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Eccos Revista Científica

Print version ISSN 1517-1949On-line version ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.56 São Paulo Jan./Mar 2021  Epub Feb 05, 2024

https://doi.org/10.5585/eccos.n56.13186 

Artigo

CIDADANIA INFANTIL: QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS E IMPLICAÇÕES PARA A PARTICIPAÇÃO DA CRIANÇA

CHILD CITIZENSHIP: CONTEMPORARY ISSUES AND IMPLICATIONS FOR CHILD PARTICIPATION

Marta Regina Brostolin, Doutorado1 
http://orcid.org/0000-0003-4262-2222

1Doutorado, Universidade Complutense de Madri - UCM. Madri - Espanha.


Resumo

Este texto se propõe a tecer algumas reflexões sobre a cidadania infantil na sociedade contemporânea a partir do construto teórico da Sociologia da Infância que compreende a criança como ator social, ser do presente, participativo e produtor de culturas e a infância como categoria geracional sócio-historicamente construída. A reflexão sustenta-se na constituição da criança cidadã. Parte dos caminhos percorridos entre a ideia da incapacidade e incompetência da criança numa visão perspectivada na modernidade, revisa o conceito de cidadania perpassando pela discussão proposta por Roger Hart (1992) denominada Escada de Participação Infantil, para chegar ao estatuto de cidadania participativa que concebe a criança como sujeito social, implicando não só no reconhecimento formal de seus direitos, mas também nas condições do seu exercício de participação. A atualidade da temática volta-se para o imperativo da cidadania da infância, seu protagonismo e o potencial emancipador das experiências de participação das crianças nas pesquisas, nas escolas e nos espaços públicos frente aos desafios impostos pela sociedade contemporânea.

Palavras-chave Criança; Cidadania; Participação; Sociologia da infância.

Abstract

This text proposes to make some reflections on the children's citizenship in the contemporary society from the theoretical construct of the Sociology of the Childhood that understands the child as social actor, being of the present, participatory and producer of cultures and childhood as a socio-historically generational category built. The reflection is based on the constitution of the citizen child. Part of the paths covered by the idea of incapacity and incompetence of the child in a perspective envisaged in modernity, it revises the concept of citizenship through the discussion proposed by Roger Hart (1992) called Ladder of Child Participation, to reach the status of participatory citizenship that conceives child as a social subject, implying not only the formal recognition of their rights, but also in the conditions of their exercise of participation. The current relevance of the theme turns to the imperative of childhood citizenship, its protagonism and the emancipatory potential of the experiences of children's participation in research, schools and public spaces facing the challenges imposed by contemporary society.

Keywords: Child; Citizenship; Participation; Sociology of the childhood.

Introduzindo a temática

Crianças sempre existiram na sociedade, embora ao longo dos tempos tenham sido invisibilizadas pelos adultos enquanto grupo social e sua concepção tenha passado por transformações. Da imagem de uma criança romântica, inocente, pura, assume a partir da Revolução industrial a imagem de rebelde e perigosa, uma vítima social que precisa ser contida para não colocar em risco as normas sociais que criadas pela modernidade, instituem na criança um caráter de devir, no sentido de futuro (SARMENTO, 2016).

Esta normatividade infantil apresenta-se como um conjunto de regras e disposições jurídicas e simbólicas que regulam a posição da criança na sociedade e orientam as relações entre elas e os adultos. Uma normatividade que desconsidera as crianças que fogem do padrão considerado normal e as excluem, não colocando ao seu alcance os meios mínimos que as constituem crianças, deixando-as nas margens, ou seja, fora da norma. E, nessa situação, se enquadram milhões de crianças mundo afora em condições de subalternidade (MARCHI; SARMENTO, 2017).

As últimas décadas tem mostrado a profunda contradição entre a normatividade infantil produzida pela modernidade e as condições de vida das crianças vítimas do capitalismo financeiro, reforçando o abandono das crianças como sujeitos de direitos. Práticas e concepções de criança que se afastam da normatividade levam a exclusão de seu próprio estatuto social.

A situação da infância contemporânea exprime a violação universal dos direitos da criança sempre que interesses econômicos ou políticos hegemônicos sobrepõem às necessidades de proteção e desenvolvimento infantil. A crise econômica mundial caracterizada pela globalização hegemônica do modelo de capitalismo financeiro amplia a pobreza provocando profundas desigualdades nas condições de vida das crianças e bem estar infantil (MARCHI; SARMENTO, 2017).

Frente ao cenário exposto, o debate se amplia e as crianças estão cada vez mais sendo estudadas pelo campo das ciências sociais e, especificamente neste texto, a reflexão sustenta-se no aporte teórico da Sociologia da Infância, uma área científica cujo pressuposto básico é a ação e voz da criança. Atualmente, os estudos voltados para a criança apresentam características de uma abordagem multidisciplinar justificando as heterogeneidades desse campo, pois compreender a criança como ator social traz grandes desafios no que se refere ao âmbito epistemológico até então enraizado em uma concepção universal de criança invisibilizada enquanto grupo social com direitos.

A Sociologia da Infância contrapõe-se a essa concepção e se constitui como uma área científica, vertente da Sociologia da Educação, que ganha força a partir dos anos de 1990 e consolida-se hoje ao entender a criança como ator social situada na sociedade, assumindo-a como ser humano com existência e experiência biossociais que está ativamente envolvida nos seus múltiplos processos de socialização e de participação e produção de culturas com outras crianças e adultos (VEIGA; FERREIRA, 2017).

Marchi (2017) afirma que a ideia da criança como ator social já é aceita pelas ciências sociais, entretanto, recebe críticas no sentido de tornar-se um “slogan” vazio. Para a autora “considerar a criança como ator social é simplesmente considerar que ela faz parte da cultura, assim como os membros de qualquer grupo de idade” (MARCHI, 2017, p.3). Pensar a criança como ator social nos remete “a reconhecer a criança como ser humano, portanto, o que há de polêmico e paradoxal nesta questão problematiza a autora (2017, p.3).

Esta e outras questões são provocadoras de debate e suscitam outros estudos, mas é importante destacar que não apenas as crianças, enquanto atores sociais se tornam objeto de estudo, mas também a infância como categoria social, do tipo geracional, ocupando uma posição estrutural condicionada pela relação com outras categorias geracionais.

Nesse sentido, a infância depende da categoria geracional formada pelos adultos para a provisão de bens indispensáveis a sua sobrevivência e, essa relação é assimétrica, permeada de conflitos e tensões no que diz respeito ao poder, ao rendimento e ao status social que têm adultos e crianças, independente da pertença a diferentes classes sociais. Nessa perspectiva, o poder exercido pelos adultos é reconhecido, não sendo verdadeiro o inverso, o que coloca a infância numa posição subalterna em relação à geração adulta (SARMENTO, 2005).

Diante desse tensionamento surge a necessidade de reivindicar a retirada da criança desse lugar menor, até então conferido a ela pelo paradigma tradicional das ciências sociais, tendo como um de seus questionamentos centrais o conceito de socialização baseado em uma perspectiva funcionalista a partir das proposições de Durkheim (OLIVEIRA, 2017). A retirada da criança desse lugar secundarizado não é um processo fácil nem rápido, pelo contrário, apresenta muitos desafios no que diz respeito à participação infantil e as pesquisas têm demonstrado que os impactos e resultados têm sido muito lentos.

A discussão sobre a participação infantil envolve uma complexidade de fatores que vai além do contexto cultural e âmbito particular da família, pois a perspectiva adulta pressupõe a falta de competência da criança para a participação social. A sociedade adultocêntrica argumenta que as crianças devem aprender a ter responsabilidades antes de lhe serem dados os direitos, fato que segundo Oliveira (2017, p.161) leva a uma compreensão equivocada, ou seja, “se as crianças tivessem seus direitos de participação considerados, estariam indo além do que sua idade permite e, dessa forma, haveria uma perda de autoridade dos pais”. Esse entendimento conduz a uma invizibilização da criança no espaço público, produzindo uma dicotomia entre o direito de proteção e o direito de participação.

Essa compreensão da criança vulnerável, desprotegida e dependente do adulto compromete a realização dos direitos que assistem a criança diante da tradicional distinção entre os direitos de proteção, provisão e participação, os três “p”, assegurados pela Convenção dos Direitos da Criança, a CDC, de 1989. Dentre estes, o direito de participação é comprovadamente o direito com menos progresso e essa constatação nos permite afirmar a urgente necessidade de envolver a sociedade em um processo de aprendizagem que reveja a relação assimétrica entre adultos e crianças e permita um compartilhamento de divisão de poder e negociação.

A partir dessa questão norteadora, o texto se constitui como um ensaio reflexivo que visa discutir a cidadania infantil na sociedade contemporânea a partir do construto teórico da Sociologia da Infância que compreende a criança como ator social, ser do presente, participativo e produtor de culturas e a infância como categoria geracional sócio-historicamente construída. O mesmo inicialmente parte dos caminhos percorridos entre a ideia da incapacidade e incompetência da criança numa visão perspectivada na modernidade, para, posteriormente, revisar o conceito de cidadania perpassando pela discussão proposta por Roger Hart (1992) denominada de Escada de Participação Infantil e outros e chegar ao estatuto de cidadania participativa que concebe a criança como sujeito social, implicando não só no reconhecimento formal de seus direitos, mas também nas condições do seu exercício de participação.

A construção do conceito de cidadania, da ideia moderna de cidadania a cidadania participativa

Segundo Trevisan (2014), historicamente a cidadania está ligada aos privilégios de pertença a uma comunidade política particular, na qual aqueles que possuem um certo estatuto

estão habilitados a participar em bases iguais com os seus concidadãos na tomada coletiva de decisões que regulam a vida social. Nessa perspectiva, a cidadania vinculou-se a participação política e, em algumas formas de democracia, ao direito de voto.

Dois modelos são referência na gênese do conceito de cidadania, a Grécia Antiga e o modelo romano. Ambos marcam o início da ideia e exercício de cidadania partindo de diferentes princípios, alguns permanecendo até os dias atuais. Na democracia grega qualificava-se como cidadão o homem maior de 20 anos, nascido em Atenas, guerreiro e possuidor de casa e escravos. Mulheres, imigrantes, crianças e escravos não pertenciam a “classe cidadão”. Em contraposição, o modelo republicano romano nasce da discórdia e luta de classes dos plebeus para obtenção de direitos sobre os patriarcas. Mais do que basear-se em ideias abstratas de cidadania e dos seus debates teóricos, como na Grécia, o modelo romano centrou-se numa perspectiva prática, isto é, na introdução de um conjunto de leis e códigos. No entanto, segundo Trevisan (2014, p. 71), “ao comparar-se a influência política nos processos de tomada de decisão dos gregos, os romanos ficavam aquém, sendo a sua participação mais restrita”. Em ambos os modelos o acesso ao estatuto de cidadão é limitado à criança, mas ao mesmo tempo, encontrava-se a mesma nos espaços públicos em diferentes momentos coletivos junto à comunidade que as cuidava.

A partir do iluminismo e da configuração política que as revoluções democráticas do século XVIII atribuíram aos estados modernos, a cidadania foi sendo compreendida como a identidade oficial dos membros de uma sociedade soberana e com capacidade de autogovernação (SARMENTO et al., 2007). Portanto, a cidadania implica um estatuto político que estabelece e permite o usufruto de direitos cívicos e políticos e, como membro da sociedade, impõe obrigações e deveres de cidadão para com a comunidade.

Para Sarmento et al. (2007) na perspectiva liberal, a cidadania é tradicionalmente classificada a partir de Marshall (1967), como cidadania civil (direitos de liberdade individual, de expressão de pensamento, de crença, de propriedade individual e de acesso à justiça), cidadania política (direito de eleger e ser eleito e de participar em organizações e partidos políticos), e cidadania social (acesso individual a bens básicos).

Essa concepção clássica de cidadania assentada no pressuposto do vínculo do indivíduo para com a sociedade, vínculo esse forjado em princípios civilizatórios geralmente aceitos, pressupondo da parte dele uma vontade livre, pensamento racional e sentido de solidariedade legitima, recusa a cidadania da infância, pelo menos da totalidade da cidadania política e, parcialmente, da cidadania civil negando o estatuto político às crianças (SARMENTO et al., 2007).

A partir da concepção de menoridade da infância, que não é só etária, mas também cívica, criou-se a necessidade de frequentar a escola como condição de acesso futuro à cidadania plena, ou seja, a escola como lugar de formação “de jovens cidadãos, plenos de direitos, capacidade e competência, para competirem e ou se solidarizarem numa sociedade com igualdade de oportunidades” (SARMENTO et al., 2007, p. 188). O autor ainda chama a atenção para a instituição escolar e seus equívocos, pois corresponde a institucionalização histórica de processos de disciplinamento da infância inerentes a ordem social dominante.

Simultaneamente a introdução da escola como condição de acesso à cidadania, a modernidade produziu uma separação das crianças do espaço público. Nesse contexto, as crianças são vistas como cidadãos do futuro e no presente encontram-se afastadas do convívio coletivo, a não ser no espaço escolar e resguardadas pelas famílias da participação plena na vida social. Essa privatização da infância corresponde a um dispositivo de proteção e subordinação a um regime de autoridade paternalista que inclui um cotidiano repleto com inúmeras atividades a depender da condição social, dependentes e vigiadas sob o controle adulto também alargado por agências de ocupação infantil (SARMENTO et al., 2007).

As crianças estão cada vez mais protegidas pelos adultos nos espaços públicos, de modo a garantir a sua segurança. Cada vez mais crianças vivem confinadas em instituições e espaços específicos que são desenhados para elas, mas não por elas/com elas. Ao protegê-las e garantir-lhes a segurança, simultaneamente, é negado a elas à possibilidade de serem reconhecidas como participantes ativas das suas vidas e, por isso, cidadãos.

De certo modo, permanece a ideia de que para proteger é necessário negar a participação e, mobilizar participação de alguma maneira, é colocá-las em risco. Fernandes (2009), entende que a idade e maturidade da criança devem ser consideradas na balança entre proteção e participação, identificando outros aspectos como a experiência, à própria situação, as consequências da decisão e os benefícios que daí decorrem na autonomia da criança.

É inegável que os progressos promovidos pela modernidade tenham garantido uma melhoria ainda que parcial nas condições de vida da maioria das crianças, entretanto, esses progressos não são universais, nem comuns a todas as crianças do mundo. A infância continua a ser considerada um grupo social minoritário e sua invisibilização política é uma extensão deste processo para “o qual concorreram formas de administração simbólica da infância socialmente geradas e construídas bem como saberes periciais indutores de uma reflexividade institucional indutora de uma ocultação das crianças como atores sociais dotados de autonomia e competência” (SARMENTO et al., 2007, p. 189).

Na contemporaneidade, a mudança na concepção de infância redefine o conceito de cidadania a partir da construção de uma concepção jurídica renovada expressa principalmente pela Convenção dos Direitos da Criança, a CDC de 1989. A cidadania da infância assume então um significado que ultrapassa as concepções tradicionais na medida em que implica o exercício de direitos nos mundos de vida, tal redefinição constitui-se então em um espaço de tensões e ambiguidades e em processo de construção.

A cidadania e o direito de participação da criança na sociedade contemporânea

Crianças fazem parte da sociedade, embora nunca tiveram efetivamente direito de participar nos assuntos que lhes afetam diretamente. A gênese da discussão do direito de participação infantil na América do Sul tem seu início nas décadas de 1960 e 1970, quando experiências de crianças trabalhadoras desencadearam o debate sobre participação infantil e o fato de que fossem reconhecidas como sujeitos sociais e políticos. Essa bandeira foi levantada por movimentos populares que lutavam por seus direitos como trabalhadores do campo, indígenas e outros (OLIVEIRA, 2017).

Compreender o sentido de participação remete a etmologia da palavra que se origina no latim, no termo participatio que significa tomar parte, é um conceito multidimensional com variáveis que envolvem o contexto onde se desenvolve, as circunstâncias em que acontece, as competências de quem participa e as relações de poder que influenciam (FERNANDES, 2009).

Segundo Gaitán (1998) citado por Oliveira (2017, p. 162):

[...] participação infantil é um processo social o qual pretende que crianças e adolescentes desempenhem o papel principal no desenvolvimento de suas comunidades para alcançar a realização plena de seus direitos, atendendo, assim, seus próprios interesses. É colocar em prática a visão das crianças como sujeitos de direitos. Para tanto, é necessário que haja uma redefinição de papeis nos diferentes âmbitos da sociedade: infância e juventude, autoridades, famílias, sociedade civil, entidades e etc.

Nessa perspectiva, o processo de participação infantil leva em conta a tomada de decisão e a partilha de questões que dizem respeito a um grupo na busca de resolução de problemas que envolvem as crianças e a efetivação de seus direitos. A participação deve recuperar os interesses, necessidades e direitos das crianças legitimando assim sua ação social. Nesse sentido, não se permite uma participação simbólica e se exige que os atores sociais decidam, analisem, interpretem, questionem, proponham, atuem, possibilitando assim tomarem parte de projetos societais nos quais estão inseridos (OLIVEIRA, 2017).

Entretanto, o conceito de participação que vigorou até os anos de 1990 focalizava a intervenção adulta numa relação vertical de cima para baixo. Nesse contexto, a participação das crianças sempre se deu a partir de uma negatividade constituinte, ou seja, as crianças sempre participaram em casa, na escola, no trabalho, nas guerras, mas essa participação era aceita como obrigação, não era visível, reforçando o poder do adulto e a subordinação da criança para atingir determinados objetivos (TOMÁS, 2007).

As crianças participam em muitas atividades na vida cotidiana, entretanto, no contexto dos direitos humanos e dos direitos das crianças, participar significa mais que “fazer parte”. A participação exige condições, segundo Hart (1992) citado por Tomas ((2007, p. 57) “nomeadamente o grau de desenvolvimento; as oportunidades educativas, assim como o próprio bem-estar das crianças são determinantes para fomentar suas capacidades de participação”.

São muitas as escalas e possibilidades de participação das crianças e várias teorias sobre tal participação como citado em Tomás (2007). Uma das mais conhecidas é a “Escada de Participação de Roger Hart (1992)”, teórico que estuda a participação infantil e busca de uma forma metafórica demonstrar a implicação dos adultos ao longo do processo de participação infantil.

A escada de participação de Hart divide-se em oito degraus, explicitando melhor, são três degraus de não participação e cinco degraus de participação. A manipulação é o degrau mais baixo da Escada de Participação, nele as crianças são inseridas em determinadas iniciativas sem serem comunicadas dos objetivos, isto é, são usadas para comover ou alertar os destinatários; no segundo degrau decoração as crianças continuam sendo usadas, mas deixam de serem manipuladas e passam a figuras decorativas.

O último degrau que completa as etapas de não participação é o tokenismo (simbolismo), observável em situações em que aparentemente a criança tem voz, mas na realidade não possui qualquer autonomia na escolha do tema, na forma de comunicação e na possibilidade de emitir as suas próprias opiniões. Considera-se esta participação simbólica da criança uma boa estratégia de defesa dos direitos da criança, porém, ainda não é uma participação infantil plena.

O primeiro degrau da etapa de participação infantil denominado de delegação com informação, a criança embora não tenha um papel interventivo, acaba desempenhando uma ação significativa, já entende os objetivos e tem conhecimento de que tomam decisões por ela.

O segundo degrau desta etapa, consulta e informação, as crianças são consultadas e informadas sobre todo o processo, embora dirigido pelos adultos, as opiniões das crianças adquirem algum significado. No degrau da iniciativa adulta com partilha de decisões com a criança, o adulto inicia o projeto, mas, simultaneamente, vai partilhando as decisões com a criança, envolvendo assim a participação de ambos os atores. Finalizando, o último degrau da escada de participação infantil de Hart, o processo iniciado e dirigido pela criança, não existe qualquer intervenção por parte do adulto (MARQUES, 2013).

Constata-se que os níveis de implicação das crianças em processos de mobilização e participação vão sendo ampliados à medida que se vai subindo a escada de Hart. É importante destacar que em todos os níveis há a participação dos adultos de modo a contribuir de forma direta ou indireta nas decisões tomadas pelas crianças no desenvolvimento das atividades planejadas. Hart também alerta para não se considerar a escada um barômetro de qualidade de qualquer projeto devido à heterogeneidade das crianças e contextos (TOMÁS, 2007).

A partir dos estudos de Hart surgem novas propostas e críticas, nesse último quesito, alguns autores entendem que a ideia de sequência de uma etapa a outra pode provocar equívocos na compreensão das formas de participação das crianças, uma vez que a participação pode ser contemplada em mais de um nível, e não levar em conta as diferenças individuais e contextos que influenciarão a participação das crianças (OLIVEIRA, 2017).

Fernandes (2009), em seus estudos sobre o tema destaca outra proposta apresentada por Shier (2001) que não contempla níveis de participação, mas sim, sistematiza atitudes positivas face a esse processo a partir de graus de responsabilização que envolvem abertura, oportunidades e obrigações. Este modelo exige que “os indivíduos e ou organizações implicados neste processo clarifiquem a sua intervenção relativamente à natureza da participação” (FERNANDES, 2009, p.97).

Nessa perspectiva, compreende-se a participação infantil de uma forma mais flexível, sem a ideia de níveis e ou etapas, mas sim de espaços que podem possibilitar outras formas de participação.

Internacionalmente, os direitos de participação das crianças ganharam uma nova dimensão na última década, envolve versões moderadas dos direitos de autonomia dos adultos e dizem respeito a crianças que tomam parte em atividades e decisões que as afetam. A Convenção dos Direitos da Criança de 1989, assim como a legislação e os instrumentos jurídicos que se referem à criança, apesar das críticas e limitações, é uma marca da capacidade que as crianças têm de serem titulares de direitos e reconhecimento do valor de sua participação (TOMÁS, 2011).

Para Tomás (2011, p.105)

[...] trata-se de um direito substantivo que permite as crianças desempenhar na sua própria vida um papel protagónico, em vez de serem simplesmente beneficiárias passivas do cuidado e da protecção dos adultos. Contudo, como acontece com os adultos, a participação democrática não é um fim em si mesma, é também um direito processual, mediante o qual é possível realizar outros direitos, obter justiça, influenciar os resultados e denunciar abusos de poder.

O conceito de participação apresenta múltiplos significados, segundo Tomás (2007,p.48), “há uma certa unanimidade na afirmação da participação como um processo fundamental do sistema democrático e tornou-se comum o nome participação e participação das crianças para qualquer tipo de participação”. A autora confirma a existência de muitas experiências de participação, embora algumas tenham caráter ilusório. Entretanto, Tomás (2007), adota o conceito de participação considerando vários elementos: partilha de poderes; introdução de métodos e técnicas que permitam a participação de crianças na esteira da democracia participativa; a consideração de que a formulação de regras, direitos e deveres é feito por todos os participantes do processo; condicionamento efetivo dos meios, métodos e resultados do processo de participação.

A participação assume-se então como elemento integrado quer dos direitos quer do sentimento de pertença dos indivíduos a comunidades políticas que promovem não apenas a vida enquanto coletivo, mas também enquanto membros individuais, em relações pautadas por lógicas de justiça e equidade. A participação das crianças suscita debates sobre globalização, democracia, cidadania, imagens, concepções sobre infâncias e crianças. Participação é direito fundamental de cidadania.

Se a cidadania envolve o direito de participação, uma sociedade democrática deve garantir a participação de todos. Nesse sentido, a participação pode ser considerada democrática quando: a criança compreende do que trata o projeto e seu papel nele; as relações de poder e tomadas de decisão são transparentes; todas as crianças são tratadas com igualdade de direitos, levando-se em conta a idade, situação, etnia, habilidades e outros fatores; a participação é voluntária e as crianças têm a opção de não participar e são respeitadas as perspectivas e experiências infantis (OLIVEIRA, 2017).

Por esse prisma, haverá o desenvolvimento de novas habilidades contribuindo para a constituição de maior autoestima, mudará o senso comum da negatividade infantil, reconhecendo a capacidade da criança de assumir responsabilidades sociais e individuais, fomentará o conhecimento acerca de seus direitos se constituindo também em forma de empoderamento.

Entretanto, Oliveira (2017) alerta para não romantizar ou mitificar a participação da criança, pois dar voz a criança não é somente deixá-la falar, mas sim buscar maneiras de compreender as teorizações sobre o mundo social que as perspectivas das crianças podem nos fornecer.

A autora ainda chama a atenção para outro perigo associado à ideia de dar voz à criança, ou seja, enxergá-la como membro de um grupo indistinto, como uma categoria, sem observar as questões de classe, gênero, etnia, desconsiderando a diversidade de seus mundos sociais, e assim, silenciar mais uma vez sua voz. Embora as crianças estejam mais presentes em pesquisas e instituições de proteção e cuidado, elas ainda continuam sendo vítimas das desigualdades sociais e processos de exclusão.

Alguns desafios e tensões aos direitos de participação das crianças

Mesmo em tempos contemporâneos, a sociedade ainda se mostra adultocêntrica, percebendo a criança como alguém a ser protegido desde que nasce até tornar-se adulta. Muitos espaços que a criança vivencia, seja na família, escola e ou espaços públicos, são construídos para as crianças e não com as crianças. Falar de participação infantil não remete a dizer que as crianças não precisam dos adultos, portanto, participação e proteção não são direitos contraditórios, e sim, a necessidade de encontrar um ponto de equilíbrio entre o direito de participação e a necessidade de proteção das crianças.

Essa compreensão e aprendizagem são o grande desafio da sociedade contemporânea a ser vencido, mas que envolve algumas tensões que segundo Tomás (2007) são:

  1. a participação da criança não significa perda de autoridade dos adultos, mas sim implica em um processo de negociação que não coloque a criança em risco e a ajude e oriente para que promova a autonomia a medida de seu desenvolvimento e maturidade;

  2. a falta de confiança do adulto nas competências da criança. Educar para a participação envolve confiança e respeito, um trabalho cuidadoso, gradual, que requer aprendizagens que se modificam conforme a idade e experiência;

  3. as crianças devem participar nas decisões para as quais tenham condições de opinar e não devem assumir responsabilidades para as quais não estejam preparadas;

  4. a educação para a participação democrática é importante e as crianças precisam escolher seus fóruns e ações de acordo com o contexto em que estão inseridas e com suas capacidades;

  5. é necessário adequar os espaços, no âmbito da organização e linguagem às crianças e repensá-los com a participação das mesmas; família e escola adotam relações verticais, as relações de poder existem e a maioria das participações infantis são experiências limitadas e pontuais.

Existem com certeza outros pontos de tensão não apontados, entretanto, interessa deixar claro que compreendemos as crianças como atores sociais e, nesse estatuto, são competentes, mas com competências diferentes dos adultos. Isto não as descaracteriza e não as impede de ter ação e voz em relação ao direito de participação nas esferas privadas e públicas de seus cotidianos. Considerar a criança sujeito de direitos implica considerar a própria ação humana. Um sujeito de direitos só o é à medida que sua ação é considerada válida e se permite a manifestação do seu ser (TOMÁS, 2007).

Falar de cidadania infantil nos remete a compreensão de cidadania como um processo que envolve questões de desigualdades, que enfrenta obstáculos relacionados às relações de poder entre crianças e adultos, a questões estruturais que afetam suas vidas e retiram ou atribuem significados à sua participação social.

Portanto, educar a criança para a cidadania envolve a apropriação individual e coletiva da consciência e do exercício dos direitos participativos no espaço público. Tem uma dimensão crítica diante das condições de realização social dos direitos civis e articula a educação aos contextos sociais. Uma educação para a cidadania só faz sentido na relação entre a escola e o espaço social. Pensar cidadania é pensar na possibilidade do exercício do direito de contribuir para a mudança social (SARMENTO, 2001).

Alguns apontamentos sem finalizar

Participação é um tema atual e complexo que envolve um processo de interação social que acontece em espaços coletivos e quando se trata de discutir o direito de participação da criança e sua constituição como criança cidadã, temos que considerar que as competências de participação das crianças estão vinculadas, ora estimuladas, ora constrangidas, pelas relações sociais que estabelecem com outros, ou seja, família, escola, comunidade; pelas estruturas sócio-econômicas e culturais que se referem a serviços educativos e sociais, a estruturas políticas e outras dos seus mundos sociais e culturais.

Muitos desafios e tensões existem nas relações entre adultos e crianças que são históricas e a discussão sobre a participação da criança envolve uma complexidade de fatores que vai do desenvolvimento de capacidades e motivações ao contexto cultural, decorrendo das relações de poder e hierarquia que existem entre adultos e crianças. Portanto, a ampliação dos direitos da criança à participação deve considerar a diversidade do contexto em que a criança vive e compreender sua singularidade sem lhe dar um caráter de universalidade. Deve considerar a criança real em seu cotidiano, com suas experiências, vivências e convivências permeadas de conflitos e contradições.

Pensar a promoção da participação infantil significa ampliar as discussões sobre questões relacionadas às competências e sentimentos de pertença a uma comunidade e outros temas de interesse das crianças e não centrar na dependência e tutela. Significa promover a relação bidirecional entre democracia e direitos das crianças, direitos estes que se concretizam em ambientes democráticos, que cria e promove os elementos necessários a uma coexistência democrática de respeito mútuo entre adultos e crianças, reconhecimento das diferenças e igualdades de direitos, aprendizagens e consolidação de princípios como a cidadania e a democracia por parte das crianças (TOMÁS, 2007).

Significa também desafiar as metáforas retóricas dos discursos que continuam a influenciar o seu estatuto social e político no contexto pedagógico e social e persistem em basear suas intervenções a partir de uma normatividade infantil criada na modernidade.

Referências

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Recebido: 05 de Março de 2019; Aceito: 22 de Fevereiro de 2021

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