1 Introdução
Este artigo trata da interculturalidade na perspectiva da decolonialidade, tema que se insere na tendência contemporânea de investigações e reflexões sobre um “pensamento outro”. Tomando como referência e aporte teórico a rica produção do Grupo Modernidade/Colonialidade (GM/C), coletivo reunido pela primeira vez em 1998 na Universidad Central de Venezuela, analisa-se, dentre outras categorias, a educação intercultural como estratégia para a descolonização. Objetiva-se, com este texto, apresentar algumas ideias e pressupostos que apontem para medidas e proposições viáveis na busca de aproximação entre pesquisadores brasileiros e hispano-americanos, na perspectiva de uma educação intercultural crítica e descolonizadora.
Metodologicamente, este texto é resultado de estudo de cunho bibliográfico exploratório, cujas reflexões foram realizadas por um coletivo de pesquisadores. Nesta pesquisa abordam-se diversos assuntos como colonização/descolonização do saber, do ser e do poder, interculturalidade crítica e causas da dificuldade de inserção do Brasil na América Latina. Uma imersão na instigante literatura das últimas décadas permitiu vislumbrar a complexidade teórica da produção existente e da diversidade de experiências formativas implementadas nas diferentes nações latino-americanas. Esse percurso investigativo proporcionou o contato com ideias inspiradoras em termos epistemológicos. Assim, mesmo que com uma leitura seletiva realizada até o momento, percebe-se que pensar a interculturalidade na perspectiva da decolonialidade é tarefa complexa e desafiadora, mas possível e necessária no contexto atual.
O artigo está estruturado em quatro tópicos. O primeiro é esta Introdução. O segundo, intitulado Brasil: o colonizado pensando como colonizador, analisa a questão da identidade latino-americana, diferenças e semelhanças entre as nações e, principalmente, as causas da dificuldade de inserção efetiva do Brasil no continente. O terceiro tópico - Interculturalidade crítica e educação descolonizadora - apresenta referências conceituais relacionadas ao tema interculturalidade como estratégia para a descolonização, aprofundando a concepção de educação intercultural descolonizadora. O último tópico constitui as Considerações finais, trazendo as proposições para a descolonização do saber, do ser e do poder na América Latina, com ênfase na participação do Brasil nesse processo.
2 Brasil: o colonizado pensando como colonizador
“A colonização fabrica colonizados assim como fabrica colonizadores.” (MEMMI, 2007, p. 9) E mais: a colonização produz colonizados colonizadores. Em outras palavras, subalternizados se espelham nos dominadores e passam a pensar e agir como dominadores. E a América Latina é palco desses atores.
América Latina: um único espaço e um espaço único. Paradoxalmente, o espaço que aproxima é o espaço que separa nações. América Latina polissêmica, com suas semelhanças e diferenças na constituição das nações. América Latina descortinada pela modernidade e encoberta pela colonialidade. América Latina: qual é a sua identidade? Indígena, ibérica, afrodescendente, mestiça, híbrida… sui generis! E isso une e separa.
O sociólogo brasileiro Octávio Ianni (2000, p. 4) descreve a América Latina como um continente em busca de conceito, assim pensada:
Esta é a ideia: a América Latina somente se revela quando é visualizada como um vasto laboratório de modos de vida e trabalho, formas de sociabilidade e jogos de forças sociais, tiranias e democracias, compreendendo castas e classes sociais, etnias e racismos, línguas e religiões, monumentos em ruínas, façanhas e ilusões.
Esse laboratório é visto como uma realidade que experimenta situações complexas, múltiplas, heterogêneas, inventadas e até contraditórias. E, por tudo isso, olhado como um continente enigmático: “Este é o enigma: a América Latina se configura como uma realidade geo-histórica, político-econômica e sociocultural complexa, heterogênea, contraditória e errática.” (op.cit., p. 6)
Para Quijano e Wallerstein (1992, p. 583), “La americanidad ha sido siempre, permanece como tal hasta hoy, un elemento esencial en lo que entendemos como ‘modernidad’.” A América e o moderno sistema mundial nasceram juntos ao longo do século XVI; a América foi elemento constitutivo da economia-mundo capitalista. A América - esse “Novo Mundo” - se constitui no padrão ou modelo do sistema mundial, compreendendo: a) a colonialidade - expressa na hierarquia dos Estados em termos político, econômico e cultural, com subalternização das colônias em relação às metrópoles; b) a etnicidade - expressão cultural da colonialidade manifesta na categorização e hierarquização étnica, com subalternização dos “outros” em relação aos colonizadores; c) o racismo - segregação e discriminação dos “outros” por parte dos controladores, reforçando a etnicidade; d) a novidade - dimensão da modernidade como evidência da superioridade (o “novo”, o “moderno” era melhor). Dessa forma, na interpretação dos autores, a americanidade constitui sua própria contradição, mantendo a colonialidade. A América Latina tem permanecido presa, historicamente, a um emaranhado de questões relativas aos conceitos de nação, identidade e democracia. E, de modo geral, as Américas são o produto histórico da colonialidade.
Reichel (2007) aborda as representações sobre a identidade latino-americana na visão de intelectuais durante a década de 1960. Esses pensadores conceberam a América Latina como “nação latino-americana”, possuindo elementos políticos, econômicos, sociais e culturais comuns e, consequentemente, apresentando problemáticas comuns. Daí emerge a necessidade de colaboração entre as nações, imprescindível na busca de superação da colonialidade. Para Dorella (2015, p. 2), “[…] o desafio em pensar a América Latina implica levar em consideração a identificação de problemas em comum e as soluções pensadas em conjunto, tendo em mente a diversidade histórica e cultural que compõem esse variado espaço geográfico.” A pesquisadora considera que diversos motivos - de ordem econômica, política, social e histórica - resultaram em atitudes de distanciamento, dificultando a integração entre as nações latino-americanas. Todavia, ela destaca que “[…] as semelhanças do Brasil com a América Hispânica são maiores e mais profundas do que as diferenças, uma vez que eles são países formados pela mesma origem - a tradição ibérica.” (op.cit., p. 12) Essa tradição fica evidente na preponderância de elementos comuns como línguas neolatinas (português e espanhol), cultura latina, origem ibérica, religião católica e governos republicanos.
As dificuldades de uma efetiva inserção do Brasil na América Latina, evidenciadas pela discriminação das elites brasileiras em relação aos “outros” latino-americanos, têm origem em preconceitos históricos. Para Dorella (2015), o discurso nacionalista brasileiro destacara, historicamente, as ameaças da construção da identidade latino-americana às especificidades da nação brasileira. A historiadora postula que o discurso nacionalista - um discurso da diferença - leva ao sentimento de superioridade dos brasileiros em relação aos demais latino-americanos, comprometendo a integração das nações. Esse discurso nacionalista, ainda preponderante no Brasil, ofusca outras interpretações históricas e epistêmicas. Não obstante, “[…] pensadores contemporâneos propõem uma reflexão que visa privilegiar as contradições e complexidades das diversas influências que compõem o ‘espaço cultural latino-americano’, através de conceitos como transculturação, mestiçagem cultural e hibridismo.” (op.cit., p. 13) E nessa perspectiva ganham espaço e importância as reflexões sobre interculturalidade e “decolonialidade”.
Diversidade histórica, cultural e geográfica, múltiplas etnias e necessidades distintas constituem a América Latina. E nesse complexo continente realçam-se as diferenças entre o Brasil e a América Hispânica. Rivalidades históricas entre as metrópoles Portugal e Espanha foram incorporadas no pensamento da elite brasileira, notadamente no seio da academia. Dessa forma, diferenças de processos de colonização e de descolonização (independência política), bem como de organização estatal das ex-colônias, impregnam o imaginário da elite brasileira. Por exemplo, o Brasil independente se estrutura como monarquia - sob viés imperialista - enquanto as nações hispânicas nascem como repúblicas.
Para se entender a América Latina é necessário considerar a perspectiva de onde se olha. Impregnados de uma visão do colonizador, os latino-americanos, de modo geral, olham para si e para o mundo sob a perspectiva dos modelos europeus e/ou norte-americanos. Entretanto, há uma diferença marcante entre o Brasil e os demais países latino-americanos. Enquanto as nações hispano-americanas olham para si e para o mundo desde o local, o Brasil olha para o Atlântico Norte - Europa e Estados Unidos. Parece que a sociedade brasileira não se vê com olhos próprios. Mais do que isso: enquanto intelectuais de nações hispano-americanas já pensam desde o local, a elite brasileira continua fortemente voltada para o Atlântico Norte.
Segundo Dorella (2015), o intelectual Silvio Julio (1895-1984) buscou a aproximação do Brasil com os países hispano-americanos. Como os intelectuais brasileiros sempre tiveram a Europa e os Estados Unidos como referenciais, o historiador exaltava o reconhecimento que europeus e norte-americanos atribuíam à cultura hispano-americana, objetivando o mesmo para os brasileiros. Não obteve êxito.
O pesquisador Ricardo Santos, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em estudo sobre a integração latino-americana no século XIX, analisou a Carta da Jamaica (ou Carta Profética), escrita por Simón Bolivar em 1815. O autor destaca a integração política como fator essencial à sobrevivência dos estados latino-americanos, evitando a recolonização pelos europeus ou a intervenção dos Estados Unidos da América. Além disso, a aproximação política poderia significar a “[…] criação de uma nacionalidade latino-americana […], bem como da possibilidade de implantação da forma republicana e democrática nos governos regionais.” (SANTOS, 2008, p. 192) Essa integração política e a identificação numa nacionalidade latino-americana, todavia, não se concretizaram. Muito disso se deve ao posicionamento do Brasil:
O Brasil acabou ficando à margem das primeiras tentativas de integração por dois motivos centrais: a) adotou a forma de governo monárquica, diferenciando-se dos demais Estados latino-americanos que adotaram a forma de governo republicana; e b) não possuía as mesmas proximidades culturais dos demais Estados latino-americanos em razão da colonização portuguesa. (ibid.)
Somente na segunda metade do século XX é que surgiram movimentos integracionistas mais concretos, apontando para a necessidade de uma sólida integração das nações latino-americanas frente às ameaças externas. A herança colonial, presente no processo de construção do Estado e da sociedade brasileiros, e o posicionamento da elite brasileira em relação aos “outros” latino-americanos são fatores marcantes que explicam a dificuldade de inserção do Brasil numa identidade comum latino-americana. Tancredi (2016, p. 17) sintetiza:
A dificuldade encontrada pela sociedade brasileira em enxergar-se como parte da América Latina remonta à própria formação social e política do país e suas diferenciações se comparada à formação dos países da chamada América hispânica. As rivalidades entre ambas as metrópoles, o modo como o processo de colonização foi conduzido na região e seus posteriores processos de independência contribuíram para que Brasil e América hispânica se voltassem de costas um ao outro.
Os estilos diferentes de colonização implementados pelas metrópoles resultaram em distanciamentos de ordem geográfica, cultural e política entre as nações ibero-americanas. Igualmente, os processos de independência contribuíram para fomentar o afastamento entre o Brasil e as demais nações. O Estado brasileiro surge como monarquia, conservando a unidade de um vasto território sob a égide imperialista. Diferentemente, a América Hispânica se fragmenta em pequenas repúblicas, num processo marcado por lutas contra a metrópole. Como nação independente, o Brasil se volta aos países hegemônicos do Atlântico Norte, “de costas” para seus vizinhos. Trata-se de um posicionamento de colonizador em relação aos demais países latino-americanos.
Outro obstáculo à inserção efetiva do Brasil na América Latina é a ignorância sobre as semelhanças históricas e culturais. Os brasileiros não conhecem seus vizinhos, desconhecendo as semelhanças entre as nações. Para Tancredi (2016, p. 15), nas escolas brasileiras, “A oportunidade de contextualizar as similitudes históricas e culturais que o Brasil possui com seus vizinhos não é aproveitada.” Tal situação dificulta os processos de identificação e de integração do Brasil com as demais nações latino-americanas. Para a autora, “A educação brasileira precisa incluir o estudo da América em seu programa, visto que o próprio estudo da história do Brasil torna-se incompleto se não se entende (sic) o contexto da região em que está inserido.” (op.cit., p. 17)
De outra parte, é notório que a sociedade brasileira - de modo especial as classes dominantes, como a elite intelectual e os políticos de vertente conservadora - apresenta, ainda hoje, um estranhamento em relação aos demais países latino-americanos. Existe, ao que parece, uma negação de pertencimento à América Latina, ignorando semelhanças de toda ordem e discriminando o “outro”. Nota-se que a sociedade brasileira incorporou a colonialidade. Tal posicionamento gera dificuldade de inserção do Brasil numa identidade latino-americana.
Interessante a interpretação da pesquisadora Maria Ligia Prado (2005, p. 13), da Universidade de São Paulo, ao pensar a história brasileira a partir do conceito nação. Para ela,
A perspectiva de tornar as fronteiras da nação os limites naturais estabelecidos para a pesquisa histórica é ainda a escolha majoritária. A força persuasiva do nacionalismo continua presente e fortemente estabelecida tanto no cenário da política como também no mundo universitário, onde a centralidade das disciplinas referidas à história nacional é prova cabal dessa visão hegemônica.
O discurso nacionalista ainda é marcante nos campos político e cultural brasileiros, nutridos pela intelectualidade e, em sentido alargado, pela academia brasileira. Corroborando tal posição, Dorella (2015, p. 11) afirma que o discurso nacionalista no Brasil “[…] tende a menosprezar os projetos latino-americanistas, contribuindo, em grande parte, para que os intelectuais latino-americanistas brasileiros não tenham, no país, tanta expressividade.” Daí a importância de se aprofundar as discussões e reflexões nos coletivos acadêmicos.
Nesse contexto, ganha espaço a interculturalidade como estratégia para a descolonização.
3 Interculturalidade crítica e educação descolonizadora
Na perspectiva da interculturalidade, o que se entende por cultura? Pensando a partir de conceitos como “interstícios”, “espaço limiar” e “borda das fronteiras”, propostos pelo intelectual indo-britânico Homi Bhabha, concebe-se a cultura como algo outro, resultante de interações entre grupos sociais. Para o pensador,
O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com ‘o novo’ que não seja parte do continuum de passado e presente. Ele cria uma ideia de novo como ato insurgente de tradução cultural. Essa arte não apenas retoma o passado como causa social ou precedente estético; ela renova o passado, refigurando-o como um ‘entre-lugar’ contingente, que inova e interrompe a atuação do presente. (BHABHA, 1998, p. 27)
Nessa perspectiva, cultura é fluida, dinâmica. Uma cultura não é uma ilha distante, não é uma organização social desgarrada de uma totalidade. Os elementos originais e genuínos de uma cultura se cruzam com os de outras, constituindo o novo, híbrido ou mestiço. Conforme Silva (2006, p. 142),
Pensar sobre as culturas que vêm e que vão de um território para outro, que se instalam e que são reelaboradas em espaços distintos de sua origem primeira impele a considerá-las não mais como tradições conservadoras ou herdadas, mas manifestações culturais reelaboradas no contato com outras culturas. O resultado é um processo híbrido de produção cultural que, por sua vez, interfere na constituição das identidades dos sujeitos que as carregam e reelaboram.
Constata-se, pois, que uma cultura é algo dinâmico no tempo e no espaço, avançando em termos de conhecimento, mas mantendo suas peculiaridades na diversidade. Uma cultura não se extingue, muda por meio das interações.
Faz-se necessário, ainda, estabelecer a distinção entre multiculturalidade e interculturalidade. Conforme Silva (2006, p. 145), se utiliza o termo “[…] multiculturalidade para designar a realidade de grupos culturais distintos convivendo em uma mesma sociedade.” No entanto, convivência não é garantia de respeito aos diferentes ou de aceitação do “outro” em situação de igualdade. Já “[…] a interculturalidade se revela potencialmente como um projeto de intervenção a ser construído de forma intencional.” (id.ib.) Interculturalidade pressupõe intervenção na realidade multicultural, buscando um intercâmbio mutuamente enriquecedor.
No debate sobre a descolonização emerge a necessidade de se aprofundar novas orientações epistemológicas no âmbito educacional, ultrapassando os limites das visões monocultural e multicultural e penetrando no campo da interculturalidade. Nem homogeneização e universalismo da racionalidade hegemônica eurocentrista nem naturalização de discriminações veladas da multiculturalidade. A interculturalidade reconhece a multietnicidade e a pluralidade como atributos das sociedades e trabalha a diferença como fator enriquecedor e integrador. Conforme Figueiredo e Macedo (2014, p. 16), a educação intercultural busca “[…] fortalecer as identidades constituídas pessoal e socialmente, contribuindo na construção de processos de cooperação, respeito, solidariedade.” Educação intercultural reconhece a diversidade sociocultural, tendo no estranhamento a possibilidade de contribuir para a construção de um mundo “outro” viável. E aqui se insere a perspectiva da interculturalidade como proposta educativa de intervenção na realidade, possibilitando a aceitação do diferente, do “outro”. Nesse sentido, “[…] a educação intercultural preconiza a intervenção propositiva e desafiadora no trabalho com as diferenças culturais para além do reconhecimento.” (SILVA, 2006, p. 146)
É mister, pois, que se estabeleça o diálogo em nível de igualdade, sem a preponderância de uma cultura sobre outras.
Essa concepção vai ao encontro do pensamento da pesquisadora Catherine Walsh. É com seus estudos que o tema interculturalidade, inscrito no “projeto decolonial”, ganha importância. Para ela, interculturalidade é entendida como a possibilidade de diálogo entre as culturas, pensada na perspectiva crítica “[…] como proyecto político-social-epistémico-ético y como pedagogia decolonial […]” (WALSH, 2010, p. 76) A interculturalidade se apresenta como estratégia essencial para a superação da “colonialidade pedagógica” na América Latina. Conforme Walsh (2005b, p. 25 - tradução livre),
O conceito de interculturalidade é central à (re)construção de um pensamento crítico-outro - um pensamento crítico de/desde outro modo - , precisamente por três razões principais: primeira, porque é vivido e pensado desde a experiência da colonialidade […]; segunda, porque reflete um pensamento não baseado nos legados eurocêntricos ou da modernidade, e terceira, porque tem sua origem no sul, dando assim uma volta à geopolítica dominante do conhecimento que tem tido seu centro no norte global.
Interculturalidade implica posicionamento crítico frente à lógica eurocentrista que impregnou o pensamento latino-americano e, por conseguinte, todas as dimensões das sociedades. Em outras palavras, a interculturalidade propõe a transformação da realidade latino-americana. Trata-se de uma estratégia ética, política e epistêmica via educação, de resistência ao caráter universal do pensamento hegemônico. Assim, a interculturalidade deve ser entendida como projeto voltado à transformação estrutural e sócio-histórica para todos: “[…] la interculturalidad es práctica política y contrarrespuesta a la geopolítica hegemónica del conocimiento; es herramienta, estrategia y manifestación de una manera ‘otra’ de pensar y actuar.” (WALSH, 2005a, p. 47) Em consonância com o pensamento do GM/C, essa autora assinala que “[…] a interculturalidade assinala e significa processos de construção de conhecimentos ‘outros’, de uma prática política ‘outra’, de um poder social ‘outro’ e de uma sociedade ‘outra’ […]” (WALSH, 2006a, p. 21 - tradução livre) E mais: interculturalidade como processo e projeto pretende construir “modos outros” de poder, saber e ser. Interculturalidade significa, portanto, “[…] una forma ‘otra’ de pensar y actuar con relación a y en la modernidad/colonialidad.” (WALSH, 2006b, p. 35) Tal concepção é corroborada por Candau e Russo (2010, p. 166): “A interculturalidade é então concebida como uma estratégia ética, política e epistêmica. Nessa perspectiva, os processos educativos são fundamentais.” Por meio dos processos educativos, questiona-se a colonialidade e propõe-se uma sociedade “outra”.
Avançando da concepção de interculturalidade para a de educação intercultural - e trazendo para a situação no Brasil -, buscam-se os movimentos e/ou elementos que integram esse processo de reconhecimento da diversidade cultural e suas implicações. Na América Latina, em sentido amplo, a educação intercultural surge de movimentos reivindicatórios ligados à educação escolar indígena, às lutas de organizações de negros, à educação popular e à educação inclusiva, com reflexos em políticas públicas que resultam em reformas educativas. No caso brasileiro, as iniciativas emergem a partir da Constituição Federal de 1988. Não bastam, entretanto, reformas inócuas, que não incluem mudanças de mentalidade e de atitudes perante a sociedade. A educação intercultural requer posturas críticas com repercussões práticas. Conforme Candau e Russo (2010, p. 167),
A perspectiva crítica, em suas diferentes configurações, tem assumido a educação intercultural como um componente importante dos processos de transformação social e construção de democracias em que redistribuição e reconhecimento se articulem.
Essa perspectiva crítica implica uma abordagem ética, epistêmica e política, conforme as autoras. Nesse sentido, a educação intercultural exige políticas públicas de formação de professores para a diversidade, em busca de mudança nas relações sociais que transformem a realidade de cada sociedade. Mudança ética diz respeito ao reconhecimento do “outro” em igualdade de oportunidades, o que significa um reposicionamento da intelectualidade brasileira, especificamente. Mudança epistêmica remete para a descolonização no campo da educação, objetivando o questionamento à lógica do pensamento eurocêntrico e suas implicações socioeconômicas e consolidando uma episteme “outra” - a decolonialidade. Mudança política considera suplantar barreiras nacionalistas em prol de uma efetiva integração das nações, a despeito de suas realidades plurais.
Para Susana Beatriz Sacavino (2016), na América Latina o pensamento pedagógico é marcado por forte impacto colonizador e dominador, em cuja educação formal a colonização se manifesta via neoliberalismo. Os sujeitos são preparados sob a lógica produtivista e consumista, com privilégio do conhecimento “nortecêntrico”. Nesse contexto,
Querer pensar e praticar a descolonização num marco intercultural implica necessariamente assumir a complexidade e a diversidade de vozes, sujeitos, projetos e lugares culturais, sociais, políticos e econômicos produzidos nas sociedades atuais frente aos núcleos de desigualdade existente. (SACAVINO, 2016, p. 190)
O desafio maior de uma educação intercultural descolonizadora consiste em enfrentar o pensamento hegemônico monocultural e universalista, transformando esse caráter colonizador e dominador mediante o reconhecimento do pluralismo cultural e a promoção do diálogo intercultural. Na análise de Sacavino (2016), essa proposta de educação - intercultural e descolonizadora - compreende três aspectos a serem trabalhados: a descolonização dos conhecimentos (o saber), a descolonização das subjetividades (o ser) e a descolonização da história (o poder).
Como já referido, interculturalidade remete à transformação da realidade em todas as dimensões. No dizer de Sacavino (2016, p. 193), “A interculturalidade possui um significado intimamente ligado com a construção de um projeto social, cultural, educativo, político, ético e epistemológico voltado para a decolonialidade e a transformação.” Deve-se levar em consideração que não existe apenas a cosmovisão “nortecêntrica”; há visões de mundo e epistemologias outras em condições de diálogo paritário. Para a autora, nesse sentido, a interculturalidade “[…] representa a construção de um novo espaço epistemológico que inclui os conhecimentos subalternizados e os ocidentais, em uma relação tensa, crítica e mais igualitária.” (id.ib.) A prática pedagógica intercultural crítica e descolonizadora mobiliza e direciona o diálogo entre saberes, conhecimentos e pensamentos dominantes e “outros” na busca da transformação das realidades. Em síntese, “A interculturalidade crítica é uma proposta de relação e transformação juntas, de articulação das diferenças, de ruptura das relações verticais e construção de relações mais equitativas, igualitárias e horizontais.” (op.cit., p. 201)
A descolonização das subjetividades, para Sacavino (2016), constitui-se num processo de reconstrução das identidades desde olhares que valorizam os diferentes sujeitos mediante estratégias diferentes, específicas para cada contexto relacional. A descolonização do ser implica a mudança ontológica, reunificando sujeito-objeto (ser-realidade), marcadamente separados no conhecimento racionalista ocidental. Cabe à educação intercultural, portanto, promover a mudança do ser por meio da valorização de epistemologias outras e conhecimentos outros.
Ainda conforme Sacavino (op.cit., p. 198), descolonizar a história e o poder significa romper com o engessamento do modelo estipulado pela lógica da modernidade/colonialidade; significa desconstruir a “cultura do silêncio”, da dominação e da homogeneização, “[…] formando para a mudança, a participação, a transformação e a construção de sociedades verdadeiramente democráticas, humanas, justas e solidárias.” Nessa perspectiva, a educação intercultural promove mudanças significativas nas formas do conhecer, do ser e do poder.
Para a pesquisadora Daniela Valentim (2016, p. 155),
A educação intercultural crítica possui um significado intimamente ligado com a construção de um projeto social, cultural, educativo, político, ético e epistemológico voltado para a emancipação social que valoriza as demandas por igualdade e por diferença.
Ações afirmativas, implementadas a partir de movimentos sociais, têm induzido avanços em diversos campos, privilegiando os sujeitos sociais marginalizados. No entanto, ainda são muitos os desafios a serem enfrentados pela educação cultural em termos práticos, pois a sociedade brasileira continua fortemente marcada pela naturalização das desigualdades. O diálogo entre saberes e conhecimentos “outros” é, na visão da autora, o maior desafio epistemológico colocado para a academia.
Na perspectiva de análise da interculturalidade, a formação docente requer o desenvolvimento de competências interculturais como preparação para o diálogo intercultural. Segundo Figueiredo e Macedo (2014), o Relatório Mundial da Unesco de 2009 define competências interculturais como o conjunto de capacidades necessárias para o relacionamento entre os diferentes, especialmente as de natureza comunicativa. De outra parte, as autoras destacam que o referido relatório “[…] baseia-se na convicção de que a educação é essencial para combater a ignorância e a desconfiança que provocam os conflitos humanos […]” (FIGUEIREDO; MACEDO, 2014, p. 12) Acredita-se que cabe à academia a formação para o diálogo intercultural. Entretanto, conforme as pesquisadoras, o ensino nas universidades brasileiras ainda é marcado por comportamentos de segregação racial e econômica, hierarquização, diferenciação e discriminação em relação a indígenas, negros, mestiços e pobres, provocando desigualdade e exclusão.
Diante desse quadro, emerge a urgente necessidade de a academia assumir o propósito de descolonizar a educação. De que forma? Em primeiro lugar, mediante a conscientização de que o problema é real. Em segundo lugar, aceitando que é preciso e possível mudar a realidade. Em terceiro lugar, investindo na formação de professores para a interculturalidade. É função da academia - e das escolas de todos os níveis - formar sujeitos para viverem a interculturalidade. E isso compreende várias dimensões, tanto teóricas e/ou conceituais quanto práticas. Mudanças de ordem epistêmica (pensamentos outros), conceitual (currículo e conteúdo), comportamental (atitudes e postura) e pedagógica (práticas educativas e vivências).
Em interessante artigo, Candau (2016) analisa as relações entre escola, formação docente e interculturalidade. Para a pesquisadora, a escola é considerada locus privilegiado para a formação continuada de professores, primordialmente no que tange à reflexão e intervenção na prática pedagógica na perspectiva da interculturalidade. Vale destacar as principais características da interculturalidade crítica por ela elencadas:
[…] promove a deliberada inter-relação entre diferentes sujeitos e grupos socioculturais de uma determinada sociedade; neste sentido, esta posição se situa em confronto com todas as visões diferencialistas, assim como as perspectivas assimilacionistas; por outro lado, rompe com uma visão essencialista das culturas e das identidades culturais; concebe as culturas em contínuo processo de construção, desestabilização e reconstrução; está constituída pela afirmação de que nas sociedades em que vivemos os processos de hibridização cultural são intensos e mobilizadores da construção de identidades abertas, o que supõe que as culturas não são puras, nem estáticas; tem presente os mecanismos de poder que permeiam as relações culturais, assume que estas […] estão construídas na história, e, portanto, estão atravessadas por conflitos de poder e marcadas pelo preconceito e discriminação de determinados grupos socioculturais. (CANDAU, 2016, p. 346)
Nessa perspectiva, a autora toma como referência para seu trabalho o conceito de educação cultural cunhado pelo Grupo de Estudos Cotidiano, Educação e Cultura(s) (GECEC), assim expresso: “A Educação Intercultural parte da afirmação da diferença como riqueza.” (op.cit., p. 347) Para ela, as diferenças culturais não devem ser vistas como problema a ser resolvido, mas como vantagem pedagógica na construção de sociedades democráticas. Nesse sentido, as diferenças culturais são consideradas como riquezas a serem potencializadas por meio da promoção de processos sistemáticos de diálogo entre sujeitos, saberes e práticas, estas direcionadas à afirmação da justiça e da democratização da sociedade.
Educação intercultural, em síntese, passa pela descolonização do saber, do ser e do poder. Segundo Pinto (2012, p. 339), “Quando analisamos os programas das disciplinas de ciências sociais na academia, percebemos a reiterada tentativa de entender nossos problemas e contingências a partir de modelos exógenos, transplantados sem um compromisso com nossa realidade histórico-social.”
Percebe-se, pois, que as relações decorrentes dos processos de colonização impregnaram o colonizado do caráter de colonizador. As elites locais espelham-se nos saberes produzidos na Europa, notadamente o conhecimento científico, desconsiderando os saberes outros. É preciso consolidar a descolonização pedagógica mediante a descolonização das elites intelectuais e políticas.
4 Considerações finais
A colonização produz colonizados e colonizadores, bem como colonizados colonizadores. A América Latina, o Brasil de modo especial, ainda é palco desse processo que mais separa do que une. É preciso descolonizar para integrar, pois o processo de integração das nações latino-americanas pressupõe abertura para a negociação, para o diálogo entre iguais e desprendimento de interesses e discursos nacionalistas. A América Latina é complexa, plural e múltipla, com uma diversidade geográfica, histórica e cultural em que estão presentes semelhanças e diferenças de toda ordem. Semelhanças que apontam para a integração e uma identidade latino-americana; diferenças que afastam os Estados e as nações. O maior problema, entretanto, reside na dificuldade que tem o Brasil para compreender-se como membro da comunidade latino-americana. Enquanto as nações hispano-americanas olham, pensam e falam desde seu locus, o Brasil ainda está voltado para o Atlântico Norte (Europa e Estados Unidos). As elites intelectuais e políticas brasileiras estão impregnadas do pensamento colonizador, e sob essa ótica olham para seus vizinhos. O Brasil precisa conhecer melhor as nações hispano-americanas, identificando e valorizando as múltiplas semelhanças que aproximam, bem como privilegiando as diferenças como elementos positivos da diversidade.
Entende-se que a interculturalidade crítica, mais especificamente a educação intercultural, seja o caminho para a descolonização e a efetiva integração da América Latina. A interculturalidade crítica constitui um projeto de transformação das relações em todas as instâncias, enfrentando processos discriminatórios e promovendo o diálogo intercultural.
A educação intercultural descolonizadora, notadamente, compreende três aspectos a serem trabalhados: a descolonização dos conhecimentos (o saber), a descolonização das subjetividades (o ser) e a descolonização da história (o poder). Evidentemente que essas três dimensões estão interligadas num tecido único - a colonização do pensamento, do imaginário. Daí a importância da educação intercultural como estratégia para a descolonização.
Considerando o quadro descrito neste texto, propõem-se as seguintes medidas para a descolonização do saber, do ser e do poder na América Latina:
a) formação continuada dos professores como importante elemento potencializador da educação intercultural;
b) conhecimento do mundo cultural dos estudantes;
c) valorização das vivências, experiências e histórias de vida dos estudantes;
d) problematização das formas de construção dos conhecimentos escolares;
e) interculturalização do currículo, da escola e das práticas educativas no cotidiano da sala de aula;
f) preparação da academia (especialmente as universidades brasileiras) para interação com alteridades étnicas;
g) reconhecimento da necessidade de diálogo entre universidade e conhecimentos tradicionais (saberes “outros”);
h) superação da centralidade que ocupa a racionalidade moderna na academia brasileira;
i) potencialização da descolonização do ser e do poder em todos os espaços e dimensões;
j) interculturalização e descolonização da educação superior;
k) incentivo a intercâmbios e debates na América Latina.
Esse é o conjunto de medidas que, assim nos parece, podem contribuir para a descolonização da América Latina por meio da interculturalidade crítica. Cabe à academia o papel de aprofundar as reflexões e avançar na busca de uma integração solidária via educação.