SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 issue56THE RIGHTS OF THE CHILD IN THE THOUGHT OF BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS: DIALOGUES WITH THE SOCIOLOGY OF CHILDHOOD AND IMPLICATIONS FOR RESEARCH IN EDUCATIONTHE PATHWAYS OF THE EXPANSION OF HIGHER EDUCATION IN BRAZIL AND PORTUGAL: CONVERGENCES AND DIVERGENCES author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Share


Eccos Revista Científica

Print version ISSN 1517-1949On-line version ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.56 São Paulo Jan./Mar 2021  Epub Feb 05, 2024

https://doi.org/10.5585/eccos.n56.10779 

Artigo

APRENDIZAGENS EM ESPAÇOS NÃO FORMAIS E O EMPODERAMENTO FEMININO

LEARNING IN NON-FORMAL SPACES AND FEMALE EMPOWERMENT

Katiane Vargens de Oliveira, Mestre em Ensino, Professora1 
http://orcid.org/0000-0001-5433-838X

Neli Teresinha Galarce Machado, Doutora em Arqueologia Brasileira, Professora Adjunta2 
http://orcid.org/0000-0003-1209-5353

Marcos Rogério Kreutz, Doutor em Ciências, Pesquisador3 
http://orcid.org/0000-0003-3837-0616

1Mestre em Ensino, Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso (IFMT), Juína, Mato Grosso, Brasil.

2Doutora em Arqueologia Brasileira, Professora Adjunta da Universidade do Vale do Taquari (UNIVATES), Lajeado, Rio Grande do Sul, Brasil.

3Doutor em Ciências, Pesquisador do Centro de Memória, Documentação e Pesquisa (UNIVATES), Lajeado, Rio Grande do Sul, Brasil.


Resumo

O estudo em tela insere-se numa perspectiva atual e importante de análise da realidade feminina no Brasil. Ao entender as vivências das mulheres de uma associação na Amazônia mato-grossense como protagonistas de suas vidas, a pesquisa aborda um tema de relevância no contexto da academia e também para a instrumentalização e a avaliação de políticas públicas na área. Este artigo, que aborda a participação das mulheres em associações como elemento para o empoderamento social, está apoiado em pesquisa empírica. A produção dos dados adveio de grupos focais. A Associação de Mulheres “Cantinho da Amazônia” está localizada na Amazônia mato-grossense, na região do arco do desmatamento, mais precisamente no assentamento “Vale do Amanhecer”, a 14 km da sede do município de Juruena, pertencente ao estado de Mato Grosso. O enfoque teórico proposto permite uma articulação entre as propostas de uma educação não formal, as vivências e práticas que alteram o coletivo da comunidade e os efeitos na vida das mulheres, sob a perspectiva do empoderamento. À luz das análises, constatou-se que as ações da associação por si só não levam ao empoderamento; contudo, elas possibilitam momentos que podem ser pontes para que os sujeitos desenvolvam habilidades para se fortalecerem e se conscientizarem coletivamente.

Palavras-chave Associações; Empoderamento; Mulheres; Vivências.

Abstract

This study is inserted in a current and important perspective of analysis of the feminine reality in Brazil. By understanding the experiences of these women as protagonists of their lives, the research addresses a relevant theme in the context of the academy and also for the instrumentalization and evaluation of public policies in the area. This article discusses the participation of women in associations as an element for social empowerment and is supported by empirical research in an association in the Amazônia mato-grossense area. The production of the data came from focused groups. The "Cantinho da Amazônia" Women's Association is located in the Amazônia mato-grossense, in the region of the deforestation arch, more precisely in the "Vale do Amanhecer" settlement, 14km from Juruena, in the state of Mato Grosso. The proposed theoretical approach allows an articulation between the proposals of a non-formal education, the experiences and practices that change the collective of the community and the effects on the life of the women, from the perspective of empowerment. In the light of the analyzes, it was found that the actions of the association alone do not lead to empowerment, however, they allow moments that can be bridges for the subjects to develop skills in order to strengthen and raise collective awareness.

Keywords: Associations; Empowerment; Women; Experiences.

1 Introdução

O paradigma de que os processos educativos só ocorrem no universo escolar ocasiona a desvalorização dos saberes frutos das vivências cotidianas. A educação, em seu sentido mais amplo, como processo de formação dos indivíduos para exercerem a cidadania, não pode ficar restrita à educação formal, apesar de este espaço ter sido criado com esse fim. A educação escolarizada compreende apenas uma parte da formação (CORTELLA, 2014).

Desse modo, a educação não formal propicia um enorme potencial para a formação humana dos indivíduos. Além disso, possibilita o empoderamento de seus partícipes, processo que é essencial para o exercício pleno da cidadania.

As práticas educativas na educação não formal são introduzidas para irem além da mera adaptação de saberes já existentes e dominantes, no sentido de construir novos espaços e oportunidades sociais que darão origem a novos conhecimentos e saberes, essenciais para a formação humana. A proposta pedagógica desta modalidade prima pelo desenvolvimento de relações sociais interativas, permeadas por atitudes de respeito às diferenças, de tolerância, amizade, solidariedade e fraternidade (OLIVEIRA, 2017).

Sendo assim, o objetivo desse artigo busca compreender os processos educativos que ocorrem em espaços não formais, no âmbito da Associação de Mulheres Cantinho da Amazônia - AMCA, fundada em 2009, no assentamento Vale do Amanhecer, município de Juruena/MT, cujas vivências possibilitadas pela instituição contribuem para o empoderamento das mulheres pertencentes ao projeto. A AMCA tem conseguido criar estratégias positivas que impactam a vida das mulheres, capazes de empoderar as associadas para além do aspecto econômico, mediante participação na associação.

Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa (BOGDAN; BIKLEN, 1994), para a qual é utilizado o estudo de caso como método (SAMPIERI et al., 2006; YIN, 2010), e da Etnografia enquanto possibilidade de coleta de dados (GEERTZ, 1989; ANDRÉ, 2005). Considerando a diversidade de situações encontradas e a dimensão do tema, a escolha do instrumental metodológico incidiu sobre várias técnicas, como pesquisa bibliográfica e documental, diário de campo e grupos focais.

A Associação de Mulheres Cantinho da Amazônia tem um papel relevante para as associadas, uma vez que, por meio da participação na AMCA, as mulheres assentadas, vítimas de vários tipos de exclusões, têm conseguido reescrever sua história e a própria história do assentamento. É um espaço reconhecido nacionalmente e internacionalmente; entretanto, não é muito conhecido no meio acadêmico.

O estudo insere-se numa perspectiva de análise da realidade feminina no Brasil. Entendendo as vivências dessas mulheres como protagonistas de suas vidas, o texto aborda um tema relevante no contexto da academia, bem como para a instrumentalização e a avaliação de políticas públicas na área.

2 Espaços não formais de aprendizagens

A educação é um fenômeno social que ocorre por meio das interações socioculturais, as quais se apresentam como um leque de ações e experiências tanto no âmbito formal como no não formal, atuando como suporte para as mudanças sociais, bem como para o desenvolvimento econômico de uma região ou de um país (SIMSON; PARK; FERNANDES, 2007).

Segundo Freire (2005), a educação é vista como ferramenta para combater e diminuir as injustiças, uma vez que ela possibilita aos indivíduos desenvolver a consciência crítica para evitar novas formas de opressão. Os processos educativos não ocorrem apenas na escola, uma vez que a educação é um “[...] fenômeno plurifacetado, ocorrendo em muitos lugares, institucionalizados ou não, sob várias modalidades” (LIBÂNEO, 2010, p. 26). Por ser um fenômeno plurifacetado, a todo instante estabelecem-se processos educativos, seja na escola, na igreja, seja participando de lutas sociais (BRANDÃO, 2006).

É possível encontrar três tipos de educação: a formal, a não formal e a informal. A educação formal ou escolar pode ser compreendida como aquela que traz como referência o espaço físico próprio, denominado de prédio escolar, carga horária, calendário e currículo preestabelecidos e está vinculada a um órgão mantenedor (GOHN, 2011). A educação informal é aquela que se adquire mediante ações do dia a dia, nas conversas, nas leituras de revistas e jornais, na família, na igreja, entre outros (GADOTTI, 2012).

A educação não formal tem como princípio evidenciar os processos educativos que vêm acontecendo fora ou mesmo dentro do espaço escolar. As ações da educação não formal compõem um campo de conhecimento com características que lhe são próprias, baseadas em princípios de igualdade e justiça social, com vistas a capacitar os indivíduos para a própria emancipação sociopolítica (GOHN, 2010). A educação não formal não substitui a formal; entretanto, uma complementa a outra e ambas são essenciais para a formação integral dos seres humanos (OLIVEIRA, 2017).

O envolvimento em espaços da educação não formal tem sido visto como mecanismo eficaz, capaz de levar grupos de mulheres à práxis feminina (OLIVEIRA, 2007). De acordo com Disk (1996, p. 187), a educação não formal “[...] vem sendo direcionada para melhorar a vida das mulheres e/ou para proporcionar oportunidades para sua participação social, política e/ou econômica”.

As aprendizagens construídas nas vivências da educação não formal são adquiridas através das relações sociais. São aquelas “que se aprendem no ‘mundo da vida’, via processos de compartilhamento de experiências, principalmente, em espaços e ações coletivas cotidianas” (GOHN, 2013, p. 40). Os processos de ensino e de aprendizagem ocorrem no interior da associação, numa perspectiva holística, contribuindo para o crescimento e o desenvolvimento dos indivíduos enquanto cidadãos. Assim sendo, a educação é vista como um projeto de transformação de sociedade, tornando-a mais justa e igualitária (OLIVEIRA, 2017).

Desenvolvidas em espaços não formais, as práticas educativas procuram estimular a responsabilidade social dos seus atores, a fim de possibilitar-lhes a construção de conhecimentos visando à conscientização crítica e política. O sentido da educação nesses espaços, sobretudo nas associações de mulheres, é o de contribuir na formação de sujeitos, almejando a construção de uma sociedade com equidade social e de gênero, cujo protagonismo seja assumido pelos próprios sujeitos, em outras palavras, contribuir para que os sujeitos se empoderem por meio da união de forças e de potencialidades (OLIVEIRA, 2017).

3 O empoderamento feminino

Nas três últimas décadas, cresceu no mundo todo, a necessidade de criar medidas para aumentar a equidade social, econômica e política. As políticas públicas apontam o empoderamento feminino como mecanismo crucial para o desenvolvimento na vida das pessoas e nas comunidades em geral. Leon (2000) considera que empoderar-se significa o indivíduo adquirir o controle de sua vida. O empoderamento não é um processo linear, tampouco, é igual para todas mulheres, pois está intimamente ligado à trajetória de vida e do contexto familiar em que cada mulher está inserida.

O empoderamento ocorre à medida que o sujeito evolui de uma consciência ingênua para uma consciência crítica da sua condição atual. Esse processo ocorre por meio da relação dialética homem-mundo, idealizada em um ato de reflexão-ação-reflexão, ou seja, na práxis, levando o sujeito ou o grupo a abandonar antigas posturas reativas ou receptivas, para passar a agir com liberdade, considerando sua capacidade pessoal e social (FREIRE, 2009).

Desse modo, o empoderamento é visto como um processo educativo com ênfase no desenvolvimento da consciência crítica dos sujeitos, em âmbito individual e coletivo, perante as relações de poder instauradas na sociedade em geral (LÉON, 1997; GOHN, 2010). As repercussões sociais que se esperam dos sujeitos empoderados se referem às transformações socioculturais baseadas nos princípios de alteridade, liberdade e equidade.

O Programa de Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD define o empoderamento da mulher com base em cinco elementos: a autoestima; o direito de ter e determinar escolhas; o direito de ter acesso a oportunidades e recursos; o direito de ter o controle sobre sua própria vida, em casa e fora de casa; ter a capacidade de influenciar a direção de mudanças sociais, em nível nacional e internacional (ONU, 2016).

O conceito de empoderamento é abordado como uma estratégia conquistada por mulheres dos chamados países de Terceiro Mundo para ressignificar suas próprias vidas e, respectivamente, promover transformações sociais. Nesta perspectiva, Deere e Leon (2002) apontam como condição prévia para o empoderamento das mulheres, a organização delas em espaços democráticos e participativos como associações.

Nesta perspectiva, a AMCA se apresenta como espaço viabilizador de empoderamento, uma vez que possibilita a produção de saberes que permitem às mulheres associadas, a possibilidade de agir e de transformar o espaço onde estão inseridas.

4 O assentamento vale do amanhecer

A Associação de Mulheres Cantinho da Amazônia foi criada por mulheres do assentamento Vale do Amanhecer, localizado a aproximadamente 14 km da sede do município de Juruena, Estado do Mato Grosso, na região da Amazônia mato-grossense, que sofre com o constante desmatamento (IBGE, 2018).

O assentamento, cuja área total é de 14.715,81 ha, foi criado em 1998, pela Prefeitura de Juruena. Do total, 7.129,08 ha foram destinados em bloco, à reserva legal, e o restante foi parcelado em 250 lotes para exploração agrícola e moradia. Cada lote tem, em média, uma área passível de exploração, a corte raso, de 27,97 ha, variando entre 21,56 ha e 40,13 ha (VARGAS, 2006).

O perfil dos assentados pode ser descrito como sendo pessoas da própria cidade, trabalhadores desempregados, empregados de madeireiras, de fazendas de pecuária e prestadores de serviços. A maioria é oriunda da região sul do país, com idade média de 37, 25 anos e com o nível de escolarização em torno dos 3,83 anos; 45% da população dos assentados são mulheres (VARGAS, 2006).

No documento Agricultura Familiar, Reforma Agrária em Desenvolvimento Local para um Novo Mundo Rural, o Instituto Nacional de Reforma Agrária - INCRA e o Ministério de Desenvolvimento Agrário - MDA (1999) definiram a política de desenvolvimento rural alicerçada na expansão da agricultura familiar, bem como na sua inserção no mercado.

Dessa forma, os pequenos produtores deveriam encontrar meios de produzir sem desmatar a floresta. Todavia, o documento preconizava que o poder público em conjunto com as famílias assentadas, Prefeitura Municipal e outras instituições deveriam elaborar um Plano de Desenvolvimento Sustentável dos Assentamentos - PDA (Vargas (2006, p. 75).

Na prática, a realidade foi diferente, pois, conforme Vargas (2006), o assentamento Vale do Amanhecer difere dos outros pelo fato de ter reserva legal de 50% de suas áreas, em vez de 80%, como determinava a legislação vigente. O pesquisador destaca que o INCRA do Mato Grosso nunca considerou o Projeto de Assentamento Vale do Amanhecer um assentamento modelo, no sentido de planejar, implantar ou acompanhar novas práticas, técnicas ou abordagens diferentes das convencionais da Amazônia legal, bem como não teve participação da comunidade na elaboração do Plano de Desenvolvimento Agrário.

Segundo Vargas (2006), 82% das famílias assentadas tinham que complementar a renda fora do lote para garantir o sustento da família; 92% faziam queimadas; 54% dos assentados utilizavam agrotóxicos em seus lotes. No tocante ao interesse em participar do Plano de Manejo Sustentado de Uso Múltiplo da Floresta, construído em conjunto com os agricultores com orientação do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD, dentro das atividades do Projeto GEF - Global Environment Facility ou Fundo Mundial para o Ambiente, os agricultores estavam bem divididos, pois a metade tinha interesse, enquanto a outra parte não acreditava que, a partir da reserva legal, fosse possível gerar renda para todos.

Como os pequenos produtores não tinham experiência com meios de produção sustentáveis, tampouco tiveram capacitações, a floresta foi vista como um obstáculo para a produção. O resultado não poderia ser outro: em 2006, a área de pasto era o dobro da floresta. Em alguns casos, o lote já estava praticamente desmatado e o índice de evasão era de 60% (VARGAS, 2006).

O cenário indicava que mudanças deveriam ser promovidas para melhorar a situação dos assentados. Assim, surge a Associação de Mulheres Cantinho da Amazônia.

5 Associação de mulheres cantinho da Amazônia - AMCA

Na busca pela emancipação econômica e por crescimento pessoal e profissional, a Associação de Mulheres Cantinho da Amazônia surgiu do anseio de oitenta e sete mulheres assentadas. Em 2016, havia cento e dezoito sócias, sendo a maioria delas fundadoras do projeto (VARGAS, 2006).

A AMCA originou-se da Cooperativa dos Agricultores do Vale do Amanhecer, COOPAVAM. Essa cooperativa foi registrada em maio de 2008, a partir do incentivo do PNUD, por meio do Plano de Manejo Sustentado de Uso Múltiplo da Floresta, com o objetivo de trabalhar com produtos florestais não madeireiros. A cooperativa comercializa a castanha do Brasil in natura e alguns subprodutos, entre eles, a barra de cereais e o óleo da castanha (COOPAVAM, 2016).

Na época, percebendo que no processo da extração do óleo da castanha, a farinha era descartada, surgiu no grupo de mulheres, a ideia de utilizar este material como ingrediente em uma de suas receitas tradicionais de biscoito. Depois de o produto ser aprovado por elas, resolveram testar a aceitação do consumidor na cidade (OLIVEIRA, 2017).

Tendo o produto boa aceitação, resolveram comercializá-lo. Logo os empreendimentos avançaram, pois uma das mulheres, que já tinha trabalhado como apoio escolar da Prefeitura Municipal, sabia que havia uma verba da alimentação escolar para a compra de produtos oriundos da agricultura familiar. Como não havia oferta do produto comercializado por elas, conquistaram um espaço no mercado consumidor (OLIVEIRA, 2017).

No início, o biscoito era produzido nas instalações da COOPAVAM, à noite, após o expediente de trabalho. Com uma demanda crescente, o espaço cedido pela COOPAVAM não era mais suficiente. Nesse contexto, resolveram criar a associação, bem como comercializar a castanha in natura.

Apesar do sucesso do biscoito e da venda da castanha in natura, as associadas acreditavam que era possível criar outros produtos e aumentar seus ganhos. Dessa vez, resolveram agregar à receita tradicional de macarrão, a farinha da castanha e perceberam que o produto tinha demanda. Contudo, houve um entrave na produção do macarrão: a falta de equipamento para comercializá-lo em maior escala (OLIVEIRA, 2017).

Em 2011, uma técnica do PNUD, instituição parceira da AMCA, inscreveu a tecnologia social desenvolvida pelas associadas na Fundação Banco do Brasil, com o intuito de, com o dinheiro do prêmio, elas poderem comprar o equipamento para comercializar o macarrão. O resultado não poderia ser outro: foram vencedoras com o destaque para o empreendedorismo feminino e puderam trabalhar com mais um produto oriundo da castanha, o macarrão (DA SILVA; MIRANDA, 2016).

Dois anos mais tarde, para conseguir mais investimentos e melhorias de vida para as famílias extrativistas da castanha, indígenas e agricultores familiares da região, a AMCA apresentou o projeto intitulado CultivAção - Florestania e Ações que Transformam Vidas, com recursos provenientes da Petrobrás Socioambiental. O intuito desse projeto era reaplicar a tecnologia social desenvolvida por elas, incentivando a abertura de novas associações de mulheres e promover a inclusão social, digital e de gênero. O projeto foi aprovado e os cursos de artesanato, corte e costura, informática e conserva de legumes foram ofertados, além de serem construídas benfeitorias na AMCA, como a ampliação da fábrica e a construção de barracões de estoque (DA SILVA; MIRANDA, 2016).

Depois das ações do projeto, outras três associações de mulheres foram criadas na região por intermédio da AMCA: a Associação de Mulheres Indígenas Apiaká Kayabi Munduruku - AKAMU, a Associação de Mulheres Andorinhas do Canamã - AMAC, e a Associação Marias da Terra - AMATER (DA SILVA; MIRANDA, 2016).

A AMCA destaca-se por desenvolver e executar projetos de cunho socioambiental, aprovados em editais públicos, atingindo não somente as mulheres, mas toda a comunidade do Assentamento Vale do Amanhecer. Assim, a associação possibilitou aos sujeitos atendidos pelos projetos, ampliar seus horizontes rumo a um futuro com mais equidade social.

6 A pesquisa de campo

Para averiguar como as aprendizagens são geradas na AMCA e quais são os efeitos dessas vivências, na perspectiva do fortalecimento das relações sociais, realizaram-se dois grupos focais.

As questões que orientaram os grupos focais foram pautadas nos seguintes tópicos: sistematização da trajetória construída pelas mulheres participantes da AMCA, possibilitando a identificação de sua participação e de seu conhecimento; impacto na vida pessoal e comunitária das associadas; potencialidades e fragilidades das vivências na AMCA para a comunidade; oportunidades de aprendizagens (espaços, momentos, valorização dos saberes anteriores, variedade de aprendizagens, construção das mesmas, relação de ensino e de aprendizagem).

Para identificar a relação de ensino e aprendizagem desenvolvida na AMCA, utilizou-se a análise documental, que, nesse estudo, consistiu nos documentos produzidos pela AMCA, como atas de reuniões e de criação, certificações de participação nos encontros, palestras e pautas de reuniões realizadas pelas participantes da associação, fotografias e materiais de áudio e vídeo, que não receberam tratamento analítico contemporâneo ou retrospectivo.

Desse modo, essa técnica facilitou a avaliação do pensamento do grupo de participantes em relação a um determinado tema, visto que, por meio dos processos interativos grupais, as opiniões são confrontadas e discutidas em várias linguagens, representações, percepções e simbologias, prevalecendo a opinião do grupo e não o que uma integrante pensa isoladamente.

As questões que orientaram os grupos focais foram pautadas nos seguintes tópicos: sistematização da trajetória construída pelas mulheres participantes da AMCA, possibilitando a identificação de sua participação e de seu conhecimento; impacto na vida pessoal e comunitária das associadas; potencialidades e fragilidades das vivências na AMCA para a comunidade; oportunidades de aprendizagens (espaços, momentos, valorização dos saberes anteriores, variedade de aprendizagens, e sua construção, relação ensino e aprendizagem).

Participaram dos grupos focais, nove associadas selecionadas pela presidente da Associação. O critério adotado para a escolha das pesquisadas pautou-se na diversificação do tempo de permanência como associada. O grupo foi formado por quatro fundadoras da entidade, duas associadas com tempo superior a quatro anos, uma entre dois e três anos e duas com tempo inferior a um ano. Com o intuito de assegurar o anonimato das mulheres participantes da pesquisa, optou-se por identificá-las apenas como associadas utilizando um numeral de 1 a 9.

Os dados coletados durante a pesquisa de campo foram organizados e interpretados por meio da Análise de Conteúdo (BARDIN, 2011).

5.1 As mulheres, o espaço, os sonhos, as atividades e as realizações

A idade das mulheres participantes do grupo focal situa-se entre 20 e 56 anos. Apenas uma das mulheres é solteira e não tem filhos. Cabe mencionar que as casadas já haviam contraído matrimônio antes de ingressarem no assentamento.

No tocante às experiências profissionais fora do reduto doméstico, antes do ingresso na AMCA, apenas a Associada 6 havia trabalhado. Entre as pesquisadas, as Associadas 2 e 9 não estavam no assentamento Vale do Amanhecer, na ocasião da fundação da associação.

O contexto vivenciado pelas assentadas consiste na vida rural, que exige delas o desenvolvimento de trabalhos braçais com o emprego de força. Além do pouco espaço e tempo para a prática do lazer, percebeu-se que as associadas não têm o hábito de visitar os vizinhos, o que ocasiona seu isolamento. Desse modo, a convivência na AMCA é um espaço em que elas podem conversar e trocar ideias com outras pessoas.

Entende-se que essas vivências se referem a um processo educativo não formal, que constrói novas sociabilidades, essenciais para o convívio em sociedade. A realidade tem revelado ampla e diversificada teia de experiências empreendidas nessa modalidade, como bem ilustra a prática educativa da AMCA.

A AMCA tem a intenção de oportunizar às mulheres assentadas melhorias na qualidade de vida, não só no âmbito econômico, mas, sobretudo, no social. Assim, o objetivo da associação “[...] é promover a igualdade de gênero, o protagonismo de mulheres rurais, a geração de trabalho e renda e o desenvolvimento socioambiental de forma associativa e participativa” (DA SILVA; MIRANDA, 2016, p. 9).

A AMCA é um espaço dinâmico de movimentação coletiva, propício para a assimilação e a produção de novos saberes, produto da capacidade de pensar e de viver o mundo, úteis para ressignificar a realidade. Nesse espaço, as mulheres influenciam e são influenciadas pelo ponto de vista do outro, bem como se afirmam como sujeitos capazes de compartilhar experiências, exibir habilidades e competências (OLIVEIRA, 2017).

Assim, para refletir sobre o significado dos aprendizados assimilados por intermédio das vivências na AMCA, destaca-se o relato da Associada 5 (2017):

Eu só vivia pelos cantos da casa chorando, estava com depressão; aí eu comecei a trabalhar aqui, fui me entrosando com a mulherada e graças a Deus sarei. Eu acho que era porque eu ficava muito sozinha, isolada, o serviço era pouco, logo eu terminava e ficava lá pensando nos problemas. De vez em quando temos uns probleminhas aqui na associação, mas a gente supera e continua nossa amizade e a alegria. Eu dou graças a Deus por existir isso aqui, sou muito feliz trabalhando na associação.

As práticas educativas desenvolvidas nesse espaço não formal contribuem para que as mulheres sintam-se mais fortes, seguras e confiantes, pois, juntas, elas estão transformando a si mesmas; consequentemente, dão sua contribuição para transformar a comunidade em que vivem. Isso somente é possível graças aos laços de amizade construídos na AMCA, principalmente, através do conhecimento do aprender a conviver. Assim sendo, infere-se que as vivências coletivas têm um papel crucial na emancipação dos indivíduos.

Os processos educativos praticados na AMCA não se desenvolvem apenas nas vivências diárias, mas também na participação de encontros, feiras, oficinas, viagens, exposições e capacitações, oriundas da execução dos projetos socioambientais gestados pela associação. Nesse encadeamento, a educação ocorre em diversos espaços e por meio de várias experiências, ou seja, ela se desenvolve nos ambientes que acompanham as trajetórias de vida dos indivíduos, dos grupos, das comunidades.

Os momentos formativos ofertados pela Associação, por intermédio de projetos socioambientais aprovados em editais públicos, foram selecionados no coletivo, com a intenção de profissionalizar a comunidade, principalmente as mulheres, como também desenvolver capacidades e habilidades para o convívio mútuo.

Nos oito primeiros anos da AMCA, foram realizados vários momentos formativos como seminários e encontros. Além das capacitações, a AMCA proporcionou às associadas conhecerem outras realidades de mulheres inseridas em associações mediante a apresentação dos seus trabalhos em exposições, feiras da agricultura familiar, entre outros eventos do tipo (OLIVEIRA, 2017).

As vivências desenvolvidas na AMCA representam uma possibilidade de construção de novos cenários. As mulheres assumem a posição de protagonistas durante todo o processo, sem a figura fixa do ensinante e do aprendente, pois, ao mesmo tempo, quem ensina também aprende e vice-versa, conforme ilustra a fala da Associada 6 (2017):

É assim que a gente faz aqui, uma ensina à outra e dá força para ninguém desanimar. Tem hora que uma ensina e outra aprende, depois aquela que estava aprendendo ensina uma coisa diferente para a colega e aí vai... todas são importantes aqui, ninguém sabe mais do que a outra. Tem dias que a gente chega aqui toda triste, choramos juntas e logo a tristeza vai embora e assim é que eu faço com todo mundo daqui da associação.

Segundo o que dispõe o regimento sobre a finalidade da Associação, ela se incumbe de desenvolver ações para garantir a sustentabilidade ambiental do assentamento Vale do Amanhecer, objetivo de alta relevância para o universo das mulheres assentadas, tendo em vista que, para garantir a subsistência das famílias assentadas, tal ação é crucial.

As aprendizagens geradas com essa finalidade são evidentes, tanto nas reportagens sobre os trabalhos na AMCA, como nas falas dos grupos focais. Uma nova cultura foi criada, desmitificando a cultura dominante em que o desmatamento é visto como única forma de desenvolvimento rentável, conforme foi verificado no grupo focal, com o relato da Associada 1 (2017):

Quando nós chegamos aqui no assentamento, a maioria de nós veio lá do Sul, eu mesma vim do Paraná, lá nós só sabia [sic] mexer com o gado e lavoura, e pra isso tinha que derrubar tudo pra ganhar dinheiro. Hoje não... nós entendeu [sic] que para a gente sobreviver a floresta tem que ficar em pé, é em tudo, aqui no assentamento nós ganha [sic] mais dinheiro com assim, em pé, é pra gente respirar, viver... porque se derrubar tudo, vai sobrar só poluição, daqui uns dias todo mundo morre, pois nós dependemos da natureza pra viver.

Para as associadas, viajar para exposições e feiras da agricultura familiar representando a associação promove vivências mais significativas, uma vez que possibilita o reconhecimento e a valorização do seu trabalho. Essa afirmação é demonstrada pela fala da Associada 6 (2017):

Quando a gente ia representar a AMCA nas feiras, nós se achava. Nós se achava [sic] as donas do pedaço. Todo mundo fazia perguntas de onde que a gente veio, como que a gente trabalha. Elogiavam nosso trabalho. Nós se sentia [sic] reconhecida e com a autoestima lá em cima. Lembro que tinha dois homens que já conheciam aqui e falavam pra gente: conheci o lugar de vocês lá, é muito bonito, organizado e vocês têm tudo para crescer. Nós se sentiu [sic] lá em cima.

Esse reconhecimento fortalece as mulheres para continuarem persistindo na associação, vislumbrando uma sociedade mais justa e igualitária. Além disso, esses espaços de interação contribuem para a construção de uma visão crítica da realidade em que estão inseridas. Em um dos tópicos do grupo focal, discutiu-se a visão do grupo de outras associações que foram visitadas. A Associada 4 (2017) explica como funciona o trabalho em uma associação do Acre:

O pessoal é muito focado. Tem um objetivo e vai fundo nele, eles agem como um coletivo com muita responsabilidade e ética. As decisões são todas compartilhadas diferentes daqui. Pela maioria de votos as decisões são tomadas.

Nessa perspectiva, somente é possível analisar a realidade de modo crítico e coerente, se houver contato com outra realidade.

Antes de ingressarem na AMCA, as associadas pesquisadas não tinham nenhum conhecimento a respeito de associativismo, como também não havia nenhuma associação de mulheres na região. A Associada 5 (2017), uma das fundadoras, cita um aspecto positivo evidenciado após a visita a uma feira de economia solidária:

Nós não tinha [...] dado conta de onde a AMCA chegou. Em uma dessas feiras que a gente vai [sic], veio um homem estudado e fez perguntas sobre o nosso trabalho e depois fez muitos elogios, pois ele já conhecia nossa região, as nossas dificuldades enquanto assentados e ficou admirado como o assentamento conseguiu avançar pela AMCA.

As experiências oportunizadas pela AMCA, principalmente as visitas nacionais e internacionais, bem como a participação em feiras para a divulgação dos produtos possibilitaram a retomada da esperança, que move a busca por dias melhores. Desse modo, é devolvido às associadas, o direito de sonhar, de reinventar a história de vida de cada uma, no sentido de dar novos significados às vivências no assentamento.

Assim, com relação às pesquisas acadêmicas e às visitas de Organizações Não Governamentais para a continuidade dos trabalhos da AMCA, a Associada 8 (2017) afirma:

Essas pessoas que vêm aqui nos visitar ajuda muito nós [sic], às vezes elas podem pensar assim: não vou lá ocupar o tempo delas, mas não, nós acha [sic] bom. Isso divulga muito nosso trabalho e nos coloca pra cima, nós sente [sic] que estamos indo no rumo certo.

As ações da AMCA, por si só, não levam ao empoderamento; todavia, elas possibilitam oportunidades que podem ser pontes para que os sujeitos desenvolvam habilidades para adquirirem o poder sobre suas vidas, ou seja, o empoderamento.

As vivências das atrizes sociais na AMCA fazem parte de um processo de interlocução de vozes femininas que se aproximam, solidarizam-se, compartilham alegrias e problemas cotidianos, num processo de fortalecimento mútuo. Desse modo, aprendizados são gerados com criatividade para a vida, mediante a capacidade de ressignificar o contexto vivido, com o intuito de dar novos recomeços para a história individual e coletiva das assentadas do Vale do Amanhecer.

As aprendizagens advindas da vivência e da experiência desenvolvidas na AMCA são geradas no esforço para entender e fazer a vida num processo de autoafirmação da própria identidade. A Associada 7 (2017) narra um acontecimento pessoal em que as vivências na AMCA foram fundamentais para a construção de sua autoaceitação e autoconfiança, segundo palavras da associada:

No início, quando eu comecei a trabalhar aqui, eu não sabia que estava gestante, foi uma gravidez sem planejamento em um momento difícil da minha vida. Fiquei apavorada, mas, graças a Deus, com as conversas das meninas daqui da AMCA, fui melhorando e aceitando a gravidez. Se não fosse o convívio aqui, eu teria entrado em uma depressão séria.

Esse dado aponta fagulhas de empoderamento, uma vez que as outras associadas ajudaram, através da interação mútua, a Associada 7 a reconhecer a sua estima, sua força dentro de si, já que, por vários motivos, no decorrer do processo de sua vida, essa autonomia foi abafada ou freada por outras formas de dominação estabelecidas. Nesse sentido, segundo Oliveira (2007), “empoderar” não é um ato que consiste em “dar” às mulheres o “poder”, no sentido de que as mulheres estavam despossuídas dele, mas, sim, é contribuir para que elas redescubram que são portadoras do poder e devem exercê-lo.

A Associada 7 sempre teve o sonho de participar da AMCA; contudo, o esposo a proibia. Após o acidente do esposo, as dificuldades financeiras se acentuaram, junto com a descoberta de uma gravidez não planejada. Nesse momento, a AMCA representou para a associada, não só o sustento financeiro, mas também o sustento psicológico e social.

O empoderamento representa a retomada do controle sobre “nossos corpos, nossas vidas” (SARDENBERG, 2006, p. 2), pois, muitas vezes, as mulheres são privadas de tomar decisões sobre suas opções de vida, seus bens, suas opiniões e até mesmo sobre sua sexualidade e reprodução. Sen (2005) ressalta que o controle do próprio corpo, da sexualidade e da reprodução são efeitos do empoderamento feminino, uma vez que a mulher empoderada sente-se dotada de liberdade e de autonomia para realizar suas escolhas.

5.3 Dificuldades

A pesquisa realizada com associadas da AMCA constatou que os homens têm dificuldades em aceitar a inserção da mulher no mundo do trabalho, pois apenas o marido de uma única associada a apoiou nessa nova caminhada. Apesar da opinião contrária dos companheiros, as atrizes sociais assumiram uma postura firme de não ceder às “vontades” dos maridos. Não obstante, mulheres desistem de seus sonhos e objetivos mediante a pressão masculina. A Associada 6 (2017) relata a reação dos maridos diante da decisão das esposas, de trabalharem na Associação: “No começo os maridos daqui não acharam muito bom não. O meu mesmo enchia muito minhas paciências para eu não trabalhar aqui, mas ele acabou desistindo porque eu não largo de trabalhar aqui mesmo”.

Em virtude do paradigma instaurado na sociedade, fruto da cultura patriarcal, que aponta o homem como o único detentor de direitos e benefícios nos espaços públicos e políticos, quando as mulheres começam a ocupar os espaços públicos e políticos, os homens sentem-se ameaçados pela possibilidade de terem de compartilhar o poder e, por conseguinte perder seu status privilegiado, como relata a Associada 5 (2017):

Os homens têm medo das mulheres virem trabalhar aqui e trazer problemas para o casamento; no sentido de a mulher não se importar mais com a opinião do marido, afinal ela já tem seu dinheiro. O meu mesmo, no início, não achou muito bom, mas hoje em dia, ele incentiva minha participação na associação, pois levo um dinheirinho para casa que já ajuda bem.

Segundo a Associada 8 (2017):

Muitos maridos pensam que pelo fato da gente ter um ganho, a gente vai querer mandar na casa, eu faço, o dinheiro é meu e pronto. Mas não é assim. Lá em casa é assim, vou fazer minhas compras e aí meu marido pergunta se eu vou levar tudo isso, eu toda alegre respondo: vou. Mas quando ele precisa do meu dinheiro eu dou para ele. Se eu não tivesse meu dinheiro, eu tinha [sic] de comprar só o que ele queria e esperar quando ele pudesse dar as coisas que eu queria no tempo dele.

Essa é uma realidade não só das assentadas do Vale do Amanhecer, mas da mulher brasileira em geral. Apesar dos avanços oriundos das lutas dos movimentos feministas, a cultura patriarcal ainda está incrustada na mente masculina. É crucial que as mulheres se vejam como cidadãs iguais aos homens, desnaturalizando a soberania do gênero masculino. Para tanto, a conquista do empoderamento é imprescindível.

Para as associadas, “o maior ganho de trabalhar na AMCA é o fato de não precisarem mais depender de marido” (ASSOCIADA 3, 2017). Elas sinalizam que querem viver em outro contexto, diferente do vivido, no qual, muitas vezes, são humilhadas, violentadas e acabam aceitando a situação devido à dependência financeira. No caso estudado, as atrizes sociais revelaram que a independência financeira, mesmo de modo parcial, possibilitou-lhes maior reconhecimento por parte dos maridos, pois, como dependentes, sentiam-se desvalorizadas.

Em contraposição à cultura patriarcal, as atrizes sociais ensaiam os primeiros passos para a igualdade de gênero se materializar no cotidiano. As associadas relataram que houve avanços nas relações de gênero no contexto familiar depois do envolvimento delas com a AMCA. Muitas mulheres adquiriram o poder de opinar sobre o destino da renda familiar, como também começaram a contar com a participação masculina nos afazeres domésticos.

A sobrecarga de serviços atrapalha as mulheres na dedicação aos empreendimentos. Em alguns casos, não são os maridos que colocam barreiras; são elas próprias que se apropriaram da figura feminina que prioriza sempre o bem-estar dos filhos e do marido em primeiro plano em detrimento de suas vontades, conforme narra a Associada 8 (2017):

Meu marido é tranquilo, não liga se eu venho trabalhar; eu que sou preocupada. Não posso deixar minha casa jogada e meus filhos. Meu marido me ajuda, mas é a mulher que tem a obrigação de cuidar da casa e dos filhos.

Entretanto, nem todas pactuam a mesma ideia. A Associada 4 (2017) expressa que a AMCA possibilita às mulheres “a serem mais mulheres”. O sentido atribuído à expressão “ser mais mulher” está ligado ao aumento de poder sobre suas decisões e a autoconfiança na capacidade de realizar-se profissionalmente sem deixar de ser a mãe e a esposa presente. O sentido da expressão é também explicado por outras cooperadas, entre elas a Associada 6 (2017): “É se sentir mais responsável. “Dona” do próprio nariz”; a Associada 5 (2017) afirma: “Sentir-se mais mulher é saber que sou mulher, mas eu faço, eu consigo tudo que quero”.

Diante do exposto, verificam-se sinais de empoderamento na atitude das mulheres que resistem à pressão masculina em prol da realização de seus objetivos. Na busca por relações de gênero mais igualitárias, as atrizes sociais da AMCA buscam autoafirmar-se na sociedade como mulheres assentadas capazes de competir no mercado de trabalho de igual para igual, tanto com outras mulheres, como com os homens e assim conquistarem a sonhada independência financeira e, por conseguinte, o empoderamento.

Também foi constatado que as associadas não possuem o sentimento de pertencimento e de propriedade em relação ao que está sendo construído com a Associação e no assentamento (LIMA, 2017).

Um elemento que inibe a criação de laços de pertencimento é a falta de critério na seleção das associadas, pois a AMCA não trabalha em regime de retiradas, mas, por pagamento de diárias trabalhadas, o que gera divisões entre as associadas. A Associada 6 (2017) embasa a afirmação quando afirma:

Aqui é complicado, por conta que é a (nome da presidente) que escolhe quem vai trabalhar, ela diz que escolhe quem mostra serviço e quem sempre está disposta a trabalhar. As outras mulheres que não são chamadas com frequência para vim trabalhar, fala [sic] que a gente é “puxa-saco” dela e ficam com raiva da gente, sem a gente ter culpa de nada. Aí elas não se envolvem com nada e olham a gente de “cara virada”.

Trabalhar em grupo é uma experiência nova e desafiadora para as associadas, inclusive para a presidente, pois, por muito tempo, essas mulheres desenvolveram individualmente seus trabalhos. As associadas mencionaram evasões motivadas pela dificuldade de conviver em grupo e pela descrença de que é possível construir juntas um projeto visando à sustentabilidade financeira e social.

O posicionamento da presidente no processo de escolha das diaristas representa uma ação “desempoderadora” das associadas. Mesmo assim, não foram encontradas nas atas de reunião da AMCA, reclamações sobre esse assunto. Durante a pesquisa de campo, percebeu-se que a presidente é uma pessoa pró-ativa, com facilidade e boa vontade para resolver os desafios cotidianos que toda associação enfrenta. Por outro lado, essa proatividade pode implicar a acomodação das associadas. Entretanto, o posicionamento da presidente evidencia uma possível relação de poder verticalizada entre presidente e associadas. Nas duas hipóteses, é possível identificar que essa situação representa uma ação de desempoderamento.

A questão econômica pode significar um problema futuro, um fator inibidor do empoderamento (ZAPATA, 2003). A partir dessa hipótese, investigou-se se a AMCA estabelece algum tipo de dependência passível de afetar a continuidade dos seus trabalhos.

A principal fragilidade para a continuidade do empreendimento, segundo Lima (2017), é a dependência dos recursos financeiros dos projetos socioambientais, pois, desde o início das atividades, o referido recurso garantiu a infraestrutura da AMCA, bem como a compra de estoques ao longo desses oito anos.

Sobre a existência de uma relação de dependência da AMCA com parcerias externas, como a Petrobrás Socioambiental, percebeu-se uma preocupação, apesar da resposta firme da Associada 4 (2017):

Nós não vamos parar, apenas nosso ritmo diminuirá. Já estamos firmes, o pessoal que veio aqui do SEBRAE e o secretário estadual de agricultura nos falou que a nossa fábrica está completa, só precisamos nos organizar para ter sempre o dinheiro para comprar o estoque.

Assim, percebem-se algumas lacunas e limitações que impedem a AMCA de contribuir mais efetivamente com a formação humana das associadas. A falta de uma gestão compartilhada, a dependência dos projetos socioambientais, de agentes para ofertar ações e formações que levem a melhorias na qualidade na vida das associadas, além do viés econômico, podem representar entraves futuros para a AMCA.

6 Considerações finais

Na AMCA, aprendizados ao longo da vida são assimilados e produzidos com criatividade, mediante a capacidade de ressignificar o contexto vivido, de dar novos recomeços para a história individual e coletiva das atrizes sociais. As mudanças ganham realce quando as atrizes sociais começam a identificar, a questionar o patriarcado e, assim, percebem-se como pessoas, cidadãs, sujeitos da sua história e agentes de transformação.

Por meio dos aprendizados consolidados nas vivências da AMCA, elas se tornaram mais autoconfiantes, elevaram a autoestima, começaram a acreditar no potencial individual e coletivo de realizar transformações sociais, bem como perceberam que são capazes e merecedoras de protagonizar a própria vida.

A AMCA é um espaço em que há interlocução de vozes femininas que se aproximam, solidarizam-se, compartilham alegrias e problemas cotidianos, num processo de fortalecimento mútuo. Antes das vivências na AMCA, muitas dessas mulheres se sentiam inúteis, desvalorizadas, sozinhas e, após a sua inserção na associação, passaram a ver a vida sob outra perspectiva.

As atrizes sociais ainda não se encontram empoderadas; contudo, pequenos poderes foram assimilados e criados em decorrência do convívio na AMCA. Identificou-se que elas passaram a ser mais ouvidas dentro de casa, reconhecidas e valorizadas pelo seu trabalho por parte dos esposos e filhos, bem como desenvolveram capacidades e habilidades relativas ao aprimoramento das relações interpessoais, assumindo uma postura ativa frente aos desafios cotidianos, tanto na esfera doméstica, como na esfera pública. Elas ensaiam a experiência profunda de assumir-se como ser social e histórico, que pensa e age com autonomia, culminando na construção de uma sociedade justa, humana e com equidade social.

Referências

ANDRÉ, M. E. D. A. Estudo de caso em pesquisa e avaliação educacional. Brasília: Liberlivros, 2005. [ Links ]

ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária,1991. [ Links ]

ARENDT, H. Origens do Totalitarismo: antissemitismo, imperialismo e totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. [ Links ]

ÁVILA, M. B. Vida cotidiana e o uso do tempo pelas mulheres. In: CONGRESSO LUSO-AFRO-BRASILEIRO de CIÊNCIAS SOCIAIS 8, Coimbra. Anais... Coimbra: Universidade de Coimbra, 2004. [ Links ]

BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Editora 70, 2011. [ Links ]

BOGDAN, R.; BIKLEN, S. K. Investigação qualitativa em educação: uma introdução à teoria e aos métodos. Porto: Porto Editora,1994. [ Links ]

BRANDÃO, C. R. O que é Educação. São Paulo: Brasiliense, 2006. [ Links ]

CANO T. A.; ARROYAVE, O. A. Procesos de empoderamiento de mujeres: subjetivación y transformaciones en las relaciones de poder. In: Revista Virtual Universidad Católica del Norte. Medellin: n. 42, p. 94-110, 2014. [ Links ]

COOPAVAM. História. Disponível em: < em: 01 mar. 2016. [ Links ]

CORTELLA, M. S. Educação, escola e docência: novos tempos, novas atitudes. São Paulo: Cortez, 2014. [ Links ]

DA SILVA, L. M.; MIRANDA, L. Mulheres da Amazônia. In: Florestania e Ações que Transformam Vidas. Associação de Mulheres Cantinho da Amazônia (AMCA). Projeto CultivAção. 2016, 48 p. [ Links ]

DEERE, C. D.; LEÓN, M. O empoderamento da mulher: direitos à terra e direitos de propriedade na América Latina. Porto Alegre: Editora da Universidade, 2002. [ Links ]

DISK, S. V. Educação popular e mulheres na América Latina. In: STROMQUIST, N. P. Gender dimensions in education in Latin América. Washginton: Interamer,1996. [ Links ]

FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005. [ Links ]

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2009. [ Links ]

GADOTTI, M. Educação popular, educação social, educação comunitária conceitos e práticas diversas, cimentadas por uma causa comum. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DE PEDAGOGIA SOCIAL, 4. São Paulo. Anais... Campinas: Unicamp, 2012. p. 1-36. [ Links ]

GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1989. [ Links ]

GOHN, M. G. Educação não formal e o educador social: atuação no desenvolvimento de projetos sociais. São Paulo: Cortez, 2010. [ Links ]

GOHN, M. G. Educação não-formal e cultura política: impactos sobre o associativismo do terceiro setor. São Paulo: Cortez, 2011. [ Links ]

GOHN, M. G. Movimentos sociais e redes de mobilizações civis no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2013. [ Links ]

IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia Estatística. Cidades. 2018. Disponível em: < https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mt/juruena/panorama. Acesso em 07 mai. 2018. [ Links ]

LEON, M. Poder y empoderamiento de las mujeres. Bogotá: Tercer Mundo Editores, 1997. [ Links ]

LEON, M. Empoderamiento: relaciones de las mujeres com el poder. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, UFSC, v. 8, n. 2, p.191-205, 2000. [ Links ]

LIBÂNEO, J. C. Pedagogia e pedagogos, para quê? São Paulo: Cortez, 2010. [ Links ]

LIMA, A. M. A institucionalização da cooperação por meio de práticas de trabalho entre atores locais: um estudo de caso em uma comunidade vulnerável da região amazônica. Tese (Doutorado em Administração) - Universidade Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2017. [ Links ]

MDA. Ministério do Desenvolvimento Agrário. Agricultura familiar, reforma agrária e desenvolvimento local para um novo mundo rural: política de desenvolvimento rural com base na expansão da agricultura familiar e sua inserção no mercado. Brasília: MDA, 1999. [ Links ]

OLIVEIRA, K. V. Aprendizagens em espaços não formais e o empoderamento feminino: um estudo de caso em uma associação da Região Amazônica. Dissertação (Mestrado em Ensino) - Universidade do Vale do Taquari, Lajeado, 2017. [ Links ]

OLIVEIRA, M. L. L. Transformações das desigualdades de gênero: narrativas da vida cotidiana e empoderamento de mulheres de Assentamentos do Cariri Paraibano. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2007. [ Links ]

ONU. Organização das nações Unidas Mulheres Brasil. Princípios de empoderamento das mulheres. 2016. Disponível em: http://www.onumulheres.org.br/wpcontent/uploads/2016/04/cartilha_WEPs_2016.pdf. Acesso em: 10 jan. 2017. [ Links ]

SARDENBERG, C. M. B. Conceituando “empoderamento” na perspectiva feminista. SEMINÁRIO INTERNACIONAL: Trilhas do Empoderamento de Mulheres. 1, Salvador. Anais... Salvador, UFBA, 2006. [ Links ]

SAMPIERI, R. H.; COLLADO, C. F.; LUCIO, M. P. B. Metodologia da pesquisa. São Paulo: McGraw Hil, 2006. [ Links ]

SIMSON, O. R. M. V.; PARK, M. B.; FERNANDES, R. S.; Educação não-formal: um conceito em movimento. In: Visões singulares, conversas plurais. São Paulo: Itaú Cultural (Rumos Educação Cultura e Arte 3), 2007. [ Links ]

STROMQUIST, N. P. La búsqueda del empoderamiento: em qué puede contribuir el campo de la educación. In. LEÓN, M. Poder y empoderamiento de las mujeres. Santa fé de Bogotá: Tercer Mundo y Facultad de Ciencias Humanas, 1997. [ Links ]

TESTA, J. D. Educação pública em assentamento do MST. Dissertação (Mestrado Profissional em Gestão de Políticas Públicas) - Universidade do Vale do Itajaí, Itajaí, 2009. [ Links ]

VARGAS, L. N. Vale do Amanhecer, retrato de um assentamento: modelo de reforma agrária para a Amazônia mato-grossense. Dissertação (Mestrado em Agricultura Tropical) - Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, 2006. [ Links ]

YIN, R. K. Estudo de caso: planejamentos e métodos. Porto Alegre: Bookmam, 2010. [ Links ]

ZAPATA, E. Microfinanzas y empoderamiento de las mujeres rurales. Cidade do México: Plaza y Valdés, 2003. [ Links ]

Recebido: 17 de Outubro de 2018; Aceito: 29 de Junho de 2020

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons.