Introdução
A profissionalização do professor vem sendo discutida por autores como Machado (1995); Nóvoa (1999) e Bourdoncle (2000). Esses pesquisadores apontam diversos fatores que historicamente foram sendo definidos como necessários ao processo de reconhecimento do ato de ensinar como profissão. Entre esses critérios está a definição de saberes que sejam próprios do professor, que sejam característicos do seu ofício, ponto que queremos destacar neste texto, pois falar sobre geometria para ensinar é discorrer sobre um dos saberes profissionais do professor que ensina matemática, em particular nos primeiros anos escolares.
Quando falamos de saberes profissionais do professor, referimo-nos àqueles elaborados pela equipe de Pesquisa em História das Ciências da Educação (ERHISE), da Universidade de Genebra, e apropriados por pesquisadores brasileiros, tais como Bertini et al. (2017). Rofstetter; Schneuwly (2017), membros da equipe mencionada, apontam a existência de saberes próprios das profissões do ensino e da formação de professores, que são os saberes a ensinar e para ensinar, e remetem, respectivamente, ao objeto e à ferramenta de trabalho do professor.
Tendo em conta as produções sobre esses saberes, Bertini et al. (2017) desenvolveram a compreensão de matemática a ensinar e matemática para ensinar como elementos constitutivos do saber profissional do professor que ensina matemática, em particular nos primeiros anos escolares. Assim, a matemática a ensinar está atrelada às diferente rubricas matemáticas, relacionadas a disciplinas universitárias, que se configuram como a matemática que o professor deve ensinar, mas que também é devedora “das finalidades atribuídas à escola, da pedagogia reinante num tempo escolar, das concepções vigentes sobre matemática, dentre vários outros determinantes” (VALENTE, 2019b, p. 53).
Por outro lado, a matemática para ensinar é “um saber específico, de cultura profissional, próprio à formação do futuro docente” (VALENTE, 2019c, p. 54). Esta matemática é o objeto de trabalho do professor, é elaborada para posse desse profissional. Ela constitui-se de saberes didáticos-pedagógicos que mobilizam a matemática a ensinar, de forma que sua elaboração é feita pelo ofício docente a partir de sua expertise. Assim, a matemática para ensinar3 é “fruto de reelaboração ao longo do tempo, pelo ofício da docência, de saberes para ensinar matemática, objetivando em cada época histórica, uma ferramenta para ensinar matemática” (MACIEL; VALENTE, 2018, p. 168).
Essa matemática para ensinar é o que caracteriza fundamentalmente o saber profissional do professor, mantendo sempre articulação com a matemática a ensinar. A geometria para ensinar é uma ferramenta de trabalho do professor, saber próprio da sua profissão. Ela não é a geometria disciplinar universitária que se deve saber para ensinar nos primeiros anos escolares, ou as orientações didático-pedagógicas possíveis de serem aplicadas a ela, mas a geometria cuja sistematização coloca em articulação e mútua dependência todos esses aspectos.
Pelo menos nos últimos cinco anos, pesquisas vêm apontando que em cada período histórico-educacional elaborou-se saberes profissionais do professor que ensina matemática. Em se tratando das pesquisas sobre o saber profissional relacionado à geometria, podemos citar as teses de D’Esquivel (2019) e Conceição (2019).
Este artigo, em particular, apresenta resultados parciais de uma pesquisa de doutoramento4 cujo objetivo consiste em caracterizar uma geometria para ensinar a partir de manuais de pedagogia direcionados à formação de professores dos primeiros anos escolares no Brasil entre 1870 e 1920. No processo de elaboração de tal pesquisa, que está em andamento, constamos que, entre as publicações que localizamos, o autor desses manuais que mais se destaca é o português José Augusto Coelho.
Assim, para este momento, intentamos responder ao questionamento: que geometria para ensinar podemos sistematizar das produções de Augusto Coelho5 dedicadas à constituição do saber profissional do professor para ensinar geometria nos primeiros anos escolares? Diante disso, a elaboração deste artigo objetiva caracterizar a geometria para ensinar que se manteve estável nas publicações deste autor, a partir da análise desses documentos.
Então, recorremos aos manuais de pedagogia de autoria de Augusto Coelho que circularam nas instituições formadoras dos professores da escolarização inicial do Brasil no período estudado na referida tese, 1870 a 1920. Esse material é considerado por historiadores da história da educação, a exemplo, Carlota Boto, como um meio a partir do qual “os grandes clássicos do discurso pedagógico são interpretados (BOTO, 2018, p. 160). Assim, eram responsáveis por levar àqueles professores o que a pedagogia do seu tempo apregoava para sua formação institucional, os saberes considerados necessários para o exercício do ofício de ensinar.
Como sistematizar uma geometria para ensinar?
A resposta para essa pergunta apresenta diversas diretivas, fundamentadas em diferentes perspectivas teóricas. No entanto, aqui deixamos claro que o processo de sistematização de uma geometria para ensinar que consideramos está fundamentado em Valente (2018) e Lima; Valente (2019), quando tratam da transformação de informações dispersas em saber sistematizado.
De acordo com Valente (2018) e Lima e Valente (2019) no estudo histórico sobre a constituição do saber profissional do professor, o processo de transformação de conhecimento em saber6 pode ser realizado a partir das seguintes etapas: “recompilação de experiencias docentes, análise comparativa dos conhecimentos dos docentes, sistematização e uso dos conhecimentos como saberes” (VALENTE, 2018, p. 380).
Os procedimentos para o desenvolvimento da primeira etapa mencionada incluem “a separação de informações relatadas em [...] manuais pedagógicos [...] dentre outros tipos de documentação passíveis de evidenciar informações sobre o trabalho pedagógico do professor” (VALENTE, 2018, p. 380). Essas evidências materiais da cultura escolar (JULIA, 2001) compõem uma coleção de conhecimentos que estiveram dispersos em determinado período histórico (LIMA; VALENTE, 2019).
Considerando as fontes de pesquisa que tomamos para a elaboração deste artigo e o objetivo ao qual nos propomos, podemos reescrever essa fase da recompilações de experiências docentes no nosso texto como recompilação de elementos de uma geometria para ensinar em manuais de pedagogia, haja vista que esse material não expressa experiências docentes, mas sim, contém sistematizações acerca do que o professor deve fazer quando do ensino de geometria. Podemos dizer que em cada um dos manuais há a objetivação particular desse saber, os quais estiveram dispersos em tempo e espaço pelas escolas normais brasileiras das décadas finais do século XIX às iniciais do século XX.
Essa consideração pode nos levar a questionar: se nesses manuais não havia relatos de experiências docentes, mas saberes sistematizados, o que iremos sistematizar? Pois bem! Cada manual fez circular a sua objetivação específica de geometria para ensinar. Por onde cada um passou deixou as suas próprias marcas. Então, considerando que eles estiveram dispersos em contextos espaço-temporais diferentes, vamos sistematizar a geometria para ensinar que caracterize o período que os manuais compreendem e não apenas um caso particular, de modo a fazer notar esse elemento do saber profissional do professor que ensina matemática que se manteve estável, o que nos leva à segunda etapa desse processo de sistematização.
A análise comparativa dos conhecimentos docentes seleciona novos dados a partir do que foi feito na etapa anterior. O inventário elaborado nesta análise é “agora composto pela separação daquelas informações sobre experiências docentes que se mostram convergentes do ponto de vista da orientação para o trabalho do professor” (VALENTE, 2018, p. 381). Com isso, é possível identificar tendências e construir consensos que representem o que o professor deve saber para ensinar (LIMA; VALENTE, 2019). Como já enfatizamos que neste texto não estamos trabalhando com experiências docentes, entendemos essa fase como análise comparativa dos elementos de uma geometria para ensinar em manuais de pedagogia.
A última etapa do processo que Valente (2018) apresenta para transformar conhecimento em saber, é a sistematização e análise de uso dos conhecimentos como saberes, as quais, afirma o autor, são feitas simultaneamente, de modo que se verifique se instâncias normativas e/ou didático-pedagógicas utilizaram o que o pesquisador sistematizou. Considerando a natureza das fontes das quais lançamos mão neste texto, já entendemos de antemão que o que vamos sistematizar esteve incluído em tais instâncias. Então, realizaremos, neste ponto, a sistematização de elementos de uma geometria para ensinar nos primeiros anos escolares.
Nesta fase, como aponta Valente (2018), qualquer elemento de subjetividade que ainda possa aparecer da etapa anterior, precisa ser retirado. Essa sistematização deve fazer com que os consensos pedagógicos que foram estabelecidos na análise comparativa possam ser vistos como objetivados, isto é, passível de generalização e de uso. Independente do livro, devemos mostrar qual foi a geometria para ensinar proposta por José Augusto Coelho.
Os manuais de José Augusto Coelho e sua geometria para ensinar
Os três manuais de pedagogia de José Augusto Coelho que conseguimos localizar, dos quais falamos a seguir, apresentam importantes contribuições para a constituição do saber profissional do professor que ensina geometria. Esse material era direcionado à formação de professores e circulou em diversas escolas normais brasileiras entre o final do século XIX e início do XX (BOTO, 2018). Neles, o autor apresenta sistematizações do saber que deve formar o professor para ensinar tal matéria nos primeiros anos escolares.
O manual mais antigo dentre esses é o tomo II de Princípios de Pedagogia7, publicado em 1892, cuja geometria para ensinar que dispõe está caracterizada na publicação de Fortaleza; Valente (2019). Entre 1892 e 1907 o autor publicou Manual Prático de Pedagogia. A geometria para ensinar desse manual foi discutida em um artigo de autoria de Fortaleza; Rocha (2020). Recorreremos a estes textos e aos manuais por eles analisados (COELHO, 1892; COELHO, s.d.) para deles extrair elementos que constituem essa geometria para ensinar, tais como a geometria a ensinar, os saberes para ensinar geometria: os materiais de ensino indicados, o processo de apresentação e generalização, a marcha de ensino, que é a ordem em que os conteúdos são ensinados; e o pedagogista de referência.
Neste artigo, vamos recompilar analiticamente a geometria para ensinar que Augusto Coelho sistematizou em outro manual: Noções de Pedagogia Elementar, publicado em 1907. Dessa recompilação, também extrairemos aqueles elementos que mencionamos, e, então, teremos as informações necessárias para comparar a geometria para ensinar disposta pelo autor em cada manual de forma a culminarmos na sistematização da geometria que o autor objetivou como elemento do saber profissional do professor entre 1892 e 1907, evidenciando as características dessa geometria que se mantiveram estáveis nesse período.
Em Noções de Pedagogia Elementar, antes de apresentar sua sistematização de uma geometria para ensinar, Coelho (1907) discorre acerca dos meios de instrução, e afirma que o ensino de geometria deve contar com “coleção geral das formas geométricas elementares” (COELHO, 1907, p. 26), o que nos leva a entender que o uso de objetos representativos deveria compor o arcabouço didático que a formação do professor que ensinava geometria lhe proporcionava.
Augusto Coelho (1907) define a geometria como “a ciência das formas da extensão e suas relações” (COELHO, 1907, p. 81, grifo do autor). Então, estes são os elementos da geometria a ensinar8 que integra a sistematização da geometria para ensinar elaborada pelo autor para compor a formação dos professores para ensinarem nas escolas infantis e primárias.
O processo de ensino, “a maneira por que se realiza, perante o aluno, a apresentação das noções que nos propomos a acumular-lhe na mente” (COELHO, 1907, p. 58, grifo do autor), que o autor emprega na sistematização das orientações para ensinar geometria é o empírico e real, o qual está associado ao ensino intuitivo9. Desse modo, as formas geométricas devem ter sua abstração caracterizada em “porções de matéria” que representem a forma abstrata, “tornando-as assim de alguma maneira tangíveis e reais” (COELHO, 1907, p. 84). Para a concretização desse processo, o autor indica o uso do material froebeliano ou de outros objetos que tenham sido adaptados para esse objetivo.
A estruturação da geometria na sistematização da geometria para ensinar que Coelho (1907) propõe é perfeitamente pedagógica, afirma o autor. Isso significa que não é em torno da ordem empregada pela formalização matemática que esse saber deve ser apresentado aos alunos. O que precisa ser considerado é a ordem que faz sentido para o entendimento dessas crianças. Assim, a ferramenta de trabalho do professor para ensinar geometria que o Coelho (1907) objetiva começa pelas formas e em seguida é que aborda suas relações.
No que se refere ao ensino das formas, “serão, em primeiro lugar, apresentadas ao aluno as sólidas, depois as superficiais, depois as lineares, e por último, os pontos, avançando-se assim do concreto para o abstrato” (COELHO, 1907, p. 84-85, grifos do autor). Logo, percebemos que a utilização dos materiais froebelianos, a exemplo, é processo que introduz as noções geométricas espaciais aos sentidos dos alunos. A compreensão dos sólidos inicia-se pelo uso do objeto tangível, mas este é apenas o real que representa o ideal, isto é, o entendimento dos sólidos em abstrato.
Na marcha em que Coelho (1907) dispõe as formas geométricas na sistematização da geometria para ensinar, as sólidas, primeiras a serem ensinadas, devem ser apresentadas por meio do uso de objetos concretos, e a compreensão das formas superficiais demandam o conhecimento das sólidas, as lineares das superficiais e os pontos das lineares. Assim, o entendimento de uma forma geométrica vai sendo desencadeado da compreensão em abstrato da forma estudada anteriormente.
Para orientar o professor de maneira mais detalhada sobre como apresentar as formas geométricas espaciais, Coelho (1907) organizou o estudo desses objetos de ensino em séries, deixando claro que a ordem a seguir deve ser respeitada. Já vimos que pelo autor o ensino da geometria inicia-se pelas formas espaciais. Dentre estas, a primeira a ser tratada na primeira série de sólidos é a esfera, a qual deve ser mostrada ao aluno delineada em madeira e de uma só cor, “devendo a criança executar com ela vários jogos infantis” (COELHO, 1907, p. 85). O uso da única cor poderá ressaltar aos alunos que a esfera possui uma única superfície. Assim, o uso da cor é elemento constitutivo da geometria para ensinar sistematizada pelo autor.
O cubo precisa ser ensinado como derivação da esfera. A composição deste deve ser feita a partir da inserção de “seis seções convenientemente dirigidas” (COELHO, 1907, p. 85), as quais só podem ser feitas corretamente por quem tem conhecimento sobre as propriedades do cubo, o que mostra a importância da geometria a ensinar para a constituição da geometria para ensinar. Este objeto geométrico será, pela sistematização do autor, mostrado ao aluno como um todo, comparado com outros em relação de igualdade e desigualdade, decomposto em cubos menores e reposto novamente, quando as operações de análise e síntese ficam, respectivamente, evidentes.
A última forma ensinada na primeira série de sólidos catalogada por Augusto Coelho é o paralelepípedo retangular, “o qual será gerado do cubo, decompondo-o em sólidos por meio de três divisões horizontais e uma vertical, convenientemente dirigida” (COELHO, 1907, p. 86). A apresentação deste paralelepípedo dar-se-á de modo análogo a do cubo: mostrado primeiramente como um todo concreto, em seguida comparado com o cubo. Sua decomposição inclui cubos e paralelepípedos e por fim o sólido primitivo será recomposto.
O cilindro é a forma geométrica sólida que inicia a segunda série. Dele, o prisma deve ser derivado, segundo Coelho (1907). Diferentes prismas são apresentados, de forma que no processo de decomposição, um prisma hexagonal, a exemplo, pode ser transformado em prismas triangulares. Como nos casos anteriores, finaliza-se a apresentação com a recomposição do prisma do qual se fez derivar os demais.
A terceira série de sólidos compreende o cone e a pirâmide, sendo o primeiro o objeto primitivo, cuja apresentação ocorre, de acordo com o que indica Coelho (1907), “por meio de um cone de madeira, empregando a professora todos os meios para a criança lhe fixar a forma” (COELHO, 1907, p. 87). Assim, o objeto representativo do cone propicia ao aluno conhecer os elementos constitutivos deste, o que facilita que posteriormente ele depreenda as propriedades em abstrato desse concreto que lhe foi apresentado.
A pirâmide é apresentada como uma derivação do cone, sendo isto feito por meio da orientação que se repete para esse processo: “seções convenientemente dirigidas”. Isso ressalta a importância do domínio da geometria a ensinar para que o saber profissional do professor seja consistente, de modo a evidenciar que, assim como para ser professor de matemática não é suficiente ter conhecimento sobre esta, também não é suficiente dominar saberes para ensinar sem ter propriedade sobre a matemática que pode ser mobilizada a partir deles.
A apresentação da pirâmide segue raciocínio análogo ao dos sólidos anteriormente mencionados. O aluno deve conhecê-la primeiramente como um todo, sem ainda discutir as suas classificações. Pirâmides da mesma espécie são comparadas, na proposição de Coelho (1907), segundo as relações de igualdade e desigualdade. Em seguida a comparação se dá entre a pirâmide e os demais sólidos já apresentados.
Então, passa-se a decomposição, que, embora não se tenha insistido nas espécies, deve ser de pirâmide de qualquer tipo em triangulares. Finalizando a terceira série de sólidos, realiza-se a recomposição deste objeto geométrico de ensino. Encerra-se, assim, o ensino dos sólidos, que, em três séries, deve ter cada uma um sólido de referência apresentado por meio de objetos tangíveis, a partir dos quais derivam-se outros por meio das secções convenientemente dirigidas.
O estudo da pirâmide é seguido das formas superficiais, as quais seguem um nível de abstração imediatamente superior. As superfícies geométricas devem ser “concretizadas em pequenas superfícies de madeira - varia[da]mente coloridas, como as usadas no sistema de Froebel” (COELHO, 1907, p. 87). Desse modo, fica evidenciada a filiação de Augusto Coelho a Froebel10 ao sistematizar a geometria como ferramenta de trabalho do professor, destacando os objetos de Froebel como elementos constituintes do saber profissional do professor para ensinar geometria.
Outro desses elementos que também se destaca na definição do que o professor deve saber para ensinar as formas superficiais é a ordem. Coelho (1907) deixa claro que a ordem a ser seguida deve ser: quadrado, retângulo, triângulo e polígonos em geral, de maneira que estas sejam entendidas como derivações de formas sólidas já estudadas.
Realizando secções dirigidas no cubo, o quadrado será apresentado como sendo derivado daquele, como um abstrato do cubo. Diferentes quadrados devem ser associados de maneira que novos concretos sejam formados a partir deles, quando é oportuno apresentar aos alunos a formação dos ângulos diedros, sólidos e as relações entre os elementos que os constituem. Como afirma Coelho (1907), sendo o quadrado apresentado como um abstrato do cubo “passará o aluno a recompor, por meio de quadrados, o cubo e, transformando-se assim numa síntese clara e definida, será caracterizado pelo lado das faces, dos ângulos diedros, dos ângulos sólidos, etc., etc.” (COELHO, 1907, p. 88).
De acordo com a sistematização da geometria para ensinar realizada por Coelho (1907), a derivação do retângulo deve ter como sólido primitivo o paralelepípedo. Sua apresentação, seguindo o raciocínio já mencionado para o caso do quadrado, deve destacá-lo como elemento que compõe o paralelepípedo, de modo a evidenciar os ângulos como combinações de retângulos. Por fim, esses agrupamentos devem recompor o sólido primitivo.
A pirâmide é a forma sólida que deve dar origem ao triângulo. A apresentação deste deve contar com a comparação de diferentes triângulos em termos de igualdade ou desigualdade, assim como com as figuras já apresentadas. A combinação entre triângulos deve ser realizada, de modo a formar ângulos diedros ou triedros.
Segundo Coelho (1907), “em seguida, passar-se-á a caracterizar nos sólidos, já estudados, as superfícies triangulares, isto é, as faces das pirâmides, os seus diedros, os seus ângulos sólidos, etc., etc.” (COELHO, 1907, p. 88). Os polígonos em geral têm vários polígonos regulares como primitivo, seguindo a mesma lógica de apresentação já descrita para os demais casos das formas superficiais.
Nesses processos que compõe a formação do professor acerca do ensino destas formas - quadrado, retângulo, triângulos e polígonos em geral - percebemos que decomposição e recomposição são elementos do saber profissional do professor para ensinar geometria que viabilizam, respectivamente, a ida do concreto (sólido tangível) ao abstrato (superfície) e do abstrato (superfície) ao concreto (o sólido como objeto geométrico), quando é possível perceber a apresentação de propriedades referentes ao quadrado, como por exemplo a implicação dos ângulos diedros e das faces para sua composição.
O elemento ordem é novamente destacado ao iniciar a sistematização do que deve formar o professor para ensinar as formas lineares, as quais seguem as superficiais e são imediatamente abstratas a estas, afirma Coelho (1907). A apresentação das formas lineares pode ser feita com o auxílio de “hastes de madeira - quando retas, e por fios de ferro - quando curvas” (COELHO, 1907, p. 89).
As primeiras a serem estudas, segundo Coelho (1907), devem ser a linhas retas, sendo apresentadas como derivadas de uma forma superficial da qual elas sejam denotadas como seus componentes abstratos. A comparação com as demais formas já estudadas também deve ser feita, mas há uma novidade nesse processo em relação aos anteriores, o uso da lousa. Nesta, será viável observar combinações entre as linhas retas de forma a caracterizar os ângulos que essas combinações podem formar, as situações de paralelismo, perpendicularidade, etc.
Após esse processo, recomposições sucessivas são sistematizadas. As superfícies deverão ser recompostas a partir da justaposição de linhas, que serão destacadas como “elementos lineares dessa superfície, tais como - lados dos polígonos, diagonais, [...]” COELHO, 1907, p. 89).
Após as linhas serem justapostas e comporem formas superficiais, as quais já passam a ter suas propriedades evidenciadas, “recompor-se-ão formas sólidas à custa das superficiais e naquelas serão caracterizadas as arestas, diagonais, ângulos retilíneos, ângulos sólidos, etc., etc.” (COELHO, 1907, p. 89, grifo do autor). No que se refere às orientações para o ensino das linhas curvas, serão realizadas operações análogas às anteriores, podendo ser derivadas de superfícies curvas, tais como a base do cone circular.
A última forma geométrica para a qual Coelho (1907) sistematiza orientações para a formação do professor é o ponto, a mais abstrata de todas. Este deverá ser representado “por objetos, como conchas, esferas de cortiça, etc.” (COELHO, 1907, p. 90). O processo para ensiná-los instrui que os pontos podem ser derivados da linha a partir de secções em pequenas porções. Alinhando estas em série a linha pode ser recomposta, “com estas as superfícies, com estas os sólidos - caracterizando nas linhas, superfícies e sólidos, os pontos geométricos notáveis, como são os vértices dos ângulos [...]” (COELHO, 1907, p. 90).
Assim, na sistematização da geometria para ensinar que vai das superfícies lineares ao ponto, torna-se ainda mais perceptível que o saber profissional do professor para ensinar geometria deve ter em conta que a aprendizagem de uma nova forma geométrica pode atribuir consistência à compreensão das anteriores enquanto objetos geométricos, sendo possível averiguar as propriedades de cada um.
As formas sólidas são apresentadas a partir de objetos concretos, as superficiais são derivadas destas, e, ao serem recompostas, novos significados são atribuídos às sólidas, quando é possível fazer notar que, o cubo tem faces e ângulos diedros e triedros, por exemplo. Quando as linhas são depreendidas de formas superficiais, elas são justapostas de forma a recompor a primitiva, e esta ganha novos sentidos, como a compreensão que ela possui lados e ângulos retilíneos. E o estudo dos pontos leva-os a também recomporem-se formando-se linhas, as quais compõem superfícies e sólidos, que, então, têm novas propriedades evidenciadas.
Assim, ao retornar ao cubo, por exemplo, este pode ser notado como uma forma sólida formada por faces, ângulos, arestas e vértices. Isso evidencia novamente a importância do processo decomposição e recomposição, da ida do concreto ao abstrato e do abstrato ao concreto para a constituição da geometria para ensinar que Coelho (1907) sistematizou para compor o saber profissional do professor dos primeiros anos escolares.
Até o parágrafo acima fizemos nesta seção uma recompilação analítica da geometria para ensinar sistematizada por Coelho (1907). A seguir, vamos compará-la com elementos dessa ferramenta de trabalho do professor que ensina matemática, sistematizada por Coelho (1892) e Coelho (s.d.).
Como sinalizamos, os parâmetros para essa comparação são: a geometria a ensinar, os saberes para ensinar geometria: os materiais de ensino indicados, processo de apresentação e de generalização, a marcha de ensino; e o pedagogista de referência. Esses elementos estão sintetizados no quadro 1, a seguir, a partir do qual é possível compararmos os elementos constituintes da geometria para ensinar, elemento do saber profissional do professor para ensinar matemática sistematizado por Augusto Coelho nos três manuais referidos.
Elementos constitutivos da geometria para ensinar de Coelho | ||||
---|---|---|---|---|
Ano do Manual |
1892 | s.d. | 1907 | |
Geom. a ensinar | Formas geométricas | Formas da extensão | Formas da extensão | |
Saberes para ensinar geometria | Materiais | Sólidos de madeira: esfera, cilindro, etc.; placas e hastes de madeira; fios de ferro; esferas de cortiça, quadro preto, etc. | Formas concretas e reais; quadro. | Sólidos de madeira: esfera, cone, etc.; placas e hastes de madeira, fios de ferro; esferas de cortiça, quadro preto, etc. |
Marcha | Do concreto para o abstrato; do abstrato ao concreto: decomposições e recomposições. | Do concreto para o abstrato; do abstrato ao concreto: decomposições e recomposições. | Do concreto para o abstrato; do abstrato ao concreto: decomposições e recomposições. | |
Apresentação | Por meio de objetos concretos e seu manuseio em jogos; a partir de secções convenientemente dirigidas que façam derivar uma forma de outra já apresentada; sólidos de superfície homogênea apresentados em uma só cor e para sólidos formados por superfícies diferentes, cada uma de uma cor. | Desprendendo gradualmente das próprias formas. | Por meio de objetos concretos e seu manuseio em jogos; a partir de secções convenientemente dirigidas que façam derivar uma forma de outra já apresentada; a esfera pintada de uma só cor. | |
Generalização | A generalização não é citada de forma explícita, mas pode ser observada nas recomposições, onde, embora as operações sejam feitas com objetos, as regras de composição das formas geométricas são destacadas. Apresenta propriedades, mesmo que de modo intuitivo. |
Sobre a geometria, usa a expressão “verdadeiramente sistematizada” que nos permite observar que a generalização está mais próxima da intenção de abstração, sem precisar de um objeto concreto que as represente (as formas). Recomposição das formas. Na apresentação faz desprender as formas dos objetos tangíveis e na generalização desprende-se destes para o nível abstrato. Tracejo de figuras no quadro. |
Não há generalização citada diretamente, mas pode ser observada nas recomposições, onde embora as operações sejam feitas com objetos, as regras de composição das formas geométricas são destacadas. Apresenta propriedades, mesmo que de modo intuitivo. |
|
Peda-gogista | Froebel | Froebel | Froebel |
Fonte: Elaborado pelas autoras
Notamos que a geometria a ensinar que o autor mobiliza para a composição daquele saber é a mesma em todas as obras. Embora apareçam com algumas terminologias diferentes, os três casos referem-se às formas geométricas. Os próximos elementos a serem comparados integram o que chamamos de saberes para ensinar geometria. Os primeiros a serem destacados são os materiais de ensino indicados. Ao observarmos a síntese dos manuais de 1892 e de 1907, constatamos que estes falam de tais materiais mais detalhadamente, mas os três convergem para serem resumidos em representações de formas geométricas concretas e o quadro.
Assim como para o elemento materiais de ensino, os manuais de 1892 e 1907 são mais detalhistas sobre as orientações ao professor de como apresentar os objetos de ensino. Embora o manual sem data não seja tão minucioso ele faz ser entendida a mesma ideia dos demais, a qual instrui que os materiais citados sejam utilizados nesse processo de apresentação, de modo que os objetos concretos sejam o ponto de partida para o ensino, aos quais deve-se aplicar secções convenientemente dirigidas para deles fazer derivar outros.
A ideia de uma cor para cada superfície diferente que forma um sólido, como o cilindro, por exemplo, e a mesma cor para sólidos de superfície homogênea, como a esfera, são elementos que também fazem parte da apresentação, mas que não constam no manual sem data, o que não exclui a possibilidade de que tal informação tenha composto a constituição do saber profissional do professor cuja formação também pautou-se neste manual.
Quanto a marcha de ensino, as informações do quadro 1, anteriormente ilustrado, tornam evidente que há um consenso acerca desta. As orientações destinadas ao professor que estava em formação na escola normal, acerca da ordem de apresentação dos objetos de ensino, não destacavam esta como única. Ao passo que relizam decomposições, também fazem recomposiçõe recomposições. A ordem é das formas sólidas ao ponto, mas, à medida que a decomposição acontece, devem ser realizadas as recomposições.
No que diz respeito ao processo de generalização, verificamos que está mencionado explicitamente no manual sem data, o qual deixa claro quando da apresentação da geometria sistematizada. O manual citado orienta ao professor que desprenda o nível abstrato dos objetos concretos. Neste, também, mas mais detalhadamente nos outros dois, a generalização acontece a partir das recomposições sucessivas das formas quando as propriedades são evidenciadas. Sobre o elemento pedagogista de referência, Froebel é menção constante nos três manuais, o que mostra a constância no referencial adotado por Augusto Coelho nos 15 anos.
Portanto, percebemos que a geometria para ensinar sistematizada por Augusto Coelho entre 1892 e 1907 se manteve estável, de forma que há nítido consenso entre os manuais acerca do que o professor deve saber para ensinar geometria, dos elementos: geometria a ensinar, saberes para ensinar geometria: materiais de ensino indicados, marcha de ensino, processo de apresentação e de generalização; e pedagogista de referência. Assim é possível dizer que esses manuais compõem entre si uma vulgata (CHERVEL, 1990) acerca da geometria para ensinar. Então, podemos sistematizar essa geometria que, independente do manual, pode ser denotada como o a geometria para ensinar de Augusto Coelho, a qual se mostra como saber objetivado, o que está a seguir.
Para concluir: sistematização da geometria para ensinar de Augusto Coelho
Encerramos nossas discussões neste artigo apresentando a resposta para o questionamento inicial sobre o qual nos propomos a refletir: que geometria para ensinar podemos sistematizar das contribuições de José Augusto Coelho para a constituição do saber profissional do professor para ensinar geometria nos primeiros anos escolares? Dessa forma, evidenciamos características da geometria para ensinar que se manteve estável nas produções deste autor.
José Augusto Coelho sistematizou uma geometria para ensinar cuja base geométrica está pautada em elementos da geometria euclidiana. Assim, a constituição do saber profissional do professor dos primeiros anos escolares demandaria consistente formação nessa rubrica matemática, de maneira que ter domínio acerca das formas geométricas, das relações e propriedades que as fundamentam enquanto ente matemático era o mínimo de geometria que o professor deveria conhecer para que a geometria para ensinar se configurasse como elemento do seu saber profissional.
O professor, então, precisaria saber que para ensinar geometria, concentrando-nos nas formas da extensão, seria necessário que sua sala de aula estivesse equipada com materiais tais como o froebeliano, sólidos, placas e hastes de madeira; fios de ferro, esferas de cortiça. Para além disso, era preciso saber em que momento deveria utilizá-los e como fazê-lo. Primeiramente esses objetos deveriam ser utilizados na apresentação, manuseados em jogos, e as formas primitivas seccionadas convenientemente de forma a fazer delas derivar outras. Portanto, na geometria para ensinar de Coelho a apresentação das formas geométricas dá-se de forma intuitiva.
No que se refere às formas sólidas, da esfera, obtém-se o cubo, deste, o paralelepípedo retângulo; do cilindro, gera-se o prisma; do cone, forma-se a pirâmide. Nas formas superficiais, o quadrado é derivado do cubo, o retângulo do paralelepípedo, o triângulo da pirâmide. Quanto às formas lineares, as retas serão seccionadas de uma superfície por linhas paralelas entre si, e as linhas curvas serão apresentadas a partir de superfícies curvas como a base do cone circular. O ponto, deve ser derivado da linha.
Notadamente, a ordem de apresentação das formas geométricas dispõe-nas de acordo com seu nível de abstração, das formas sólidas ao ponto. As formas sequenciam-se do concreto para o abstrato. Esse processo é feito por meio da decomposição, avançando do todo para as partes, o que caracteriza a marcha analítica. Por outro lado, a partir da apresentação das formas superficiais há uma volta do abstrato ao concreto, recompondo as formas sólidas, indo gradativamente das partes para o todo, o que caracteriza a marcha sintética.
Nesse processo, acontece um gradual processo de generalização das propriedades das formas geométricas. Após apresentar o quadrado como derivado do cubo, já se recompõe este, destacando o quadrado como seu elemento abstrato, suas faces, que associadas formam ângulos diedros e triedros que constituem novos concretos. Portanto, a volta do quadrado ao cubo atribui novos significados a este. Analogamente acontece com o retângulo e o paralelepípedo, o triângulo e a pirâmide...
Conforme a ordem de apresentação se aproxima da forma geométrica mais abstrata, o ponto, mais a volta do abstrato ao concreto atribui a cada tipo de forma estudada suas propriedades geométricas. Assim, quando o ponto é apresentado como derivação da linha, recomposições sucessivas mostram que a linha é formada por uma sucessão de pontos, linhas retas podem ser justapostas formando ângulos retilíneos e caracterizarem os lados das superfícies, que por sua vez podem ser combinadas e comporem ângulos diedros e triedros formando formas sólidas, como o cubo.
No último processo de recomposição, assim, o professor poderá apresentar, por exemplo, o cubo aos alunos de maneira que eles o entendam como uma forma sólida composta de vértices, arestas, ângulos diedros e triedros e seis faces quadradas, e as relações de congruências entre estes elementos. Os materiais de ensino de que falamos sãos utilizado nesse processo de generalização, dos concretos ao quadro negro.
Nas recomposições, a passagem do abstrato ao concreto corresponde à passagem das formas de ordem mais abstratas representada por objetos tangíveis para sua compreensão enquanto objeto geométrico propriamente dito, que compõe outros objetos por relações entre ângulos e faces, por exemplo. Então, esse retorno ao concreto está mais associado à compreensão das propriedades geométricas que fundamentam a composição das formas que ao concreto tangível, de modo que as noções empíricas vão se transformando em racionais. Segundo as ideias de Augusto Coelho, essa recomposição por síntese é a decomposição geral da geometria segundo a lógica matemática.
É importante destacar o pedagogista que foi referência para Augusto Coelho na sistematização da geometria como ferramenta de trabalho do professor, porque isso nos possibilita associar este autor ao método de ensino, intuitivo neste caso. Os saberes para ensinar geometria estão associados às ideias de Froebel. Embora Augusto Coelho use a expressão empírico em detrimento a intuitivo por considerar que intuição significa dar ênfase apenas à visão e não a todos os sentidos, a variação de cores conforme a homogeneidade ou não das superfícies para destacar as relações entre estas na composição das formas, mostra a importância do exercício da visão no trabalho desenvolvido pelo professor.
Portanto, a geometria para ensinar que se mantece estável na produção de Augusto Coelho pode ser caracterizada como geometria intuitiva-tradicional para ensinar, pois de acordo com a forma como ele orienta os professores os objetos de ensino devem ser apresentados aos alunos de forma intuitiva, mas considerando a orientação para todo o processo de ensino, a geometria como elemento do saber profissional não se limita a aspectos intuitivos.
A partir das apresentações, os professores devem fazer uma espécie de retrospectiva recompondo as formas e evidenciando generalizações para a sua composição. A geometria para ensinar de Augusto Coelho é intuitiva, mas também apresenta propriedades para a realização de generalizações e sistematização das formas geométricas como objetos ideias, abstratos. É importante destacar que esse saber para formar o professor para ensinar geometria mostra-se como um saber objetivado, sendo passível de mobilização em qualquer contexto.
Considerando que este artigo comporta resultados parciais da tese de doutoramento da primeira autora, esses elementos da geometria para ensinar que Augusto Coelho objetiva em seus manuais são importantes informações para que possamos sistematizar essa ferramenta de trabalho do professor que ensina matemática de um período mais amplo, o qual compreende as referidas publicações.