Introdução
O Brasil tem uma longa história de exploração da mão-de-obra infantil. As crianças pobres sempre trabalharam. Para quem? Para seus donos, no caso das crianças escravas da Colônia e do Império; para os ‘capitalistas’ do início da industrialização, como ocorreu com as crianças órfãos, abandonadas ou desvalidas, a partir do século XIX; para os grandes proprietários de terras como bóias-frias; nas unidades domésticas de produção artesanal ou agrícola; nas casas de família; e finalmente nas ruas, para manterem a si e as suas famílias. (RIZZINI, 2000, p. 376).
A história da educação tem sido profícua nos estudos da infância1. Entretanto, muito ainda há para ser estudado nesse campo. Este artigo pretende ser uma contribuição à história da infância, especificamente da infância trabalhadora, na sua relação com a história do ensino e dos aprendizados iniciais da leitura e da escrita no final do século XIX e nos primeiros anos do século XX.
Para tanto, estabeleceu-se como objetivo principal analisar a relação da demanda e da oferta de crianças aos serviços domésticos e o aprendizado da leitura. O argumento principal que se quer desenvolver é o de que no período supracitado houve uma crescente preocupação com o domínio da leitura e, por vezes, da escrita, e muitos meninos, em especial, mas também meninas, eram requisitados ou oferecidos aos serviços domésticos com a condição de que pudessem aprender a ler ou “terminar de aprender a ler”.
A insuficiência de escolas, a necessidade de trabalho e de aprendizado de um ofício, o crescimento urbano, o aumento de serviços nas cidades, as condições de vida e o destino das crianças, especialmente das nascidas livres, filhos e filhas de escravizados, pela Lei do Ventre Livre, de 1871, e o cenário do pós-abolição estão entre as razões que explicam a prática de colocar menores como aprendizes, notadamente no espaço privado da casa. Conforme Soares (2017, p. 25) constatou em seu estudo, “no período de pós-abolição os pedidos de mão de obra infantil disparam em comparação ao período escravista”.
Os dados de investigação, coletados em jornais disponíveis na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, mostram essa realidade. Trata-se de solicitações, notícias, anúncios publicados em diferentes periódicos, em especial nos do Rio de Janeiro, então capital do país, em que crianças eram requisitadas ou dadas ao serviço doméstico sob as condições citadas, como se verá a seguir. O período de abrangência do estudo vai da segunda metade do século XIX aos primeiros anos do século XX, não ultrapassando a primeira metade da segunda década.
“Crias de estimação”: trabalho infantil e aprendizado da leitura
Com a promulgação da lei nº 2.040, de 28 de setembro de 1871, a chamada Lei do Ventre Livre, as filhas e filhos das escravizadas nasciam livres e deveriam, sob força da legislação, ficar sob a tutela dos senhores escravocratas, que deveriam cria-los e trata-los até os oito anos. Pela lei, “chegando o filho da escrava a esta idade, o senhor da mãi terá opção, ou de receber do Estado a indemnização de 600$000, ou de utilisar-se dos serviços do menor até a idade de 21 annos completos” (BRAZIL, 1871). Essa legislação, entre outras medidas e acontecimentos, começou a mudar as relações de trabalho no Brasil, que se consolidam em 1888 com o fim - pelo menos jurídico - do trabalho escravo no país.
A partir de 1871, como se vê na legislação, mesmo nascidos livres, meninos e meninas ficam sob a responsabilidade dos senhores de suas mães até os oito anos e depois eram entregues ao estado ou deveriam trabalhar para eles, segundo previa o texto da lei. Conforme Soares (2017, p. 50), a lei de 1871 indicava que “os menores seriam entregues ao governo, que designaria tutelas, demonstrando, dessa forma, um claro interesse em atender aos senhores que tinham o direito de obter uma maneira eficaz de mão de obra infantil em permanência servil”. Para Perussatto (2021, p. 65), mesmo que a tutela existisse antes da lei de 1871, ela é redefinida com essa legislação e configurou-se como um dispositivo jurídico-legal amplamente utilizado, tornando-se “um instrumento de dominação de proprietários sobre as crianças nascidas de ventre livre”.
A figura do tutor é, pois, bem anterior a 1871, remonta à existência dos juízes de órfãos, ao tempo em que o Brasil era ainda Colônia. Segundo Azevedo (2007, p. 2), “sua figura é descrita no Livro I das Ordenações Filipinas, código de leis compilado em 1603, considerado a espinhal dorsal do direito português”. Entretanto, a citada autora chama a atenção para o fato de que:
Até as primeiras décadas do século XIX percebe-se que as atenções desses magistrados encontravam-se quase todas voltadas para as crianças de posses. Porém, a partir das primeiras décadas do século XIX, cada vez mais, a área de atuação dos juízes de órfãos vai se modificando. Embora ele continuasse cuidando das questões envolvendo o universo dos menores ricos, diversas leis começaram a ser aprovadas com o intuito de amparar legalmente esses magistrados para que eles intermediassem questões relativas ao trabalho. (AZEVEDO, 2007, p. 3).
A pesquisadora refere que um conjunto de legislações durante o século XIX - entre elas a que definiu o fim da fiança para os interessados em tutelar um menor - fez com que o número de pedidos de tutela aumentasse consideravelmente. Assim, como se percebe, a tutela extrapola - para bem antes e bem depois - a Lei do Ventre Livre. Nesse contexto, contudo, ela adquiriu conotações específicas, por se tratar da passagem do trabalho escravo ao trabalho livre: “de meados do século XIX até as primeiras décadas do século XX, a tutela deixou de ser usada segundo os princípios de proteção da criança para se tornar um amplo mecanismo de agenciamento do trabalho infantil” (AZEVEDO, 2007, p. 4).
Por ser um instrumento de dominação e uma forma de exploração do trabalho infantil, a tutela, mesmo no pós-abolição, continuou uma prática comum e se alastrou pelas primeiras décadas do século XX. Isso significava que mesmo livres muitos menores vivam sob um regime de servidão, senão jurídico, de fato, ou seja, trabalhavam desde muito cedo, sem receber salários e vivendo sob condições precárias. Como destacado, Soares (2017, p. 39) afirma que houve um aumento significativo do número de pedidos de tutela de menores, especialmente em 1888. Segundo ela, “esse ‘negócio’ tornou-se viável pela possibilidade de uma relação de trabalho” (SOARES, 2017, p. 39).
A “pedagogia senhorial” do trabalho foi uma herança do sistema escravagista que encontrou outras formas de se efetivar após o seu término legal (GÓES; FLORENTINO, 2000). Segundo Rizzini (2000, p. 377), “a experiência da escravidão havia demostrado que a criança e o jovem trabalhador constituíam-se em mão-de-obra mais dócil, mais barata e com mais facilidade de adaptar-se ao trabalho”.
As denúncias de menores que viviam e trabalhavam sob condições precárias, submetidos à violência, que não frequentavam escolas, que não eram providos do ensino da leitura e da escrita são constantes em matérias jornalísticas do período.
O Diário do Maranhão, por exemplo, em 1890, publicou um Auto de Declaração, escrito pelo Oficial de Polícia, Francisco de Carvalho Serra, e assinado pelo Chefe de Polícia, Dr. Julio de Mello Filho, e por Raimundo Nonnato dos Santos, representante de duas mulheres denunciantes - mãe e avó - de um caso de abuso de tutela; o último assinou o Auto em razão de que as denunciantes não sabiam ler nem escrever.
Ambas compareceram à polícia local para denunciar ao Chefe da Polícia um caso de manutenção de escravidão, como caracterizam, na Fazenda de Lençois, em Pedreiras, Maranhão, de quatro menores, filhos e netos seus. Mais do que isso, elas comparecerem à Secretaria de Polícia do Estado para pedir a anulação da tutela do major Joaquim Pinto Saldanha, responsável pelas quatro crianças da família.
Juliana Rosa Martins, a avó, e Febronia Rosa Martins, a mãe dos menores Theophilo, Izabel, Julia e Filomena, declararam ao Chefe da Polícia e aos demais presentes que as quatro crianças sofriam maus tratos de seu tutor, que não eram alimentadas adequadamente, não recebiam roupas e calçados suficientes, não frequentavam escola de ler e escrever e nem qualquer oficina para aprenderem um ofício. Tratava-se, segundo elas, da manutenção da escravidão, uma vez que os quatro menores trabalhavam dia e noite nos serviços da casa e da roça, como se fossem escravos. Alegaram que o major Saldanha se fez tutor das crianças apenas para mantê-las no trabalho forçado e se recusava a abrir mão da tutela, usando de sua posição e cargo. Apelavam, pois, para a intervenção da polícia no caso. Esse é apenas um exemplo do abuso dos tutores das crianças mais pobres, via de regra negras, filhas ou netas de pessoas que haviam sido escravizadas.
As crianças tuteladas e os chamados “filhos de criação” tornaram-se parte do cotidiano brasileiro e criaram um nefasto imaginário de que elas eram “tratadas como da família”, sendo exploradas no cotidiano doméstico e no âmbito do comércio e da prestação de pequenos serviços, principalmente. Em relação a isso, veja-se o anúncio a seguir:
Precisa-se para casa de família, de uma menina de 10 a 12 anos, para serviços leves, sendo considerada como pessoa da família, não se faz questão de cor, prefere-se que seja órfã, na rua de São Claudio nº 6, Rio Comprido (Jornal do Commercio, 1893, p. 8).
Trata-se do mito da “igualdade familiar”, assim referido por Jean Baptiste Debret quando de sua viagem pelo Brasil (GÓES; FLORENTINO, 2000). Manteve-se, igualmente, como uma herança da escravidão, quando crianças cativas, filhos e filhas de escravizados, viviam, por vezes, lado a lado com os filhos e filhas dos senhores. Esse imaginário construído nesse contexto não levava em consideração que, de fato, os pequenos escravizados eram, desde cedo, explorados, humilhados e serviam aos e para os caprichos dos meninos e meninas livres.
“Não havia família antigamente que não tivesse a sua cria de estimação. Ou era uma pardinha, ou uma negrinha ou um moleque” (Pedro II, 1889, p. 2). Assim começa uma longa matéria intitulada “Outr’Ora”, assinada por França Junior, e publicada no Jornal Pedro II, Órgão Conservador de Fortaleza, em 1889. Um ano após a abolição da escravidão, o tom de lamento pela impossibilidade de ter ainda as “crias de estimação” era a tônica da matéria.
Na sequência, o autor refere que o “moleque” geralmente era filho da escrava que havia amamentado “com carinho a sinhá moça e tinha distinções que equivaleria a alforria”. Além disso, “estas crias tinham as mesmas regalias e privilégios” que os filhos da casa: vestimenta, comida, educação e “recebiam até o mesmo nome da família”. Quando bebês, segundo a matéria jornalística, “eram motivo de exibição pública, em especial diante das visitas”; quando cresciam, eram “incumbidos das missões as mais importantes”, ou seja, servir aos donos da casa, trabalhar. Lamentavelmente, na visão do autor da matéria, “os moleques foram pouco a pouco desaparecendo com o andar do tempo” (Pedro II, 1889, p. 2).
Se as “crias de estimação” de outrora foram desaparecendo, para desespero das famílias senhoriais, elas foram encontrando outras formas de explorar a infância em seu benefício. Anúncios como o reproduzido a seguir não eram incomuns nos periódicos:
Difícil identificar quais eram de fato as razões em anúncios como esses para solicitar “uma criança para criar”. A julgar pelos dados levantados, a maioria delas era para a realização de serviços domésticos, ou seja, para serem empregadas da casa, mas “sendo considerada como pessoa da família” e, por isso mesmo, pagamento de salário raramente estava em questão.
Para além disso, a prestação de serviço poderia ser em algum estabelecimento comercial ou em outros tipos de ofícios. Geralmente, os serviços seriam prestados em troca de comida, roupa e/ou casa. Veja-se o caso do anúncio a seguir em que o trabalho seria em troca do ensino do ofício, de casa e de comida, sem pagamento de salário. Nesse mesmo anúncio a questão étnico-racial não passa despercebida: “Precisa-se de um menino branco, brasileiro, para serviços de um gabinete dentário, ensina-se o officio, dá-se comida e casa, menos ordenado, trata-se na rua do Cattete n. 219” (Jornal do Brasil, 1901, p. 6).
Como destacou Soares (2017, pp.102-103), “os aprendizes representavam uma das categorias mais exploradas no mundo do trabalho infantil, empregavam sua mão de obra a fim de aprender ofícios diante de uma lógica do desenvolvimento e do progresso como futuros cidadãos que estavam inseridos na urbe”. O argumento que se quer agregar a esse é que essa lógica incluía, também, a necessidade de aprender a ler, a escrever e, por vezes, a contar (aprender a fazer contas).
Há inúmeros anúncios dessa natureza e é possível afirmar que “a maioria desses menores, público-alvo dos anúncios, é composta por sujeitos de famílias pobres que necessitavam trabalhar para complementar a renda” (SOARES, 2017, p. 56) ou que necessitavam aprender algum ofício, garantir casa e comida, aprender a ler e a escrever.
Todos os anúncios que serão reproduzidos a seguir têm em comum a solicitação de meninos e meninas para serviços domésticos e a referência à possibilidade de aprenderem a ler e a escrever, foco principal deste trabalho:
Precisa-se de um rapazinho de 15 a 16 annos mais ou menos, para serviços leves, tendo tempo para se dedicar a aprender a ler e escrever, porém prefere-se dos arrabaldes da cidade, para informações na rua de D. Manuel n. 30, loja (Gazeta de Notícias, 1892, p.5).
Precisa-se de uma pequena de 10 a 15 annos, para casa de família, para lidar com crianças, dá-se roupa, calçado e algum ordenado, podendo aprender a ler, escrever e aprender trabalhos de agulha, sendo bem tratada; na rua do Santos Rodrigues, n. 133 (Jornal do Commercio, 1895, p.13).
Precisa-se de uma pequena para serviços leves de casa de família, podendo aprender a lêr, escrever e contar, à rua do Lavradio, n. 115, sobrado (Jornal do Commercio, 1895, p.9).
Quem tiver um menino de 8 a 12 annos e queira entrega-lo a uma família para aprender a ler, escrever e contar, prestando o mesmo, alguns serviços, dirija-se à rua Silva Guimarães, n. 28, Fábrica das Chitas, pois será tratado como da família (Jornal do Commercio, 1898, p.11).
Precisa-se de um menino de 10 a 12 annos, para recados, prefere-se de côr, dá-se comida, roupa e ensina-se a lêr, na rua da Paz, n. 31. Rio Comprido (Jornal do Brasil, 1903, p.5).
Como se lê nos anúncios, tratava-se de solicitação das crianças para “serviços leves”, para levar recado, para acompanhar outras crianças, com ou sem ordenado, aliás o não pagamento de ordenado era comum à época. Assim, trabalhar em troca de casa, comida, roupa e aprendizado da leitura e da escrita foi uma realidade existente para uma parcela da população infantil brasileira, em especial no pós-abolição e nas primeiras décadas do século XX, como mencionado.
O aspecto que todos os anúncios anteriormente reproduzidos têm em comum, como se destacou, é a referência à possibilidade de os pequenos trabalhadores aprenderem a ler e a escrever e, em alguns casos, a fazer contas (contar), no âmbito do trabalho doméstico. Certamente sabedores da crescente importância que a leitura adquiria no contexto da sociedade brasileira no final do século XIX e primeiras décadas do século XX, as famílias que solicitavam as crianças para trabalho usavam esse ensino como barganha, como uma espécie de “moeda de troca”: trabalho ou “serviços leves”, expressão genérica e imprecisa, em troca de aprender a ler.
Assim, pode-se reforçar a tese, já trabalhada por outros autores, como, Faria Filho (1999) e Demartini (2001), de que o ensino e o aprendizado da leitura e escrita não podem ser compreendidos no período delimitado apenas em uma dimensão escolarizada.
Em seu estudo, a partir de biografias que retratam infâncias do final do século XX e início do século XX, Demartini (2001, p. 122) constatou que muitas crianças se alfabetizaram “fora do sistema escolar, envolvendo relações entre grupos diferenciados”. Além disso, a pesquisadora identificou, para o período, um protagonismo das crianças, que, em alguns casos, ensinavam umas às outras, e uma representação positiva das famílias e das próprias crianças sobre o aprendizado da leitura e da escrita, mesmo em lugares onde a escola inexistia. Adiante ver-se-á como os responsáveis pelas crianças as ofereciam aos serviços também em troca do aprendizado da leitura.
No caso dos anúncios aqui estudados parece interessante observar que se o aprendizado da leitura e da escrita era uma demanda e estava entre as ofertas às crianças trabalhadoras, isso significava que havia alguém em condições de ensinar nas casas das famílias: seriam as mulheres, as filhas ou filhos, ou mesmo algum outro empregado da casa o responsável por esse ensino? Seriam aulas individuais ou os pequenos trabalhadores aprenderiam juntamente com outras crianças da casa? Quais eram os artefatos disponíveis para esse ensino (livros, cadernos, lápis, lousa etc.)? Em quais horários esse ensino acontecia e quanto tempo durava? As práticas e os materiais desse ensino não são possíveis de serem reconstruídos, infelizmente. Pode-se, entretanto, considerar que algum “ensinante” e alguns artefatos estavam disponíveis, o que tornava possível esse ensino no contexto doméstico.
Não se pode presumir que as famílias que requisitavam meninas e meninos para os serviços da casa fizessem investimentos significativos para ensiná-los a ler e a escrever, tampouco precisar como ocorria esse ensino, conforme dito. Pode-se, todavia, ponderar que havia um conjunto de artefatos disponíveis em circulação no período, cujos anúncios são recorrentes nos jornais pesquisados. Veja-se um exemplo, a seguir, de um jogo de loto anunciado, que era composto de um compêndio, de cartões ilustrados e de marcadores de madeira com letras em relevo, para aprender a ler em família, sem soletrar, pelo método intuitivo:
Se compêndios, cartas ABC, lotos, alfabetos ilustrados eram vendidos e adquiridos pelas famílias, havia também materiais específicos para ensino da leitura que eram distribuídos gratuitamente por casas comerciais e industriais, revelando um esforço social para aumentar os índices de alfabetização da população, em especial da mais pobre. O anúncio da Pharmacia e Drogaria Ramos & Irmãos, de Vitória, no Espírito Santo, é exemplar nesse sentido:
Com esses poucos exemplos o que se pretende é apenas levantar problematizações e hipóteses acerca do ensino da leitura no âmbito do trabalho doméstico. Se nesse mesmo período havia uma preocupação latente em relação aos métodos de ensino e uma significativa produção e venda de materiais para o aprendizado da leitura às escolas públicas e privadas, caracterizando uma rica e diversificada cultura material escolar, o que se quer chamar a atenção é que no mesmo período havia também aquilo que se caracterizou, em outro trabalho (PERES, 2021), como cultural material instrucional, ou seja, artefatos produzidos para usos no ensino da leitura e da escrita em espaços não-escolares, como os exemplos anteriores deixam perceber.
Cultura material instrucional é composta, então, de artefatos disponíveis socialmente e que não eram voltados especificamente à escola (revistas, almanaques, livro de orações, jogos, panfletos, cartazes, cartas, cartões, materiais impressos e manuscritos de circulação cotidiana e de uso em espaços religiosos, comerciais, industriais, políticos etc.), mas que eram apropriados e usados por “ensinadores” no ensino doméstico da leitura e da escrita. Se reconhece, no entanto, que no contexto doméstico também eram usados materiais produzidos e direcionados às escolas, em uma intrincada e complexa relação entre a vida cotidiana e a cultura escolar.
Na continuidade da exploração dos anúncios, destaca-se que a oferta de crianças para os serviços domésticos com a exigência de que aprendessem ou acabassem de aprender a ler também era recorrente, como se lê em anúncios a seguir:
Aluga-se um pequeno para serviços leves, quer aprender a ler, não faz questão de ordenado, na rua Theophilo Ottoni, 183, sobrado (Jornal do Brazil, 1915, p.5).
Offerece-se um menino com 10 annos, para recados e acabar de aprender a ler e a escrever; paga-se a quem tomar conta dele o que se tratar; na r. Marquez de Pombal 98, botequim (Jornal do Brazil, 1911, p.2).
Dá-se um pequeno portuguez a uma professora que leve ao collegio junto com ella para aprender a ler ou a uma família que tenha outro para fazer companhia, dá-se de comer e vestir, tem 10 annos, na rua Francisco Eugênio 328, casa n. 7, trata-se com o pae (Jornal do Brazil, 1913, p.17).
Veja-se que no segundo e no terceiro anúncios quem oferece os pequenos, nesses casos, propõe-se a pagar pelos cuidados: paga-se a quem tomar conta dele o que se tratar; dá-se de comer e vestir. Explicitamente em um há referência ao pagamento, e no outro a menção de que as vestimentas e a comida continuariam a ser garantidas por quem está “dando” o pequeno português. As formas de entregar crianças ao trabalho doméstico eram, pois, variadas e denotam múltiplas relações nesses contextos, quer seja pelas famílias de origem ou responsáveis pelos menores, quer pelas famílias que os requisitavam.
Em seu estudo, Soares (2017) analisou o aumento considerável de pedidos de crianças para o trabalho com o fim da escravidão. Tendo como fonte de pesquisa também os anúncios de solicitação de mão de obra, especificamente a infantil, entre 1888, data da extinção legal da escravidão, até 1927, quando foi promulgado no Brasil o Código de Menores, que estabelecia medidas de assistência e proteção ao menor2, a pesquisadora procurou “compreender o cenário no qual liberdade, pobreza e mercado de trabalho se articulam nos marcos da República” (SOARES, 2017, p. 19). Nesse sentido é que conclui que:
A falta de recursos para educar e alimentar os filhos e o medo de vê-los desencaminhados também foram motivos que levavam pais e mães a entregarem seus filhos a um tutor ou patrão, retirando-os do convívio em família. Nesse contexto, a configuração da pobreza e da miséria levava a inserção dos pequenos e pequenas no mundo do trabalho (SOARES, 2017, p.16).
Assim, pode-se explicar os inúmeros anúncios de prováveis responsáveis pelos pequenos e pequenas com as expressões: aluga-se, dá-se, oferece-se. O que se quer destacar, entretanto, são as referências às exigências de que as crianças pudessem aprender a ler e a escrever ou “acabar” de fazê-lo, denotando a infrequência delas à escola e um interesse e uma necessidade do domínio da leitura e escrita.
A importância que o aprendizado da leitura ganha na segunda metade do século XIX está expressa, também, em uma outra notícia a seguir reproduzida. Embora refira-se ao período anterior à Lei do Ventre Livre e à abolição e não seja relacionada ao trabalho doméstico, ela ganha força no argumento da centralidade do aprendizado das competências de ler e escrever na vida de meninos e meninas na segunda metade do século XIX e primeiras décadas do século XX, no âmbito das novas relações de trabalho, do crescimento urbano, dos novos serviços, em um contexto discursivo de progresso, modernidade, desenvolvimento e de combate à vagabundagem e ao crime.
Em 1866, o Jornal do Recife publicou a notícia do suicídio do negociante da cidade de Caxias, no Maranhão, Seraphim Rodrigues Lopes. Segundo o jornal, tratava-se de um honrado e reputado comerciante que, antes de suicidar-se, deixou um bilhete com o seguinte teor:
Declaro que estou em meu juízo perfeito. Se me mato é por não poder arrastar essa vida tão pesada para mim.
Declaro mais que todo gyro de negocios desta casa é pertencente a meu irmão José Rodrigues Lopes, e que a mim nada pertence.
Peço ao meu irmão que por caridade não desampare o meu filho: que faça com que elle acabe de aprender a ler, e depois mande lhe ensinar um officio ou aquillo que elle vêr mais conveniente.
Nada mais tenho a dizer.
Adeus aos que cá ficam, até o dia do juízo.
Caxias, 19 de abril de 1866
Seraphim Rodrigues Lopes (Jornal do Recife, 1866, p.4).
A reprodução do bilhete do suicida permite perceber suas duas grandes preocupações: declarar que os negócios de seu comércio pertenciam ao irmão, José Rodrigues Lopes, e garantir o amparo do filho na sua ausência. Para o caso da última, deixou por escrito duas solicitações: que o menino acabasse de aprender a ler e que aprendesse um ofício. Tal matéria deixa entrever, entre outras coisas, a importância que determinados grupos sociais atribuíam ao domínio da leitura no século XIX. Seraphim Lopes, possivelmente ele mesmo um sujeito que dominava a leitura e a escrita, em razão de seu ofício de comerciante, tem como um dos últimos desejos que seu filho não ficasse desamparado após sua morte. No caso, isso significava terminar de aprender a ler, possivelmente, ler e escrever bem, e aprender uma profissão que lhe garantisse o futuro.
As demandas de trabalho no comércio e nos serviços urbanos em geral cresciam de forma expressiva no início do século XX, e os pedidos de meninos para o trabalho eram recorrentes nos anúncios também para esses espaços. Chama a atenção, contudo, novamente, as exigências de saber ler e, em alguns casos, de ler e escrever, em outros, ainda, ler, escrever e saber fazer contas (contar), foco principal deste estudo:
Nesta typographia precisa-se de um menino para aprender a arte typographica, o qual deve saber ler bem e escrever e ter bom comportamento (O Vigilante, 1900, p.2).
Precisa-se de um menino até 15 annos, limpo, que saiba ler e escrever, para uma pharmacia homeopathica, dando boas referencias, na rua da Quitanda, n.23 (Jornal do Commercio, 1902, p.7).
Precisa-se de um menino de 12 a 15 annos que saiba ler, para entregar encommendas em domicilio, na travessa das Bellas Arte, n.7 (Jornal do Brasil, 1905, p.7).
A Pharmacia Pedreira precisa de um menino de bons costumes, que saiba ler, escrever e contar e queira nella empregar-se (Jornal de Caxias, 1904, p.5).
Para além do trabalho doméstico3, os meninos tinham maiores oportunidades em relação às meninas na esfera pública: serviços de rua - recados e entregas -, bem como no âmbito do comércio, da imprensa, da saúde que estavam entre aqueles que eram a eles ofertados, nem sempre, contudo, com salário, como já referido.
Em relação às atividades exercidas pelas meninas, como apurou Soares (2017, p. 96) em seu estudo, essas “eram em sua maioria ocupações restritas ao ambiente doméstico”. Elas atuavam como amas-secas, cuidavam de crianças, lavavam e passavam roupas, cozinhavam, engomavam, arrumavam a casa, eram copeiras; faziam companhia a casais sem filhos, a senhoras idosas e crianças, entre outras atividades do universo doméstico, como também constatou Soares (2017).
Ambos, meninos e meninas, entretanto, estiveram sujeitos ao árduo trabalho desde muito cedo. Se, de fato, no contexto do trabalho puderam aprender a ler e a escrever, não há como apurar; nem tampouco se ao aprender tiveram oportunidades outras que contribuíram para que tivessem uma vida melhor. Todavia, não há dúvidas de que os anúncios revelam uma representação positiva da leitura e da escrita, além de uma necessidade que estava posta para uma sociedade que, cada vez mais, valorizava a cultura escrita e que os aprendizados se deram, também, em espaços extraescolares.
Considerações finais
Crianças tuteladas, crianças dadas ou tomadas “para criar”, crianças empregadas sem ordenado ou com módico ordenado e sem amparo legal, trabalhavam em espaços privados e públicos no final do século XIX e início do século XX, na longa tradição brasileira de exploração da mão de obra infantil, como indica Rizzini (2000) no excerto reproduzido como epígrafe deste artigo. Como afirmou Soares (2017, p. 56), “dentro do universo da infância trabalhadora havia menores sem assistência imediata dos pais, os que eram órfãos, os que andavam ‘abandonados’ pelas ruas, os imigrantes, os ex-escravos e os brancos pauperizados”.
O trabalho infantil caracterizava, pois, a sociedade brasileira no período referido. O fim da escravidão e as mudanças sociais, políticas, culturais, comerciais e nas relações de trabalho explicam essa realidade. Não podendo mais dispor de “crias de estimação” - escravizados ou ingênuos - a possibilidade foi mantê-los tutelados, “criados ou tratados como da família” ou empregados sob as condições já referidas. Essa infância - ou uma parcela dela - é que aprendeu a ler e a escrever no espaço das relações de trabalho, em especial no âmbito doméstico.
Assim, a conclusão do estudo, no aspecto que mais interessou, parece óbvia: no período em questão, meninos e meninas pobres e trabalhadores aprendiam a ler no espaço do trabalho doméstico, assinalando para a relação direta entre trabalho e aprendizado das competências de leitura e, por vezes, de escrita e do contar.
Todavia, as conclusões podem ser para além disso: primeiro, o estudo reforça a tese da importância do ensino e do aprendizado da leitura no âmbito privado no período abordado, indicando que tais experiências, ao lado da escola, a principal agência de ensino dessas competências, contribuíram para a alfabetização de uma parcela da população. Segundo, longe de enaltecer as experiências do ensino do ler, do escrever e do contar no âmbito do trabalho infantil, o intento foi o de explicitar e compreender essa realidade que permite constatar, mais uma vez, que a história da educação brasileira configura-se sob desigualdades e injustiças: enquanto algumas crianças, como até os dias atuais, podiam frequentar a escola e para elas a infância era tempo de aprender e de brincar, outras precisavam trabalhar e/ou ficar sob a responsabilidade de famílias que não as suas, certamente pela necessidade da sobrevivência e de aprendizado de algum ofício.
Aprender a ler, escrever e contar na escola e escolarizar-se têm sido, historicamente, no contexto da realidade brasileira, infelizmente, privilégios de uma parcela da população.