JUSTIFICATIVA
O presente texto consiste em um artigo-parecer, elaborado a convite dos editores da Revista Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências. Ele foi escrito com base nas considerações tecidas em um dos pareceres emitidos para o artigo, que, ao ser publicado, foi intitulado A apresentação de conceitos em um livro de divulgação científica infantil: o caso Isaac no Mundo das Partículas.
Os comentários, críticas, sugestões e reflexões feitos a partir da leitura da primeira versão desse artigo, assim como o próprio conteúdo do mesmo, inspiraram a elaboração deste artigo-parecer, cujo objetivo geral é ampliar as discussões presentes no artigo original, lançando luz para aspectos que não foram abordados, mas que podem contribuir para o aprofundamento da temática relativa à divulgação científica para crianças por intermédio do livro Isaac no Mundo das Partículas, escrito por Elika Takimoto.
É pertinente mencionar que o gênero artigo-parecer é bastante recente na literatura da área de pesquisa em Educação em Ciências no Brasil, o que torna a escrita destas linhas ainda mais desafiadora e claudicante do que a de um artigo “convencional”. A Revista Ensaio, por intermédio de sua política editorial, materializada pelo intenso trabalho de seu corpo de editores, é uma das primeiras da área a lançar-se nessa empreitada, já com alguns artigos-pareceres publicados. Assim, essa oportunidade de escrita se configura também em uma grande responsabilidade.
Importa manifestar ainda, neste espaço inicial do texto, o respeito, a consideração e o apreço pelo ótimo trabalho desenvolvido pelos autores no artigo A apresentação de conceitos em um livro de divulgação científica infantil: o caso Isaac no Mundo das Partículas, sem o qual o presente texto não teria razão de existir.
INTRODUÇÃO
No fim dos anos 1990 e no início dos anos 2000, os estudos sobre divulgação científica para crianças começaram a aparecer em publicações da área de Educação em Ciências no Brasil (Gouvêa, 2000; Massarani, 1999, 2005; 2007). Na mesma época, as primeiras aproximações entre ciência e literatura foram feitas por Zanetic (2006). Relações entre divulgação científica e literatura, objeto de estudo do artigo de Araújo, Lima e Almeida (2023), ainda que presentes na área de pesquisa (Almeida, Massarani & Moreira, 2016; Ferreira & Raboni, 2013; Giraldelli & Almeida, 2008; Tomazi et al., 2009), são ainda pouco comuns, como afirmam os próprios autores do artigo original. Tal fato aponta para a relevância da publicação e abre caminho para que a temática possa ser ainda mais explorada, com o aprofundamento de reflexões, a ampliação de referenciais teóricos e de novos contextos de estudo, entre outros aspectos.
O artigo original de Araújo, Lima e Almeida (2023) tem como arcabouço teórico a perspectiva histórico-cultural. Ele se propõe a analisar as ideias e conceitos científicos que integram o livro Isaac no Mundo das Partículas, tendo como referência os conceitos potenciais, espontâneos e científicos, tal como formulados na obra de Vigotski (2018). Dentro desse recorte, segundo os autores, foi possível concluir que “o livro mobiliza diversas significações e estruturações lógico-abstratas (conceituais) para formalizar elaborações mais complexas e conceitos científicos” (Araújo, Lima & Almeida, 2023, p. 1).
Dado o caráter inovador do artigo, que, com base em conceitos vigotskianos, se dedica a analisar uma produção cultural humana que se coloca na interface entre divulgação científica e literatura, em especial, dedicada ao público infantil, ele suscita uma série de questionamentos e reflexões, dentre os quais são possíveis de serem destacados os que se seguem: que implicações o uso do livro pode ter na aprendizagem infantil de Ciências em contexto escolar? Considerando-se os resultados positivos obtidos com a análise do livro Isaac no Mundo das Partículas, como se pode fomentar a leitura ou a escuta da história do livro pelas crianças em contexto não-escolar? Como as significações e estruturações lógico-abstratas (conceituais) mobilizadas pelo livro contribuem para o desenvolvimento da formação de conceitos nas crianças? Para além da formação de conceitos, como o livro pode contribuir para outros aspectos do desenvolvimento infantil? Que outros elementos da perspectiva histórico-cultural poderiam ser mobilizados para a análise das contribuições do livro para o desenvolvimento infantil?
Essas são perguntas possíveis de serem geradoras de outras investigações e reflexões teóricas, e é um mérito do artigo de Araújo, Lima e Almeida (2023) apresentar resultados que podem ampliar as pesquisas sobre a temática. Em especial, a escolha da perspectiva histórico-cultural como referencial teórico do artigo original permite que outras contribuições vigotskianas possam ser incorporadas ao se analisar o livro Isaac no Mundo das Partículas, sobretudo no que se refere ao desenvolvimento infantil.
A formação de conceitos, um dos aspectos tipicamente humanos apontados por Vigotski (2018), foi a função psicológica superior enfatizada na análise do livro feita no artigo de Araújo, Lima e Almeida (2023). Todavia, outras funções psicológicas superiores podem ser pensadas em diálogo com um livro de divulgação científica destinado ao público infantil. Neste artigo-parecer, daremos ênfase a duas delas: o desenvolvimento da criatividade e da imaginação.
Fazemos essa delimitação porque tais processos são tipicamente humanos, se iniciam na infância e são fundamentais para a aprendizagem de ciências, como será explicitado na sequência do presente texto. Ademais, a própria história do livro Isaac no Mundo das Partículas se vale do mundo fantástico para explicar conceitos e fenômenos da Física de Partículas, que, ao não serem verificados pela percepção sensorial humana, dada a sua própria natureza, demandam atos imaginativos e criativos para serem entendidos, em especial, pelo público infantil.
O argumento central a ser defendido neste artigo-parecer é que, para além da formação de conceitos, o uso do livro Isaac no Mundo das Partículas junto ao público infantil pode colaborar para o desenvolvimento da criatividade e da imaginação das crianças. Para tanto, iremos nos basear fortemente na obra Imaginação e criatividade na infância (Vigotski, 2014) e dialogaremos com outros autores que também se valem da perspectiva histórico-cultural em seus trabalhos. Essa escolha teórica está alinhada com o artigo original, que dá base para este artigo-parecer, na direção de ampliar as potencialidades de análise do livro feitas previamente. A pergunta que norteou a presente investigação, que é de caráter teórico, foi a seguinte: como um livro de divulgação científica destinado ao público infantil (Isaac no Mundo das Partículas) pode colaborar para o desenvolvimento da criatividade e da imaginação das crianças na perspectiva histórico-cultural?
IMAGINAÇÃO, CRIATIVIDADE E EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS: ESCOLHAS TEÓRICAS
A criatividade e a imaginação têm sido objeto de interesse de estudos da Educação em Ciências, tendo como base diversos autores e variadas perspectivas (Barbosa & Batista, 2018; Samuel & Harres, 2020). Oliveira e Pontes (2016) apontam que é por intermédio da criatividade “que são formulados novos conceitos que vão desde os mais simples aos mais complexos, que podem, inclusive, revolucionar a ciência” (p. 61). Gurgel e Pietrocola (2011) discutem o papel da imaginação no contexto científico com base em relatos autobiográficos de Albert Einstein sobre o seu próprio trabalho como cientista. Os autores estendem essa compreensão para analisar atos criativos de estudantes de Ensino Médio em contexto escolar.
Na mesma direção, Garcia (2019) compreende a imaginação como recurso heurístico na construção do conhecimento científico. Também recorrendo a Einstein, o autor cita a apreciação do próprio cientista: “a imaginação é mais importante que o conhecimento. O conhecimento é limitado. A imaginação abrange o mundo inteiro” (Isaacson, 2007, p. 396). Já no que se refere à formação de professores, a tese de doutorado de Testoni (2013), associando Piaget e Vigotski, apresenta possibilidades de caminhos criativos trilhados por licenciandos em Física na elaboração e na realização de intervenções didáticas durante sua formação inicial.
Como se pode observar, são diversos os objetos de estudo e referenciais teóricos utilizados nos trabalhos sobre imaginação e criatividade na Educação em Ciências. No presente artigo-parecer, temos como base a perspectiva histórico-cultural, segundo a qual não se pode compreender o desenvolvimento humano sem que se faça referência ao contexto social, histórico e cultural em que o sujeito está inserido. Isso ocorre porque os processos mentais superiores do indivíduo têm sua origem em processos sociais e o desenvolvimento humano consiste na transformação dessas relações sociais em funções psicológicas superiores (Vigotski, 2018).
Assim, compreendemos o desenvolvimento da imaginação e da criatividade como constituindo o processo de humanização dos sujeitos. Isso significa que, assim como a memória lógica, a atenção voluntária, a abstração, a formação de conceitos (abordada no artigo original), entre outras, a imaginação e a criatividade se constituem como funções psicológicas superiores (Neves-Pereira, 2007). Tais funções têm origem sociocultural, o que significa que são desenvolvidas pela criança no contato com outras crianças, com os adultos e com os produtos do meio cultural e social no qual está inserida, ou seja, são mediadas por elementos mediadores (instrumentos e signos). No que tange à criatividade,
Vygotsky deu uma contribuição significativa para o campo da criatividade ao inseri-la em uma perspectiva de desenvolvimento humano (Kosulin, 1994; Lindqvist, 2003; Smolucha, 1992; Vygotsky, 2009). Falar de criatividade, na perspectiva de Vygotsky, inclui a assunção de que sua gênese atende aos mesmos princípios das outras funções psicológicas. Os contextos social e histórico ascendem como influentes no surgimento do potencial criador, dando origem a uma relação particular, onde a criatividade emerge da cultura, por meio das rotas desenvolvimentais construídas pelos sujeitos, e a ela é devolvida na forma de resultados criativos (Neves-Pereira & Branco, 2015, p. 162)
Ao se apropriar das produções humanas, a criança se desenvolve como ser humano, desvinculando-se cada vez mais de seus condicionantes biológicos. Em especial, no que se refere à imaginação, para Pino (2006), a produção imaginária remete “à capacidade criadora dos seres humanos, adquirida no processo evolutivo, que lhes permite assumir o rumo da própria evolução. Ela constitui um dos pilares do processo de humanização” (p. 48).
Entendemos um livro de divulgação científica para crianças como uma produção cultural humana que envolve aspectos artísticos e científicos. Lima, Ramos e Piassi (2020), em seus estudos sobre atividades didáticas na interface entre Arte e Ciência, também aproximam essas duas dimensões da vida humana por meio dos seguintes aspectos: imaginação, criatividade, percepção, afetividade e experiência.
No presente trabalho, apresentaremos os entendimentos vigotskianos sobre criatividade e imaginação na infância e iremos associá-los à leitura ou à escuta da história do livro de divulgação científica Isaac no Mundo das Partículas, ampliando as potencialidades da obra já apresentadas no artigo original.
DESENVOLVIMENTO DA CRIATIVIDADE E O LIVRO ISAAC NO MUNDO DAS PARTÍCULAS
A atividade criativa consiste na atividade humana criadora de algo novo, que pode ser tanto uma construção da mente ou do sentimento humano como uma representação de um objeto do mundo real (Vigotski, 2014). A atividade criadora é “aquela que permite aos seres humanos agir sobre a natureza e transformá-la em função de objetivos próprios e, pelo mesmo ato, transformarem-se a si mesmos” (Pino, 2006, p. 49).
Ainda que a atividade humana se constitua também de um aspecto reprodutivo, fortemente relacionado à memória e que permite que as experiências prévias sejam conservadas, facilitando a adaptação ao meio externo e a repetição de hábitos e condutas em situações semelhantes, ela não se reduz à reprodução de fatos e impressões já vivenciadas. Ao contrário, a atividade humana também apresenta uma função criadora ou combinatória, que permite ao ser humano, a partir das experiências passadas, criar e modificar o presente, projetando o futuro. Para Vigotski (2014),
[...] a imaginação como fundamento de toda atividade criadora manifesta-se igualmente em todos os aspectos da vida cultural, possibilitando a criação artística, científica e tecnológica. Nesse sentido, tudo o que nos rodeia e que foi criado pela mão do homem, todo o universo cultural, ao contrário do universo natural, é produto da imaginação e criação humanas (Vigotski, 2014, p. 4).
Essa compreensão da imaginação trazida por Vigotski (2014), ao não ser exclusiva da arte ou da literatura, mas também influenciar a prática científica (Silva, 2006), é compatível com a concepção de ciência como construção humana (Gurgel & Pietrocola, 2011; Moura, 2014), defendida por nós no presente artigo. Os conceitos, modelos, leis e princípios que caracterizam as explicações científicas são elaborações criativas de cientistas que se ocuparam do estudo dos fenômenos da natureza em um dado momento e contexto histórico, social e cultural (Gurgel & Pietrocola, 2011). Contudo, Vigotski (2014) alerta que a criatividade não é privilégio de grandes cientistas, músicos famosos ou pintores renomados:
existe de fato criatividade não só quando se criam grandiosas obras históricas, mas também sempre que o homem imagina, combina, altera e cria algo novo, mesmo que possa parecer insignificante quando comparado às realizações dos grandes gênios (Vigotski, 2014, p. 5, grifo nosso).
Assim, o ato criativo é eminentemente humano, e a própria vida cotidiana fornece as condições necessárias para a criação. Segundo essa compreensão da criatividade, portanto, os processos criativos já se manifestam desde a infância, por exemplo, nas brincadeiras em que as crianças simulam ser médicas, professoras ou ainda que cavalgam em cabos de vassoura ou fazem compras em mercados fictícios, com dinheiro inventado. Nessas brincadeiras, as crianças reelaboram de forma criativa as experiências vividas previamente, “combinando-as e construindo novas realidades segundo seus interesses e necessidades” (Vigotski, 2014, p. 6). Considerando essa perspectiva, a leitura ou a escuta da história do livro Isaac no Mundo das Partículas pode levar as crianças a criarem novas realidades, a partir de combinações entre experiências vivenciadas previamente e aspectos científicos presentes no livro.
O ato de criar tem em sua base algum tipo de inadaptação ou inadequação identificadas e/ou vivenciadas pelo sujeito. Por intermédio delas, surgem desejos e necessidades de se elaborar algo novo. Contudo, é importante destacar que tais necessidades não são somente subjetivas e interiores aos sujeitos, mas sim são orientadas por causas objetivas e condições exteriores. Por isso, Vigotski (2014) aponta para a importância do ambiente que circunscreve a atividade criativa humana. Em outras palavras, ele afirma que as condições concretas de um dado contexto histórico, social e cultural podem favorecer ou não o desenvolvimento da criatividade, de modo que “o anseio para criar é inversamente proporcional à simplicidade do meio” (Vigotski, 2014, p. 32). Assim, o desenvolvimento da atividade criativa humana é tanto maior quanto mais complexo e elaborado for o meio circundante.
Nessa linha, podemos inferir que a atividade de divulgação científica para crianças, em especial, a leitura ou a escuta da história do livro Isaac no Mundo das Partículas integra e complexifica o ambiente das crianças que têm contato com essa publicação, pois introduz, no universo infantil, termos e formas de pensar típicos da ciência.
Ainda que, quanto mais rico e diverso for o meio, mais favorável ele será para o desenvolvimento da criatividade, é importante destacar que a imaginação também pode ser compreendida como uma forma para ampliar a experiência humana. Por isso, ao ler ou ouvir a história narrada no livro Isaac no Mundo das Partículas, a criança imagina o que nunca viu e/ou o que ainda nem sabe que existe (por exemplo, átomos, elétrons, bóson de Higgs, energia, etc.). Além disso, a partir da descrição feita pelo livro, ela elabora uma representação para si sobre o que não existia em sua experiência pessoal, enriquecendo-a. Como se trata de conhecimentos apresentados de forma lúdica e cientificamente adequada, a criança pode acabar se aproximando, em algum grau e em alguma medida, da experiência histórica e social da humanidade expressa no conhecimento científico, o que contribui para o seu processo de humanização.
IMAGINAÇÃO E REALIDADE E SUAS RELAÇÕES COM O LIVRO ISAAC NO MUNDO DAS PARTÍCULAS
Segundo Vigotski (2014), a imaginação é fundamental para o desenvolvimento de atividades criadoras, nas mais variadas áreas do conhecimento humano (ciência, arte, técnica, etc.). Desde a infância, a imaginação se desenvolve tendo por base a combinação e a reelaboração criativas de experiências previamente vivenciadas. Para Carvalho (2017), na perspectiva vigotskiana,
[...] a imaginação desempenha um papel importante na direção da consciência dos diferentes fenômenos sociais e culturais, pois o afastamento da visão objetiva da realidade permite a produção de imagens que rompem com uma percepção presa aos limites da razão (Carvalho, 2017, p. 208).
No que se refere às relações entre fantasia e realidade, Vigotski (2014) reconhece quatro tipos de vinculação entre elas. No presente texto, iremos abordar dois deles, que nos pareceram mais pertinentes para a discussão sobre as potencialidades de um livro de divulgação científica para o processo de humanização das crianças.
Para Vigotski (2014), todo ato de imaginar é formado de elementos tirados da concretude da experiência humana pregressa. Disso deriva que
a atividade criadora da imaginação está relacionada diretamente com a riqueza e a variedade da experiência acumulada pelo homem, uma vez que essa experiência é a matéria-prima a partir da qual se elaboram as construções da fantasia (Vigotski, 2014, p. 12).
Em outras palavras, nesse primeiro tipo de vinculação entre imaginação e realidade, desenvolvido igualmente em crianças e adultos, a experiência pessoal anterior é a base do ato de imaginar.
Os conceitos e fenômenos da Física de Partículas, por sua própria natureza, são bastante complexos e abstratos. Compreender o que é uma partícula elementar, um elétron ou um átomo implica, assim, grande importância da imaginação. O livro Isaac no Mundo das Partículas aborda conhecimentos físicos de forma lúdica e dentro de um enredo pensado para o público infantil, envolvendo muitos diálogos, questionamentos, dúvidas e reflexões. Assim, conforme a história vai se desenvolvendo, tais conceitos e fenômenos, que não deixam de ser abstratos, adquirem algum grau de familiaridade e de concretude para a criança, na medida em que começam a fazer parte da sua experiência pessoal concreta. Portanto, o livro Isaac no Mundo das Partículas pode ser compreendido como possibilidade de ampliação da experiência da criança, na direção de criar bases para o desenvolvimento da sua imaginação, que será necessária à própria aprendizagem de ciências.
A segunda forma de vinculação entre fantasia e realidade que abordaremos neste texto, mais complexa que a primeira, é aquela em que o produto final da fantasia corresponde a um fenômeno da realidade. O sujeito, com base na experiência do outro, que foi compartilhada com ele (apresentada, descrita, explicada, etc.) ou na própria socialização em si, imagina algo que ocorreu na realidade, mas que não vivenciou necessariamente. No exemplo fornecido por Vigotski (2014):
quando eu, com base em estudos e relatos dos historiadores ou dos viajantes, imagino o quadro da grande Revolução Francesa, ou dos desertos da África, então, em ambas as situações, o panorama obtido é resultado da atividade criativa da minha imaginação. Ela não apenas reproduz o que foi por mim assimilado das experiências passadas, mas cria, a partir dessas experiências, novas combinações (Vigotski, 2014, p. 13).
Assim, nessa segunda forma mais elaborada, a imaginação torna-se um meio de ampliar a experiência humana, pois imaginamos o que não conhecemos previamente e imaginar nos permite conhecer.
Nesse sentido, a imaginação adquire uma função muito importante no comportamento e desenvolvimento humanos, transforma-se em meio para ampliar a experiência do homem porque, desse modo, este poderá imaginar aquilo que nunca viu, poderá, a partir da descrição do outro, representar para si também a descrição daquilo que na sua própria experiência pessoal não existiu, o que não está limitado pelo círculo e fronteiras estritas da sua própria experiência, mas pode também ir além das suas fronteiras, assimilando, com ajuda da imaginação, a experiência histórica e social de outros. Sob essa forma, a imaginação é condição absolutamente necessária de quase toda atividade intelectual do homem (Vigotski, 2014, p. 15).
Dada a importância do desenvolvimento da imaginação para o processo de humanização, é fundamental que a educação, formal ou não-formal, influencie nesse processo. Na grande maioria das situações educativas, tanto em aulas expositivas na escola como pela leitura ou escuta da história de um livro de divulgação científica, as crianças aprendem justamente com base na experiência compartilhada pelo outro, imaginando algo que aconteceu ou um fenômeno que ocorre, sem, necessariamente, vivenciá-los.
Contudo, essa segunda forma de relação entre imaginação e realidade é muito mais desenvolvida no adulto do que na criança, pois se desenvolve com o tempo, “muito lentamente e gradualmente” (Vigotski, 2014, p. 38-39). Portanto, ela tem especial importância para se pensar os processos educativos em geral, tanto formais como não-formais. Fazemos tal inferência porque assim como as atividades educativas podem contribuir para que a criança imagine aquilo que existe na realidade, mas que ela nunca vivenciou, devemos considerar também que essa relação entre imaginação e realidade ainda está em formação na criança, por isso, não devemos supor que ela sempre ocorrerá de forma plena nessa idade. Ao longo do processo de desenvolvimento da criança, a imaginação também se desenvolve, contribuindo para a sua humanização.
[...] na educação da criança a imaginação possui não apenas um significado parcial de exercício e estímulo de uma função isolada qualquer, mas tem um significado global que se reflete em todo o comportamento humano. Nesse sentido, o papel da imaginação no futuro não será menor do que aquele que tem no presente (Vigotski, 2014, p. 48).
Pensando na contribuição que a divulgação científica pode fornecer para o desenvolvimento da imaginação, no caso do livro Isaac no Mundo das Partículas, os conhecimentos científicos compartilhados de forma lúdica com as crianças são tentativas de ajudá-las a imaginar como ocorrem os fenômenos físicos e como entidades da natureza podem ser representadas e compreendidas com base no entendimento científico dado a elas. Assim, o produto da imaginação infantil, nesse caso, inicia sua caminhada em busca da compreensão da realidade, que gostaríamos que estivesse (e desejamos que esteja) circunscrita ao conhecimento científico sobre Física de Partículas. Contudo, reconhecemos que esse é um dos primeiros passos na direção desse conhecimento, não só pela complexidade do tema, mas pelas condições da própria criança no que se refere ao desenvolvimento da imaginação.
Assim, a imaginação infantil, segundo Vigotski (2014) e contrariando o senso comum sobre o tema, é mais pobre que a do adulto. Isso ocorre justamente porque a imaginação depende das experiências pregressas do sujeito (que são sempre mais ricas no adulto que na criança) e porque algumas relações entre imaginação e realidade ainda estão em desenvolvimento, como explicitado anteriormente. Todavia, ainda que a criança possa imaginar muito menos coisas que um adulto, ela “acredita mais nos produtos da sua imaginação e controla-os menos” (Vigotski, 2014, p. 38), o que faz com que aquilo que é irreal ou inventado faça mais parte do universo infantil do que do mundo adulto.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo-parecer traz à cena as contribuições de Vigotski (2014) sobre o desenvolvimento da criatividade e da imaginação na infância a fim de identificar contribuições do livro Isaac no Mundo das Partículas para o processo de humanização das crianças. Dentro da perspectiva histórico-cultural, este texto amplia as análises realizadas sobre o livro no artigo original e aponta para aspectos que podem auxiliar no entendimento do papel de um livro de divulgação científica dedicado ao público infantil.
Entendendo os processos de aprendizagem (tanto na educação formal como por intermédio da divulgação científica) como formas de apropriação das produções humanas historicamente acumuladas e concebendo o desenvolvimento da criatividade e da imaginação (que se iniciam na infância e vão até a vida adulta) como integrantes do processo de humanização dos sujeitos, foi possível sintetizar, com base nas análises realizadas, que a leitura ou a escuta da história do livro Isaac no Mundo das Partículas:
pode levar a criança a criar novas realidades, a partir de combinações entre experiências vivenciadas previamente e aspectos científicos presentes no livro;
integra e complexifica o ambiente da criança, pois introduz no universo infantil termos e formas de pensar típicos da ciência;
permite à criança imaginar o que nunca viu e/ou o que ainda nem sabe que existe e elaborar uma representação para si sobre o que não existia em sua experiência pessoal;
amplia a experiência da criança, na direção de criar bases para o desenvolvimento da sua imaginação, que será necessária à própria aprendizagem de ciências;
pode auxiliar a criança a imaginar como ocorrem os fenômenos físicos e como entidades da natureza podem ser representadas e compreendidas com base no entendimento científico dado a elas.
Pensamos que essa aproximação feita entre as contribuições vigotskianas para o entendimento da criatividade e da imaginação na infância e o papel de um livro de divulgação científica destinado a esse público corrobora com os trabalhos que apontam as potencialidades da aproximação entre Arte e Ciência (Lima, Ramos & Piassi, 2020) e se alinha com a defesa da importância de que as crianças tenham contato com produções culturais humanas que envolvam aspectos das ciências (Giraldelli & Almeida, 2008; Tomazi et al., 2009).
O presente trabalho também aponta para novas perguntas de pesquisa, tais como: que formas de intervenção, tanto na educação formal como não-formal, podem ser pensadas para se explorar o desenvolvimento da imaginação e da criatividade entre crianças com o uso do livro Isaac no Mundo das Partículas? Que representações as crianças elaboram para os conceitos presentes no livro? Como o desenvolvimento da imaginação e da criatividade na infância colaboram para o processo de formação de conceitos científicos?
Em suma, procuramos mostrar que a abordagem de conceitos e fenômenos da Física de Partículas de forma lúdica, em um livro de divulgação científica para crianças, não só pode colaborar diretamente para a aprendizagem de conhecimento científico, como explicitado no artigo original (Araújo, Lima & Almeida, 2023), mas também complexifica e expande o rol de experiências infantis, o que está na base do desenvolvimento da imaginação e da criatividade, as quais, por sua vez, são fundamentais para o próprio processo de formação de conceitos. Esse ciclo virtuoso pode inspirar novas pesquisas e reflexões sobre o papel da divulgação científica para o público infantil.