Introdução
Em outubro de 2010, o sociólogo Jens Qvortrup participou de um seminário de estudos avançados cujo propósito era abrir um ciclo de investigações sobre os temas crianças e infância, e que se estenderia, tal como de fato se estendeu, até 20161. O objetivo principal daquela jornada de seis anos que se abria era o de conjugar esforços de pesquisa aproximando diferentes áreas das chamadas ciências humanas de modo a obter, ao final, informações que pudessem indicar como e em quais circunstâncias atores acadêmicos mobilizam a autoridade argumentativa de seus métodos para expor, definir e tomar posição diante do tema vulnerabilidades infantis.
Discutia-se o quanto a configuração de cada campo - no sentido com o qual Bourdieu faz de campo um conceito político por excelência - resultava na construção de roteiros acadêmicos e intelectuais específicos, o ‘lugar de fala’ dos porta-vozes de crianças (BOURDIEU, 1999). Se compreender demarcações de territórios acadêmicos, modos de legitimação institucional e ações de interdito entre intelectuais os mais diversos significa procurar pela construção social da autoridade de quem argumenta, significa também aproximar a lupa para ampliar a visibilidade a respeito dos modos possíveis de acompanhar a escuta de crianças. Naquela ocasião, Qvortrup apresentava um estudo sobre a presença do tema diversidade nas pesquisas com crianças, focando a realidade europeia, e expressava sua expectativa de que o ciclo de pesquisas que ali se abria pudesse demonstrar, quando concluído, “o perfil de quem se aproxima da criança” para fazer pesquisa no universo das ciências humanas e sociais.
Essa é a intenção deste artigo. Queremos compartilhar o perfil de pesquisador(a)2 que foi identificado no universo de procura eleito.Os resultados mais amplos obtidos nesse percurso de pesquisa, que se desdobra em várias ações institucionais, têm sido divulgados de forma variada. Os modos de divulgar variam porque o tema vulnerabilidades infantis revelou e revela nuanças e distinções conforme a perspectiva de busca (FREITAS; PRADO, 2016). Especificamente neste escrito estamos compartilhando um achado expressivo: a presença predominante de mulheres na escuta de crianças, considerando as delimitações que serão expostas no transcorrer da análise.
A partir da segunda metade do século XX intensificou-se o processo de relativização, crítica ou mesmo recusa em relação às narrativas que, dispostas a descrever a sociedade e o social, não prestavam reconhecimento à participação e à voz de grupos minoritários. A variada e combativa crítica que se instala no âmbito das ciências humanas e sociais se apropriava da perspectiva minoritária, não em termos numéricos, mas fundamentalmente de poder. A construção histórica e cultural de qualquer sociedade passa a ser percebida também como construção ideológica e o lugar de classes sociais subalternizadas, mulheres, negros, indígenas e pessoas com deficiência crescentemente foi reivindicado com a exigência de reconhecer em tais atores protagonismo e voz própria. Estudos culturais, deslocamentos e aberturas as mais diversas aos domínios da antropologia e, nos últimos trinta anos, os disability studies são exemplos de quanto determinados campos de pesquisa se fizeram com base na afirmação de identidades e no questionamento da legitimidade de se pronunciar em nome de outrem (DAVIS, 2014).
Porém, as palavras criança e infância predominantemente permaneceram numa espécie de repouso analítico, uma vez que no transcorrer do século XX a construção de sentido e significado a respeito de ambas muitas vezes foi tomada como ‘decorrente’, ‘derivada’ do conteúdo de palavras-chave, no sentido que Williams (2010) emprega quando analisa a presença de palavras mais visíveis na construção da sociedade tais como ‘desenvolvimento’, ‘vulnerabilidade’, ‘escolarização’. Chris Jenks (2002, p. 188) reconheceu aspectos desse repouso analítico quando comentou que:
A história das ciências sociais tem […] dado provas de uma crítica e sistemática desmistificação das ideologias dominantes do capitalismo em relação à classe social, do colonialismo em relação à raça e do patriarcado em relação ao gênero; contudo, pelo menos até agora, a ideologia do desenvolvimento tem-se mantido relativamente intacta no que diz respeito à infância.
Ao longo da história das ciências sociais, pouca atenção foi destinada à infância enquanto matéria de interesse em si mesma (JAMES; PROUT, 1997; JENKS, 2002). A criança, há muito tempo, faz parte da pesquisa acadêmica, principalmente na área da psicologia, mas, em geral, na condição de objeto a ser observado, avaliado e interpretado. É nesse sentido que autores como James e Prout (1997) afirmam que a história dos estudos sobre a infância nas ciências sociais e humanas é caracterizada mais propriamente pelo silêncio das crianças do que pela ausência delas.
A atenção dos sociólogos esteve, durante quase todo o século XX, voltada para as instituições socializadoras (a escola e a família), reservando às crianças o lugar de objeto e consequência do processo de socialização (JENKS, 2002; SIROTA, 2001). Para Prout (2010), isso se relaciona à barreira entre cultura e natureza que a modernidade erigiu, alocando a infância no reino da natureza e, por extensão, ao escrutínio das ciências biológicas e médicas. A ideia era a de que apenas a partir da socialização as crianças passariam a fazer, efetivamente, parte da sociedade. Elas, portanto, antes de serem ‘socializadas’ não teriam nada a dizer que valesse a pena ser ouvido, numa espécie de declaração de incompletude desvalorizadora.
Insatisfeitos com a maneira com que as crianças usualmente vinham sendo consideradas, não somente na sociedade, mas também nas ciências sociais e humanas, investidos de autoridade epistemológica para desvelar o social, pesquisadores de diferentes países (especialmente de países do hemisfério norte como França, Inglaterra, Portugal, Alemanha e países escandinavos) e de diversas origens disciplinares (sociologia, história, antropologia, geografia, educação, entre outras) engajaram-se na construção dos estudos sociais da infância, um campo de conhecimento que, em síntese, partilha a visão das crianças como atores sociais (CORSARO, 2011) e a concepção da infância como categoria estrutural subordinada da sociedade (QVORTRUP, 2015) e como construção social (JAMES; PROUT, 1997). Além de provocar transformações nos modos de se olhar para a infância e as crianças, tais estudos têm impactado também na eleição de estratégias para compreendê-las, ao privilegiá-las como unidade direta e primária de análise. Emerge a intenção de consolidar um campo de pesquisa assumidamente disposto a entender a infância sob a ótica das próprias crianças.
Esse processo, entretanto, deparou-se com desafios tão singulares quanto a própria intenção de consolidar os estudos da infância. Entre tais desafios ganhou relevo a dificuldade de se romper com certa lógica adultocêntrica presente nas relações entre pesquisadores e crianças (DELGADO; MÜLLER, 2005; FERREIRA, 2008; PRADO, 2011). A isso se somou o esforço reconhecido e necessário de se delinear a “escuta de crianças” (CRUZ, 2010; OLSSON, 2013), e reconhecer, tal como alguns antropólogos fizeram, que são informantes com suficiente densidade para expressar conteúdos que indicam a singularidade de suas presenças (GEERTZ,2010; GOFFMAN, 2014).
Esses desafios se associaram à intenção de inverter uma lógica dominante e deslocaram o foco da suposta dificuldade da criança: em vez de restringir a reflexão, por exemplo, à capacidade cognitiva e linguística das crianças, os estudos sociais da infância se propuseram a avançar no debate indagando simultaneamente sobre as capacidades do adulto de: a) escapar da lógica adultocêntrica que rege as relações entre adultos e crianças; b) criar metodologias e técnicas de escuta das vozes e demais manifestações infantis; c) assumir o posicionamento ético-político de considerar a criança como ator social e não mero objeto de pesquisa.
A ampliação da escuta de crianças nas pesquisas acadêmicas representa uma conquista para elas. Por outro lado, traz consequências para as pesquisas em geral, pois incluí-las não significa simplesmente aumentar o número de pessoas ouvidas; significa, antes, reconhecer saberes que poderão somar-se aos dos adultos pesquisadores e colocá-los, inclusive, em questão. Abrem-se, assim, perspectivas, que sem as crianças não teríamos acesso.É nesse sentido que as pesquisas com crianças evocam questões equivalentes àquelas que já foram levantadas com respeito a outros estratos sociais, especialmente os que têm acumulada experiência histórica de enfrentamento e resistência a subordinações. Pode-se verificar, por exemplo, a presença de estudos feministas como referência analítica para autores que pesquisam com crianças (MAYALL, 2002; DELGADO; MÜLLER, 2005; CASTRO, 2008).
Mas nem tudo é aproximação e convergência. Destacam-se, tam bém, distanciamentos e clivagens, pois as relações de poder manifestamse de maneira peculiar no caso das pesquisas com crianças. E a primeira questão a apontar nesse sentido é que, ao contrário do que acontece no processo em que outros grupos subordinados ou minoritários emergem como sujeitos da e na pesquisa, em relação às crianças, ainda que ganhem o estatuto de sujeito e respaldem conceitos densos como o de ‘agência’, elas, as crianças, não emergem como pesquisadores, mas sim como pesquisadas. Pois, ainda que o seu lugar nas pesquisas venha sendo revisto por adeptos de abordagens como a da pesquisa participante (ver, por exemplo, ALDERSON, 2005), quem propõe e, ao final, redige (e assina) o texto da pesquisa são pesquisadores adultos. Em razão disso, não é nada desprezível a importância de se conhecer quem são os autores das pesquisas com crianças. Torna-se estratégico mapear quem tem se interessado em ouvilas. Bem como é importante identificar quem tem procurado amplificar suas vozes no contexto acadêmico.
É o que este artigo se propõe a discutir, trazendo pistas que buscam atender a um chamado que desde a última década do século XX foi formulado por Rocha (1999), que interpelava pesquisadores brasileiros a reconhecer a escassez de informações sobre autores que pesquisam o universo da infância. Concordamos inteiramente com a autora, reconhecendo ser importante explorar o universo em que pesquisador e pesquisa se configuram reciprocamente.
Da estruturação e desenvolvimento da pesquisa
Realizando esforço analítico para compreender a “ciência em ação”, Latour (2011, p. 49) percebeu que o “status de uma afirmação depende de afirmações ulteriores.” Cada objeto de pesquisa é também um processo em permanente “retomada”, pois “ciência pronta” e “ciência em construção” somente ganham sentido, tanto em termos antropológicos quanto políticos e ideológicos, quando entendidas em suas “estáveis instabilidades”, ou seja, a ciência se mostra pronta quando é percebida em construção e se projeta como pronta à medida que se constrói.
Em sua pesquisa de doutorado (PRADO, 2014) e no desdobramen to dela em seu pós-doutorado (em andamento, sob a supervisão de M. C. Freitas), Prado realizou extensa análise sobre artigos acadêmicos disponíveis eletronicamente que pudessem atender aos seguintes critérios: a) relatar pesquisas com a participação de crianças desenvolvidas no Brasil contemporâneo; b) não manifestar objetivo explícito de avaliá-las; c) ter sua publicação delimitada entre os anos 2000 e 2016; d) ter sido publicado em revista brasileira, interdisciplinar ou das áreas de Antropologia, Educação, Psicologia ou Sociologia, necessariamente classificada com Qualis A pela CAPES; e) e ter, pelo menos, um dos autores graduado em uma das quatro áreas mencionadas.
Após a realização da busca de artigos utilizando os abrangentes descritores ‘criança’ e ‘infância’ nos 65 periódicos que atendem aos critérios estabelecidos, foi possível localizar 2288 artigos. Seus títulos, resumos e alguns trechos foram lidos para verificar se atendiam aos critérios pré-definidos. Quando necessário, pesquisou-se também o currículo dos autores na Plataforma Lattes para confirmar se eram pesquisadores graduados em uma das quatro áreas enfatizadas pelo estudo. A aplicação desses procedimentos consolidou a matéria analisável em 259 artigos.
As técnicas da análise de conteúdo, tal como sistematizadas por Bardin (2002) e Rosemberg (1981), serviram de apoio para a descrição organizada e sistemática dos conteúdos dos textos. Categorizou-se, entre outros aspectos, o ano de publicação dos artigos, o local de realização das pesquisas, os temas, as idades das crianças envolvidas e as áreas de conhecimento, o sexo e a vinculação institucional dos autores.
Entre tantos aspectos que a pesquisa revelou, queremos chamar atenção para um dado de expressiva relevância, que é a presença de mulheres no universo brasileiro de pesquisas com crianças.
Mulheres pesquisando a infância
A despeito das intensas transformações que temos assistido ao longo dos últimos anos nos debates nacionais e internacionais sobre pesquisa com crianças, a análise da produção acadêmica brasileira veiculada pelas revistas mais bem avaliadas pela CAPES nas quatro áreas aqui enfatizadas mostra permanências no que se refere ao perfil de pesquisadores tradicio nalmente associados à pesquisa com crianças e sobre infância: eles são, em sua imensa maioria, mulheres, psicólogas e possuem vínculo institucional com universidades das regiões Sudeste e Sul do país.
O procedimento de escolha dos artigos, restringindo o veículo de publicação às revistas mais bem classificadas pela CAPES, orientou-se para a produção acadêmica brasileira mais reconhecida por pesquisadores e agências de fomento. Os artigos do corpus foram publicados por revistas consideradas de elevada qualidade e escritos por autores com alta titulação, contexto que possibilita a maior visibilidade dos temas tratados, bem como de suas abordagens. No que se refere à titulação dos autores, por exemplo, 87,7% dos artigos foram escritos por pelo menos um doutor e 10% deles por pelo menos um mestre. Além disso, a grande maioria dos artigos (88,4%) foi escrita por, ao menos, um professor universitário, vinculado, em geral, a universidades públicas (84,3%).
Tomados apenas os artigos escritos por professores universitários e considerando-se o autor de maior titulação de cada artigo (ou o primeiro, no caso de empate), observou-se que os artigos foram escritos principalmente por professores de universidades da região Sudeste (46,3%); Sul (26,2%); e Nordeste (16,2%). Apenas 9,2% dos artigos são de autoria de professores de universidades da região Centro-Oeste e somente 2,2% dos artigos foram escritos por professores vinculados às universidades da região Norte. Tal concentração regional, apesar de já ser bastante conhecida (ver, por exemplo, SILVA; LUZ; FARIA FILHO, 2010; e NASCIMENTO et al., 2013), não deixa de impactar, entre outras razões por significar exclusão de crianças que habitam as regiões Centro-Oeste e Norte (ver PRADO, 2017).
Os 259 artigos analisados foram escritos por 479 autores, graduados em sua maioria em Psicologia. Assim, 77,2% dos artigos contam com psicólogos entre seus autores, 30,1% contam com pedagogos e apenas 6,2% com cientistas sociais (sociólogos ou antropólogos)3. Não encontramos, portanto, na produção brasileira analisada, o mesmo destaque para sociólogos e antropólogos observável, nos últimos anos, na produção acadêmica internacional sobre crianças e infância. Aqui, a escuta de crianças nas pesquisas das ciências sociais e humanasse restringe predominantemente à Psicologia e, de forma secundária, à Pedagogia.
A predominância de psicólogos e a presença, também significativa, de pedagogos no corpus se traduzem na extrema concentração de mulheres: elas são 87,5% dos autores. Tomando os artigos, e não os autores como unidade de análise, verifica-se que 76,5% deles são de autoria exclusiva de mulheres, 20,8% são de autoria conjunta entre mulheres e homens e apenas 2,7% (7 artigos) contam somente com homens entre seus autores. (Quadro 1)
Gênero | Número de artigos | % |
---|---|---|
mulher | 198 | 87,5 |
mulher e homem | 54 | 20,8 |
homem | 7 | 2,7 |
Total | 259 | 100,0 |
Fonte: Periódicos classificados como Qualis A nas áreas de Antropologia, Educação, Interdisciplinar, Psicologia e Sociologia. Elaboração dos autores.
Além do predomínio de mulheres entre psicólogos (SUEHIRO et al., 2007) e pedagogos (MARON, 2010), tal concentração pode ser explicada por duas outras ordens de circunstâncias: pela preponderância de mulheres entre estudantes de graduação e de pós-graduação brasileira (ROSEMBERG, 2008) e pelo fato de a temática relacionada à infância na prática profissional, acadêmica e ativista vir mobilizando mais mulheres (CALAZANS, 2000; BACCINI, 2000; PRADO, 2009).
Calazans (2000) sugere que a maior concentração de mulheres na temática relacionada à infância permite também entender aspectos singulares relacionados ao tema ‘subordinação da infância’. A autora argumenta que tal área pode ser vista como configurando espaços privilegiados para a inserção profissional de grupos sociais minoritários, por apresentarem-se como campos de baixa competitividade e como espaço de experimentação anterior à inserção profissional relacionada a temas mais concorridos. Temos o campo instável, como pensa Latour (2011) e também em disputa, como pensa Bourdieu (1999).Yamamoto e colaboradores (1999), tomando a produção acadêmica brasileira de psicólogos como fonte, e Prado (2009), partindo de artigos de psicólogos sobre trabalho infanto-juvenil, observam que, apesar da predominância de mulheres nessas profissões, são os homens que apresentam maiores índices de produtividade, o que parece ainda estar associado ao impacto negativo da dinâmica da vida privada no desenvolvimento da carreira das mulheres e também a barreiras institucionais (SANTOS, 2004; GUEDES; AZEVEDO; FERREIRA, 2015).
Nesta pesquisa, contudo, a diferença foi pouco expressiva: 18,3% dos autores homens publicaram mais de um artigo do corpus; e entre as autoras a taxa foi de 12,2%. Cabe considerar que apenas mulheres publicaram mais de dois textos: 11 autoras assinam entre três e cinco artigos. Seria possível, com base nesses dados, indagar se haveria distinção entre o perfil das crianças investigadas por mulheres e por homens? Ou se haveria distinção entre os temas enfocados nessas pesquisas?
No sistema educacional brasileiro, os professores homens dificilmente são encontrados nas turmas com crianças pequenas. Como apontam os dados do Ministério da Educação e do INEP (2009), desde a primeira década do século XXI a presença masculina de professores é maior no Ensino Médio (35,6%) do que em creches (2%), pré-escolas (4%) ou em anos iniciais do Ensino Fundamental (9%). O mesmo ocorreria na produção acadêmica? Segundo a análise dos artigos do corpus, não.
Como se mostra na Figura1, que não leva em conta os artigos classificados em categorias mistas em relação às idades das crianças pesquisadas, há acentuada concentração,entre os artigos, de relatos de pesquisas desenvolvidas com crianças entre 6 e 10 anos de idade. Tal tendência é mais evidente entre os textos escritos por mulheres, mas também pode ser observada nos artigos escritos por autores homens e naqueles de coautoria entre homens e mulheres. O que é relevante, no entanto, para a consideração de possíveis diferenças entre as pesquisas com crianças desenvolvidas por mulheres e por homens, no que diz respeito às idades das crianças pesquisadas, é a observação de que nenhum artigo de autoria exclusivamente masculina relata pesquisa em que crianças menores de 2 anos foram escutadas.
No que diz respeito aos temas enfocados pelas pesquisas relatadas nos artigos escritos por mulheres e por homens não foram constatadas distinções importantes. Os poucos textos assinados por autores homens tratam de assuntos bastante variados entre si. Todavia, a questão sobre possíveis distinções temáticas não deve se esgotar aqui, pois um número tão pequeno de artigos escritos por autores homens (sete) é, sem dúvida, insuficiente para análises comparativas mais elucidativas.
Fonte: Periódicos classificados como Qualis A nas áreas de Antropologia, Educação, Interdisciplinar, Psicologia e Sociologia. Elaboração dos autores.
Outro dado observado na análise dos artigos, que vale ser mencionado por evidenciar o persistente entendimento de que crianças seria assunto de mulheres, refere-se ao fato de que quando, além das crianças, outros atores foram envolvidos como informantes nas pesquisas relatadas, eram quase sempre mulheres, mães ou professoras. Tendo isso em vista e lembrando que, como sintetizam James e Prout (1997), um dos paradigmas centrais dos estudos sociais da infância é a consideração de que a idade, como variável de análise social, não pode ser totalmente separada de outras variáveis como gênero, torna-se necessário discutir articulações possíveis entre idade e gênero ou, mais precisamente, entre as posições das crianças e das mulheres, a fim de iluminar o entendimento do que significa para os estudos da infância e, de forma menos direta, para a realidade concreta das crianças, ter suas vozes amplificadas e mediadas nas pesquisas quase exclusivamente por mulheres.
Entrelaçamentos entre relações de idade e relações de gênero
O conceito de gênero pode ser pensado, como sugere Scott (1990), a partir da conexão de duas proposições fundamentais: gênero como elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos; e gênero como uma forma de dar significado às relações de poder. De forma análoga, é possível pensar também no conceito de geração como constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre as idades e como mais uma forma primária de dar significado às relações de poder.
É no bojo da complexidade da dinâmica social que desigualdades de gênero, idade, raça e classe tornam-se elementos imprescindíveis para delinear as esferas econômica, política e cultural. Trata-se de um tecido cuja tessitura desenha hierarquias absolutamente não naturais, mas socialmente construídas. Como defende Rosemberg (2006; 2011), tais hierarquias não devem ser entendidas a partir de um modelo cumulativo, sendo mais bem interpretadas como dimensões que se articulam de forma complexa e que não se reduzem umas às outras. Há uma variedade de trabalhos no campo dos estudos sociais da infância que exploram articulações entre as categorias idade e gênero, sendo possível identificar entre eles ao menos três grandes eixos de análise.
O primeiro trata das relações entre os estudos feministas e os estudos sociais da infância. Insere-se aí o artigo de Marchi (2011), que reconhece similaridades entre as resistências enfrentadas no passado para o estabelecimento do gênero como categoria de análise e as que vêm sendo enfrentadas hoje para a consolidação da infância como categoria sociológica conceitualmente autônoma. Outros exemplos são as análises de Hendrick (2005) e de James (2009) que concebem o movimento de mulheres como propulsor de um novo olhar para as crianças, na medida em que colocam em questão visões de mundo e estruturas sociais que privilegiam grupos humanos específicos. Rosemberg (2011), por outro lado, considera que a contribuição desse movimento à crítica sobre o lugar das crianças na sociedade ocidental moderna deve ser vista com ressalvas. Analisando movimentos sociais brasileiros contemporâneos que se mobilizam pela igualdade de oportunidades sob a perspectiva de gênero e de raça/etnia, a autora chama atenção para o adultocentrismo que os caracterizam. As crianças, no seu entender, aparecem “necessariamente” como “vir a ser”, como futuros reprodutores dos ideários desses movimentos. Nas próprias palavras de Rosemberg (2011, p. 22):
Da mesma forma que mulheres brancas contestaram movimentos de esquerda por sua exclusão, que mulheres negras contestaram os movimentos feministas de mulheres brancas por sua exclusão, bem como os movimentos negros contestaram a sociedade brasileira pela exclusão dos negros, chamo atenção aqui para o fato de o sujeito desses movimentos sociais ser a pessoa adulta.
A ausência de interesse pelas crianças entre os estudos feministas, observada também por Alanen (1994), pode ser atribuída, entre outros aspectos, ao desejo de romper com a suposta conexão natural entre mulheres e crianças (BARTHOLOMAEUS; SENKEVICS, 2015).
O segundo eixo de análise abarca pesquisas que buscam compreender a construção da identidade de gênero na infância e as diferenças entre a vida de meninas e meninos. São, por exemplo, pesquisas sobre a construção cultural do feminino e do masculino (VIANNA; FINCO, 2009) e sobre brincadeiras, jogos e desenhos percebidos socialmente como de meninas e/ou de meninos (CUNHA; ARAÚJO; GOMES, 2011; FINCO, 2003; GOBBI, 2008). Bartholomaeus e Senkevics (2015) argumentam que gênero é um importante fator na vida das crianças, ainda que não seja uma preocupação central para os estudos da infância e que seja, infelizmente, teorizado por poucos. A densidade do tema exige sempre ultrapassar a produção de indicadores de diferenças entre meninos e meninas e, mais ainda, compreender que a questão é muito mais do que um aspecto relacionado à diversidade.
Há, ainda, um terceiro eixo de análise - muito menos frequente do que os dois primeiros - que se direciona a apreender as maneiras pelas quais o fato de as crianças se constituírem como ‘temática feminina’ impacta nos estudos da infância e na vida das crianças (mais consolidados e frequentes são os estudos que enfatizam o impacto de tal associação na vida das mulheres). É esse eixo que aqui mais nos interessa. Marchi (2011) sugere que as representações de inferioridade da mulher na sociedade decorrem, muitas vezes, de sua proximidade física e simbólica com as crianças. Tal proximidade tem sido historicamente sustentada e legitimada por especialistas das diversas áreas acadêmicas. Conforme afirma Galvão (2008), elaborações teóricas, especialmente da medicina e da psicanálise, elegeram a mulher como personagem central da família e do cuidado. Isso também é identificado por Burman (1999) em relação à psicologia do desenvolvimento, apontando, inclusive, para um impacto indireto dessa associação: mulheres são eleitas informantes privilegiadas sobre como as crianças se desenvolvem e, principalmente, sobre o que é melhor para elas. Como mencionado anteriormente, as pesquisas que analisamos deram preferência à escuta de mulheres quando outros atores, além das crianças, foram envolvidos. A díade mãe-filho como padrão ideal de educação e cuidado da criança pequena e a sua tradução na proximidade simbólica entre mulher e criança foi, especialmente ao longo da década de 1970, alvo de intensas críticas do movimento feminista, o que, somado a mudanças demográficas, econômicas e culturais, favoreceu rupturas neste ideário (GALVÃO, 2008).
Ainda que seja possível apreender tendências de mudança nesse cenário, as pesquisas que procuram ouvir homens em relação à criança e à infância são ainda escassas e, como vimos, também são raros os homens que pesquisam com crianças. Os impactos disso podem ser significativos não só para as mulheres, mas também para as crianças.
Breves considerações finais
Denzin e Lincoln (2006, p. 33) lembram que:
Qualquer olhar sempre é filtrado pelas lentes da linguagem, do gênero, da classe social, da raça e da etnicidade. Não existem observações objetivas, apenas observações que se situam socialmente nos mundos do observador e do observado - e entre esses mundos.
Os números relacionados às pesquisas com crianças recolhidos no âmbito das ciências humanas e sociais no Brasil permitiram, simultaneamente, identificar um ‘ângulo próprio’ de uma relação social específica entre observador e observado. O que é próprio nesse ângulo é a perspectiva da mulher pesquisadora que predominantemente se constituiu como intérprete e porta-voz da criança. Bourdieu (1999, p. 694-695) oferece argumentos para analisar essa situação:
[…] a diferença não é entre uma ciência que realiza uma construção e aquela que não o faz, mas entre aquela que o faz sem o saber e aquela que, sabendo, se esforça para conhecer e dominar o mais completamente possível seus atos, inevitáveis, de construção e os efeitos que eles produzem também inevitavelmente.
Faz-se importante acrescentar aos estudos da infância um conjunto de outros estudos que possa aquilatar a percepção que essas pesquisadoras têm ou possam ter a respeito do protagonismo que assumiram e, com isso, agregar ao debate um “repertório de considerações” (BHABHA, 2001, p. 19) sobre os atos inevitáveis de construção a que se refere Bourdieu e também sobre seus efeitos.
Necessários também são outros estudos comparativos que tragam mais pistas acerca de possíveis distinções entre o que pesquisadores homens e mulheres priorizam em suas investigações com crianças. Observamos, em nossas análises, a ausência de pesquisas conduzidas por homens com crianças pequenas. Quanto menor a criança mais ela é associada à natureza e à mulher? A ascensão da pauta sobre o combate ao abuso sexual e à pedofilia nas arenas públicas contribui de alguma maneira para que homens se mantenham distantes de crianças pequenas? Esses são alguns exemplos de interrogações que merecem ser tratadas mais detidamente.
Não é pequena a importância de se constatar que, a seu modo, a díade mulher-criança se refaz e ganha tonalidade própria no universo de pesquisa aqui retratado. O encontro entre sujeitos permanentemente desafiados a “escapar do modo como o outro o define” (GOFFMAN, 2001, p. 11) é um aspecto com potencial crítico suficiente para não somente dar plausibilidade àquilo que a pesquisa encontra nos números que seleciona, mas também para desenhar cenários de luta e comprometimento político cada vez mais necessários.
A predominância de mulheres no âmbito das pesquisas que foram arroladas neste artigo é um aspecto que transcende o registro de tendências em determinadas áreas, para mostrar-se como fato em si, como diria Edward Said (2012). Atores que têm, cada qual a seu modo, dificuldades expressivas para que seus espaços sejam reconhecidos como territórios de protagonismo, agência, voz própria e singular despontam entretecidos na tessitura do social em que se percebem reciprocamente.
A presença predominante de mulheres na escuta de crianças é um achado de pesquisa que extrapola o acadêmico e evidencia uma densidade política que é própria das lutas do cotidiano, instância de negação constante dos silenciamentos.