EDUCAÇÃO E DIVULGAÇÃO DA FÍSICA E DA ASTRONOMIA EM UMA PERSPECTIVA ÉTNICO-RACIAL
As pessoas negras, quilombolas e indígenas têm tido, no Brasil, sua alteridade subalternizada nas ciências (físicas), o que as torna alvos preferenciais das políticas racistas, sendo assim, afastadas historicamente das escolas, das universidades e dos lugares de empoderamento cultural e científico. A educação em ciência decolonial e antirracista e a sua divulgação são, portanto, um poderoso antídoto contra o veneno do racismo epistêmico (Carneiro, 2005). O conceito de racismo epistêmico utilizado no presente trabalho é aquele adotado pela filósofa e ativista negra Sueli Carneiro, que o articula e amplifica de forma a levar em conta a persistente produção da indigência cultural dos pensamentos negros (e indígenas). O racismo epistêmico nega o acesso e a permanência de pessoas negras e indígenas na educação, inferiorizando sua produção intelectual o que, em última instância, impacta a autoestima dessas pessoas. Não há como desqualificar pessoas negras e indígenas sem desqualificar os seus jeitos de ser, de fazer e de pensar. Sendo assim, para Sueli Carneiro, o processo de desqualificação marcado no racismo epistêmico é individual (subjetivo) e coletivo (sistêmico). No contexto do racismo epistêmico, corpos negros e indígenas são incapazes de produzir conhecimentos ou mesmo de alcançar o conhecimento legitimado pelos sistemas hegemônicos. Por sua vez, o conceito de subalternidade empregado no presente texto ancora-se nas ideias propostas por Spivak (2010), segundo o qual as pessoas subalternizadas são encaradas como invisíveis, sem voz, sem possibilidade de transformação social. Já políticas racistas são pensadas como uma das facetas da necropolítica, conceito discutido por Mbembe (2017).
Nesse sentido, um dos grandes desafios da educação e da divulgação em ciências no Brasil e, particularmente, no caso das ciências físicas (Astronomia e Física), é fazer valer o artigo 26A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996 (Brasil, 1996). Esse importante marco legal determina a obrigatoriedade, em todos os níveis da educação nacional, do estudo da História e da Cultura Africana e Afro-Brasileira (Lei 10.639; Brasil, 2003) e Indígena (Lei 11.645; Brasil, 2008). No caso das pessoas quilombolas, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola (DCNEEQ; Brasil, 2012) passam a ocupar papel singular e diferenciado na discussão sobre a educação antirracista (Alves-Brito; Bootz; Massoni, 2018; Alves-Brito, 2021a).
Infelizmente, conforme bem contextualizado em trabalhos recentes da literatura (Alves-Brito; Bootz; Massoni, 2018; Pinheiro; Rosa, 2020; Alves-Brito, 2021b; Oliveira; Alves-Brito; Massoni, 2021), as áreas de Física e Astronomia têm dificuldade em trazer para si o debate do racismo e das relações étnico-raciais para pensar suas práticas anti(racistas) e levar a cabo os principais marcos legais que orientam a educação antirracista no Brasil e que devem estar no horizonte de execução de todas as áreas do conhecimento. Tecnicamente, não podemos minimizar o papel central que a Astronomia passou a ocupar na Base Nacional Comum Curricular da Educação Básica (BNCC; MEC, 2018). É a Astronomia a principal articuladora de temas relacionados aos Ensinos de Física e de Geografia no Ensino Fundamental (EF), tornando-se urgente desenvolvermos estratégias de educação e comunicação nessas áreas, tendo como foco principal o desmantelamento do racismo em todas as suas vertentes, principalmente no caso do racismo institucional e epistêmico, que afeta sobremaneira as políticas colocadas em prática em instituições educacionais e de divulgação de ciências no Brasil. Além disso, a inserção de reflexões sobre a natureza da ciência nos cursos de Licenciatura em Física e a articulação entre a Física e a Astronomia nos mesmos cursos superiores é incipiente/fragmentada (Ferreira; Custódio, 2021; Slovinscki; Alves-Brito; Massoni, 2021).
Os principais conceitos trazidos no presente ensaio, como desenvolvimento, progresso, Estado, modernidade, colonialidade e ciências indígenas são referendados em um corpo de estudos teóricos na literatura, como será trazido ao longo do texto. Para o que nos interessa aqui discutir, no âmbito da ERER, vale a noção de Modernidade, a partir da invasão europeia ao que hoje denominamos Novo Mundo (Munanga, 2019), em que a razão é vista como parte fundante e intrínseca dos corpos europeus colonizadores. Similarmente, nos ancoramos na ideia de Estado-nação nos tempos modernos, a partir da colonização portuguesa, ou seja, o Brasil Colônia, Império e República - escravocrata, abolicionista e pós-abolicionista (Schwarcz e Starling, 2015). A colonialidade, por sua vez, no sentido do que nos propõe Quijano (2010), vista como um elemento constitutivo e específico do padrão mundial do poder capitalista, mas também na perspectiva das comunidades indígenas e quilombolas que não entendem que o colonialismo acabou (Santos, 2015; Krenak, 2019; Serejo Lopes, 2020). A colonialidade não apenas persiste como se sustenta na classificação étnica e racial das populações da Terra como ferramenta de controle e poder. Ela se origina e se mundializa, para Quijano, a partir da América, com o colonialismo. Para ele, a ideia principal da colonialidade/modernidade eurocêntrica materializa-se em “uma concepção de humanidade segundo a qual a população do mundo se diferenciava em inferiores e superiores, irracionais e racionais, primitivos e civilizados, tradicionais e modernos” (Quijano, 2010, p. 86).
As noções de desenvolvimento e progresso são refletidas no presente texto a partir das ideias de Saar (2019), em que, para ele, o desenvolvimento é uma norma indiscutível do progresso das sociedades humanas, que inscreve o avanço dessas sociedades em uma perspectiva evolucionista, negando a diversidade das trajetórias e as modalidades de respostas aos desafios que a elas se apresentam. Além disso, para Saar, desenvolvimento (e a noção de progresso implícita) “racionalizou o mundo antes mesmo de possuir os meios de transformá-lo” (Saar, 2019, p. 21). Progresso e razão são palavras de ordem no conjunto epistêmico dos tempos modernos no ocidente. É contra essa noção de progresso que as comunidades negras e indígenas, oprimidas pelas relações de poder impostas nos Estados que aplicam o tempo inteiro políticas de morte, lutam e resistem.
E, por fim, ciências indígenas são aqui vistas como o conjunto de saberes e fazeres ancestrais que articulam a autodeterminação dos povos indígenas, em busca da justiça social e cognitiva, passando por questões históricas, linguísticas, culturais, psicológicas, sociais e econômicas. As ciências indígenas são as suas cosmologias, suas formas de ser e de viver, que são descolonizadoras, pois, para as pessoas indígenas, o fim do mundo aconteceu com a chegada dos invasores europeus, que trazem e instauram uma modernidade pautada no desenvolvimento cosmofóbico (Santos, 2015; Kopenawa e Bruce, 2015; Krenak, 2019; Serejo Lopes, 2020).
Nesse contexto, o principal objetivo do presente artigo é apresentar um ensaio crítico-reflexivo sobre a importância da educação e da divulgação da Astronomia e da Física no âmbito da Educação para as Relações Étnico-Raciais (ERER). Para tanto, trazemos à discussão quatro conflitos étnico-raciais emblemáticos da história das ciências físicas (Astronomia e Física) no Brasil (Alcântara e Belo Monte) e nos Estados Unidos (Mauna Kea e Arizona), os quais revelam complexos conflitos entre a Tradição e a Razão Moderna. Esses conflitos étnico-raciais colocam a Física e Astronomia contemporâneas em uma das maiores crises mundiais em razão da forma e como as relações entre cientistas e a sociedade têm sido marcadas pelo ethos de sistemas globais como o colonialismo, o capitalismo/neoliberalismo e o patriarcado, em uma relação desigual de poder, em que o racismo é a sua principal via de expressão material e simbólica. A partir desses conflitos político-territoriais, as noções de desenvolvimento e de progresso, que estão muito próximas da episteme científica moderna, podem ser problematizadas em aulas de ciências.
Para circunscrever conceitualmente o “ethos” dos sistemas globais e seus conceitos associados, sobretudo na perspectiva da episteme, ressaltamos as formas pelas quais o pensador peruano Aníbal Quijano identifica a colonialidade do poder com o capitalismo e seu processo de consolidação na Europa dos séculos XV e XVII. Para ele (Quijano, 1997), a colonialidade do poder faz com que o planeta Terra produza um conhecimento que é classificatório, em que o eurocentrismo é a metáfora para descrever a colonialidade do poder, que não existe sem a ideia de subalternidade. Saberes europeus locais são vistos como globais. A etnicidade e o racismo passam assim a fazer parte do campo discursivo. Etnicidade, a partir das categorias étnicas que são criadas no novo sistema-mundo (branco, negro, indígena, entre outros) e o racismo, como parte da estratégia de dominação colonial para organizar a exploração do sistema-mundo moderno. A pesquisadora Marimba Ani também nos ajuda a pensar o eurocentrismo a partir de sua expansão econômica e da subjugação do “outro” (negro, indígena, não europeu), em que conquista, exploração e apropriação materializam os sistemas globais (ANI, 1994). Não há, portanto, eurocentrismo (modernidade) sem o racismo.
CONFLITOS ÉTNICO-RACIAIS: CONSTRUINDO NOVAS ALTERIDADES NAS CIÊNCIAS FÍSICAS
Os conflitos étnico-raciais são diversos/diferenciados entre indivíduos, grupos ou sociedades dotados de características étnicas, raciais, socioculturais, religiosas, políticas e territoriais distintas. Para Candau (2001), a questão dos conflitos étnico-raciais relaciona-se com a tensão entre igualdade e diferença e, por isso, é uma questão atual. Para a autora, o problema não é afirmar um polo e negar o outro, mas sim termos uma visão dialética da relação entre igualdade e diferença. No contexto do presente ensaio, os conflitos serão analisados a partir do contraponto Tradição versus Ciência Moderna.2
Para as discussões que aventamos neste ensaio, a Física e a Astronomia do século XXI são o próprio ethos da Modernidade. Referendadas pela História da Ciência, elas se articulam com outras ciências básicas para, em colaboração com a Cosmologia, responder a algumas das questões científicas mais fundamentais: como o Universo se formou e evolui? Além disso, desde o século XVII, a Física e a Astronomia estão na base da conceituação e no entendimento do que é ciência, tecnologia, desenvolvimento e inovação (Pires, 2008; Lightman, 2016; Alves-Brito, 2021a). A Física, particularmente, tem sido a responsável por grandes revoluções na tecnologia e na informação há séculos, desde a descoberta da eletricidade até os efeitos da Quarta Revolução Industrial (Alves-Brito, 2021a). A Física tem se debruçado em projetos de alto impacto, envolvendo-se na construção de instrumentos sensíveis que operam desde as escalas atômicas até as escalas astronômicas. A Astronomia tem criado fronteiras de conhecimento, sobretudo por meio da Astrofísica e da Astrobiologia. Além disso, não há como pensar em Astronomia no presente século sem antes refletirmos sobre o impacto que a construção de telescópios cada vez mais potentes e de instrumentos cada vez mais sensíveis, capazes de operar em diferentes faixas do espectro eletromagnético, têm trazido à ciência global. Há, nesse processo, alta demanda por desenvolvimento de software e hardware capazes de processar e armazenar um número cada vez mais volumoso de dados, produzidos a cada noite de observação, o que torna a Astronomia uma das ciências mais complexas na contemporaneidade (Alves-Brito; Cortesi, 2020), levando em conta não apenas as questões intrínsecas da ciência, mas principalmente as demandas extrínsecas (Lightman, 2016).
Tradição, por outro lado, é aqui interpretada a partir das ideias de Bimwenyi-Kweshi (1981). Ela pode ser construída a partir de uma outra lógica, que se contrapõe à Razão Moderna. Nela cabe a configuração dos valores espirituais que, por sua vez, dão sentido à vida. Essa espiritualidade é marcante no jeito de ser e de viver de comunidades negras africanas, afro-diaspóricas e indígenas. A cultura (Muniz, 2005) tem, assim, uma dinâmica sociopolítica marcante na tradição. Física e Astronomia, enquanto ciências Modernas, contrapõem-se à Tradição, pois, em princípio, estas não se baseiam em valores e epistemes oriundas da tradição. Há, implicitamente nessa dicotomia Tradição versus Modernidade, a ideia latente de que a primeira representa uma não verdade e, portanto, sem relevância científica, sem direito a vez e voz, já que não se expressa por meio da objetividade teórica, experimental e/ou observacional materializada no método científico.3 É exatamente neste ponto que reside a relação conflituosa entre a Tradição e a Modernidade. Ambas apresentam explicações do mundo e da realidade que não podem ser cosmofóbicas (Santos, 2015). A ERER e a educação antirracista em ciências têm, a nosso ver, o papel crucial de redimensioná-las e ressignificá-las no sentido de buscar os princípios de vida e de inclusão, pela mediação dos conflitos étnico-raciais em suas múltiplas intersecções (raça, gênero, classe, origem geográfica, geração, entre outros).
Listamos abaixo os principais conflitos étnico-raciais no Brasil e nos EUA, sobre os quais que nos interessa refletir no presente ensaio, e que envolvem Tradição (saberes e fazeres, ou seja, ciências ancestrais propostas por negras, negros, quilombolas e indígenas) e Modernidade (instalação de usina hidrelétrica, de uma plataforma de lançamento de satélites e de telescópicos/observatórios astronômicos). Em seguida, fazemos reflexões críticas sobre cada um deles no contexto da educação e da divulgação antirracista das ciências físicas, para fortalecer alteridades subalternizadas.
a) Centro de Lançamento de Foguetes - Território Quilombola Alcântara
Alcântara é um pequeno município brasileiro com aproximadamente 22 mil habitantes, relativamente próximo de São Luís, capital do estado do Maranhão. Há, nesse município, centenas de comunidades quilombolas que formam o Território Quilombola de Alcântara (TQA), o Território de Santa Tereza (TST) e o Território da Ilha do Cajual (TIC). Trata-se, portanto, de um dos municípios mais significativos do ponto de vista da Tradição de matriz africana e afro-brasileira no Brasil. Desde 1983, o TQA e o Centro de Lançamento de Alcântara (CLA) protagonizam um dos mais tensos conflitos étnico-raciais envolvendo comunidades tradicionais e as ciências físicas e espaciais no Brasil, fundado no projeto de desenvolvimento da Ciência Moderna e Contemporânea (Serejo Lopes, 2020).
Para além da agenda de ciência e tecnologia que se coloca no horizonte, há, nesse conflito, interesses econômicos e militares. Recentemente, a Revista Fapesp (2021, n. 307),4 uma das mais prestigiosas do país, reportou que dois processos de chamada pública para uso não militar do CLA estavam em curso e que o primeiro deles havia selecionado quatro empresas especializadas que, juntas, irão fazer uso da base. As empresas selecionadas foram a C6 Launch, canadense, e as norte-americanas Virgin Orbit, Orion AST e Hyperion Rocket Systems.
Do ponto de vista do Estado brasileiro, a base de Alcântara está localizada próximo ao Equador da Terra, o que lhe confere vantagens econômicas nos lançamentos de satélites brasileiros em órbita e na elaboração de acordos bilaterais com outros países do Norte Global.5 Do ponto de vista do TQA, houve invasão inapropriada do seu território e degradação de suas práticas e valores culturais no âmbito do racismo à brasileira que subjuga, há séculos, as comunidades negras e as comunidades negras quilombolas em particular (Nascimento, 2008).
Em artigo de 2004, com apenas um ano de aprovação da Lei 10.639/2003 e oito anos antes da aprovação das DCNEEQ/2012, a Revista Fapesp (2004, n. 96)6 ressaltou que:
O município de Alcântara, no Maranhão, tem vocação tecnológica (abriga o centro de lançamento de foguetes) e turística (preserva sua arquitetura colonial), mas a maioria dos habitantes vive em condições africanas de pobreza: 73% da população, de 21 mil pessoas, concentra-se na área rural e a renda mensal média de 59% das famílias é inferior a R$ 100. Uma parceria entre a Agência Espacial Brasileira e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) tentará melhorar o índice de desenvolvimento humano da região. A ideia é ensinar aos pequenos produtores estratégias para aumentar sua produtividade. Eles usam técnicas de 300 anos atrás, baseadas na enxada e no facão, e não conseguem cultivar terrenos maiores que 1 hectare, incapazes de gerar riqueza. Plantam, numa mesma área, mandioca, milho, feijão e arroz. Quando o solo dá sinais de desgaste, abandonam-no, desmatam áreas próximas e voltam ali muito tempo depois (Revista Fapesp, 2004, n. 96).
Na mesma reportagem, lê-se ainda que, de acordo com Zeke Beze, consultor do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) à época, “O obstáculo, em Alcântara, é tecnológico”.
Em artigo da mesma revista, escrito em 2019, ou seja, sete anos após a promulgação das DCNEEQ, lê-se que o ministro da Ciência e Tecnologia da época, Sérgio Rezende, um dos físicos mais respeitados e reconhecidos (inter)nacionalmente, chegou a criticar a intransigência dos movimentos sociais ligados aos quilombos que, de acordo com a reportagem, se recusavam a rediscutir a partilha dos territórios que pertenciam à comunidade remanescente.7 Há, nesses fatos, a materialização dos conflitos étnico-raciais (Tradição versus Modernidade). Uma vez mais chamamos a atenção dos leitores e das leitoras para as relações desproporcionais de poder entre a União e o TQA no contexto do Colonialismo, do Capitalismo e do Patriarcado que têm, no racismo, sua mais expressiva tecnologia social (Mignolo, 2000; Quijano, 2010; Santos, 2015; Maldonado-Torres, 2018). Por relações de poder, entendemos aqui as formas pelas quais os Sistemas Imperiais (Colonialismo, Capitalismo e Patriarcado) articularam e articulam o conceito de humanidade para poder classificar as pessoas. E, nesse sentido, a ciência moderna e contemporânea, atuando em conjunto com o poder imperial, fomentou relações desiguais de poder entre esses e as comunidades tradicionais. Serejo Lopes (2020) apresenta, com profundidade, as principais questões que envolvem os processos de territorialização quilombola no Brasil. O processo de reconhecimento dos territórios quilombolas é um exemplo interessante de como essas relações de poder operam. Ainda que as comunidades quilombolas existam no Brasil desde o século XVI, em junho de 2022, há apenas 144 comunidades tituladas8 (das mais de 6 mil existentes).
b) Belo Monte - Rio Xingu
Um dos casos mais notáveis de conflitos étnico-raciais envolvendo as ciências físicas e a geografia localiza-se no Pará, Norte do Brasil, na região de Altamira e da bacia do rio Xingu, um dos mais ricos em biodiversidade da Amazônia.9 A questão da hidrelétrica do rio Xingu, que começou a ser construída em 2010, ganhou o noticiário mundial nos últimos anos por causa da construção da hidrelétrica de Belo Monte (então chamada Usina Kararaô).
Conforme historicizado em Fleury e Almeida (2013), o projeto de construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte começou a ser realizado em 1975, a partir dos Estudos de Inventário Hidrelétrico da Bacia Hidrográfica do Rio Xingu. Este se configuraria como o maior projeto nacional do final do século XX e começo do XXI. Os conflitos étnico-raciais que se seguiram perpassaram por uma série de interpretações sobre a ideia de desenvolvimento local e nacional ou, alternativamente, sobre o quão destruidor aquele projeto se configuraria. Instaurou-se assim a ideia de desenvolvimento no sentido de que a Usina Hidrelétrica de Belo Monte era projetada se projetava para se configurar entre as maiores hidrelétricas do mundo, gerando mais de 11000 MW/hora. De um lado do conflito, a Norte Energia e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), ambos pela defesa de um projeto nacional de desenvolvimento; do outro, povos indígenas do Xingu que vivem em perfeita harmonia com a Natureza e que se colocam como as vozes da Floresta e contra a morte dos peixes, das águas e da mata, contra a desarticulação da vida comunitária e de seus meios de vida e subsistência (Kopenawa e Bruce, 2015; Krenak, 2019). A construção da hidrelétrica de Belo Monte atravessou distintas fases da política nacional e, apesar dos conflitos, até hoje existentes, sempre se manteve como prioridade governamental, sob os olhos atentos das grandes empreiteiras movidas por interesses capitalistas e que se colocam acima dos interesses da população local.
Conclui-se, uma vez mais, que há interpretações contrastantes sobre o conceito de desenvolvimento e que a disputa de narrativa nos conflitos étnico-raciais envolvendo políticas territoriais baseia-se na desarticulação dos valores ancestrais (espirituais) dos indígenas e dos Povos da Terra e da Floresta, em detrimento de uma agenda de desenvolvimento que se pretende racionalmente Universal, articulada ao Capital.
c) Mauna Kea Observatories - Povo Kānaka Maoli
O Mauna Kea, um vulcão extinto no Havaí, EUA, tem sido, historicamente, um dos lugares mais festejados para a observação astronômica nos EUA, que lideram, há séculos, muitos dos projetos mais robustos da Astrofísica mundial. É no Mauna Kea que está localizado o Telescópio Keck (10 metros de diâmetro), um dos mais potentes da atualidade em terra. Desde o século XX, os povos originários que vivem na Ilha do Havaí têm tido que negociar as transações em torno da instalação ali de vários projetos de desenvolvimento astrofísico.
No entanto, nos últimos anos, o Mauna Kea tem sido palco de um dos mais controversos conflitos étnico-raciais. De um lado, astrofísicos(as), engenheiros(as) e governos que querem instalar no Mauna Kea Observatories, mais precisamente no cume do vulcão Mauna Kea, o Thirty Meter Telescope (TMT); do outro lado da disputa, os Kānaka Maoli, população indígena residente na região do Mauna Kea.
No âmbito das relações de poder intricadas no projeto de Modernidade que discutimos no presente ensaio, o TMT, telescópio de 30 metros, ou seja, pertencente à nova classe de telescópios extremamente grandes, revolucionará a Astronomia nas próximas décadas, já que, em conjunto com telescópios de tamanhos similares (25-45 metros), o TMT permitirá acessar mais profundamente e mais sensivelmente objetos celestes. Espera-se, com essa nova classe de telescópios, que a Astro(física) solucione alguns de seus enigmas que anseiam por respostas nos últimos séculos: origem das (primeiras) galáxias; descrição da estrutura em larga escala do Universo; composição do meio intergaláctico; a física dos primeiros instantes do Universo; natureza da matéria escura; definição e papel dos buracos negros, entre outros mistérios. A construção de telescópios, observatórios e a instalação de instrumentos diversos representam desenvolvimento para a Astrofísica Moderna e Contemporânea. Vale destacar que, embora sediado e coordenado pelos EUA, o projeto TMT envolve outros parceiros de peso no cenário internacional como, por exemplo, os governos do Japão, da China, da Índia e do Canadá.
Para a Tradição Kānaka Maoli, o Mauna Kea é o seu próprio corpo-território, onde estão as memórias e a alteridade dos povos tradicionais da região (Salazar, 2014). A sua existência só faz sentido a partir do Mauna Kea, presente nas narrativas acerca da origem do mundo e das pessoas. É o Mauna Kea, em sua cosmologia, que conecta o céu e a terra e que dá origem à água, elemento fundamental para os rituais e para a vida dos Kānaka Maoli (Salazar, 2014). Há, portanto, na tradição, uma concepção de sagrado que conflitua com o projeto moderno de ciência, e essa é a fonte principal do conflito que se desenrola em Mauna Kea.
d) Mount Graham International Observatory - Comunidade Indígena Apache San Carlos
Outro caso de conflito étnico-racial de destaque nas ciências físicas girou em torno da instalação do sítio observacional do Mount Graham International Observatory (MGIO), que se situa próximo ao cume do Monte Graham, Montanhas Pinaleño, no sudeste do Arizona, EUA. O MGIO vincula-se ao Departamento de Astronomia da Universidade do Arizona que, operado pelo Steward Observatory, constitui-se de três unidades principais: (i) Vatican Advanced Technology Telescope (VATT), espelho com 1,8 metros de abertura; (ii) Heinrich Hertz Submillimeter Telescope, que opera na frequência do rádio, com uma antena em forma de disco com 10 metros de abertura; e (iii) Large Binocular Telescope (LBT), constituído por dois espelhos com 8,4 metros de abertura cada.
Na perspectiva de desenvolvimento moderno, o Steward Observatory logo notou o potencial astrofísico que o cume de 3268 metros de altitude desempenhava para a instalação de diversos telescópios. Além disso, há, no Mount Graham, condições observacionais extraordinárias: excelente “seeing,10” esparsa poluição luminosa e predomínio de noites limpas. Além disso, ele está estrategicamente localizado a 240 km da cidade de Tucson.
De origem indígena, Pinaleño significa “cervos”. As Montanhas Pinaleño são parte da Coronado National Forest. Como em outros casos aqui relatados, os grupos originários no Arizona defendiam as suas tradições e as suas relações cosmológicas com a montanha e com o seu meio ambiente, que se viam ameaçados com o processo de instalação astronômica em curso (Bezerra, 2020). O conflito étnico-racial-ambiental do Monte Graham teve seu ápice nos anos 1980 (Bezerra, 2020).
Assim como em outros casos, o cume do Monte Graham reveste-se de importância cultural e espiritual (Tradição) para a Comunidade Indígena Apache San Carlos, cuja reserva situa-se na base do MGIO. Por gerações, esses povos originários plantam e colhem suas ervas medicinais e se relacionam a partir de uma outra lógica com a montanha.
Em 2002, ocorreu a primeira observação (first light, primeira luz) no Large Binocular Telescope (Bezerra, 2020), sinalizando, uma vez mais, o predomínio dos interesses científicos (universais) sobre os interesses sociais e culturais (locais) dos povos originários do Arizona em torno do MGIO.
IMPLICAÇÕES PARA A EDUCAÇÃO E A DIVULGAÇÃO DAS CIÊNCIAS FÍSICAS
A presente seção está dividida em quatro eixos. A escolha baseia-se no nosso entendimento de que a ERER e os projetos diferenciados de educação - como a educação escolar indígena e a educação escolar quilombola (Munduruku, 2012; Gomes, 2017) - projetam para a sala de aula e para outros espaços de divulgação de ciências, a necessidade de imaginar e construir alteridades negras, indígenas e quilombolas para além dos processos de subalternização impostos pelo sistema colonial de poder. Para tanto, tendo como base os conflitos étnico-raciais e políticos territoriais previamente abordados, argumentamos, na presente seção, que a educação e a divulgação em ciências (físicas) precisam rever o conceito de desenvolvimento que está implicado na ideia de ciência e tecnologia (Eixo 1). Além disso, elas precisam levar em conta que a ERER e os projetos diferenciados de educação carregam em si mesmos uma discussão que é política, ligada a corpos-territórios e pensamentos que não separam suas ciências ancestrais dos seus jeitos de ser e de viver (Eixo 2). Essa outra perspectiva de articulação entre ciência e política precisa chegar às salas de aula. Argumentamos que a Teoria Crítica da Raça (TCR) é um referencial teórico, político, legal e epistemológico crucial que, atuando em sinergia aos princípios basilares dos movimentos sociais negros e indígenas, traz aportes importantes para a mediação de conflitos étnico-raciais no chão das escolas e de instituições que promovem políticas públicas educacionais (Eixo 3). E, por fim (Eixo 4), à guisa de reflexões, deixamos questões básicas que podem ser articuladas em sala de aula e em espaços não formais de educação e divulgação de ciências, a fim de fortalecer as alteridades aqui representadas.
EIXO 1: ALTERIDADES E O CONCEITO DE DES-ENVOLVIMENTO
Na raiz dos conflitos étnico-raciais abordados no presente ensaio, que materializam conflitos políticos-territoriais, sobressai-se a construção moderna do conceito de raça. A ideia de raça está diretamente conectada com o sentido e a conceituação de alteridade (negra, quilombola, indígena), a partir do processo de colonização. Os estudos decoloniais colocam a alteridade e a ideia de raça no centro do debate (Quijano, 2005; Maldonado-Torres, 2018; Rosa; Alves-Brito; Pinheiro, 2020; Alves-Brito, 2021a;b). O projeto de desenvolvimento da Ciência Moderna opera a ideia do “eu” (europeu/colonizador) contra o “outro” (não europeu/colonizado/escravizado). Na história do Brasil, políticas exterminacionistas e integracionistas destruíram povos indígenas. A espiritualidade (de tradição cristã) justificou a ideologia eurocêntrica de que esses povos, sem escrita, sem alma e sem lei, deveriam ser civilizados para adentrar o mundo do “desenvolvimento”, ancorado no projeto colonial português (Munduruku, 2012).
Há, portanto, na égide dos conflitos aqui abordados, uma questão implícita de desterritorialização do “outro”. O outro colonizado é desapropriado do seu território (i)material e simbólico; isso nos mostra que o racismo ambiental (Rocha e Santana Filho, 2008) deveria ser amplamente discutido na educação em ciências comprometida com a luta antirracista.
Com fins preponderantemente voltados para a pesquisa científica, básica e/ou aplicada, vimos aqui que os grandes projetos de desenvolvimento astrofísicos se instalam em lugares estratégicos: próximos ao Equador da Terra, no caso de Alcântara, ou em sítios remotos, usualmente em regiões áridas e com altitudes elevadas, como desertos ou picos montanhosos, no caso de Mauna Kea e Arizona. Essas últimas regiões são procuradas para minimizar os problemas causados pelos gases presentes na atmosfera terrestre nas observações astronômicas, já que parte da radiação eletromagnética (ultravioleta e infravermelha) é retida pela atmosfera da Terra. Os projetos robustos das ciências físicas buscam fugir dos grandes centros urbanos. Não há como construir uma usina hidrelétrica se não próximo a bacias d’água, que estão em lugares remotos, rurais ou distantes dos grandes centros urbanos.
No Hemisfério Sul, o Chile, com o seu deserto (Atacama) e montanhas (Cordilheira dos Andes), é o país que detém o maior número de observatórios e instrumentos de observação astronômica, muito deles mantidos e financiados majoritariamente por países da Europa e pelos Estados Unidos, líderes mundiais na área. Vale destacar que outros países da região, como o Brasil, também estabelecem projetos de colaboração científica com programas desenvolvidos em solo chileno. A escolha do Chile, anos atrás, não foi neutra, somente com base no potencial natural do país. Para além das questões naturais, há também questões políticas e econômicas associadas a essa escolha. O pequeno país exportador de vinho e de minérios, localizado entre o Pacífico e a Cordilheira dos Andes, tem se constituído, há muitos anos, como um dos grandes laboratórios neoliberais (nova racionalidade) do mundo. Ainda que o país tenha vivido uma reviravolta em sua estrutura social recentemente (Collaço, 2021), esses movimentos não afetaram o andamento das facilidades astronômicas que lá estão instaladas,11 o que nos motiva a trazer aqui, uma vez mais, as relações (neo)coloniais que a colonialidade nos impõe. Nos próximos anos, estima-se que cerca de 70% do potencial astronômico mundial estará em desenvolvimento, a todo vapor, no Chile. Este é um caso de desenvolvimento acoplado ao “aluguel do céu”. E, nesse sentido, no que tange às relações étnico-raciais, podemos inclusive nos perguntar onde estão/entram nesses projetos de “desenvolvimento” astronômico as alteridades dos povos originários do Chile (Mapuches, Aymaras, Colla, Quechua, Rapa Nui, Yagán, Pehuenches, Huichilles, Kawashkar e Alacalufes); onde estão, nas escolas e nos espaços de cultura, as suas narrativas e semióticas cosmológicas?
A lógica de ocupação de pequenas ou grandes áreas para projetos de desenvolvimento científico e tecnológico modernos, áreas estas que historicamente são habitadas por povos originários, baseia-se na ideia de que não há vida habitável nesses territórios e, mesmo que haja, não são humanas, justificando-se a violência física e psíquica por trás da subordinação neo(colonial), marcando essas alteridades como sinônimo do atraso. Uma vez que os sítios são selecionados, como vimos nos casos acima relatados, as comunidades não são convidadas a participar do processo de discussão dos benefícios e malefícios dos projetos, estes últimos mascarados por trás da bandeira do desenvolvimento. E tampouco são perguntadas às comunidades se elas têm de fato interesse nos projetos. Não há desenvolvimento de planos de salvaguardas com a participação das comunidades locais, até mesmo para pensar em como as mudanças poderão ser organizadas e executadas sem grandes impactos nas existências (de vivos e não vivos) que constituem as suas comunidades.
Como bem sintetizado por López (2018), as estratégias de domínio do imaginário social coletivo passam por uma retórica de subalternização que têm referência histórica na construção das relações hierárquicas de poder que conflituam Tradição e Modernidade:
É comumente encontrada em muitos contextos de relações coloniais e implica conceber-se como os precursores da civilização e do desenvolvimento, cuja missão é guiar outros seres humanos para a “modernidade”, “razão” e “maturidade”. Além disso, eles veem as populações locais como “selvagens incivilizados”. Sua visão do mundo social é implícita ou explicitamente a do evolucionismo unilinear do século 19, que considera as populações locais como estágios anteriores do desenvolvimento humano. Assim, estão associados a outros grupos com “necessidade de tutela”, como crianças ou mulheres. Os comportamentos de todos esses grupos são classificados como “irracionais”, “místicos” e “emocionais” (López, 2018, p. 444).
Na contemporaneidade, o projeto de educação e divulgação em ciências que se alinha à Modernidade Hegemônica articula o desenvolvimento a partir dos 17 Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável (ODS), base da agenda mundial no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU; Figura 1; ver discussão em Alves-Brito, 2021a). Essa agenda tem sido a base de compromissos globais para o desenvolvimento e o delineamento de formas de ser e de se relacionar de sociedades e organizações científicas mundo afora. E, nesse sentido, as ciências físicas e espaciais desempenham papel fundamental na implementação do que está preconizado na Agenda ONU 2030, sobretudo no bojo da Quarta Revolução Industrial (QRI), que está excludentemente em curso.
Uma vez mais precisamos pensar o que desenvolvimento significa na Física e na Astronomia e como poderemos construir projetos de educação (em ciências) diferenciados, direcionados aos territórios negros, quilombolas e indígenas no contexto da QRI (Alves-Brito, 2021a). Os casos de conflitos étnico-raciais tratados no presente artigo estão, no fundo, relacionados à noção de desenvolvimento que é operacionalizada em diferentes projetos, particularmente aqueles que têm como bandeira os ODS da Agenda ONU 2030.
FIGURA 1 Objetivos do desenvolvimento sustentável (ods), agenda onu 2030
Como uma das premissas da educação antirracista é a de(s)colonização do pensamento, as ideias do pensador quilombola Antônio Nêgo Bispo dos Santos (Santos, 2015) são fundamentais para nos ajudar a refletir sobre os conflitos étnico-raciais aqui propostos. Nêgo Bispo nos apresenta uma perspectiva autêntica de desenvolvimento na égide da ERER no Brasil. Para ele, o projeto Moderno e Contemporâneo de Ciência, com sua pedagogia colonial no trato com as comunidades originárias e tradicionais e, particularmente, quilombolas, está focado em um discurso de extermínio do “outro” que é diferente do “eu” (branco/europeu/colonizador). O dito projeto firma-se em práticas de extermínio e de des-envolvimento. Nesse sentido, a relação da ciência com as pessoas se dá pela quebra de vínculos afetivos e de envolvimentos (por isso des-envolver) de diferentes naturezas: materiais, simbólicas, estéticas e afetivas. Interpretamos que esse des-envolvimento é, na verdade, uma estratégia de, na relação étnico-racial, reafirmar o projeto em curso de desumanização dos corpos negros e dos povos originários (racismo), retirando-os das discussões de poder e dos espaços de tomada de decisão e da produção autônoma e potente de conhecimentos.
Há, portanto, nos processos históricos da educação em ciências, uma quebra de vínculos, uma afirmação do des-envolvimento proposto por Nêgo Bispo. E são essas lógicas de des-envolvimento (racismo ambiental) que vão marcar e justificar, em articulação com o racismo científico (Rosa; Aves-Brito; Pinheiro, 2020; Alves-Brito, 2021b), grande parte dos conflitos étnico-raciais que apresentamos no presente texto.
EIXO 2: ALTERIDADES E A COSMOPOLÍTICA
É notório que as comunidades tradicionais em Alcântara, Xingu, Mauna Kea e Arizona, como tantas outras comunidades tradicionais espalhadas pelo globo, consideram as áreas em que vivem e coabitam como territórios, e não apenas terras; esses territórios são parte dos seus corpos, espaços poderosos, fortemente ligados à sua relação com o mundo não humano, especialmente com os seres não visíveis. Para eles, esses territórios são partes fundamentais de suas concepções cosmológicas, emoções, sensações, vínculos socioantropológicos (Kopenawa e Bruce, 2015; Santos, 2015; Krenak, 2019; Serejo Lopes, 2020).
Do ponto de vista cosmopolítico (Stengers, 2014; Alves-Brito, 2021b;c), há um senso de coletividade que perpassa essas diferentes experiências que, no contexto educacional, reforçam o entendimento de que a raça, por definição, só faz sentido na relação com outro. Há, na cosmopolítica de Stengers, um senso de compartilhamento do mundo das pessoas excluídas da Modernidade. E, portanto, neste letramento racial, no Brasil ou nos Estados Unidos, ser negro/indígena/quilombola tem suas peculiaridades. A percepção cosmopolítica reafirma o conceito de raça como dinâmico e espaço-temporalmente limitado. No entanto, ela universaliza a experiência do racismo, enquanto estrutura, que liga as histórias do Brasil e dos EUA a outras histórias negras, quilombolas e indígenas mundo afora. Entende-se o conceito de raça como político e, a cosmopolítica como a política da Modernidade em crise (Stengers, 2014).
A cosmopolítica perpassa a cultura e, nesse sentido, Muniz Sodré, um dos grandes intelectuais negros, nos ensina que a cultura negra (e o mesmo vale para as culturas dos povos indígenas ao longo do globo) não se baseia na ideia de linearidade nas trocas. Estas são sempre simbólicas (Sodré, 2005). É exatamente por ser assim que as cosmologias racializadas (Alves-Brito, 2021b;c), fora do contexto ocidental, não operam e nem se comunicam a partir de um referente cosmofóbico. As cosmologias racializadas incluem não apenas os humanos (vivos e mortos), mas também os bichos, as plantas e os minerais. Enquanto essa característica é tratada a partir dos valores da ciência moderna como animismo, ela pode ser (e é) a própria forma lógica de organização de outras culturas (Sodré, 2005) e, portanto, cientistas/engenheiros/políticos precisam estar preparados para fomentar e respeitar diversas alteridades nas ciências físicas ou nas relações cosmológicas racializadas. Esse é um processo educativo. Não é um dado biológico.
Como discutido em Alves-Brito (2021a), valores, crenças e atitudes a partir das matrizes africanas, afro-brasileiras e indígenas são construídos por outros marcos, nem sempre compreensíveis (e muito menos tangíveis) para os construtos da ciência moderna, sendo este portanto o ponto nevrálgico da discussão em torno da relação étnico-racial nas ciências físicas, que desconhecem ciências ancestrais pautadas por outros referentes de razão (as emoções, por exemplo). Essa é, na verdade, a questão fundante quando pensamos o sentido ético da educação em ciências para as relações étnico-raciais, que só podem ser bem-sucedidas se acontecerem nas relações, isto é, as ciências modernas em diálogo com as ciências ancestrais. Sem isso, será impossível mediar os conflitos étnico-raciais nas práticas em ciências em qualquer contexto que eles ocorram.
Como discutimos ao longo do texto, as comunidades envolvidas nos conflitos étnico-raciais no Brasil e nos EUA de que tratamos aqui são aquelas historicamente desumanizadas pelo Projeto Moderno e Contemporâneo de Ciência. Aníbal Quijano, um dos grandes intelectuais latinos, nos lembra que a ideia de raça/etnia (negra, quilombola, indígena) atrela-se à ideia padrão de poder, em uma construção mental dada pela experiência da dominação colonial, pautada no eurocentrismo (Quijano, 2010). Não há como nos movermos se não fizermos uma reestruturação radical em nossos currículos e em nossas práticas em todas as instâncias da educação brasileira.
No entanto, os Referenciais Curriculares articulam (ainda) silenciamento, apagamento e extermínio de conflitos étnico-raciais e das vozes de povos originários e de matrizes africanas e afro-brasileiras no contexto do Ensino de Ciências na educação básica e nas Instituições de Ensino Superior. No geral, quando essas existências aparecem nesses documentos, são representadas no lugar passivo e apático. Mas é sintomático, por meio dos conflitos que foram aqui destacados, perceber que essas comunidades seguem resistindo e, portanto, elas não estão paradas no tempo e nem são passivas ou indiferentes aos entrecruzamentos do racismo em suas vidas.
Neste sentido, é urgente que os saberes e fazeres (ciências ancestrais) dos diferentes povos aqui citados sejam pautados em escolas, universidades e espaços de divulgação em ciência, mas não em um contexto folclorizado e estático no tempo. O resgate e a recuperação das lutas históricas desses povos contribuem para forjar outras identidades e alteridades mais autônomas e empoderadas no contexto das ciências físicas, pois, muitas vezes, nem mesmo os livros didáticos refletem a diversidade étnico-racial do país (Rosa e da Silva, 2015).
EIXO 3: ALTERIDADES E A TEORIA CRÍTICA DA RAÇA
Argumentamos, ademais, que a Teoria Crítica da Raça (TRC; Bell, 1992; Delgado e Stefancic, 2021) tem papel importante na educação em ciências, no Brasil e nos EUA, para nos ajudar a construir alteridades negras, indígenas e quilombolas resilientes, empoderadas e com consciência política da luta histórica. Os caminhos metodológicos e epistemológicos abarcados pela TCR, atualizados na visão de Milner e Howard (2013) e Delgado e Stefancic (2021), são expressos em cinco princípios: (i) intercentricidade de raça e racismo (e suas interseccionalidades); (ii) desafio à ideologia dominante (no que tange ao desmantelamento da ideia da neutralidade, da objetividade e da meritocracia); (iii) compromisso com a justiça social (romper com todos os privilégios racializados, sobretudo o acesso acadêmico-científico); (iv) perspectiva interdisciplinar (diálogos entre as áreas do conhecimento, os saberes e os fazeres); e (v) centralidade do conhecimento experiencial (as escrevivências, as narrativas de vida) que, a nosso ver, pode ser parcialmente ilustrado por meio do conceito de escrevivência da escritora e pensadora Conceição Evaristo:
um ato de escrita de mulheres negras, como uma ação que pretende borrar, desfazer uma imagem do passado, em que o corpo-voz de mulheres negras escravizadas tinha sua potência de emissão também sob o controle dos escravocratas, homens, mulheres e até crianças. (Evaristo, 2020, p. 30).
A TCR, atrelada à ERER, é aqui proposta como uma chave de pensamento interessante para nos ajudar a problematizar, interpretar e até mesmo solucionar cada um dos conflitos étnico-raciais revisitados no Brasil e nos EUA. O diferencial da TCR é que ela não se pretende apenas teórica, mas articulada pela transformação social. Não apenas pensar e discutir, mas é necessário agir para transformar. O TQA resiste há décadas. Em Mauna Kea, Xingu e Arizona vê-se a mesma dinâmica de luta e resistência. Este é o alicerce da TCR: a luta pela transformação social no coletivo. E este é outro aspecto fundamental que merece ser ressaltado a partir dos casos aqui tratados: a potência que os movimentos sociais têm para se colocar no debate público da educação e da divulgação em ciências (Munduruku, 2012; Gomes, 2017).
Os conflitos étnico-raciais como estes no Brasil e nos EUA, reportados e interpretados no presente texto, são frequentemente liderados pelas mais velhas e pelos mais velhos (as mestras e os mestres dos saberes) das comunidades envolvidas, sobretudo as mulheres. Há, portanto, nesses movimentos, construtos teóricos, metodológicos e epistemológicos que perpassam o estar (vivenciar) no mundo ancorados na ancestralidade e na oralidade em uma perspectiva do feminino. Os movimentos sociais oferecem, assim, em suas dinâmicas transformadoras, outras formas de lidar com o outro, incorporando outras epistemologias que não são tratadas nos circuitos formais de educação e da divulgação das ciências, notadamente das ciências físicas.
Nilma Lino Gomes, Daniel Munduruku e Daniel Serejo Lopes, educadores, pesquisadores e ativistas intelectuais, têm amplamente discutido esses ganhos para o caso dos processos históricos, didáticos-pedagógicos e ontoepistemológicos que envolvem as questões negras (Gomes, 2017), quilombolas (Serejo Lopes, 2020) e indígenas (Munduruku, 2012), e que explicam os movimentos de resistência e potência Tradicional em Alcântara, Xingu, Mauna Kea e Arizona.
Além disso, professores, educadores e políticos, articuladores da Educação Escolar Quilombola/Indígena como projetos diferenciados de educação e mesmo da escola pública vista hoje como um território negro do ponto de vista da presença física de estudantes negros (Alves-Brito, 2021a), precisam sentir-se parte da construção dessas agendas de desenvolvimento em uma outra lógica de sustentabilidade. É preciso fortalecer e reafirmar a identidade do ser político negro/quilombola/indígena que precisa estar no mundo sem ser exterminado pelo ethos do Projeto Moderno e Contemporâneo de Ciência.
Os conflitos étnico-raciais discutidos no presente texto oferecem, assim, desafios e oportunidades para se desnaturalizar questões que são parte das decisões sociais, econômicas e políticas que desumanizam os corpos-territórios negros, quilombolas e indígenas. A questão política está, portanto, dada. Sabemos que, diferentemente do que acontece com outros conteúdos das ciências físicas, as questões históricas e de natureza da ciência são um desafio para professores de ciência em todos os níveis. Não só isso: os filósofos, epistemólogos e sociólogos das ciências que são abordados nas diferentes intervenções didático-pedagógicas e culturais têm vieses demasiadamente eurocentrados (Ferreira; Custódio, 2021), o que novamente ratifica o racismo epistêmico (Carneiro, 2005) e a subalternização de alteridades fora do contexto “branco-ocidental”. A TCR oferece capilaridade para o debate crítico, científico e político, sociologicamente transformador.
Ademais, a TCR oferece aporte para entender de que forma a cultura jurídica no Brasil e nos EUA aprofunda desigualdades e conflitos étnico-raciais, seja na questão específica dos territórios, seja na não aplicação de políticas educacionais, como as Leis 10.639/2003, 11.645/2008 e/ou os marcos legais que orientam a educação escolar indígena e quilombola. Tribunais, em geral, preservam sistemas discriminatórios contra pessoas colocadas nos grupos subalternizados (Moreira, 2020). No contexto dos conflitos aqui tratados, a TCR explica não apenas como as contra-narrativas ao discurso do universalismo dos direitos se justificam do ponto de vista epistêmico, como também explica de que forma a negação da natureza sistêmica do racismo (Rosa; Alves-Brito; Pinheiro, 2020; Alves-Brito, 2021b;c) acontece no chão das escolas, das universidades e de outras instituições que representam o Estado de direito. Ou seja, não podemos perder de vista, em cada um dos conflitos políticos territoriais retratados neste ensaio, o papel da raça no processo das argumentações jurídicas (Moreira, 2020; Delgado e Stefancic, 2021). Ainda que o nosso foco seja a questão educacional, não podemos deixar de enfatizar que a origem da TCR no direito tem uma contribuição significativa para a leitura dos episódios aqui citados, afinal essas disputas de terras/territórios envolvem primordialmente aspectos jurídicos, que são, inclusive, muitas vezes utilizados como justificativa para promover o racismo epistêmico e ambiental de “acordo com a lei”. As legislações são usadas e articuladas, perante o debate público e institucional, no âmbito da ideia canônica de desenvolvimento que, obviamente, não leva em conta as ciências e as existências ancestrais.
EIXO 4: NOVAS ALTERIDADES NO CHÃO DAS ESCOLAS, DOS MUSEUS DE CIÊNCIAS, OBSERVATÓRIOS E PLANETÁRIOS
Por fim, cabe então nos perguntarmos a partir de tudo o que foi discutido ao longo deste ensaio: onde estão/entram os pensamentos negros, quilombolas e indígenas no chão das escolas, dos museus de ciências, dos observatórios e dos planetários? Como poderão estudantes negras, negros e indígenas se sentirem parte do processo de construção das ciências se os seus saberes e fazeres (ciências ancestrais) são negados paulatinamente nos processos formais (e não formais) de educação e da cultura científica? É preciso avançar, de forma que os conflitos étnico-raciais abordados no presente texto ofereçam oportunidades diversas de interpelações de temas e questões relacionados à Astronomia, à Física, à Geografia, à Tecnologia e ao Desenvolvimento.
Quando bem articulados em sala de aula, os conflitos abordados podem, por exemplo, funcionar como excelentes laboratórios de metodologia ativa de argumentação e exercício do pensamento crítico sem, necessariamente, de abrir mão de conteúdos de Física, Astronomia e/ou Geografia.
Entre tantas perguntas que poderiam orientar o trabalho em sala de aula e nos espaços de divulgação em ciências, elencamos:
Quem são os povos implicados nos conflitos étnico-raciais em Alcântara, Xingu, Mauna Kea e Arizona? Qual é a história de cada um destes povos e como vivem hoje?
Quais são as suas principais cosmologias?
De que forma esses povos se organizam politicamente?
Quais são as relações de ser, saber e poder envolvidas nos conflitos étnico-raciais abordados?
De que forma as questões envolvidas se articulam com as Leis 10.639/2003 e 11.645/2008?
De que forma as DCNEEQ e as Diretrizes para a Educação Escolar Indígena nos ajudam a entender e a problematizar os conflitos étnico-raciais discutidos no presente ensaio?
Por que os diferentes grupos (Tradição versus Modernidade) envolvidos nesses conflitos têm visões diferentes?
O que é ciência, tecnologia, desenvolvimento e inovação para cada um dos grupos?
De que forma as revistas científicas e/ou jornais (de ciência ou não) tratam os conflitos étnico-raciais? São parciais? Imparciais? Quais fatores justificam a sua resposta?
Você acha que haverá solução para esses conflitos?
Se a você fosse dado o poder de solucionar os conflitos, de que forma procederia?
De que forma você acha que a TCR contribui para a educação e a divulgação de ciências antirracistas e democráticas?
Para além das questões acima, os conflitos étnico-raciais em Alcântara, Xingu, Mauna Kea e Arizona nos permitem aprofundar as ideias de Felwine Saar sobre o que desenvolvimento significa; em última instância, é a essência da relação Tradição-Modernidade que tentamos problematizar:
O desenvolvimento é, pois, uma tentativa de universalizar um empreendimento que teve no Ocidente sua origem e seu grau de realização mais elevado. É antes de mais nada a expressão de um pensamento que racionalizou o mundo antes de possuir os meios de transformá-lo. Essa visão evolucionista e racionalizante da dinâmica social obteve sucesso tal que foi adotada pela quase totalidade das nações recém-descolonizadas. A façanha foi estipular as sociedades ocidentais como referentes e desqualificar todas as outras trajetórias e formas de organização social. Assim, por uma espécie de teleologia retroativa, toda sociedade diversa das sociedades euro-americanas se tornava subdesenvolvida. A conversão da maioria das nações à paixão do desenvolvimento na vertente ocidental foi um trabalho bem-sucedido de negação da diferença. (Saar, 2021, p. 23).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Argumentamos que as experiências étnico-raciais exploradas no Brasil e nos EUA suscitam questões fundamentais de história e de natureza da ciência em variados contextos de ensino-aprendizagem, e de valorização da ciência como processo político e cultural, altamente racializado, em que o racismo é uma tecnologia social entranhada nas organizações lógicas coloniais, capitalistas e patriarcais para garantir poder (privilégios). São conflitos étnico-raciais que se orientam em uma interpretação cosmopolítica em que as relações sujeito-natureza-objeto estão em tensão com a noção moderna de desenvolvimento.
A ERER e os projetos diferenciados de Educação Escolar Quilombola e Indígena do Brasil, conquistas históricas dos Movimentos Sociais Organizados, precisam ser colocados em prática em todos os níveis da educação. Não podemos mais compactuar com a ideia de que vivemos em um país racialmente democrático e nem naturalizar o fato de que a escola e a cultura científica, potencializadas nas experiências das ciências físicas atreladas ao projeto ONU 2030, possam ser desconsideradas em relação aos corpos negros e indígenas. Será preciso construirmos diálogos interculturais, entendendo quais são os marcos civilizatórios envolvidos na comunicação entre as cosmologias racializadas: de um lado, as cosmologias negras, quilombolas e indígenas, altamente silenciadas e, do outro, a cosmologia moderna e contemporânea, que se pretende universal e homogênea. Tradição e Razão Moderna contrapõem-se, assim, em um diálogo de aproximação e deslocamento político para o empoderamento de alteridades que foram/são subalternizadas nas ciências físicas, um lugar predominantemente de pessoas brancas, masculinas e hetero-cis-normativas (Anteneodo et al., 2020).
Os conflitos étnico-raciais trazidos neste ensaio envolvem projetos científicos-tecnológicos em diferentes latitudes globais. Eles sumarizam confrontos de ordem epistêmica que devem ser analisados criticamente nos contextos de educação e divulgação das ciências físicas. Essas discussões não são de ordem identitária apenas, mas, antes de tudo, configuram questões filosóficas e epistemológicas profundas que implicam na efetivação da democracia participativa e da perspectiva inclusiva e não cosmofóbica. As contextualizações dos conflitos étnico-raciais que trazemos à luz neste texto são, para nós, oportunidades de deslocamentos e reflexões sobre as presenças e as ausências dos corpos negros, quilombolas e indígenas, em uma perspectiva Freireana do mundo, capazes de aventar processos de humanização da educação em ciências.
Se, por um lado, a Revolução Científica forjada na Europa materializou um conceito de ciência que se afina e se articula com a matemática e as tecnologias de um jeito visceral, por outro lado, no limiar do século XXI, em meio a tantos desafios sociais e econômicos que atravessam as existências negras, quilombolas e indígenas no Brasil, deve haver responsabilidade permanente na formação inicial e continuada de professores e divulgadores de ciências no sentido de construirmos outros futuros possíveis para o Brasil, cujo presente é permeado de passado. Esse é um compromisso ético revolucionário que está na base das cosmologias e das alteridades negras africanas, afro-brasileiras e indígenas.
Os objetivos e as bases metodológicas e epistemológicas dos movimentos sociais negros, quilombolas e indígenas estão em sinergia com os postulados básicos da Teoria Crítica da Raça. Esses movimentos são genuinamente educadores e nos oferecem, para as ciências físicas, olhares e perspectivas inovadores, democraticamente emancipadores para a construção de uma ciência mais humana. É preciso nos desinquietarmos e agirmos; construirmos outras narrativas nas ciências físicas, capazes de devolver humanidade aos corpos-territórios pensamentos do Brasil profundo.