, até os idos de 1945, representou o ponto de partida para avançarmos em nossa investigação a partir do ano de 1945 até o ano de 1963. Diante da documentação, foi imediata a constatação da precariedade do cenário educacional do município naquele período, ainda marcado pelo domínio oligárquico local, em que a população mais pobre ainda se via dependente do “amparo” das famílias influentes e fazendeiros da região. Nesse cenário, predominou o ensino privado oferecido nas poucas escolas construídas e, a despeito da Constituição de 1934 impor aos poderes públicos o dever de garantir a educação como um direito, foi somente no final da década de 1930, na gestão do prefeito Régis Pacheco (1938-1945), que a educação pública do município parecia dar sinais de crescimento. A organização da educação, nesse período, ainda se dava sob a vigência das leis de reforma da instrução pública na Bahia, aprovadas na gestão de Anísio Teixeira, junto à Inspetoria Geral do Ensino, na década de 1920 e que permaneceram vigentes até o final de década de 1940. No entanto, em uma análise mais acurada, ficou evidente que as políticas para a educação primária na gestão Régis Pacheco foram mantidas em condições marginais, legando uma estrutura escolar ainda deficiente à gestão do prefeito Antonino Pedreira de Oliveira, a partir de 1947.
Durante a sua gestão de oito anos, não localizamos mais que 12 atos, assinados pelo prefeito, que tratavam das questões educacionais e que, em sua maioria, referia-se a nomeação de professores, abertura de créditos especiais e criação de escolas. Portanto, em quase meio século, a “estrutura educacional” pública municipal de Vitória da Conquista permanecia ínfima, mesmo com a política de criação de escolas, sobretudo na zona rural, fortalecida pelos projetos de expansão da escola rural lançada no governo Dutra. No término do mandato do prefeito Antonino Pedreira, em outubro de 1950, o município ainda contava com quase 80% da população de cinco anos e mais analfabeta.
Enfim, uma das questões que nos inquietou nessa pesquisa estava relacionada às lacunas sobre a história da educação local e ao silêncio acerca dos sujeitos que imprimiram a sua marca na educação do município, evidenciando o que Saviani (2000) já havia denunciado ao afirmar que a História da Educação brasileira continua sendo, dominantemente, baseada nas fontes do governo central, ou dos Estados hegemônicos, não tendo, por enquanto, maiores condições de refletir as especificidades regionais e locais (SAVIANI, 2000 apudMIGUEL, 2004). Esse modus faciendi da historiografia da educação, pautado em generalizações maiores, impede que esses sujeitos, e o que eles produziram em um dado tempo e espaço, vençam o cerco do silenciamento pela chamada história tradicional. Daí ser imprescindível não apenas falar dos “silêncios da história”, mas, também, “questionar a documentação histórica sobre as lacunas, interrogar-se sobre os esquecimentos, os hiatos, os espaços brancos da história” (LE GOFF, 1996, p. 109). Assim, essa dimensão da pesquisa histórica, ora discutida, contribui para a desmitificação de determinadas “certezas”, ao negar alguns postulados generalizadores, ao mesmo tempo em que nega ser autossuficiente e, embora não se possa sustentar que a História geral ou estadual sejam somas das histórias locais, é certo que as generalizações nunca serão seguras se não se levar em conta os desenvolvimentos locais.