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Reflexão e Ação

On-line version ISSN 1982-9949

Rev. Reflex vol.29 no.2 Santa Cruz do Sul May/Aug 2021  Epub Sep 21, 2023

https://doi.org/10.17058/rea.v29i2.16028 

Dossiê Temático: Paulo Freire e Educação Popular: cultura, metodologias, lugares e sujeitos

Extensão popular: bases teórico-metodológicas

Popular extension: theoretical-methodological foundations

Extensión popular: bases teórico-metodológicas

Pedro José Santos Carneiro Cruz1 
http://orcid.org/0000-0003-0610-3273

Renan Soares Araújo2 
http://orcid.org/0000-0002-3477-638X

Celâny Teixeira Mélo3 
http://orcid.org/0000-0002-9744-7938

Ane Flávia Souza Rodrigues4 
http://orcid.org/0000-0001-5403-4829

1 Universidade Federal da Paraíba - UFPB - João Pessoa - Paraíba - Brasil

2 Universidade Federal da Paraíba - UFPB - João Pessoa - Paraíba - Brasil

3 Universidade Federal da Paraíba - UFPB - João Pessoa - Paraíba - Brasil

4 Universidade Federal da Paraíba - UFPB - João Pessoa - Paraíba - Brasil


RESUMO

O presente artigo se propõe a desenvolver uma abordagem teórica-metodológica da concepção de Extensão Popular. Para tanto, parte do delineamento de alguns aspectos teóricos e metodológicos importantes para compreender o desenvolvimento histórico-conceitual da Extensão Popular. Em sequência, busca evidenciar a sua compreensão enquanto ponto de partida da ação universitária, articulando ensino e pesquisa para uma aplicação edificante da ciência, por meio da construção compartilhada do conhecimento. Ademais, destaca-se questões relevantes para o debate e a mobilização do processo de (re)pensar e (re)fazer das práticas extensionistas, quanto à sua interface com uma perspectiva decolonial.

Palavras-chave: Extensão Popular; Educação Popular; Trabalho Social Universitário; Pensamento Decolonial

ABSTRACT

This article aims to develop a theoretical-methodological approach of the Popular Extension concept. For that, it starts outlining some important theoretical and methodological aspects to understand the historical and conceptual Popular Extension development. Therefore, it seeks to show its understanding as a starting point for university action, formulating teaching and research for an edifying application of science, through the shared construction of knowledge. In addition, relevant issues for the debate and the mobilization of (re)thinking and (re)doing process of extension practices are highlighted, regarding their interface with a decolonial perspective.

Keywords: Popular Extension; Popular Education; University Social Work; Decolonial Thought

RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo desarrollar una aproximación teórico-metodológica del concepto de Extensión Popular. Para eso, esboza aspectos teóricos y metodológicos importantes para comprender el desarrollo histórico y conceptual de la Extensión Popular. En secuencia, se busca mostrar su comprensión como punto de partida de la acción universitaria, articulando la docencia y la investigación para una aplicación edificante de la ciencia, a través de la construcción compartida del conocimiento. Además, se destacan temas relevantes para el debate y la movilización del proceso de (re)pensar y (re)hacer de las prácticas de extensión, en cuanto a su interrelación con una perspectiva decolonial.

Palabras clave: Extensión Popular; Educación Popular; Trabajo Social Universitario; Pensamiento Decolonial

INTRODUÇÃO

Nas últimas três décadas, no contexto de uma Constituição Cidadã, o campo da Extensão Universitária tem contribuído significativamente para a alimentação de um amplo e diversificado movimento nacional de experiências que visam a configuração de um fazer universitário socialmente referenciado e politicamente orientado pela formação crítica das pessoas. Especialmente nas duas últimas décadas, com uma sucessão importante de políticas públicas voltadas ao aprimoramento do ensino superior no Brasil, as ações extensionistas com esse perfil puderam ser apoiadas e, assim, seus desdobramentos puderam ser amplificados em escritos e em experiências compartilhados nos mais diferentes espaços de debate e de reflexão sobre a universidade, seus desafios e suas perspectivas.

Fica evidente que uma amplitude de protagonistas vêm empreendendo experiências que, orientadas pela Educação Popular, não se constituem apenas em processos locais ou regionalmente importantes, mas apontam metodologias, vivências, enfoques, interfaces e práticas relevantes para que, como propôs Boaventura de Sousa Santos, segundo Oliveira (2006), sejam, pela educação, redefinidas as possibilidades de atuação e inserção política das pessoas no mundo. A Extensão, portanto, vivenciada e aplicada como uma forma de - pela comunicação entre as pessoas e a partir do trabalho social - se articular à pesquisa e ao ensino para a reorientação e a ressignificação do modo de atuar no mundo, desde a conformação de outras subjetividades. Para tanto, a Extensão Popular manifesta que é de crucial importância considerar-se e empenhar-se, prioritariamente, no processo de formação de subjetividades inconformistas que se associem a outros sujeitos e organizem um mutirão empenhado na gestação de um outro mundo possível.

Nessa acepção, a Extensão Popular coaduna-se com o discernido por Freire (2013a; 2015), ao sublinhar que, somente por meio do exercício de uma práxis autêntica, é que as pesssoas podem constituir-se como sujeitos da história - que problematizam, criticam e agem de maneira transformadora sobre a realidade. Por isso que, para a Extensão Popular, é fundamental a compreensão da Extensão como comunicação, entendendo que esse não é um processo individual (o qual se dá de forma isolada), mas uma prática social em que, o diálogo é o caminho mobilizador da colaboração.

Consideramos que, hoje, a Extensão Popular situa-se como uma das substânciais alternativas de constituição de subjetividades inconformistas no contexto das instituições universitárias públicas brasileiras. O envolvimento de estudantes, docentes e técnicos - em diálogo com protagonistas populares e sociais, com a complexidade da dinâmica social povoada de sofrimentos, opressões e muitas possibilidades de fascinante construção coletiva - pode incitar o despertar e motivar o afastamento progressivo da alienação individualista e consumista tão disseminada no âmbito da sociedade capitalista e que tão fortemente tem incidido sobre a juventude, como pontuado por Vasconcelos (2015).

Em virtude do exposto, o presente ensaio teórico propõe-se a desenvolver uma abordagem teórica da concepção de Extensão Popular, particularmente no que tange à sua compreensão enquanto ponto de partida da ação universitária, articulando ensino e pesquisa para a aplicação edificante da ciência e a construção compartilhada do conhecimento, bem como quanto à sua interface com as perspectivas educativas da decolonialidade do saber.

EXTENSÃO POPULAR: BREVE INCURSÃO TEÓRICA E METODOLÓGICA

Por Extensão Popular, compreende-se uma concepção de pensar, de fazer e de pautar a Extensão Universitária de forma coerente com os princípios teórico-metodológicos da Educação Popular, especialmente, conforme as perspectivas desenvolvidas por Paulo Freire e por uma rica diversidade de outros autores. Tais perspectivas provêm, sobretudo, de uma série de potentes experiências educacionais, de ações culturais e de práticas sociais empreendidas de modo compartilhado com os protagonistas, os grupos e os movimentos sociais populares do Brasil e da América Latina desde meados dos anos de 1950.

Compreende-se que a Educação Popular busca lutar pelo direito de uma educação libertadora e não se desviar de práticas educativas democráticas e emancipatórias, que proporcionem aos sujeitos um pensar e um agir fora da padronização imposta por uma classe dominante; “o que distinguiria, então, a educação popular das outras variedades de educação seria a sua proposta e práxis direcionadas para efetiva transformação do homem, da sociedade e do Estado” (RODRIGUES, 2001, p. 21). Portanto, a Educação Popular posta como insubmissa a uma sociedade e universidade imutáveis, que desvela uma Extensão Popular que,

[...] por meio de práticas fundamentadas nessa concepção do agir extensionista, há uma pedagogia libertadora e dialógica, sendo construída cotidianamente no seio das universidades brasileiras, protagonizadas por atores e autores de novos horizontes no pensar e fazer acadêmico, dedicados ao exercício e processual consolidação de uma universidade voltada à construção compartilhada e conjunta de caminhos para uma sociedade culturalmente diversa, economicamente solidaria e politicamente justa (CRUZ, 2018, p. 15).

Contudo, em que pese ser complexa e profunda a conceituação trazida pela Educação Popular para a Extensão Universitária, considerou-se como um avanço significativo nessa área a possibilidade da construção e do desenvolvimento de um conceito próprio para a Extensão Popular, que foi desenvolvido por Melo Neto (2014) a partir de uma densa análise crítica sobre a Extensão Universitária.

Melo Neto (2014) conceitua a Extensão Popular como trabalho social útil. Assim, configura essa perspectiva de Extensão como uma estratégia na relação entre universidade e sociedade, colocando os sujeitos nos espaços sociais, criando e recriando um pensar e fazer que coadune para a transformação. Desse modo, “a extensão configura-se e se concretiza como um trabalho social útil, imbuído da intencionalidade de pôr em mútua correlação o ensino e a pesquisa, mirando mudanças” (MELO NETO, 2014, p. 58).

Para esse autor, a Extensão realiza-se em um processo dialético de teoria e prática, no sentido de constituir “um produto que é o conhecimento novo, cuja produção e aplicabilidade possibilitam o exercício do pensamento crítico e do agir coletivo” (MELO NETO, 2014, p. 93). Ou seja, a Extensão visa provocar nas relações, possibilidades de construir conhecimentos que colaborem nos processos de transformação da sociedade. Portanto, a Extensão

[...] é social na medida em que não será uma tarefa individual; é útil, considerando que esse trabalho deverá expressar algum interesse e atender a uma necessidade humana. É, sobretudo, um trabalho que tem na sua origem a intenção de promover o relacionamento entre ensino e pesquisa. Nisto, e fundamentalmente nisto, diferencia-se das dimensões outras da universidade, tratadas separadamente: o ensino e a pesquisa (MELO NETO, 2014, p. 46).

Nessa perspectiva, a Extensão Popular visa ter uma utilidade para as pessoas, passando a ser realizada entre universidade e comunidade na realidade objetiva, almejando a superação das desigualdades e injustiças sociais que afetam a maioria da população. Para tanto, ela só é possível pela escuta dos anseios e necessidades humanas. Em razão disso, as reflexões de Freire (2015) são fundamentais à Extensão Popular, especialmente considerando as suas ponderações ao salientar a premência de se conceber a Extensão como um processo dialógico de comunicação e reiterar que os resultados e consequentes benefícios do trabalho extensionista precisam estar direcionados para atender às necessidades e aos anseios dos sujeitos implicados com a experiência.

Assim, vislumbramos a Extensão Popular, compreendendo-a na direção de superar as desigualdades e injustiças sociais, priorizando ações que proporcionem a escuta sincera dos grupos socialmente marginalizados e efetivando uma produção realmente direcionada para a superação das condições de vida que estão oprimindo (FALCÃO, 2018).

Ao me referir à Extensão Popular, estou falando sobre uma Extensão Universitária que não é qualquer trabalho fora da Academia ou mero serviço assistencialista à população carente. Seu propósito é maior: fundir o que se aprende e se produz na Universidade e aplicar para o desenvolvimento de uma comunidade, de modo respeitoso e valorativo dos saberes, das histórias, das lutas e dos interesses das classes populares (FALCÃO, 2018, p. 157).

Destarte, essas experiências de Extensão traziam em si um processo educativo que intencionava que os sujeitos alcançassem a capacidade crítica de ser e estar no e com o mundo ativamente, em um processo de superar situações de opressão social, econômica, política e cultural. No que se refere a isso, Freire (2013a) avaliava que, mesmo os homens e as mulheres sendo condicionados socio-históricamente, esses não são seres determinados. De modo que, como viabilidade histórica, a transformação da realidade social opressora exige a inserção crítica, dedicada e persistente dos sujeitos, evocando a necessidade do exercício de uma autêntica práxis: ação-reflexão-ação.

Do ponto de vista da construção histórica da concepção extensionista, conforme assinalam Cruz e Vasconcelos (2017), cabe ponderar que a Extensão Popular já se encontrava permeando o ideário de universidade e sociedade da classe estudantil. Em meados de 1940, ela encontrava-se ligada às classes populares imbuídas pelo desejo da transformação social brasileira. Assim, desenvolveram-se experiências como a Juventude Universitária Católica (JUC) e a Juventude Estudantil Católica (JEC), voltadas aos trabalhos comunitários.

Conforme Melo Neto (2002), já se podia identificar a Extensão Popular na América Latina, palco do movimento de estudantes aliados aos movimentos sociais que, por meio do Manifesto de Córdoba, estabeleciam um ideário de universidade que chegasse às classes populares; ideia que se propagou entre os estudantes brasileiros em 1938. Assim, a Extensão era posta como um canal que permitiria a divulgação cultural para emancipar as classes populares; ela era vista pelos estudantes como uma possibilidade de objetivar as transformações sociais. Ainda que tivesse a ideia de difundir a cultura universitária para a classe popular desfavorecida, essas experiências de Extensão Popular buscavam desenvolver-se de forma crítica e com a intencionalidade de contribuir com o conhecimento como forma de libertar e proporcionar autonomia às camadas populares.

Especialmente a partir desse período, vários ambientes acadêmicos desenvolveram ações de Extensão Popular - embora essas não se encontrem com essa denominação -, a exemplo do Serviço de Extensão Cultural da Universidade do Recife e do Movimento de Cultura Popular, os quais foram base para a configuração do que ficou conhecido como “Método Paulo Freire”. São essas experiências de Extensão Popular que contribuíram para a teoria e a metodologia da Educação Popular de forma intensa na década de 1960, contando com a participação de vários protagonistas, tendo Paulo Freire se destacado como um dos seus atores mais proeminentes.

Observa-se que, na década de 1980, já havia novas inspirações na elaboração de um novo pensar e fazer Extensão para a década seguinte, com a universidade ciente de que ela precisava estar ligada ao Ensino e à Pesquisa, desenvolvendo uma visão crítica da realidade em termos teóricos e práticos. Assim, não teríamos mais uma Extensão forjada meramente para transmitir conhecimento, prestar serviços e divulgar cultura. Ela caracterizar-se-ia, então, em uma atividade que buscasse um compromisso com a população, articulando-se com o Ensino e a Pesquisa em prol da transformação da sociedade.

Em outras palavras, “a Extensão como lugar constante de ação e reflexão do Ensino e Pesquisa, que convida a sociedade a participar ativamente da construção do conhecimento” (CRUZ, 2013, p. 198-199). Assim, apontando uma direção para uma Extensão Popular que se relaciona com a população, apresentando outros caminhos para a universidade na intencionalidade de contribuir para a reinvenção da sociedade; uma Extensão que se firma no compromisso com os sujeitos em consonância com a realidade, na qual eles se encontram.

Nessa década, tivemos uma universidade afirmando-se como um lócus compromissado com a divulgação do conhecimento, uma formação acadêmica permeada de Ensino, Pesquisa e Extensão. A Extensão forjada e pensada para a participação da população, articulando-se com o Ensino e a Pesquisa, em missão de criar caminhos e conhecimentos que pudessem minimizar as desigualdades humanas que permeiam a sociedade, assim como se estabeleceu no Fórum de PróReitores de Extensão das Instituições de Educação Superior Brasileiras (FORPROEX), predominantemente se constituindo como alicerce da universidade na produção de soluções de problemas para a formação e estabelecendo maior espaço de interlocução entre universidade e sociedade.

Ainda que, no seio da universidade, existam atividades imbrincadas na produção do conhecimento no âmbito do Ensino, da Pesquisa e da Extensão, compreendemos que esse também se constrói nas relações dessas atividades com os setores populares da sociedade. Embora sejam indissociáveis para o pensar e o fazer acadêmico, é indispensável que estejam vinculados com a realidade, tendo-a como o ponto de partida para uma outra vida forjada na humanização do homem e da mulher. Assim, entende-se que

[...] a busca por produção de um conhecimento se sobrepõe à dimensão de troca de saberes. Entretanto, na prática convencional de extensão universitária, ainda predomina o conhecimento acadêmico, uma ação conservadora encoberta por uma retorica de transformação. Vejo, então, que é necessário que se supere o status quo que repousa numa ação acadêmica indissociada entre ensino, pesquisa e extensão, focada num mesmo evento, seja ele social, biológico, tecnológico ou de outra natureza, com ampla participação da comunidade acadêmica, sociedade e outros segmentos do aparato institucional governamental e não governamental (FALCÃO, 2018, p. 158-159).

Segundo Cruz e Vasconcelos (2017), na década de 1990, a Extensão, com o avanço da sua institucionalização e seu reconhecimento como prática acadêmica, favoreceu uma Extensão Universitária sob a égide da Educação Popular, dispondo de um referencial teórico, metodológico e ético. Segundo Cruz (2018), no Brasil e em outros países, a Extensão Popular tem-se constituído em uma perspectiva do pensar e fazer das ações de Extensão Universitária, sendo assim,

[...] primeiramente, para responder a desafios da vida comunitária e da dinâmica social com a mobilização de trabalhos formativos, educacionais e de lutas sociais, embasados no pensamento crítico e através de metodologias ativas e participativas, onde a construção das ações se dá de maneira compartilhada, dialogada e humanizante, enxergando as pessoas, todas elas, como sujeitos, independente de serem universitários ou não. E, em segundo lugar, para demonstrar, no concreto vivido e de forma contundente, que é possível se construir uma ação universitária emancipadora e irreversivelmente compromissada com a promoção do outro pela lapidação obstinada de conhecimentos e formação de sujeitos para o enfrentamento crítico, solidário e amoroso dos sofrimentos, das desigualdades e das explorações decorrentes dos processos históricos de exclusão social e política (CRUZ, 2018, p. 17).

O início dos anos 2000 representaram um avanço na crítica ao modelo conservador e elitista de universidade, provocando produções teóricas e debates acerca dela. Nesse período, a Extensão Popular estabeleceu-se como uma proposta insistente e persistente de um novo modo de conceber a relação da universidade e sociedade. Conforme Cruz e Vasconcelos (2017), um fenômeno que marca a Extensão Popular nessa década, se deu por meio da constituição de espaços nacionais de encontros de extensionistas, de forma crescente, o que, inclusive, possibilitou a criação do Congresso Brasileiro de Extensão Universitária (CBEU), que teve início em 2001, realizando seu primeiro encontro em João Pessoa, na Paraíba. Assim, o CBEU passou a ser um evento que se configurou em um ambiente de socialização da produção e de debate sobre temas acerca da Extensão Universitária, o que culminou, por meio dessas discussões e a partir da necessidade de incentivos financeiros advindos do Governo Federal, no reorganização, em 2003, do Programa de Extensão Universitária (ProExt), o qual passou a fomentar financeiramente a Extensão Universitária em nível nacional.

Ainda acerca do CBEU, Cruz e Vasconcelos (2017) afirmam que esse se encontrava fortemente enraizado pela ótica de uma Extensão assistencialista e mercantilista, provocando insatisfações nos membros de projetos de Extensão Popular, o que acabaria ocasionando um movimento nacional que prezasse pela Extensão a partir do caráter popular. Com isso, em dezembro de 2005, criou-se a Articulação Nacional de Extensão Popular (ANEPOP), que é uma articulação de Extensão com caráter nacional que procura criar canais de trocas de experiências e reflexões entre atores da Extensão Popular, sendo palco para a apresentação de diversos projetos e programas da Extensão em todo o país.

Sobre a ANEPOP, Cruz (2010) expressa que essa possui um caráter político e uma pedagogia que corrobora para a formação dos estudantes integrantes, uma vez que os proporciona experiências para além da sala de aula, pois,

Há uma singularidade nesta pedagogia da ANEPOP, expressa marcantemente na capacidade de inserir os estudantes em espaços de protagonismos com repercussões de amplitude nacional e com interfaces de ordem conjuntural. Ademais, cabe ainda ponderar o relevante saber, acumulado no movimento, de conviver entre diferentes numa escala pouco exercitada no âmbito dos projetos locais de extensão. O diálogo nas experiências da ANEPOP envolve a interface com diversos atores (vários movimentos sociais, além de técnicos, professores, próreitores, dirigentes e outros estudantes em formação). Outrossim, esse diálogo é também, em muitas ocasiões, marcado pelo conflito intenso, tanto entre os diferentes, como entre os semelhantes. Ou seja, o estudante em formação, através da ANEPOP, convive cotidianamente com contradições e diferentes correntes da extensão universitária e até com correntes divergentes da própria extensão popular (CRUZ, 2010, p. 308).

No tocante à ANEPOP, Melo Neto (2014) afirma-nos que, nacionalmente, essa articulação tem reunido diferentes atores sociais (estudantes, professores, técnicos e movimentos populares) que estão envolvidos com atividades de Extensão Universitária permeadas pela Educação Popular. Eles buscam fomentar espaços para compartilhamento de experiências, discussões e estudos que apontem as possibilidades e dificuldades da Extensão orientada pela Educação Popular, neste caso, como Extensão Popular. Essa articulação representa um espaço de aproximação de vários coletivos, oriundos de diferentes lugares e regiões do Brasil, que visam apontar lutas e avanços da Extensão Popular, constituindo-se em uma rede de troca de ações desenvolvidas e estratégias para a caminhada da Extensão Popular em diversas universidades.

Para Melo Neto (2014), a ANEPOP tem desvelado o quanto a Extensão Popular vem se constituindo em um movimento nacional nas universidades do Brasil, fazendo-se presente em várias instituições. Esse movimento é proveniente e nascedouro do não conformismo de diversos atores com a estrutura acadêmica atual; assim, seus protagonistas, por meio dessas iniciativas, buscam expressar-se e fortalecer o debate de forma regional e nacional acerca da Educação Popular na universidade, expondo também seus interesses em compartilhamentos de experiências e vivências nesse campo.

EXTENSÃO POPULAR: A EXTENSÃO COMO PONTO DE PARTIDA DA AÇÃO UNIVERSITÁRIA

O conceito de Extensão Popular tem como base fundante a compreensão de que a Extensão é necessariamente o ponto de partida da ação universitária e da produção do conhecimento. Extensão como ponto de partida, justamente por ser ela: um processo de comunicação dos protagonistas universitários com o mundo concreto; um trabalho social; e o elemento articulador do ensino e da pesquisa (CRUZ, 2010; 2011).

Com isso, queremos dizer que o processo de ação universitária e de produção do conhecimento tem seu início fundamentalmente deflagrado pela comunicação dos/as universitários/as com o mundo mesmo, com os seus conflitos, com as suas contradições e com as suas complexidades. Ainda, esse ponto de partida, que se dá pela comunicação, se expressa e se desvela necessariamente pelo trabalho. E não por qualquer trabalho, mas por um trabalho que envolva o outro; portanto, um trabalho social.

Finalmente, esse ponto de partida passa, em seu caminho, pela pesquisa e pelo ensino, na medida em que o processo de comunicação e o trabalho social mobilizam o desvelamento de temas úteis para o ensino e a aprendizagem, como também provocam a identificação de questões, de problemas e de curiosidades pertinentes para a atividade de pesquisa.

Desse modo, o conceito de Extensão Popular indica que, a produção de conhecimentos úteis somente poderá ser deflagrada por meio de um profundo mergulho de estudantes, docentes e técnicos acadêmicos no mundo concreto e na dinâmica complexa das relações sociais, o que aponta para a construção de conhecimentos com um caráter emancipatório defronte às situações de exploração, de injustiça e de exclusão nas dimensões social, humana e política.

Na concepção popular, a Extensão começa com um mergulho do qual, conforme as palavras de Freire (2013b), os sujeitos acadêmicos sairão encharcados, ensopados, e poderão, de forma compartilhada com os sujeitos e protagonistas de cada realidade social, construir conjuntamente a definição de temas prioritários para se conhecer, questionar, discutir ou investigar - fazendo, portanto, a pesquisa. A partir de então, com base nos aprendizados desenvolvidos nesses processos de estudos, serão apontadas constatações, descobertas, aprendizados e conhecimentos essenciais para o enfrentamento dos desafios da realidade em questão, os quais configurarão, em última instância, conhecimentos a serem compartilhados, discutidos e criticamente apropriados pelas pessoas por meio do ensino.

Assim, pela Extensão Popular, o ensino e a pesquisa não são pautados pelas prioridades de intelectuais, de gestores e de professores, mas pelos aprendizados e pelos conhecimentos emergidos a partir de uma investigação socialmente comprometida e construída de forma articulada e solidária com as pessoas e não meramente para essas ou, até mesmo, apesar dessas, como veementemente enfatizava Freire (2013a). Na concepção de Freire (2013a; 2013b), a superação das condições de opressão, de exploração e de violência que promovem a desumanização, necessitam do protagonismo dos oprimidos na direção da recuperação da sua humanidade, isto é, na busca da realização de sua vocação ontológica de ser mais.

As práticas de Extensão Popular têm ensinado que, primeiramente, é imprescindível buscar inserir-se nos contextos da vida, convivendo com seus protagonistas e construindo vínculos capazes de mediar uma comunicação dialógica. Posterior a isso, paulatinamente, é necessário permitir que tal processo mobilize frentes de ação a partir de trabalhos sociais. Dessa maneira, por meio da comunicação e no encadeamento do trabalho social na realidade concreta, é que se dará a construção de conhecimentos.

No concreto das experiências extensionistas populares, isso ocorre a partir do diálogo com os sujeitos das comunidades e do engajamento nas suas lutas cotidianas, onde diversos estudantes percebem as limitações e inconsistências que perpassam as relações com a população, sob um ponto de vista autoritário, bem como as insuficiências do próprio conhecimento acadêmicocientífico. Por isso, lidam com os problemas em suas raízes, conforme os protagonistas de cada contexto sentem, elaboram, interpretam e vivenciam tais problemáticas. Nesse tocante, Freire (2013a) compreendia e defendia que, a percepção das consequências da opressão e da exploração, assim como a necessidade da sua efetiva superação, só poderiam ser devidamente depreendidas ao se buscar entender o ponto de vista dos oprimidos, que são as pessoas que melhor enxergam e sentem os efeitos de tal condição. De modo que, a concepção freiriana da dialogicidade, apresentase como um pressuposto fundamental à Extensão Popular.

Na acepção de Freire (2013a), o diálogo enquanto fenômeno humano, é o caminho pelo qual os sujeitos podem pronunciar o mundo e transformá-lo, humanizando-o. Não obstante, não é qualquer “diálogo” em que isso se torna possível. Para ele, o diálogo autêntico é aquele que se funda na palavra verdadeira, que se expressa em solidariedade e compromisso, portanto, é um diálogo constituído de duas dimensões dialeticamente articuladas: ação e reflexão. Sobre isso, Freire (2013a) assinalava que, o diálogo que não resulta em uma ação, torna-se mero verbalismo, e, caso o diálogo seja dissociado da necessária reflexão e problematização que lhe são inerentes, esse pode se configurar em reles ativismo.

Por essa razão, os problemas a serem enfrentados pela Extensão, com a pesquisa e com o ensino, não serão palavras frias escritas em livros empoeirados, mas tomarão corpo, calor, cor e cheiro de gente. Ganharão sentidos e significado humanos. O aprendizado e a atuação acadêmica estarão profundamente empenhados na promoção da vida e respeitarão, para tanto, sua dinâmica complexa.

Com essas especificidades, não se pode perder de vista que a Extensão Popular é um processo educativo, orientado não por quaisquer perspectivas, mas por aquelas vertentes educativas críticas que se orientam com base em um ponto de vista popular. Vertentes que se expressam pedagogicamente no esteio teórico da Educação Popular, a qual representa uma forma de abordar e de conduzir o trabalho extensionista que não se corporifica apenas como uma metodologia de trabalho social, ou de um jeito de guiá-lo. Mas, muito além disso, concretiza-se como uma maneira de estar, de ser e de atuar no mundo, de viver as relações humanas e sociais. Constitui um arcabouço ético (CRUZ, 2011; VASCONCELOS; CRUZ, 2011).

A Extensão, portanto, compreendida como comunicação, como trabalho social e como articuladora do ensino-pesquisa, precisa constituir o eixo fundamental para qualquer proposta de ação universitária cujo interesse esteja no desenvolvimento da formação de sujeitos com cunho crítico, cidadão e emancipatório. É a base para que a instituição universitária possa encarar, sem tergiversar, a atividade de pesquisa como possibilidade efetiva de analisar criticamente a realidade e seus fenômenos, procurando problematizar as situações-limite para desvelar, de modo compartilhado, atos-limite e inéditos-viáveis, qualificando as iniciativas já empreendidas em cada contexto, criando novas ações possíveis e também compreendendo melhor essa realidade, suas especificidades, seus desafios e suas potencialidades.

Com a Extensão como ponto de partida, a atividade de pesquisa ganha sentido aprofundado e utilidade socialmente ampliada. Em muitos casos, atores sociais e acadêmicos potentes adentram em grandes pesquisas apenas para cumprir uma etapa, um objetivo específico ou uma tarefa bem limitada. Devido a isso, pouco extrapolam e pouco apreendem o mais importante: a pesquisa como jeito de estar e olhar o mundo na direção da curiosidade epistemológica, da criticidade e da inquietude, como aludido por Freire (1996). Para mais, a pesquisa como compromisso de mulheres e de homens em perscrutar, pela atividade do pensamento crítico, a superação de problemas e buscar por melhorar a vida das pessoas e das comunidades.

Para tanto, é preciso fortalecer a autonomia nesse processo, com vistas a evitar a figura do pesquisador e da pesquisadora com papel limitado na pesquisa, como uma peça em uma linha de produção. Ou, melhor dizendo, é imprescindível permitir que os protagonistas das pesquisas criem, eles mesmos, problemas e perguntas de pesquisa, não sendo essa uma investigação qualquer, mas uma investigação engajada que se propõe a contribuir com a transformação social. A esse respeito, Freire (1996) enfatizava que, o fenômeno educativo e a pesquisa são quefazeres indissociáveis, que devem ser compreendidos como momentos de uma mesma situação gnosiológica em que, o movimento iniciado com uma indagação, é seguido pela busca de constatação, e ao se constatar, partilha-se e comunica-se o que foi conhecido para se intervir melhor e criticamente sobre a realidade.

Desenvolver a Extensão como ponto de partida implica em conceber a tessitura paulatina de um projeto novo de universidade, o qual se encontra necessariamente através de diversas práticas contra-hegemônicas presentes no ambiente universitário, com eixos peculiares e significativos, como o empenho em superar a dicotomia entre teoria e prática; a configuração de uma utilidade humanizadora para toda e qualquer uma das práticas acadêmicas; a composição e a instauração de relações sociais verdadeiramente democráticas e solidárias; a ampliação de posturas culturalmente inclusivas, que respeitem e dialoguem com a diversidade e; finalmente, a explicitação de uma intencionalidade política emancipatória.

EXTENSÃO POPULAR: DECOLONIALIZAR A EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA E A PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO

É relevante salientar que, a partir da Extensão Popular, se sobressai a perspectiva de superação da compreensão tradicional da Extensão, como hegemonicamente foi sendo desenvolvida pelas universidades. Ou seja, de maneira colonizadora, por meio de um movimento que se desenrola de dentro da instituição universitária para seu exterior, em uma ótica de invasão cultural e dominação, como muito bem assinalou Freire (2013a; 2015), ao enfatizar a necessidade que certos grupos extensionistas sentiam (e ainda sentem) de ir até determinadas comunidades, consideradas por eles como “carentes”, “atrasadas”, “incivilizadas” e, ao seu modo, modernizá-las, concebendo-se a si mesmos como os seus redentores.

Segundo Freire (2013a), qualquer iniciativa que se desenrole sem respeitar os saberes e a visão de mundo dos diferentes sujeitos − portanto, não fundada no diálogo −, mesmo possuíndo “ boas intenções”, resultará em um ato de invasão cultural e não de ação cultural libertadora. Por esse ângulo, na medida em que se inviabiliza e não se considera como relevantes a reflexão e a ação das pessoas sobre a realidade concreta, verifica-se a constituição de uma dinâmica favorável à sua alienação e “coisificação”, a qual, ao contrário da libertação, serve mais à sua dominação.

Como referido por Santos (2019), as instituições universitárias ocidentais (ou, em alguns casos, ocidentalizadas), ao longo dos séculos, têm servido de berçário para as epistemologias do Norte global, que são fundamentadas em uma racionalidade moderno/colonial e eurocentrada/ocidentalocêntrica, responsáveis pelo processo de depreciação, invisibilização e deterioração de outros conhecimentos e formas de racionalidade. O que incorre no epistemicídio de uma inesgotável diversidade de saberes e no desperdício de uma rica gama de experiências oriundas do Sul global, já que o paradigma científico hegemônico não é dotado de capacidade para compreender e se articular com os conhecimentos elaborados pelos diferentes sujeitos e grupos (indígenas, negros, mulheres, camponeses etc.) que, há muito tempo, vêm sendo alvo dos processos de exclusão, de opressão e de dominação, que fundamentam e estruturam o modelo ocidental de sociedade a partir dos seus três eixos: o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado.

Diante disso, pela abordagem da Extensão Popular, evidencia-se que é necessário (re)pensar e questionar o colonialismo científico e a posição que tem estabelecido o conhecimento acadêmico-científico como uma “verdade universal” ou a “hybris do ponto zero”, como delineado por Castro-Gómez (2007) − ao criticar o modelo epistemológico que impera no seio das universidades latino-americanas e que se estrutura com base em um “olhar moderno/colonial” sobre o mundo. Segundo esse autor, é essa ideia que dá sustentação à falsa noção de que o conhecimento científico é produzido de forma apartada do mundo, como se o pesquisador e a pesquisadora observassem o mundo de fora dele (o ponto zero), situando-se em uma espécie de plataforma de observação que é inobservável, o que lhes permitiria alcançar uma forma de observação fidedigna, neutra e inquestionável da realidade.

Esse pensamento moderno/colonial se firma com base na desvalorização e inferiorização das outras formas de saberes existentes, o que evidencia e alimenta a hegemonia de uma racionalidade eurocêntrica e colonial, que se expressa, como cunhado por Quijano (2009), em forma de colonialidade, nesse caso, a colonialidade do saber.

Para Quijano (2009), colonialidade distingue-se de colonialismo justamente por possuir, como parte intrínseca de sua característica, raízes mais profícuas e duradouras, que possibilitaram a manutenção da matriz colonial do poder, ainda que tenha ocorrido o desfecho do colonialismo político. A colonialidade alicerça-se articulando a categoria “raça” como dispositivo de distinção, hierarquização e dominação dos diferentes sujeitos e grupos socioculturais, desumanizando-os, inferiorizando-os e subalternizando-os em relação aos colonos brancos/europeus, que são o exemplo maior e fiel da superioridade, modernidade e civilidade que precisa ser estendida a todos os povos e territórios, o que justificou a sua imposição por meio da força e da violência.

Ambos os eventos ocorrem impreterivelmente após a invasão das Américas, com a justificativa do desenvolvimento rumo à modernidade, que fundiu as experiências do colonialismo e da colonialidade com as necessidades do capital. A ideia de raça atribuiu legitimidade às relações de dominação impostas na conquista, fundando, então, a racionalidade do poder mundial: o eurocentrismo.

Conforme Walsh (2012), a colonialidade do saber fundamenta-se na alegação de que a racionalidade e a produção de conhecimentos são atributos facultados unicamente aos sujeitos de origem europeia, ignorando e excluindo a existência de outros tipos de racionalidades e menosprezando todos os outros modos de se produzir saberes - sobretudo os saberes procedentes dos povos e das comunidades autóctones -, ao empregar universalmente como parâmetro epistemológico a modalidade de racionalidade de cunho eurocêntrico/colonial/moderno, que se consubstancializa na efígie da ciência moderna.

Para decolonializar a Extensão Universitária, faz-se crucial ter em vista o que aponta Mignolo (2017), ao indicar que o pensamento decolonial se alicerça no esforço constante por desvelar e apreender a organização e o funcionamento da matriz moderna/colonial e eurocêntrica, com o intuito de despegar-se e desaproximar-se das “visões” da modernidade e de suas tramas coloniais, com a ótica de viabilizar a sua superação e a composição de projetos decoloniais.

A decolonialidade, no âmbito da Extensão Popular, significa a busca e a provocação contínua pela adoção de uma posição teórica, política e epistemológica que aposta e se fixa em uma atitude de transgressão permanente e de crítica radical aos eixos estruturantes do projeto de civilização ocidental moderna/colonial. Assim, visa identificar e sinalizar outras possibilidades e caminhos para transformar as relações sociais, as instituições e as estruturas da sociedade como um todo, como expresso por Walsh (2009).

Em síntese, pode-se sinalizar que, pela Extensão Popular, se parte dos seguintes pressupostos: a) não há conhecimento neutro/todo conhecimento é situado e implicado; b) o saber científico é uma entre outras formas de “conhecer” (que tem também a sua devida relevância); c) estabelece-se relações sujeito-sujeito e não sujeito-objeto; d) não visa “transferir” ou “depositar” conhecimentos, mas reconhecer e valorizar os saberes de experiência feitos − como aludia Freire (1996) − desses sujeitos e possibilitar a produção de novos saberes; e) apoiar e contribuir com os processos de transformação social.

Desde a Extensão Popular, o conhecimento é reconhecido como um produto situado, sendo o saber científico apenas uma amostra, entre tantas outras formas de saber, que desvela unicamente um lado/leitura do fenômeno em questão, e não a sua interpretação única e absoluta. Consubstanciando com tal entendimento, Oliveira (2018) reitera que a produção do conhecimento não se dá em um “vazio” contextual e sem um direcionamento, sem uma perspectiva de projeto. Para essa autora, todo conhecimento é situado − em âmbito social, político e cultural − e apresenta uma intencionalidade, um horizonte a ser buscado.

Diante disso, Oliveira (2018) pontua que, não passa de uma postura ilusória a do sujeito que indica ser politicamente neutra a ciência que o mesmo produz, como se a dimensão política do conhecimento só se fizesse presente em um uso posterior que alguma outra pessoa viesse a fazer de tal conhecimento. Na produção de conhecimento, na perspectiva da Educação Popular, assumese a não neutralidade da ciência e evidencia-se a intencionalidade política da pesquisa em seu compromisso com a apreensão da realidade social na busca de transformá-la, estando, assim, fortemente vinculada com a noção de práxis.

Por esse ângulo, decolonializar, para a Extensão Popular, indica que é basilar que se compreenda que conhecimento algum se constitui de maneira isolada ou de forma autossuficiente. Os saberes constroem-se de modo relacional e são complementares. Quanto mais modos diferentes de interrogar e interpretar a realidade estabelecerem inter-relações e diálogos horizontalizados, maior será a chance de se construir novos conhecimentos sobre a realidade.

Em razão disso, pela Extensão Popular, busca-se superar a ideia que tem o trabalho extensionista como uma ação que visa “estender”, “levar”, “depositar” ou “transferir” um conjunto de conhecimentos às pessoas, propondo-se a possibilitar o encontro de diferentes sujeitos e o diálogo entre os seus saberes, o que viabiliza a produção de novos conhecimentos resultantes desse diálogo e da prática social. Dessa forma, é concebível a elaboração de um novo conhecimento resultante desse encontro e diálogo entre saberes distintos para a constituição do que Fleuri (2019) cognominou de conhecimento conversitário − que é um saber construído de modo compartilhado, que emerge como fruto de um diálogo crítico, participativo, conflitivo e propositivo entre a universidade e os movimentos sociais populares, a partir de uma abordagem dialética, intercultural e política da práxis científica.

Por isso, para a Extensão Popular, é imprescindível que o conhecimento seja construído de forma compartilhada, como forma de romper com a hegemonia e as amarras modernas/coloniais que concebem o saber científico como o único modo de conhecer socialmente válido, e que estabelece a racionalidade científica como a detentora do direito de assinalar o que pode ser considerado como verdadeiro/falso, legítimo/ilegítimo, tangível/intangível, compreensível/incompreensível etc. Pela Extensão Popular, parte-se da compreensão de que os sujeitos são singulares, e que esses possuem distintos saberes, os quais são resultantes de suas diferentes inserções e vivências culturais, de modo que, por meio do estabelecimento de diálogos críticos e de mútuas interações, podem ser oportunizados momentos de ensino-aprendizados enriquecedores (FLEURI, 2019).

Dentre as contribuições da decolonialidade para a Extensão Popular, assinalamos que é precípuo o reconhecimento da pluralidade dos sujeitos que compõem a expressão “popular” − ou, seria mais pertinente, ainda, aderirmos ao uso constante do seu plural (populares) − para demarcar as especificidades presentes e constituintes das identidades de cada sujeito e grupo que estão contidos nessa locução, afastando-se das concepções que visam homogeneizar e obliterar as diferenças. Em relação a isso, o uso do plural não é mera predileção, mas a indicação de uma posição e do reconhecimento das diferentes identidades e características de todos os seres humanos “oprimidos”, como assinalou Freire (2013a).

Por isso, é importante que a Extensão Popular seja compreendida como o direcionamento crítico à abordagem acrítica das dimensões colonial, moderna e eurocêntrica hegemônica no âmbito da ciência e no contexto universitário que, por meio do diálogo intercultural crítico, se propõe a estabelecer pontes de comunicação que permitam uma “convivência intercultural valorizando as diferenças como potencializadoras de relações sociais críticas e criativas entre os diferentes sujeitos sociais e entre seus respectivos contextos culturais” (FLEURI, 2019, p. 105), exprimindo um exercício de síntese cultural (FREIRE, 2013a).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pensar na Extensão Popular enquanto ponto de partida da ação universitária, dialogando com o ensino e a pesquisa em uma perspectiva decolonial, implica pensar, necessariamente, em uma prática que se estruture na construção compartilhada dos saberes. Espaço onde o pensamento científico-acadêmico possa dialogar com os saberes populares de forma horizontal, estabelecendo uma relação dialógica e intercultural crítica, que não reforce práticas seculares do uso da institucionalidade e da formalidade do conhecimento científico para anulação e silenciamento de outros sujeitos, epistemes e narrativas. Um fazer extensionista que potencialize a ação social, a pesquisa e o ensino de forma pautada pela diversidade e complementariedade entre os diferentes modos de pensar, existir e se relacionar, em que o legado de Paulo Freire se caracteriza como uma das principais referências.

Se, na academia, somos treinados para entender que o objetivo da produção intelectual, a partir do tripé ensino-pesquisa-extensão, é beneficiar a humanidade - ajudando-a a se desenvolver, criando narrativas e estratégias que possam melhorar os sistemas sociais, políticos e humanos, assim, beneficiando a todos e melhorando a nossa qualidade de vida -, é também nesse espaço que devemos pensar coletivamente e construir reflexões críticas, baseadas na teoria e na metodologia da Educação Popular, que orientem a ação universitária, ou seja, a Extensão Popular, para que esta possa ser efetivada como oportunidade de diálogo/comunicação que se corporifica como um trabalho social útil.

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Recebido: 29 de Novembro de 2020; Aceito: 15 de Abril de 2021

Pedro José Santos Carneiro Cruz Doutor em Educação. Professor do Departamento de Promoção da Saúde, do Centro de Ciências Médicas da Universidade Federal da Paraíba - UFPB. Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPB e do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da UFPB, João Pessoa, Paraíba, Brasil.

Renan Soares Araújo Nutricionista. Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Paraíba - UFPB, João Pessoa, Paraíba, Brasil

Celâny Teixeira Mélo Pedagoga. Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Paraíba - UFPB, João Pessoa, Paraíba, Brasil.

Ane Flávia Souza Rodrigues Pedagoga. Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Paraíba - UFPB, João Pessoa, Paraíba, Brasil

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