Introdução
A disciplina de “Etnociências: diversidade cultural e práticas pedagógicas”, no curso de Pós Graduação em Ensino de Ciências da Natureza, nos proporcionou uma imersão na cultura dos nossos ancestrais, bem como, estimulou a curiosidade em conhecer as práticas, costumes e as diversidades de grupos distintos.
Desde o recebimento dos materiais, que nos foram encaminhados, muito antes do início das aulas, bem como durante a leitura dos artigos propostos para a disciplina, despertou em nós, o interesse e a curiosidade em conhecer melhor as diferenças entre os povos, principalmente a cultura dos povos da Indonésia relatadas no artigo científico “A critical analysis about ethnoscience approach of the science teachers in ‘Peo Nabe’-Nagekeo using rasch model”, tradução livre, “Uma análise crítica sobre a abordagem etnocientífica dos professores de ciências em ‘Peo Nabe’ -Nagekeo usando o modelo rasch”, artigo este que foi destinado para a nossa apresentação. Foi possível observar os detalhes específicos de cada cultura, as formas de ensino, utilizando a etnociência em disciplinas como Física, Química, Biologia, através da metodologia das aulas que pautou-se em organização de grupos, estudos de artigos específicos e posterior apresentação com discussão.
A partir desses momentos de discussão, começamos a recordar dos ensinamentos de nossos antepassados, assim como também, a identificar conhecimentos antigos que nossos familiares demonstravam possuir e que tivessem alguma ligação com nossas formações. Alguns temas vieram a mente como os conhecimentos sobre as fases da lua na influência das plantações, crescimento e colheita, visto que, este era um tema que era parte integrante e enraizada na família de uma das autoras. Embora as autoras não fossem da mesma família, foi possível observar costumes e tradições semelhantes na cultura de seus avós.
Contudo, sentimos necessidade de introduzir nossas áreas de formação na discussão, abordar alguns conteúdos da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e trabalhar de forma interdisciplinar, com esses pressupostos optamos por abordar a compostagem doméstica. A escolha deu-se por alguns motivos em específico, entre eles, o fato de que, esse tipo de procedimento é muito utilizado pelos nossos familiares em seus cultivos de hortaliças, onde a compostagem de alimentos biodegradáveis é usada para fazer o adubo do solo utilizado para o cultivo.
Este é um tema que pode ser abordado dentro da disciplina de Química, mais precisamente dentro de Química Verde, que é mais focado na preservação ambiental, inclusive, um de seus fundamentos é a redução de dejetos descartados de maneira incorreta e recuperação do meio ambiente.
Na Biologia, este tema contextualiza diversos conteúdos previstos na BNCC. As transformações dos resíduos são provocados por organismos vivos, sendo estes de grande interesse da área. Além dos seres vivos, podemos incluir também conhecimentos como o meio em que eles vivem e suas interações.
Dessa forma, este artigo traz uma revisão bibliográfica a respeito do tema compostagem e suas diversas possibilidades de abordagem em sala de aula, inclui os ensinamentos passados às autoras por seus familiares e antepassados. Segundo Santos (2019), a compostagem traz a possibilidade de interligar diversos conteúdos da Química e Biologia, uma vez que, essas ciências estão fortemente entrelaçadas. Portanto, observa-se aqui a possibilidade de trabalhar o referido tema e abranger os aspectos de interdisciplinaridade e etnociência.
O etnoconhecimento na compostagem doméstica
Os etnoconhecimentos são as crenças e tradições que são passados de geração em geração (CÓRDULA; NASCIMENTO, 2014 apud NASCIMENTO, 2013). Existem ainda muitas definições sobre etnoconhecimento. A que se emprega aqui como referência é:
Denominamos “conhecimentos tradicionais” ou “etnoconhecimentos” aqueles conhecimentos produzidos por povos indígenas, afrodescendentes e comunidades locais de etnias específicas transmitidos de geração em geração, ordinariamente de maneira oral e desenvolvidos à margem do sistema social formal. São conhecimentos dinâmicos que se encontram em constante processo de adaptação, com base numa estrutura sólida de valores, formas de vida e crenças míticas, profundamente enraizados na vida cotidiana dos povos. Podemos, então, considerar etnoconhecimento o conhecimento produzido por diferentes etnias em diferente locais no globo terrestre a partir do saber popular (MIRANDA, 2007, p.3).
A compostagem se enquadra nesse conhecimento, uma vez que enquanto aplicada como metodologia socioambiental, pode colaborar com a discussão sobre as variadas culturas e ambientes (IRIBARREM; CALDERIPE; DE ALMEIDA, 2020). Em vista disso, a compostagem doméstica pode ser parte integrante de conteúdos escolares, envolvendo o etnoconhecimento, visto que é uma prática sustentável milenar. (CARVALHO; LIMA, 2010).
Desse modo, tem-se a definição de compostagem, que nada mais é do que, uma ação que ocorre através de um processo biológico, no qual os próprios microrganismos existentes do solo fazem o processo de decomposição da matéria orgânica, em que ao final do processo, se obtém um composto semelhante ao solo. Esse tipo de prática de compostagem é muito indicado principalmente para restos de resíduos orgânicos que são produzidos em ambientes domiciliares. “A compostagem doméstica pode ser feita amontoando-se o material a ser compostado na forma de pilha ou leira, em composteira, ou mesmo por aterramento” (WANGEN; FREITAS, 2010, p. 82).
De acordo com Oliveira et. al. (2005) cerca de 60% dos lixos produzidos nas casas são resíduos orgânicos. Nota-se então que, existe uma exacerbada quantidade de lixo doméstico que é produzido no mundo diariamente e que poderia ser utilizado de maneira sustentável evitando assim, muitos problemas ambientais.
O lixo orgânico, muitas vezes, é descartado em lixões, ruas, rios e matas, poluindo o meio ambiente. O acúmulo de resíduos orgânicos a céu aberto favorece o desenvolvimento de bactérias, vermes e fungos que causam doenças nos seres humanos. “Além disso, favorece também o desenvolvimento de insetos, ratos e outros animais que podem transmitir doenças aos homens” (SILVA et al. 2014, p. 76). O processo da compostagem doméstica é uma alternativa para se dar um destino útil e fazer a reciclagem dos resíduos orgânicos biodegradáveis.
Outrossim, “a compostagem doméstica de matéria orgânica traz vários benefícios socioambientais [...], dentre elas, revaloriza o aproveitamento da matéria orgânica para o sucesso das hortas caseiras” (MONTEIRO, 2016, n.p). O que reforça a ideia de que o composto orgânico é excelente adubo e fertilizante.
Existem muitas maneiras de fazer uma compostagem em casa e também nas escolas, porém, a mais comum é a compostagem aeróbica. Pereira e Gonçalves (2011, p. 14) afirmam que, “o processo aeróbico é o processo mais adequado ao tratamento do lixo domiciliar, a decomposição é realizada por microorganismos que só vivem na presença de oxigênio”. A compostagem em pilhas é uma alternativa prática e fácil, onde os lixos orgânicos ricos em água, se intercalam com lixos mais secos, como as aparas de grama do jardim ou folhas de árvores caídas.
Desse modo, segundo Furtado et al (2016, n.p), “por se tratar de um tema de fundamental importância para a sociedade como um todo, a problematização dos resíduos sólidos deve ser abordada e discutida principalmente dentro dos ambientes educacionais, a fim de informar e aumentar a sensibilização ambiental da população de forma didática e contínua”.
Etnocompostagem da vovó
Os conhecimentos empíricos das gerações mais antigas se fazem presentes na atualidade. Em conversas realizadas com nossos familiares de gerações mais antigas, pode-se observar o quanto o etnoconhecimento está presente em relação, por exemplo, a compostagem doméstica. Segundo dizeres da Vó Alzira, “Aprendi isso com minha mãe, a gente jogava os restos de alimentos na horta e tampava com um punhado de terra, isso era um bom adubo pra produzir alimentos pra gente comer”. A Vó Luíza também relatou, “Minha fia, nóis era em 14 filhos, era muito pobre, às vezes faltava o que comer, então a gente precisa ter uma horta com terra boa pra dar alimento pra gente comer”.
Alguns outros relatos feitos por elas revelam que, desde muito novas, elas já foram ensinadas por suas mães a produzirem e cultivarem hortas domésticas, e que seus produtos fariam parte do sustento de toda família. Levando isso em consideração, a forma como tratavam e cuidavam da terra também era um papel importante e fundamental.
Dona Luíza também conta que jogavam estercos de galinha e restos de cinzas do fogão à lenha na terra como forma de adubo, já dona Alzira, conta que para realizar a adubação elas utilizavam, além dos estercos de animais, resíduos orgânicos que são os restos de alimentos biodegradáveis que seriam jogados fora e, consequentemente iriam poluir o ambiente na sua decomposição de forma incorreta, causando assim impactos ambientais. Destaca-se aqui o conhecimento empírico, sem qualquer base teórica, mas que era legítimo.
Os resíduos orgânicos constituem todo material de origem animal ou vegetal e cujo acúmulo no ambiente não é desejável. Por exemplo, estercos de animais (cavalo, porco, galinha etc), bagaço de cana-de-açúcar, serragem, restos de capina, aparas de grama, restos de folhas do jardim, palhadas de milho e de frutíferas etc. Estão incluídos também os restos de alimentos de cozinha, crus ou cozidos, como cascas de frutas e de vegetais, restos de comida etc. (OLIVEIRA; DE AQUINO; CASTRO NETO; 2005, p.1).
Na descrição feita por elas, os alimentos que tinham a horta como seu destino final, eram: cascas de ovos, pó de café, cascas de batata, cenoura, repolho, banana, restos e cascas de frutas em geral, estercos de animais, cinzas de fogão à lenha, dentre outros. Dona Luíza ainda narra que na época era muito comum o plantio de arroz e feijão na agricultura familiar, e a colheita era feita de forma manual, então sobravam as palhas ou cascas, e isso também tinha como destino final a horta. O que reforça o conhecimento prático existente na forma de fazer essa compostagem, logicamente com medidas caseiras, porém eficazes.
Curiosamente, observa-se aqui que os alimentos que eram jogados na horta eram cortados em pedaços menores pois, dessa forma, se decompõe com mais rapidez e facilidade, e esses alimentos não eram deixados descobertos, pois já se observava que atraia insetos e animais indesejados, bem como, o mal cheiro que produzia; para este fato, elas cobriam os alimentos com um pouco de terra e dessa forma evitavam esses acontecimentos indesejados.
Evidencia-se aqui, que esses conhecimentos de nossos ancestrais e a forma como eram realizados esse tipo de prática é de fato muito instigante e curiosa, pois eles sabiam o que poderia e o que não poderia passar por esse processo de decomposição; sabia-se que restos de carnes, por exemplo, não poderiam ser jogados na horta, pois estes possuem uma difícil degradação, podendo apodrecer, causar mal cheiro e poluição a partir da emissão de gases tóxicos.
Outro fato curioso observado era o uso de fogão à lenha, comum nessa época, que gerava diariamente uma quantidade considerável de cinzas. Essas cinzas por serem riquíssimas em vários nutrientes, inclusive com a ação de diminuir a acidez do solo, eram usadas juntamente com os demais resíduos para complementar a compostagem.
Atualmente, na intenção de reproduzir esses conhecimentos ensinados, foi construído por uma das autoras, com a ajuda de sua avó, uma mini composteira doméstica, no quintal de casa, apenas com tijolos empilhados. Nele eram jogados restos orgânicos da cozinha, como por exemplo: cascas de ovos, pó de café, e ao final coberto com restos de grama cortados e folhagem seca.
Essa composteira doméstica foi utilizada durante 1 ano, produzia um adubo semelhante ao solo, com cor escura e cheiro suave de terra. Portanto, estas são práticas de um dinamismo que parte de um aprendizado que é passado de geração em geração de forma oral, sem qualquer tipo de conhecimento científico e teórico, apenas colocando em prática um procedimento que partiram de observações e constatações do que de fato deu certo ou não.
A etnociência e o ensino interdisciplinar envolvendo compostagem
O ensino através da prática da compostagem pode ser muito eficaz dentro do processo educacional, como já foi visto, ele pode ser abordado como um tema que possibilita envolver a etnociência, pelo fato de que, traz conhecimentos culturais antigos para o processo educacional. “O esforço para criar um ambiente de aprendizagem integrado com a cultura como parte do aprendizado de ciências é denominado abordagem etnocientífica” (ASBANU; BABYS, 2017, p.324).
Segundo Kumalasari, Sudarmin e Sulistyorini (2019, p.327), “através da aprendizagem baseada na etnociência, os alunos podem fazer observações diretas para que possam identificar questões científicas e explicar o fenômeno cientificamente”. Por conseguinte, esse tipo de abordagem, tem a tendência de acrescentar na formação do conhecimento científico do estudante, através da contextualização de uma prática cotidiana.
Outro fator muito importante, é que, este tema pode ser trabalhado de forma interdisciplinar, envolvendo Biologia e Química, e a partir disso, estimular o desenvolvimento através da compreensão do assunto e suas aplicabilidades em vários contextos. Segundo Gomes, Puggian e Albuquerque (2013) a interdisciplinaridade surgiu com o intuito de combater o ensino fragmentado da ciência que se encontra baseado na memorização e abstração dos conteúdos. Doravante, através desse tipo de abordagem, o aluno pode, a partir de um único tema, observar fatos e ter um aprendizado partindo de vários pontos de vista, inclusive culturais, e com isso estimular uma melhora desenvolvimento cognitivo.
Através do tema compostagem, é possível interligar diversos conteúdos da Química e da Biologia. Apesar de muitos conteúdos dessas disciplinas terem relação estreita, dificilmente são abordados de maneira interdisciplinar na educação básica. Um dos fatores que podem propiciar essa dificuldade, é a falta de material didático, em que se exige, também, adequação e articulação por parte dos professores (MOZENA; OSTERMANN, 2014)
Segundo Santos (2019) as disciplinas de Química e Biologia são ensinadas muitas vezes de maneira abstrata, trazendo assim uma maior dificuldade na compreensão dos conteúdos ensinados. A utilização da compostagem nas aulas de forma interdisciplinar pode trazer muitos benefícios, pois é uma forma de contextualizar os conteúdos, despertando assim o interesse dos discentes.
Tanto a Química como a Biologia são ciências que baseiam-se na compreensão e explicação de fenômenos em nosso mundo. A abordagem interdisciplinar dos conteúdos químicos e biológicos também possibilita aos alunos um melhor entendimento do universo, e além disso, potencializa a curiosidade e a busca por soluções para os problemas e fenômenos do seu cotidiano.
Na disciplina de Química, no terceiro ano do Ensino Médio, por exemplo, o tema compostagem e suas práticas pode ser relacionado com a temática ciência e tecnologia na atualidade e no cotidiano. O conteúdo de Química Verde, pode ser trabalhado atendendo às habilidades que se referem ao desenvolvimento do senso crítico do estudante, quanto à ideia de lixo, poluição e reciclagem.
O assunto compostagem é também uma excelente prática que pode ser realizada facilmente dentro das escolas, pode-se desenvolver a consciência ambiental dos alunos, bem como, dos seus familiares e comunidade em geral. “Do mesmo modo, integrar a abordagem da etnociência na educação científica parece ser um método eficaz e sustentável para realizar os propósitos dos aumentos nos currículos de ciências”. (KASI, et. al. 2020, p.3150).
A grande quantidade de lixo doméstico que é produzida, é extremamente alta e ganham como destino final os lixões, aterros e incineradores, o que por sua vez, emitem gases tóxicos para a atmosfera, aumentando assim a poluição ambiental. Nesse contexto, segundo Ferreira et al (2018, apud Li et al, 2013), “a compostagem tem várias vantagens sobre a incineração e aterro e é uma solução eficaz para reciclar esses resíduos. Isso porque apresenta menores custos operacionais, reduz os impactos ambientais e, o mais importante, o produto final pode ser utilizado como fertilizante”.
Para Marques et al. (2017) ao envolver os estudantes em um projeto com a temática compostagem possibilita desenvolver o senso crítico e analítico frente ao cenário ambiental atual. Dessa forma, pode-se ainda, estimular os mesmos a uma participação ativa com disseminação de um conhecimento, sobre a questão ambiental, que faz parte do cotidiano de cada um.
Dentro da disciplina de Biologia, que é uma ciência que investiga os seres vivos de maneira geral, existem alguns conteúdos que podem ser integrados no tema compostagem com uma abordagem muito eficaz. De acordo com Dalazoana (2019, p.122) “os conteúdos relacionados à compostagem podem ser utilizados para aguçar o interesse dos alunos, correlacionar e consolidar saberes teóricos e práticos”. A educação ambiental, a redução do consumo, o manejo de resíduos sólidos, a sustentabilidade são alguns dos vários assuntos que possibilitam ser abordados no tema compostagem.
Dessa forma, observa-se que trazer o tema compostagem para o espaço escolar pode ter grande eficácia dentro do processo de ensino aprendizagem, trabalhando a interdisciplinaridade e ainda trazendo o conhecimento etno para dentro de sala de aula.
Considerações finais
Após o desenvolvimento deste trabalho, conclui-se que é necessário observar os etnoconhecimentos disponíveis nas famílias, com o intuito de valorizar esse método de conhecimento e os seus benefícios para o enriquecimento cognitivo dos estudantes. Visto que, “através da aprendizagem baseada na etnociência, os alunos podem fazer observações diretas para que possam identificar questões científicas e explicar o fenômeno cientificamente” (KUMALASARI; SUDARMIN; SULISTYORINI, 2019, p.237).
Através desse relato pode-se observar os conhecimentos dos mais velhos sobre compostagem. Além da notoria habilidade com a técnica de produção de compostos orgânicos, notou-se também um certo entusiasmo das avós colaboradoras em compartilhar suas vivências e experiências.
A compostagem doméstica traz inúmeros benefícios e vantagens, tanto no quesito familiar como ambiental, pois além de adubo produzido ainda diminui consideravelmente a quantidade de lixo que seria descartado.
Por certo, o uso do tema compostagem para o ensino etnocientífico e interdisciplinar em Química e Biologia pode aumentar o interesse dos alunos e assim melhorar o processo de ensino aprendizagem.