Introdução
Durante as primeiras décadas da República brasileira (1889), debates voltados à educação destacavam a necessidade de uma “modernização” do ensino, em consonância com projetos que propunham formas de restruturação da sociedade e visavam responder aos problemas sociais urbanos, como moradia e higiene.
Na década de 1920, tais debates se inseriam no discurso reformista do movimento da Escola Nova, que definiu novas formas de funcionamento das instituições de ensino, cujo discurso pedagógico se baseou em um modo uniformizador de educar compatível com interesses de certos segmentos da sociedade. O modelo escolanovista subsidiou uma série de projetos educacionais, que possuíam o propósito de adequar a camada social popular aos hábitos de vida e de trabalho concebidos pelas autoridades vigentes e pela elite intelectual da época. Mate (2002, p. 41) pontua uma relação próxima “entre a pretendida construção de um corpo social harmonioso, ordeiro e produtivo e o movimento de constituição de um sistema de escolarização que teve na apropriação das ideias escolanovistas sua principal forma de expressão e nas reformas sua concretização.”
Na perspectiva da construção de novas concepções sobre a educação e seu papel na sociedade, passou a se configurar, na década de 1930, o desenvolvimento mais sistemático do sistema nacional de ensino brasileiro. Com efeito, a institucionalização do Ministério dos Negócios da Educação e Saúde, em 1930, durante o governo de Getúlio Vargas (1930-1945) (1951-1954)1, é um exemplo de como a educação será palco de intervenções cada vez mais intensas por parte do Executivo. Tal governo se iniciou por meio de um golpe armado que colocou fim ao sistema oligárquico da Primeira República (1889-1930), e, em uma esfera mais ampla, foi caracterizado, dentre outros fatores, pelo declínio das oligarquias regionais, pelo desenvolvimento do processo de industrialização capitalista e de urbanização, e, pela centralização do poder político.
Neste trabalho, interessa o primeiro governo varguista (1930-1945), sobretudo o período ditatorial denominado Estado Novo (1937-1945), em que se observa uma crescente centralização do aparelho educativo nas mãos do Estado, na qual a imposição de um patriotismo formal passa a ser uma constante nas práticas sociais cotidianas, seja dentro do espaço escolar como fora dele. Assim, o objetivo do presente trabalho é compreender como se deu o processo educacional na cidade de Uberaba, durante aquele período, tendo como fonte o jornal Lavoura e Comércio, principal periódico uberabense em circulação na época. Entende-se que a imprensa periódica pode constituir importante instrumento de análise, “pois sua peculiaridade é revelar o movimento da história (seja ele educacional, social, comercial, industrial, político, literário, econômico, cultural, etc.) em sua dinâmica cotidiana, tal como visto por aqueles que decidem o que noticiar” (ARAÚJO; INÁCIO FILHO, 2005, p. 177).
O jornal Lavoura e Comércio foi fundado em 1899, pelos “maiores fazendeiros e negociantes” de Uberaba (MENDONÇA, 1974, p. 79), sendo um dos principais impressos em circulação na primeira metade do século XX, na região do Brasil Central.2 O periódico se caracterizava por ser “de tendência conservadora, que noticiava acontecimentos segundo uma concepção elitista-cristã, representada em Uberaba pelos fazendeiros e pelos grandes comerciantes católicos” (OLIVEIRA, 2017, p. 26). Não por acaso, o diretor do jornal no período pesquisado, Quintiliano Jardim, vai apoiar o golpe armado de 1930, que deu início ao governo Vargas, e posteriormente, o Estado Novo.
Por dentro do Jornal Lavoura e Comércio: educação e civismo em Uberaba
O Estado Novo (1937-1945), enquanto regime autoritário, resultou de um autogolpe político liderado por Vargas, o qual teve seu início com a implementação da Constituição de 1937, de inspiração nazifascista. Com a implantação do Estado Novo, e tendo apoio das Forças Armadas, Vargas instituiu uma série de medidas centralizadoras, como por exemplo, a dissolução do Parlamento, a extinção dos partidos políticos, a suspensão das liberdades civis, a proibição do direito de greve. Com o objetivo de “forjar um forte sentimento de identidade nacional, condição essencial para o fortalecimento do Estado nacional”, tal regime passou a investir paulatinamente nos âmbitos cultural e educacional (PANOLFI, 1999, p. 10).
Na esfera da cultura, a interferência do governo se mostrou notória por meio da censura prévia aos meios de comunicação, e, de uma propaganda política que pudesse legitimar as ações vigentes. A organização dos órgãos produtores da propaganda política varguista teve inspiração na propaganda nazifascista, no que diz respeito a uma linguagem simples, que pudesse atingir as massas. Características como “promessas de unificação e fortalecimento nacional”, exigência de uma unidade ideológica, “promessas de benefícios materiais ao povo” (emprego e aumento de salário, por exemplo) e “apelo emocional” estavam presentes nas propagandas nazifascista e varguista (CAPELATO, 1999, p. 167-168).
No ano de 1939 foi criado o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), tendo por finalidade o monopólio dos meios de comunicação e a difusão das diretrizes autoritárias do regime, que ocorria principalmente por meio do rádio e da imprensa. O DIP funcionava “como organismo onipresente” em todas as esferas da sociedade, abarcando, “desde as cartilhas infantis aos jornais nacionais, passando pelo teatro, música, cinema e marcando a sua presença inclusive no carnaval” (VELLOSO, 2010, p. 169). Nesse contexto, o DIP propagandeava as festas de cunho cívico-patriótico que aconteciam nas cidades brasileiras.
Os meios de comunicação de todo o país eram compelidos a reproduzir os discursos oficiais e a noticiar em favor do governo, sendo que cerca de 60% das matérias publicadas nesses veículos de informação eram fornecidas pelos órgãos oficiais (CAPELATO, 1999).
Em Uberaba, o jornal Lavoura e Comércio conferiu amplo apoio às medidas propostas por Vargas, e divulgava os discursos que aquele proferia em datas comemorativas, inaugurações e visitas. Tais exposições orais constituíam o conteúdo básico da propaganda política. Assim, o periódico publicou matérias referentes às festas cívicas e aos discursos oficiais, relacionados a datas simbólicas do ponto de vista do patriotismo e da unidade nacional, como por exemplo, a implantação do Estado Novo, a Semana da Pátria (comemorada na semana do dia 07 de setembro), o Dia da Bandeira, e, às datas natalícias, em razão do aniversário do presidente ou de pessoas do governo. As publicações não se restringiam aos discursos oficiais, uma vez que redatores do periódico, colunistas e escritores convidados também escreviam em benefício do Estado.
Na publicação do dia 12 de novembro de 1941, o Lavoura e Comércio trouxe o discurso oficial de Vargas em decorrência da comemoração do quarto aniversário do Estado Novo. A explanação ocupou toda a primeira página do jornal mais uma parte da terceira, de um total de seis páginas, terminando assim: “As gerações passam, os homens morrem, mas a Pátria vive, eterna e imperecível, no amor dos seus filhos, no heroísmo dos seus soldados. Ergo a minha taça - pela glória do nosso Exército, pela felicidade do nosso povo laborioso e bom, pela unidade indestrutível da Pátria” (LAVOURA E COMÉRCIO, 12/11/1941, p. 3). O trecho do discurso remete a um sentimento maternal de nacionalidade, em que os conflitos são suplantados pela concepção harmônica de sociedade. A população, nesse sentido, aparece como passiva e em conformidade com as transformações promovidas pelo governo, e, em especial, pelas Forças Armadas.
Outra data muito destacada pelo periódico foi a referente ao aniversário natalício de Getúlio Vargas, 19 de abril. Em 1943, naquele dia, quase metade da edição foi dedicada ao governante. É oportuno dizer que, na matéria, o discurso oficial esteve acompanhado por várias fotos que retratavam Vargas em situações cotidianas, as quais trouxeram as seguintes legendas: “Durante o seu descanso, S. Ex. ª. também aprecia a arte fotográfica”, “S. Ex. ª tomando um café”, “O presidente recebendo de um índio o troféu da amizade”, “S. Ex. ª num passeio com as crianças ” (LAVOURA E COMÉRCIO, 19/04/1943, p.1-3). Apesar de não se expor aqui as fotos, percebe-se pelas legendas uma tentativa de aproximar o estadista junto à população, humanizando-o, a partir de “flagrantes da vida real” que são comuns a todas as pessoas, independentemente de sua posição social, como por exemplo a ação de tomar café. Nessa perspectiva, a imagem de Vargas é sustentada por meio de simbologias e afetividades que colaboraram para inculcar na população um sentimento de identificação. Mais especificamente, as duas últimas legendas - “O presidente recebendo de um índio o troféu da amizade”, e “S. Ex. ª num passeio com as crianças” - são representativas por abordarem, respectivamente, a ideia de integração e harmonia racial (caracterizada pelo índio) e a concepção de juventude como futuro e progresso da nação (retratada pelas crianças).
O aniversário de Vargas foi bastante celebrado em Uberaba, com desfiles, jogos esportivos e diversas outras homenagens, tanto de instituições públicas quanto privadas. Dentre as solenidades, o jornal evidenciou a realizada pelo Grupo Escolar Brasil, um dos principais estabelecimentos de ensino da cidade. O evento reuniu centenas de alunos “no pátio interno do modelar educandário”, com a presença da diretora da escola, dos professores e do inspetor escolar municipal. A comemoração contou com a recitação de poemas por duas alunas, a execução do hino nacional e a fala do orador oficial, um professor da escola, o qual “traçou em rápidas pinceladas, o perfil do Presidente Vargas, dando um resumo das suas notáveis realizações, como o maior estadista que o Brasil já viu à frente dos seus destinos” (LAVOURA E COMÉRCIO, 20/04/1941, p. 4). As palavras usadas revelam o ambiente escolar como veículo de divulgação e enaltecimento do regime estadonovista, e do culto à pessoa do presidente. Nesse sentido, por meio da escolarização, valores e ideologias eram transmitidas a crianças e jovens no intuito de se fazer legitimar o poder.
No âmbito educacional, as reformas desenvolvidas pelos Ministros da Educação e Saúde, os mineiros Francisco Campos (1930-1932) e Gustavo Capanema (1934-1945) retrataram um novo modo de se conceber o papel da escolarização no país, por meio de um ensino destinado às elites e uma formação moral e disciplinadora.
Dando sequência em grande medida aos projetos iniciados por Campos, Capanema estabeleceu, na área educacional, uma “modernização conservadora”, ao longo dos 11 anos frente ao Ministério da Educação e Saúde:
A modernização se manifestava em seu desejo de criar um sistema educacional forte e abrangente e na preocupação constante com a atividade cultural e artística. O lado conservador se manifestava de muitas formas distintas: pela concentração do poder, que não permitia a organização de instituições educacionais e culturais livres e autônomas fora da tutela ministerial; pela concepção basicamente estatizante, quando não utilitária, da cultura e das artes (SCHWARTZMAN, 1985, p. 171).
Conforme pontuado anteriormente, o Jornal Lavoura e Comércio conferiu amplo apoio às medidas propostas por Getúlio Vargas, e, por conseguinte, aos homens que compunham seu governo, dentre os quais estava Gustavo Capanema. Na edição de 08 de agosto de 1936, o periódico trouxe uma publicação em comemoração ao aniversário do ministro:
No Ministério da Educação e Saúde Pública, para o qual foi elevado em consequência de seus méritos, de sua formosa cultura, o sr. Gustavo Capanema tem sido um dos fatores de formação da nova mentalidade brasileira, procurando dotar o país de um aparelhamento de ensino na altura de sua grandeza e de sua importância no concerto das nações deste continente. “Lavoura e Comércio” que se enfileira no rol dos admiradores do jovem ministro da Educação, manda-lhe, ao ensejo de seu natalício as suas sinceras felicitações, fazendo votos pela sua longevidade feliz e tranquila. (LAVOURA E COMÉRCIO, 08/08/1936, p. 1, grifos do jornal).
O trecho anterior exalta Capanema como importante figura na consolidação do ideário educacional. Ao referir-se ao ministro como “um dos fatores de formação da nova mentalidade brasileira”, o periódico provavelmente faz menção aos intelectuais de elite que participaram da elaboração das políticas no país, os quais vinham propondo, desde a década de 1920, transformações nas esferas cultural e educacional a partir de “uma proposta pedagógica com base em conceitos de progresso e desenvolvimento que influiriam na formação uniforme das mentalidades” (MATE, 2002, p. 137). O “Ministério Capanema”, também chamado “Ministério dos Modernistas”, incluía nomes como Anísio Teixeira, Lourenço Filho, Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade, intelectuais de elite que elaboraram documentos e projetos no sentido de se explicar e difundir a brasilidade e a identidade do brasileiro a partir de valores culturais considerados legítimos de serem apropriados pela sociedade, de forma autoritária e padronizada.
É preciso salientar que Capanema tomou conhecimento da felicitação publicada pelo Lavoura e Comércio, e emitiu uma nota de agradecimento ao periódico, afirmando “ser muito grato a esse brilhante jornal pelas amáveis expressões com que me distinguiu ao ensejo de meu aniversário natalício” (LAVOURA E COMÉRCIO, 21/08/1936, p. 3). O tipo de linguagem utilizada sugere uma certa proximidade do jornal com o ministro, deixando subentender a existência de relações amistosas entre ambos em momentos anteriores às das publicações citadas.
Nas reformas educacionais empreendidas, em especial, a Lei Orgânica do Ensino Secundário, Capanema enfatizou a “formação da consciência patriótica”, ressaltando a importância de se preparar uma parcela da população - os jovens de elite - para a gerência do país, uma vez que eles deveriam “assumir as responsabilidades maiores dentro da sociedade e da nação” (BRASIL, 1942a).
Especificamente, o ensino primário foi subdividido em ensino elementar, com duração de quatro anos, e, ensino complementar, de um ano. Já o ensino médio foi dividido horizontalmente em secundário e técnico-profissional. O ensino secundário, cujo currículo caracterizava-se pela valorização do enciclopedismo, foi estruturado em dois ciclos. O primeiro, ginasial, tinha duração de quatro anos, e o segundo compreendia dois cursos paralelos: o curso clássico e o científico, com duração de três anos cada.
Desde o ano de 1931, estava em vigor os exames de admissão ao curso ginasial, os quais se tornaram obrigatórios nas escolas que ofereciam curso secundário e deveriam ser oferecidos em duas épocas: uma em dezembro e outra em fevereiro. Esses exames reforçavam o caráter excludente do ensino, na medida em que selecionava os alunos que iam cursar o ginásio e impunha barreiras de acesso àqueles que se julgava não possuírem condições3.
Saviani (2007, p. 269) pontua o caráter centralizador e seletivo das medidas educacionais:
Do ponto de vista da concepção, o conjunto das reformas tinha caráter centralista, fortemente burocratizado; dualista, separando o ensino secundário, destinado às elites condutoras, do ensino profissional, destinado ao povo conduzido e concedendo apenas ao ramo secundário a prerrogativa de acesso a qualquer carreira de nível superior; corporativista, pois vinculava estreitamente cada ramo ou tipo de ensino às profissões e aos ofícios requeridos pela organização social.
Assim, o sistema educativo brasileiro não se apresentava de forma igualitária para todos os cidadãos, sendo que seu acesso estava diretamente associado à camada social pertencente. Enquanto destinava-se à elite um ensino “intelectual” preparatório voltado ao ensino superior, o qual tinha como objetivo a reprodução de um cidadão católico, da valorização da cultura clássica humanística e da disciplina militar, propunha-se às camadas populares um ensino industrial, comercial e agrícola, voltado à produção de mercado. Isso também fica percebido em edição de 1940 do periódico uberabense, ao enfatizar que o ensino secundário “dá a senha que vai permitir o ingresso dos moços nas futuras profissões aspiradas. É ele que fornece à juventude do país bagagem de conhecimentos indispensáveis para a aquisição dos futuros e mais especializados conhecimentos” (LAVOURA E COMÉRCIO, 13/06/1940, p. 2).
Esperava-se dos estudantes o desenvolvimento de habilidades em consonância com os pressupostos da política ideológica estadonovista, ou seja, uma formação voltada para o senso de responsabilidade, o cultivo de valores morais e cívicos e o serviço à pátria. Essa política ideológica é notada na propaganda da escola “Ginásio Brasil”, publicada no Lavoura e Comércio de 17 de janeiro de 1940, que fez uso de três substantivos para qualificar de modo assertivo os procedimentos de ensino a que se destinava:
Fonte: Acervo Codiub Lavoura e Comércio. Disponível: http://www.codiub.com.br/lavouraecomercio/pages/main.xhtml. Acesso: 10 mar. 2021.
O anúncio anterior demonstra o tipo de comportamento que a escola esperava dos seus alunos, ajustando-os e preparando-os para a sociedade que se pretendia ter, no contexto específico do regime autoritário. A concepção de que a escolarização poderia solucionar as mazelas políticas e sociais do país esteve recorrente durante o governo Vargas. Um exemplo disso foi a criação da Cruzada Nacional de Educação, em 1932, movimento que se estendeu no Estado Novo e tinha como propósito a diminuição da taxa de analfabetismo e a criação de escolas, uma vez que se deveria “apagar a mancha vergonhosa do analfabetismo que degrada e avilta o Brasil” (PAIVA, 2003, p. 131).
Com um viés excludente e preconceituoso no que tange ao analfabeto, tendo em vista elevar o nível cultural das camadas mais pobres da população de acordo com os pressupostos elitistas, a Cruzada Nacional de Educação tinha como principais colaboradores as Forças Armadas e os setores conservadores da indústria, comércio e particulares (PAIVA, 2003). Por meio desses colaboradores, também chamados de sócios, recolhia-se os fundos para a difusão do ensino e para a instalação de escolas, a partir de propaganda (jornal impresso e rádio, principalmente). O movimento se caracterizou pelo voluntariado dos setores que o promoviam. Nesse contexto, estudantes de camadas sociais abastadas que frequentavam a escola também foram chamados a participar das campanhas pela alfabetização, cabendo a eles a “adoção” de crianças de baixa condição social, evidenciando-se assim um assistencialismo revestido de estereótipo, como aparece nas páginas do Lavoura e Comércio:
O aspecto mais empolgante e comovedor dessa patriótica e santa cruzada está na ação eficientíssima e carinhosa que nela desenvolvem os alunos abastados de ambos os sexos, de todas as escolas e colégios, públicos e particulares, na qualidade de padrinhos e madrinhas de alunos pobres ou de crianças desfavorecidas, para que, com o auxílio de que carecem, possam educar-se convenientemente e atingir o grau de instrução compatível com a sua posição social [...] (LAVOURA E COMÉRCIO, 21/05/1937, p. 1).
O trecho anterior vem corroborar o caráter assistencialista, filantrópico e humanitarista da Cruzada Nacional de Educação. Logo no início da passagem, percebe-se a analogia do movimento, denominado de “santa cruzada”, aos conflitos militares organizados por católicos durante a Idade Média, os quais objetivaram reconquistar locais sagrados e propagar o cristianismo em sociedades consideradas heréticas. Em outras palavras, pode-se dizer que a Cruzada Nacional de Educação tinha a finalidade de levar o progresso e a civilização onde se existia atraso e barbárie. Fica notório, também, a intervenção da elite, mais precisamente “os alunos abastados de ambos os sexos” aqui designados, como tecnicamente preparados para a construção educacional. À camada social mais baixa destinava-se não uma instrução qualquer, mas uma instrução inerente à sua posição na hierarquia estrutural da sociedade, conforme sua “aptidão natural”. O movimento, nesse sentido, voltava-se para os interesses das estratificações sociais mais elevadas, não se constituindo de ferramenta para modificar a realidade educacional do país.
Na mesma publicação, o jornal citou a especificidade política da Cruzada Nacional de Educação, ao apontar que a aproximação de classes sociais distintas colaborava para “o aspecto político, para a perfeita unificação do espírito e do sentimento nacional, fator primordial para a compreensão do ideal democrático e para a segurança e estabilidade do regime” (LAVOURA E COMÉRCIO, 21/05/1937, p. 1). Percebe-se a valorização de uma educação moral e cívica com base no apelo ao patriotismo, e nos moldes do que se pretende formar em termos de cidadão. O fragmento anterior mostra que essa formação deveria contribuir para a segurança nacional contra possíveis inimigos do governo, assunto que será tratado posteriormente. Chama atenção o jornal se referir ao período autoritário como democrático.
Durante o Estado Novo, o ensino pré-militar aparece como importante ferramenta na difusão de uma política autoritária e disciplinadora. Obrigatória para os alunos do sexo masculino matriculados no primeiro ciclo do ensino secundário, a instrução pré-militar foi implementada por influência da entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Compreendia noções relativas “à organização e à vida militar, a instrução elementar de ordem unida sem arma e a iniciação na técnica do tiro.” (BRASIL, 1942b). Segundo o mesmo documento, todos os estabelecimentos de ensino com mais de cinquenta alunos deveriam manter um centro de instrução pré-militar, cujos instrutores seriam designados pelo Comandante da Região Militar na qual estava inserido o colégio. Apesar da obrigatoriedade imposta em lei, o ensino pré-militar nunca foi implantado em sua plenitude, sendo retirado em 1946 pelo general Dutra, então presidente do Brasil. Sua extinção, no entendimento de Horta (2012), ocorreu não devido a “ventos democráticos”, mas sim porque tornou-se desnecessária ao Exército, que já controlava a Educação Física escolar no país.
De fato, desde o ano de 1937 o referido componente curricular era organizado e dirigido pelos militares, por meio da Divisão de Educação Física, a qual estava subordinada ao Ministério da Educação e Saúde. Paralela àquela divisão, foi criada a Escola Nacional de Educação Física e Desportos, responsável pela formação de professores especializados na área, no sentido de atuarem “sobre as coletividades, incutindo-lhes o espírito de ordem e disciplina” (DUTRA, 1941, apud HORTA, 2012, p. 77).
A presença das Forças Armadas nos estabelecimentos de ensino evidenciava a preocupação a uma suposta formação “saudável” do ponto de vista físico e moral dos alunos. No entanto, para além da esfera escolar, a Educação Física também esteve presente nas práticas sociais cotidianas do período, como se observa na coluna “Nota do Dia”, do Lavoura e Comércio:
O mundo vive nesta hora o momento supremo do homem forte de corpo e do espírito. [...] Esta é a era da educação física, aliada à formação do espírito, uma como complemento da outra. [...] Estamos transformando poetas bisonhos em atletas musculosos, patriotismos platônicos de discursos cívicos em realidade patente de uma nação forte e respeitada (LAVOURA E COMÉRCIO, 30/08/1941, p. 6).
O trecho anterior indica a Educação Física como instrumento no aprimoramento moral e espiritual do indivíduo, tendo em vista se implantar, na sociedade, ações disciplinares que viessem a contribuir com a formação de uma população produtiva e preparada fisicamente contra possíveis ameaças ao Estado. Observa-se no excerto até mesmo certa linguagem pejorativa ao tratar do poeta enquanto pessoa que precisava se ocupar da perfeição do corpo, e não apenas do intelecto.
Horta (2012, p. 31), ao discorrer acerca das medidas de mobilização nacional do Exército, esclarece: “é inegável que a ideia de segurança nacional, concebida não somente como defesa externa, mas também como defesa contra os inimigos internos, ocupou um lugar importante na definição do papel a ser desempenhado pelos militares brasileiros nesse período”. Os inimigos internos, de que fala o autor, abarcavam todos aqueles contrários à ideologia estatal vigente; por exemplo, pessoas identificadas como simpatizantes do comunismo. Tal fato pode ser verificado na publicação de 3 de abril de 1936 do Lavoura e Comércio, que traz a exoneração de cinco professores do ensino superior, “por motivo de exercerem atividades extremistas subversivas”, além de “vários médicos, professores e outros funcionários acusados de coparticipação no movimento comunista” (p. 3).
Ainda com relação à coluna “Nota do dia”, citada anteriormente, afirmou-se que a atenção atribuída à Educação Física ocorria não apenas nas capitais do país, como também nas cidades do interior, onde o “apelo renovador da nacionalidade teve resposta pronta das prefeituras municipais, que edificaram as praças de esportes e distribuíram professores e professoras de ginástica pelas escolas” (LAVOURA E COMÉRCIO, 30/08/1941, p. 6). Aqui, ao enfatizar a construção de locais próprios para a prática de exercícios físicos, o periódico muito provavelmente está se referindo a um local em específico na cidade de Uberaba, o Centro de Cultura Física. Fundado no ano de 1936, o espaço com nome sugestivo tinha como objetivo “ser o centro predileto da mocidade local, e ainda, o verdadeiro fator da saúde dessa nova geração que aí está, cheia de civismo e cheia de amor por este grande pedaço de terra mineira” (LAVOURA E COMÉRCIO, 11/01/1936, p. 1).
O Centro de Cultura Física possuía uma praça e uma piscina, sendo frequentado pela camada dirigente mediante pagamento de taxa4 e de joia (pagamento de inscrição para concorrer às competições). No espaço eram praticados esportes como natação, vôlei, futebol e patinação, os quais tinham finalidade não apenas de recreação, como também de competição, que acontecia a nível municipal e estadual. Em edição de 1940, o jornal lamenta que o local “não atendeu à expectativa dos seus fundadores”, uma vez que seu principal público, os jovens de elite uberabenses, em seus momentos de lazer preferiam frequentar “os clubes noturnos, que tanto degradam a moral e prejudicam a saúde” (LAVOURA E COMÉRCIO, 06/07/1940, p. 5).
Se os redatores do Lavoura e Comércio se mostravam receosos com os hábitos da juventude local, que diria o regime varguista, que instituía projetos educacionais de mobilização, cujo intento seria o de ajustar a juventude às diretrizes do Estado. Nesse contexto, o projeto de mobilização mais bem-sucedido foi o movimento cívico Juventude Brasileira, criado pelo Decreto-Lei nº 2.072 de 1940 e destinado a crianças e jovens em idade de 07 a 18 anos, o qual teve participação direta do Ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema. Dois anos antes, havia sido criado um projeto de organização que pretendia arregimentar militarmente a juventude nos moldes organizacionais milicianos fascistas, liderado por Francisco Campos, então Ministro da Justiça. Devido a dissidências políticas, principalmente de segmentos do Exército, que viam nessa organização uma perda de autonomia do próprio campo de atuação, o projeto não foi apenas trocado de pasta ministerial, como também modificado em sua essência - o viés formativo exclusivamente militar da juventude deu lugar a uma formação respaldada no enaltecimento de valores cívicos, descrita no Decreto-Lei nº 2.072 de 1940.
O movimento Juventude Brasileira tinha como objetivo “fazer cumprir os deveres para com a pátria”, devendo-se prestar “culto constante à Bandeira Nacional” (BRASIL, 1940). O decreto-lei ainda sistematizava a “obrigatoriedade da educação cívica, moral e física da infância e da juventude”, por meio do enaltecimento às datas e símbolos nacionais. Com relação à educação cívica, no mesmo documento, os papeis sociais de crianças e jovens eram separados pelo gênero, a partir de visões estigmatizadas: ao sexo masculino cabia uma formação mais “militarizada”, voltada para o campo de batalha, por meio do desenvolvimento do “amor ao dever militar, a consciência das responsabilidades do soldado e o conhecimento elementar dos assuntos militares”; ao sexo feminino cabia uma formação mais “cuidadora”, voltada ao lar, a partir do “aprendizado das matérias que, como a enfermagem, as habilitem a cooperar, quando necessário, na defesa nacional” (BRASIL, 1940). No documento, observa-se a intenção de se preparar o público infanto-juvenil para embates contra possíveis inimigos do regime.
As atividades da Juventude Brasileira ocorriam em comemoração à acontecimentos cívicos, dentro e fora das escolas. Normalmente, participavam das atividades estudantes e funcionários dos estabelecimentos de ensino, como professores e diretores. Em 1940 instituiu-se a Parada da Juventude, que passou a ocorrer durante a Semana da Pátria em várias cidades do país. Essas paradas compunham-se principalmente de desfiles, com a execução do hino nacional, o hasteamento da bandeira e marchas em estilo militar. As atividades nas quais a Juventude Brasileira participava eram noticiadas pela imprensa de forma enaltecedora, levando a entender que toda a sociedade compartilhava dos mesmos valores, não existindo pensamentos contrários àquelas concepções. É válido frisar que, nesses eventos, a participação dos estudantes e dos funcionários das escolas era obrigatória.
Em matéria de 1942, o Lavoura e Comércio descreveu de forma bastante positiva a Parada da Juventude durante a Semana da Pátria, em Uberaba. Segundo o periódico, apesar das condições climáticas desfavoráveis, o evento ocorreu com “grande brilhantismo”. A Parada da Juventude contou com a participação da maior parte dos estabelecimentos de ensino da cidade: “escolas primárias, ginásios e estabelecimentos de ensino técnico, cada um deles atestando seus distintivos e uniformes”. Os estudantes, juntamente com professores e diretores, “puseram-se em marcha” até a Praça Rui Barbosa, em frente à Prefeitura Municipal, local em que se encontrava “altas autoridades civis e militares”. Em seguida, houve o hasteamento da bandeira e a execução do Hino Nacional, tocado pela banda do batalhão da polícia. Terminada essa primeira parte da solenidade, o prefeito da cidade, Whady José Nassif, “fez uma patriótica e eloquente exortação à mocidade de nossa terra nesta hora difícil do Brasil, e quando se comemora as grandes datas da Semana da Pátria”. Após o pronunciamento do prefeito, descrito como uma “vibrante oração, que foi calorosamente aplaudida”, os estudantes “se puseram em marcha pelas principais ruas da cidade” (LAVOURA E COMÉRCIO, 05/09/1942, p. 3).
O trecho anterior permite compreender que as ações adotadas pelo prefeito de Uberaba, Whady José Nassif, estavam alinhadas à política do Estado Novo. Percebe-se também que o fragmento vai ao encontro dos pressupostos do Decreto-Lei nº 2.072 de 1940, no que diz respeito à finalidade do movimento Juventude Brasileira, e, em especial, da Parada da Juventude, de glorificação às datas cívicas e de culto à pátria. O evento mencionado no jornal coloca em evidência o projeto de mobilização destinado a crianças e jovens, por meio de símbolos e rituais que valorizavam o Estado Novo. A regulação corporal, presente nas marchas e no uso dos uniformes escolares, revela a padronização que se desejava dos estudantes.
No periódico, a matéria sobre a Parada da Juventude veio acompanhada de uma imagem, que pode ser vista na Figura 2.
Fonte: Acervo Codiub Lavoura e Comércio. Disponível: http://www.codiub.com.br/lavouraecomercio/pages/main.xhtml. Acesso: 11 mar. 2021.
A imagem retratada no jornal foi retirada da obra “A Juventude no Estado Novo”, um material didático destinado ao público infanto-juvenil. Produzido pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), o material era utilizado nas escolas brasileiras e continha trechos dos discursos oficiais de Vargas.
A Figura 2 remete a um momento de celebração cívica. Percebe-se ao centro da imagem um estudante segurando a bandeira do Brasil e no canto inferior esquerdo algumas estudantes igualmente com a bandeira brasileira, todos eles uniformizados. O fato de ser um estudante do sexo masculino no centro da imagem, possivelmente conduzindo as alunas, possibilita pensar sobre a própria representação da masculinidade em liderar as ações consideradas mais importantes dentro da sociedade. Nota-se também o semblante sorridente do aluno, que parece aprovar e estar em concordância com tais práticas. A imagem acompanha o seguinte discurso varguista:
Brasileiros: como chefe da Nação, exulto e sinto fortalecida a fé que sempre tive no futuro do Brasil. A grande virtude nacional neste momento histórico, deve ser uma virtude militar - a disciplina: as circunstâncias impõem à nossa conduta o atributo dos povos fortes - a tenacidade. A nação, disciplinada e tenaz, há de realizar os seus altos objetivos de progresso, sob a proteção do pavilhão auriverde, símbolo da unidade e da grandeza do Brasil (LAVOURA E COMÉRCIO, 05/09/1942, p. 3).
Fica constatado que o intuito do discurso anterior é conclamar o púbico infanto-juvenil a valorizar o patriotismo e o país. O fragmento dialoga com as diretrizes existentes no decreto-lei que institucionaliza o movimento Juventude Brasileira, ao acentuar a relevância de desenvolver os valores militares para o progresso da nação (BRASIL, 1940). Nesse aspecto, a juventude de elite aparece como principal público para tal, pois poderia ser levada a adquirir determinados tipos de comportamento e pensamento. Essa concepção idealizada do jovem também está em acordo com o documento Exposição de Motivos (BRASIL, 1942a), proposto por Capanema em decorrência do ensino secundário, no qual a juventude deveria ser preparada para a gerência do país, conforme visto anteriormente.
Considerações finais
Em consonância com os ideais nazifascistas de países como Itália e Alemanha, o Estado Novo (1937-1945) caracterizou-se por uma política centralizadora, autoritária e nacionalista (BONEMY, 1999; SCHWARCZ; STARLING, 2018), a partir da concentração do poder do Estado em todas as esferas de atuação, e, em especial, na esfera educacional.
Em Uberaba, uma das principais cidades da região do Brasil Central no período, a interferência estatal no âmbito educacional pôde ser observada por meio das matérias publicadas pelo jornal Lavoura e Comércio, as quais colocaram em evidência a propagação da ideologia estadonovista. Tal propagação estava em conformidade com o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), cujo objetivo era controlar os meios de comunicação existentes no país, afim de monopolizar informações a favor do regime varguista. O controle se dava por meio do que o periódico publicava, em termos dos discursos oficiais do governo, e em termos do que o próprio Lavoura e Comércio produzia.
Assim, as publicações do Lavoura e Comércio, analisadas no presente texto, demonstraram que o periódico estava alinhado à política educacional estadonovista, no que diz respeito aos valores, diretrizes e práticas pautadas no sentimento de unidade nacional, no amor à pátria, e, no culto aos exercícios físicos - tanto na escola quanto fora dela. É importante frisar que não apenas o principal periódico em circulação na cidade, como também o prefeito de Uberaba, Whady José Nassif, seguia os pressupostos impostos pelo Estado Novo.
De modo específico, o estudo acerca das publicações do periódico mostrou a preocupação do governo Vargas com uma parte específica da população: a criança e o jovem em idade escolar, principalmente de elite, os quais deveriam se moldar para atender às expectativas do governo, visando ao “progresso” da nação. Isso se notou sobretudo com a Lei Orgânica do Ensino Secundário, com a valorização da disciplina Educação Física, a partir de um viés estritamente militar, e com os movimentos Juventude Brasileira e Cruzada Nacional de Educação. Na cidade uberabense, as edições do Lavoura e Comércio revelaram que os planos e projetos de mobilização destinados ao público infanto-juvenil se fizeram mais evidentes em períodos específicos, como por exemplo, em datas simbólicas do ponto de vista do patriotismo (implantação do Estado Novo, Semana da Pátria) e em datas natalícias (aniversário de Vargas).
A análise das notícias contidas no Lavoura e Comércio permitiu ainda constatar que não foi encontrado nenhum registro de manifestação contrária às diretrizes estadonovistas, ou mesmo algum relato sobre pessoas que pudessem discordar das solenidades cívicas que então aconteciam. De fato, as matérias analisadas mostraram que a população uberabense aparece aceitar passivamente as diretrizes impostas, o que não causa estranheza, tendo em vista a repressão de qualquer manifestação que viesse a questionar a ordem vigente e o governo.