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Eccos Revista Científica

Print version ISSN 1517-1949On-line version ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.60 São Paulo Jan./Mar 2022  Epub Feb 08, 2024

https://doi.org/10.5585/eccos.n60.13684 

Artigos

EDUCAÇÃO, SISTEMA DE JUSTIÇA E AS PEÇAS QUE COMPÕEM AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A PROTEÇÃO, DEFESA E GARANTIA DOS DIREITOS À INFÂNCIA

EDUCATION, THE JUSTICE SYSTEM AND THE PARTIES COMPOSING PUBLIC POLICIES FOR THE PROTECTION, DEFENSE AND GUARANTEE OF RIGHTS TO CHILDREN

Sílvia Cardoso Rocha, Doutora em Educação1 
http://orcid.org/0000-0002-0031-243X

Patrícia de Moraes Lima, Doutora em Educação2 
http://orcid.org/0000-0001-7741-3709

1Doutora em Educação, Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, Florianópolis, Santa Catarina - Brasil.

2Doutora em Educação, Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, Florianópolis, Santa Catarina - Brasil.


Resumo

Este texto apresenta uma reflexão acerca da relação entre a Educação e o Sistema de Justiça na formulação de Políticas Públicas que versam sobre as infâncias e seus direitos. Traz o recorte de uma pesquisa de Doutorado apresentada em 2019 ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, à Linha de Pesquisa Sujeitos, Processos Educativos e Docência/ Ensino e Formação de Educadores que teve por objetivo compreender através do Protocolo APOIA Online e seu fluxo dentro do Programa de Enfrentamento à Evasão Escolar vinculado ao Ministério Público de Santa Catarina, como são construídas as aproximações entre Educação e Justiça. Caracterizou-se como uma pesquisa documental e de campo, integrada a uma abordagem etnográfica. As violências são aqui entendidas a partir da perspectiva de Arendt (2018). Os conceitos centrais da pesquisa-tese versaram sobre Educação, Justiça, Infâncias e as violências, com atenção aos maus-tratos na infância. Para este artigo, entretanto, optamos pelo recorte que evidencia a discussão entre a Educação o Sistema de Justiça e a relação estabelecida na elaboração das Políticas Públicas voltadas às infâncias. A pesquisa apontou, entre outros aspectos que, a invisibilidade de tantas crianças ou dos “ninguéns” junto aos equívocos nos dados oficiais compromete a criação de Políticas Públicas voltadas ao propósito de proteger e assegurar os direitos de crianças e adolescentes.

Palavras-chave: educação; infâncias; justiça; maus-tratos; violências

Abstract

This text presents a reflection on the relationship between Education and the Justice System in the formulation of Public Policies that deal with children and their rights. It brings the cut of a doctoral research presented in 2019 to the Graduate Program in Education of the Federal University of Santa Catarina - UFSC, to the Research Line Subjects, Educational Processes and Teaching / Teaching and Training of Educators, whose objective was to understand through of the APOIA Online Protocol and its flow within the Program for Confronting School Evasion linked to the Public Ministry of Santa Catarina, how the approaches between Education and Justice are built. It was characterized as a documentary and field research, integrated to an ethnographic approach. Violence is understood here from the perspective of Arendt (2018). The central concepts of the research-thesis focused on Education, Justice, Childhood and Violence, with attention to child abuse. For this article, however, we opted for the clipping that evidences the discussion between Education and the Justice System and the relation that is established in the elaboration of the Public Policies directed to the childhoods. The research pointed out, among other things, that the invisibility of so many children or of the ones close to the mistakes in the official data compromises the creation of Public Policies focused on the purpose of protecting and guaranteeing the rights of children and adolescents.

Keywords: education; childhood; justice; mistreatment; violence

Introdução

Este texto apresenta uma reflexão a partir dos estudos realizados no Núcleo de Estudos e Pesquisas Vida e Cuidado (NUVIC)1 acerca da relação entre a Educação, o Sistema de Justiça e os movimentos presentes na elaboração (ou não) das políticas públicas para a proteção, defesa e garantia dos direitos à infância. De maneira específica, traz um recorte da pesquisa de Doutorado2 apresentada em 2019 ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, à Linha de Pesquisa Sujeitos, Processos Educativos e Docência/Ensino e Formação de Educadores que teve por objetivo compreender através do Protocolo APOIA Online e seu fluxo dentro do Programa de Enfrentamento à Evasão Escolar vinculado ao Ministério Público de Santa Catarina, como são construídas as aproximações entre Educação e Justiça. Nesse intuito, o campo da pesquisa foi constituído por duas Escolas Públicas da Rede Estadual e duas Promotorias de Justiça da Infância (MP), situados nas cidades de Criciúma e Tubarão, localizadas na Região Sul de Santa Catarina. Caracterizou-se como uma pesquisa documental e de campo, integrada a uma abordagem etnográfica.

Os conceitos centrais da pesquisa-tese versaram sobre as violências, com atenção aos maus-tratos na infância. Para este artigo, entretanto, optamos pelo recorte que evidencia a discussão entre a Educação, o Sistema de Justiça e a relação estabelecida na elaboração das Políticas Públicas voltadas para proteção, defesa e garantia dos direitos das crianças. As violências são aqui entendidas a partir da perspectiva de Arendt (2018). Assim sendo, a violência tem caráter instrumental e a dominação e a obediência são construídas pela coerção, portanto, o domínio pela pura violência advém do poder sendo perdido, e onde o poder encolhe, a violência instala-se. Caracteriza-se como um fenômeno complexo, que não se reduz à explicações simplistas cuja complexidade do olhar assume o diálogo com o campo empírico para construir explicações aproximadas acerca do fenômeno dos maus-tratos na infância. Nesse cenário, valoriza a infância como experiência em travessia.

A pesquisa apontou, entre outros aspectos que, a distância balizada nas relações entre Escola e Sistema de Justiça é expressão do entendimento da atuação da Justiça como norma associada ao seu conceito sociológico e ontológico, ou seja, norma como regularidade e determinação de conduta. Além disso, evidenciou que, a invisibilidade de tantas crianças ou dos “ninguéns” junto aos equívocos nos dados oficiais compromete a criação de Políticas Públicas voltadas ao propósito de proteger e assegurar os direitos de crianças e adolescentes.

O contexto investigativo: o Programa APOIA

O Programa de Combate à Evasão Escolar intitulado Programa APOIA, iniciativa do Ministério Público catarinense, nasceu em 13 de março de 2001 na cidade de Florianópolis/SC. Instituído pela Portaria nº 036 de 03 de abril de 2001, foi a primeira ação de um programa mais amplo, denominado Justiça na Educação: um programa que surge em 2000 objetivando fortalecer a aliança entre o Sistema de Justiça e os Sistemas de Ensino, o Ministério da Educação, por meio do Fundo de Fortalecimento da Escola (FUNDESCOLA), e a Associação Brasileira de Magistrados e Promotores de Justiça da Infância e da Adolescência (ABMP). Aborda o direito à educação a partir da ótica do Sistema de Garantias dos Direitos da Criança e do Adolescente.

A sigla APOIA formada a partir do nome do formulário a ser empregado ― aviso por infrequência de aluno ― resultou no radical do mesmo verbo apoiar (apoia) com o intuito de apelar para a responsabilidade dos adultos quanto ao apoio dado para a criança e o adolescente no empreendimento da trajetória escolar. A ideia central é apoiar, especialmente a criança e sua família para que o/a aluno/a consiga concluir seus estudos. O programa surgiu com o propósito de atender dois objetivos: garantir a permanência na Escola de crianças e adolescentes, de 07 a 18 anos de idade, para que concluam o Ensino Fundamental e promover o regresso à Escola de crianças e adolescentes que abandonaram sem concluir o Ensino Fundamental. Com a publicação da Emenda Constitucional 59/2009 (BRASIL, 2009) que traz a ampliação do Ensino Fundamental obrigatório para a faixa dos 04 aos 17 anos, o objetivo do programa pretendeu garantir que toda criança e adolescente tenha o direito de cursar o Ensino Básico e o foco foi direcionado para crianças e adolescentes de 04 a 17 anos que não completaram o ensino obrigatório. Assim, o programa passou a atender também a Educação Infantil.

Na evolução desse contexto surge, em 2013, o Termo de Cooperação, 024/2013 firmado entre o Ministério Público, Secretaria de Estado da Educação, União dos Dirigentes Municipais da Educação do Estado de Santa Catarina, Federação Catarinense dos Municípios, e a Associação Catarinense dos Conselhos Tutelares. O termo justifica-se pelo que dispõem os artigos 205, 208 e 227 da Constituição Federal (BRASIL,1988); pelo artigo 56 do Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990); pelo artigo 5º parágrafo 1º inciso III da Lei Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996); pelo artigo 12 da mesma lei e o artigo 6º da Lei nº 12.796/13 (BRASIL, 2013). Diante disso, o APOIA atua em rede na qual cada parte interinstitucional (Escola, Conselho Tutelar e Ministério Público) assume o compromisso de apoiar o/a aluno/a infrequente e trazê-lo aos espaços da sala de aula. E, ainda para garantir a efetividade dos objetivos que propõe o programa é também firmado, em cada município, os Termos de Adesão: Termo de Adesão Nº 223/2014 - em Criciúma (SANTA CATARINA, 2014) e em Tubarão Termo de Adesão Nº 268/2016 (SANTA CATARINA, 2016).

O órgão gestor do APOIA é o Centro de Apoio da Infância e Juventude (CIJ) desenvolve estratégias para adequar o programa às necessidades das Promotorias de Justiça. E a Secretaria Estadual da Educação, através do seu setor específico de processamento de dados (controle e monitoramento realizado via SISGESC ― Sistema de Gestão Educacional de Santa Catarina), antigo sistema série ― tem a tarefa permanente de monitorar a evolução do quadro da infrequência em todo o estado, repassando os dados aos demais parceiros.

Os Avisos por Infrequência de Alunos foram os instrumentos desenvolvidos para a padronização dos procedimentos de enfrentamento à evasão escolar, facilitando o acompanhamento do programa e servindo de referência para a formulação das Políticas Públicas. Em 2013, o programa APOIA foi escolhido como uma das três atividades prioritárias do Centro de Apoio da Infância e Juventude (CIJ) e o MP construiu um novo projeto para o programa, objetivando criar um sistema informatizado para substituir as fichas de infrequência e fortalecer as Políticas Públicas intersetoriais. Com a implantação do Sistema APOIA Online, em 2014, criado e implantado em parceria com a Secretaria de Estado da Educação e o Centro de Informática e Automação do Estado de Santa Catarina (CIASC), a emissão de avisos por infrequência passou a ser realizada em uma plataforma web, conectada em tempo real com os parceiros do programa. Isso possibilitou a criação, monitoramento e avaliação das estatísticas. A partir da iniciativa, o programa foi intitulado Novo APOIA, eleito prioridade institucional no Plano Geral de Atuação do MPSC, no ano de 2015.

O funcionamento do Sistema APOIA Online começa pela responsabilidade de professores/as em monitorar, diariamente, a frequência escolar de cada aluno/a. Quando observada a ausência do/a aluno/a por cinco dias consecutivos, ou sete dias alternados, dentro de um mês, o/a professor/a preenche a ficha de notificação inicial do APOIA e encaminha para a equipe responsável pelo programa, ou para a Direção da Escola. No entanto, para ter acesso ao sistema é necessário um login e senha, pois a entrada é restrita aos responsáveis pelos encaminhamentos das ocorrências. Recebida a ficha de notificação inicial do APOIA, o profissional responsável pelo Programa na UE (equipe pedagógica, equipe do NEPRE3 ou direção) deverá inserir os dados no sistema. Quando a Escola já tomou as providências cabíveis como contato com a família e conversa sobre a responsabilidade dos pais e/ou responsáveis quanto ao retorno do/a aluno/a, além de outras ações que busquem o retorno do/a aluno/a dentro de sete dias, e se após esse contato não obteve retorno do/da aluno/a para a Escola no prazo de sete dias, ou não encontrou os responsáveis, a Escola encaminha a informação ao APOIA e ao Conselho Tutelar (CT). Na sequência, o CT recebe um e-mail com a notificação do APOIA contendo as informações básicas dos dados do/a aluno/a. Logo, o CT para saber dos detalhes do caso precisará entrar no sistema APOIA Online. Se o CT não conseguir o retorno do/a aluno/a para a Escola, depois de tomadas todas as medidas relevantes, em um prazo de 14 dias, ou não ter encontrado os responsáveis, o APOIA é encaminhado ao Ministério Público (MP) via e-mail e via sistema.

Ainda que, a partir desse momento, a responsabilidade passe a ser do MP, o CT deverá colaborar com o Órgão até a resolução do caso. E no prazo de duas semanas, após a notificação dos pais ou responsáveis, caso o/a aluno/a não retorne para a Escola, a Promotoria da Infância e Juventude toma outras providências. Como por exemplo, alertando os adultos responsáveis de que a negligência poderá acarretar a instauração de procedimento por infração administrativa do art. 249 - ECA (BRASIL, 1990), com pena de multa; ou a instauração de processo criminal por infração ao art. 246 do Código Penal (BRASIL, 1940), pelo crime de abandono intelectual ou a instauração de processo para suspensão ou perda do pátrio poder, por descumprimento do art. 22 - ECA e art. 1637/1638 do Código Civil (BRASIL, 2002); ou ainda, a aplicação de medidas de proteção à criança ou adolescente anunciada no Art. 101 - ECA. (BRASIL, 1990).

Infâncias e Direitos: entre a ambivalência das práticas de cuidado e proteção e a complexidade das violências

Dia após dia nega-se às crianças o direito de ser crianças. Os fatos, que zombam desse direito, ostentam seus ensinamentos na vida cotidiana. O mundo trata os meninos ricos como se fosse dinheiro, para que se acostumem a atuar como o dinheiro atua. O mundo trata os meninos pobres como se fossem lixo, para que se transformem em lixo. E os do meio, os que não são ricos nem pobres, conserva-os atados à mesa do televisor, para que aceitem desde cedo, como destino, a vida prisioneira. Muita magia e muita sorte têm as crianças que conseguem ser crianças. (GALEANO, 1999, p. 11).

As palavras de Galeano retratam o movimento de tensão entre o desejo das crianças terem efetivamente seus direitos garantidos e a dura realidade vivida pelas crianças na sociedade contemporânea. A história mostra a ambivalência existente nas práticas de cuidado e proteção. Esse dado agrava-se quando passamos a considerar os processos culturais nos quais as crianças encontram-se inseridas, pois esses alteram a compreensão da universalidade do direito. Portanto, a equação não é simples e complexifica-se ao consideramos os processos de inserção social, os modos de vida e os processos culturais que contornam as infâncias.

Hoje, passados 28 anos da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o assunto dos maus-tratos na infância ainda permanece sob um véu que obscurece e/ou camufla situações que merecem ser desnudadas para avançarmos no caminho da proteção às infâncias. Considerando sempre os processos culturais e os contextos micro políticos que contornam a proteção, a promoção e a provisão dos direitos das crianças. O tema das violências é abordado e envolto por medo, constrangimentos e hipocrisia e, alguns fatores que atravessaram a trajetória dos direitos das crianças podem auxiliar a pensar sobre e porque esses sentimentos são alimentados até hoje.

No Brasil vivem 63 milhões de crianças e adolescentes, 46% das crianças e adolescentes menores de 14 anos vivem em domicílios com renda per capta de até meio salário mínimo e 132 mil famílias são chefiadas por crianças e adolescentes entre 10 e 14 anos. (IBGE, 2010). Nesse contexto ocorrem, em média por ano, 82 mil denúncias de violação de direitos contra as crianças. E de acordo com o relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) em 20174 a cada sete minutos, no mundo, uma criança morre por ato de violência (UNICEF, 2017). Portanto, e diante de números tão alarmantes, este texto nasceu das tensões que rondam os discursos da infância e o exercício dos direitos da criança. O relatório de 2017 sobre os números das violências contra crianças apresentado pela Organização Social Visão Mundial5 aponta o Brasil como o líder no ranking de violência contra a criança dentro da América Latina. No recorte nacional, o estudo apontou que três em cada dez pessoas conhecem pessoalmente uma criança que já sofreu violência.

As situações de maus-tratos na infância são consideradas pela Organização Mundial de Saúde (OMS) um caso de saúde pública mundial. No Brasil, por exemplo, ocorrem em média “396 denúncias por dia de maus tratos a crianças e adolescentes, sendo que, a negligência, agressão psicológica e violência física são as violações mais relatadas.” 6

O aumento das denúncias de violência sofridas por crianças e adolescentes está relacionado a uma série de fatores que vão desde a piora na situação econômica do País, o que influencia diretamente nas relações familiares, até uma maior conscientização da população em relação à existência do canal “Disque 100”. O reconhecimento tardio das violações de direitos das crianças e a dificuldade de identificação das variadas formas de violências ou de situações caracterizadas como maus-tratos que é causado por concepções equivocadas, diferenças culturais, tradição, preconceitos e estigmas deixando um legado duro e desafiador para os dias atuais.

Encarar dados estatísticos alarmantes sobre nossa sociedade brasileira e que envolvem as crianças pode tornar-se doloroso, porém necessário dentro da Rede de Proteção, e “compreender significa, em suma, encarar a realidade sem preconceitos e com atenção, e resistir a ela ― qualquer que seja.” (ARENDT, 2012, p. 12).

As violências, como conceito, são aqui entendidas por um fenômeno complexo e plural que carrega dados culturais compositórios da vida em sociedade. Olhar de outro modo para as violências significa jogar luz sobre o ocorrido em nossa volta, não para clarear algo oculto, mas para limpar a visão e enxergar sem embaçar o objeto que se olha. Violências evocam ambivalências que são constituintes dos comportamentos humanos: homo sapiens, homo violens (DADOUN, 1998) criando ou destruindo a vida dependendo de onde o ser humano coloca sua intenção e pode inclusive fazer uso da perversão para produzir violências. (ROUDINESCO, 2008). A perversão como estruturação da nossa condição humana (ARENDT, 2014) cria ambivalências em torno das atitudes de cuidado e proteção.

O que essa clareza pode proporcionar? Enxergar que o fenômeno das violências não é algo externo de nós ou algo como uma entidade fora de nós, mas que em sua análise e compreensão pode ser pensada na sua condição humana e suas manifestações culturais. A condição humana, sob a perspectiva de Hannah Arendt (2014), não é sinônima de natureza humana e sim significa as formas de vida que o homem impõe para sua sobrevivência, variam conforme o contexto histórico e social e assim se tornam condicionados por seus modos/movimentos de operar no mundo.

Violências podem ser entendidas de maneira ampla, plural e inscritas como “figuras de desordem” (BALANDIER apudSOUSA, 2010, p. 44) que contornam as relações sociais e perpassam as situações de vulnerabilidade da infância. Sendo consideradas um fenômeno paradoxal suscitando silenciamentos e resistências, traumas e resiliências, dor e prazer, repulsa e atração, interesses individuais e direitos coletivos e estão diretamente ligadas à cultura, história, ciência, educação, valores, crenças e contextos em que surgem. Olhar para as infâncias e violências reivindica pensar a história da criança marcada pela dinâmica relacional dos agrupamentos familiares e sociais de cada época e considerar que é antigo o abandono social da criança e, na medida em que avançamos no tempo, surgem outras formas de abandono, por vezes, disfarçadas de cuidado.

Portanto, em relações entre adulto e criança sustentadas em uma autoridade baseada no respeito, são desnecessárias a coerção e persuasão. O que, então, levaria na contemporaneidade muitas famílias basearem suas relações na coerção e abuso da força? Para Arendt, a violência encerra um caráter instrumental, sendo a dominação e a obediência construídas pela coerção, e dessa forma, o domínio pela pura violência advém do poder sendo perdido, onde o poder encolhe e a violência se instala. (ARENDT, 2018). O que evoca pensar no dado de diferença geracional adulto e criança, que, no caso da violência infantil, sempre precisa ser considerado. O poder do adulto instaura-se sobre um dado de desigualdade que subtrai as forças de poder por parte das crianças, por isso, mais plausível instalar-se a violência.

Arendt (2014) aponta o totalitarismo como a pior forma de governo ocorrida no mundo e o risco eminente de permanecer para sempre. No entanto, sinaliza uma esperança e a possibilidade latente para um novo começo que se desenrola na capacidade humana de agir. Através da ação desenvolvida pela liberdade política, cada homem (e também mulher) pode iniciar a todo instante algo diferente. É através do nascimento que homem e mulher nascem para a vida política, vista como atividade essencial humana. Arendt procura deixar claro que a superação do mal radical apenas poderá ser conseguida através do exercício do juízo e da responsabilidade, da pluralidade e da liberdade que cada ser humano tem e não pode viver indiferente ainda que sob o domínio do totalitarismo. Essa compreensão implica um mirar ético-político acerca da realidade observada, onde o Outro cria os sentidos de pertencimento social e territorial. Ou seja, compreender esse Outro a partir dele, de sua história, de sua existência cultural.

Diante dos números que representam a perversidade dos maus-tratos e da ambivalência das medidas de proteção, como podemos pensar esses direitos que se entrecruzam com a provisão, proteção e participação? A distância que marca as relações entre Escola e Sistema de Justiça é expressão do entendimento da atuação da Justiça como norma associada ao seu conceito sociológico e ontológico, ou seja, norma como regularidade e como determinação de conduta? A aproximação de respostas a esses questionamentos podem estar na história dos caminhos da proteção onde o reconhecimento dos maus-tratos como violação de direito acompanhou a evolução da história da infância e, conforme Ariès (2012) os registros históricos demostram que a infância foi alvo de violências submetidas às situações de acordo com as concepções e definições em torno dos conceitos de criança e família, como por exemplo,

[...] a persistência até o fim do século XVII do infanticídio tolerado. Não se tratava de uma prática aceita, como a exposição em Roma. O infanticídio era um crime severamente punido. No entanto, era praticado em segredo, correntemente, talvez, camuflado, sob a forma de um acidente: as crianças morriam asfixiadas naturalmente na cama dos pais, onde dormiam. Não se fazia nada para conservá-las ou para salvá-las. (ARIÈS, 2012, p. xv).

A “a-vida-a-morte” da infância, termo aqui emprestado de Corazza (2004), carrega o peso da sua história, traz a marcas indeléveis do (des)cuidado dedicado para a figura infantil e mostra que “os limites entre a prática de expor crianças e as diversas formas que o infanticídio assumiu na história ocidental são tênues.” (CORAZZA, 2004, p. 61). As violências constituem a história da humanidade, afetam os sujeitos e comprometem existências, marcam peles e lugares, acorrentam grupos em situação de vulnerabilidade, marcam e demarcam socialmente os sujeitos reforçando exclusões. Compreender que a trajetória do cuidado e proteção às crianças faz-se entre discursos, capturas e desvios, talvez esse entendimento abra outros caminhos, outros olhares ou pelo menos nos possibilite desconfiar o que é dito e a maneira como são anunciadas e enunciadas as violências a partir da sua história.

Educação, Sistema de Justiça e políticas públicas: as peças de um mosaico

O interessante não é ver que o projeto está na base de tudo isso, mas, em termos de estratégia, como as peças foram dispostas. (FOUCAULT, 2015, p. 243).

Como as peças estão dispostas entre Educação e Sistema de Justiça no Protocolo APOIA? Partimos da colocação de Foucault em uma entrevista sobre Poder e Corpo7 para iniciar uma aproximação das peças que compõem as Políticas Públicas com a pergunta/problema que moveu a pesquisa-tese: como acontece a relação entre Educação e Justiça, a partir da análise do APOIA em Santa Catarina? Até aqui, o mais interessante além do desenho do projeto e/ou do Programa foi ver/perceber em termos de estratégias, como as peças estão dispostas.

Não podemos esquecer que o nascimento do Programa APOIA desponta do movimento “Todos pela Educação”, um movimento da sociedade civil que, durante a vigência do Plano Nacional de Educação 2001-2010, a Associação Brasileira de Magistrados, Promotores de Justiça e Defensores Públicos da Infância e Juventude (ABMP) realizaram tal movimento junto ao Ministério da Educação (MEC) visando garantir para todos/as o direito à Educação.

As instituições, dentro das esferas Educacional e Judicial, nem sempre se encontram em sincronia e são peças que, muitas vezes, não se encaixam no mosaico do Programa. No entanto, corroboramos com a opinião de que não é somente pelo fato de o direito à Educação estar claramente enunciado na Constituição que, ele será garantido, pois

[...] no mais das vezes o que temos não é uma simples negação do direito à Educação; antes o contrário, a todo tempo se destacam os avanços. Ainda assim, um dos problemas centrais do sistema educacional brasileiro parece ser a forma desigual com que os alunos são tratados, ou seja, os recursos humanos e materiais são distribuídos de maneira desigual na sociedade, aumentando as oportunidades para alguns grupos e reduzindo a oportunidade para os demais. (VIEIRA; ALMEIDA, 2013, p. 13).

A citação dos professores de Direito, acima enunciada, aproxima-se dos dados encontrados sobre o fluxo do Protocolo APOIA. De maneira alguma se nega o direito à Educação, no entanto, a sua garantia efetiva trava nos obstáculos encontrados pelas instituições vinculadas tanto à Educação quanto à Justiça: entraves da ordem dos despachos, dos orçamentos, dos itinerários das equipes e da própria compreensão do fluxo idealizado em seu Projeto.

De acordo com os dados desta pesquisa percebe-se claramente um entrave no desempenho do fluxo do Programa, o que é ocasionado por diversos fatores, alguns elencados na seguinte narrativa: “a relação entre Educação e Justiça é distante ainda, (risos). Percebemos que a Rede é falha. Não está interligada, nem conectada, é uma relação fragmentada”. (Educadora 4).8

Diante dessa narrativa, podemos reafirmar a hipótese: a distância que marca as relações entre Escola e Sistema de Justiça é expressão do entendimento da atuação da Justiça como norma associada ao seu conceito sociológico e ontológico, ou seja, norma como regularidade e como determinação de conduta. Nas brechas dessa distância ou nas lacunas que separam as duas áreas distintas estão os atrasos do Protocolo, a invisibilidade das violências sofridas pelas crianças e a falta de clareza e objetividade quanto aos cuidados e acolhida necessários às crianças e famílias em situação de vulnerabilidade social. As seguintes narrativas confirmam essas lacunas:

Olha. A gente está muito longe do que precisaria. Porque os APOIAs custam a dar respostas. Então a gente passa como tu visses ali, tem aquele monte de alunos, mais esse ano todos esses aqui que eu já perdi a conta [...]. Não sei quantos tem. (Educadora 1).9

Tem muitas divergências de opiniões entre os setores. Eu acho que ainda falta alguma coisinha nesse meio. É que nem a gente comentando ali, de nós pro CT já falta, quem dirá nós escola pra Promotoria. Então é bem complicado. Nesses anos todos eu nunca vi a presença do MP na escola. (Educadora 2).10

(...) Então pensando Educação e Justiça relacionada ao APOIA é uma forma de (silencio). É um canal que deveria estar interligado, mas não há não. Na real acho que ainda não estamos nesse nível de maturidade (risos) eu achei a palavra. Então falta o diálogo entre os atores ali, os três atores principais dentro do sistema APOIA: UE, CT, MP. E falta a conscientização, de cada um saber o seu papel dentro pra de fato a gente garantir a Educação e assim garantir também a Justiça porque é justo a criança ter aceso a Educação. (MP 2) .11

Quando a Rede não se conecta como deveria interfere em todo o fluxo de um trabalho, no caso do APOIA, comprometendo o fluxo do Protocolo e do trabalho que potencialmente poderia ser realizado no que concerne às causas da evasão. A dúvida da fidedignidade dos dados estatísticos e o descumprimento dos prazos por parte de cada órgão responsável pelo Protocolo comprometem possíveis mudanças no quesito demandas sociais que poderiam, em potencial, gerar processos e articulações culminando na construção de Políticas Públicas voltadas para as infâncias. Como bem narrado pelos sujeitos desta pesquisa, a informatização da plataforma foi um avanço importante para os setores da Educação e da Justiça se conectarem rapidamente junto aos demais órgãos que compõem a Rede de Proteção. No entanto, não foi suficiente para agilizar os processos e demandas oriundas do Protocolo. Indiscutivelmente, a possibilidade de a Rede estar conectada de maneira constante é um avanço fundamental para facilitar a garantia dos direitos das crianças e, principalmente daquelas que se encontram em situação de vulnerabilidade social. Hoje, mais do que nunca, esse canal direto de participação e atuação político/social precisa estar aberto contra o risco eminente de fragilização da nossa democracia.

Outra evidência desnudada pela pesquisa-tese foi a importância do papel dos/das assistentes sociais no trabalho de resgate de alunos/as infrequentes ou evadidos e a importância da participação do trabalho da Assistência Social nesses casos, pois o MP realmente precisa, antes da aplicação de medidas socioeducativas ou penalidades, atentar para as vulnerabilidades dessa população e, com seu aparato técnico junto aos aparatos da Assistência Social promover orientações e cuidados exigidos para cada situação de vulnerabilidade. Nessa direção, seria possível diminuir a cultura punitiva e acentuar a cultura de uma Educação e Justiça voltada para inclusão de todos/as.

Para que a Assistência Social atue nos casos de APOIA depende-se, exclusivamente, da compreensão de cada Promotor/a sobre sua relevância na avaliação da vulnerabilidade de cada caso. Como relata uma Assistente Social entrevistada, a sua atuação depende do chamado do promotor responsável pelos casos APOIA:

Em algumas Promotorias não tenho nenhuma intervenção porque depende da compreensão de cada promotor. Eu sou um suporte técnico das promotorias. Então, cada Promotor/a requisita se acha que precisa ou não. Vai ter Promotor que me demanda trabalho, tem outros que passam aqui passam ali e não me chamam. Eu acho que na específica da infância eu tenho esse trabalho e que envolve o contato com toda a Rede indiretamente. Penso que no caso específico do APOIA precisamos pensar na Proteção Integral. Aí a partir do Protocolo podemos olhar pra criança, pra esse aluno, pra essa pessoa e ver que ela tem outras demandas que influenciam nos casos de evasão ou que isso está relacionado aos maus-tratos, a outras violações. E que isso é proteção integral e proteção integral cabe a todos. A gente acaba ficando nos compartimentos. A Educação muitas vezes, ela acha que a responsabilidade dela no APOIA é informar a evasão e fica por isso mesmo. (MP 2).12

Em relação aos entraves, atrasos, obstáculos, questões de intercomunicação entre a Rede de Proteção, responsabilidade quanto aos prazos dos encaminhamentos de cada órgão, diante disso e para além disso, trazemos a seguinte questão: o quanto a Justiça e seus setores da Infância e Juventude contribuem para a promoção dos direitos à Educação e para a construção de Políticas Públicas? Algumas narrativas reiteram a importância do Sistema de Justiça para a efetivação dos direitos das Infâncias e dos obstáculos encontrados na sua concretização, dificuldades identificadas pelo fato de os direitos serem objetos de disputa, divergências de compreensão sobre a quem cabe tais obrigações e escassez de recursos.

Sem dúvida a vitalidade de uma sociedade civil, atuante e organizada, potencializa o MP a agir e cumprir seu papel. Conselhos como os Municipais da Criança e do Adolescente expõem e dão visibilidades para as tantas vulnerabilidades, carências, exclusões sociais e riscos os quais estão expostas as crianças. São essas organizações que pressionarão MP e governantes a construírem Políticas Públicas condizentes com os propósitos constitucionais.

Aqui, quando se trata de APOIA, o fim não deveria apenas por fim ao processo ou Protocolo, mas antes e, além disso, tratar o problema, a causa da evasão e/ou da infrequência. Talvez, o MP no que se refere ao direito à Educação precise ser mais ousado, ou ainda,

[...] não apenas o Judiciário, mas também os operadores jurídicos (Ministério Publico, Defensorias e Advogados de interesse público) têm sido muitas vezes pouco ousados na formulação de pedidos e remédios para problemas complexos, pois miram mais na concessão de um benefício do que na solução estrutural do problema. Não que estes pedidos não possam e devam ser feitos, mas a discussão sobre a qualidade do processo decisório pode ser mais proveitosa para que as instituições se qualifiquem, estruturando as políticas públicas de forma a atender mais adequadamente as aspirações constitucionais. (VIEIRA; ALMEIDA, 2013 p. 17-18).

Os problemas, entraves e obstáculos no fluxo do APOIA apontam ao MP a necessidade de uma reformulação do Programa que avance na capacidade de atender as demandas em relação aos direitos fundamentais e suscita a criação de um movimento com audácia suficiente para abandonar a culpabilização da família em torno da infrequência e coragem para criar ferramentas outras identificando as demandas complexas e estruturais que envolvem as famílias. Corroboramos com o que afirma Silveira em uma análise sobre a gestão da informação na área de direitos humanos da criança e do adolescente:

[...] a intensidade da produção, circulação e tradução dos novos dispositivos de saber e poder - que passaram a brotar como rizomas em diversos pontos da rede de atendimento e proteção no curso da década de 1990 - , aliada à sua alta heterogeneidade, tem dificultado sobremaneira a criação de mecanismos de ordenação, sistematização e agenciamento por parte do poder público. (SILVEIRA, 2015, p. 73).

Cria-se uma desorganização entre os dispositivos de poder, o exercício prático da governamentalidade e a concepção das Políticas Públicas que são apresentadas dentro desse contexto. A sociedade precisa atentar aos efeitos perversos das diversas formas de violências e denunciar os casos identificados ao Ministério Público e a Rede de Proteção, para que a responsabilização do poder público omisso seja levada ao cabo e a proteção integral das crianças assegurada. A invisibilidade de tantas crianças ou dos “ninguéns” junto aos equívocos nos dados oficiais compromete a criação de Políticas Públicas voltadas ao propósito de proteger e assegurar os direitos de crianças e adolescentes e, essa situação perversa é a expressão das desigualdades e/ou de violência estruturante que, “se caracteriza pelo destaque na atuação de classes, grupos ou nações econômicas, ou politicamente dominantes, que se utiliza de leis e instituições para manter sua situação privilegiada, como se isso fosse natural.” (MINAYO apudGIRON, 2010, p.50).

Ainda estamos avançando para o novo quadro conceitual apresentado pelo Estatuto, por exemplo, a “proteção integral” não substituiu a “cultura da internação”, o castigo e a disciplina não foram excluídos, mas tem outra forma conceitual chamada “medida socioeducativa” e esses componentes controversos da governamentalidade coexistem e são sentidos no cotidiano ora de maneira criativa, ora conflituosa dentro da Rede de Proteção.

Considerações que convidam a estender a mão

As narrativas sobre o Programa APOIA evidenciam que, o Protocolo APOIA configura-se um dispositivo regulador da família e da infância e atua como extensão do Estado regulando, através de leis e normas, os comportamentos das famílias, de educadores/as e dos adultos no cuidado com as crianças. Essa situação é decorrente da intensificação do complexo fenômeno da judicialização da vida onde consequentemente ocorre a judicialização da infância. O fenômeno de judicialização da infância cria um conjunto de saberes e técnicas direcionadas para a formulação de leis e normas que amparam a entrada do Estado de maneira intensa na vida das famílias em nome da defesa, da garantia e da proteção dos direitos das crianças e dos adolescentes.

A Escola, no contexto dos (des)encontros com os coparticipantes do Programa, acaba sendo de maneira incongruente colocada como delatora da família, isso pode ser comprovado nos desconfortos ocasionados na relação Escola e família. Os órgãos de Proteção assumem em relação às famílias da criança em situação de evasão, uma postura de culpabilização camuflando questões importantes que perpassam relações construídas no cotidiano escolar e também as responsabilidades do Estado no que concerne Políticas Públicas que poderiam (se construídas) atender ao bem-estar da população. O Protocolo, ainda que nos documentos oficiais traga a narrativa de proteção integral da criança, carrega o peso da gramática analítica e jurídica que tipicamente atende as dualidades vítima e agressor, e a negatividade que carrega as noções de “pobre”, “menor” e “periferia”. Dentro dos processos de judicialização da vida, o aumento da criação de leis e normas, altera as relações sociais, tais normas, leis e regulamentos criam subjetividades e assujeitamentos sempre sustentados em nome da ordem e da segurança.

As narrativas dos sujeitos desta pesquisa-tese apontaram que a Rede de Proteção não se conecta como deveria comprometendo o fluxo do APOIA. A dúvida da fidedignidade dos dados estatísticos e o descumprimento dos prazos, por parte dos órgãos responsáveis pelo Protocolo, comprometem possíveis mudanças no quesito das demandas sociais, as quais gerariam em potencial processos e articulações na construção de Políticas Públicas voltadas para as infâncias. No entanto, a informatização da plataforma foi um avanço potente para que os setores da Educação e da Justiça conectem-se rapidamente junto aos demais órgãos que compõem a Rede de Proteção, mas, não é suficiente para agilizar os processos e demandas oriundas do Protocolo.

Os atrasos no fluxo do Protocolo atrapalham o retorno das crianças infrequentes e evadidas da Escola e por consequência contribui para o agravamento das situações de vulnerabilidade nas quais se encontram alunos/alunas protocolados no APOIA. Não podemos esquecer que a invisibilidade dada para as minorias é uma invisibilidade produzida e que reflete as perversidades cometidas pelo Estado, entre tais perversidades está a má gestão de seus recursos humanos e financeiros, como exemplo, a diferença na arquitetura entre os espaços da Justiça e da Educação e que reforça o status quo dessas instituições.

As questões como raça, etnia, classe, gênero, sexualidade, território, cultura estão ausentes dos marcadores do Protocolo. Diante do fato de que, as violências encontram-se em diferentes contextos e dispositivos e, essa ausência contribui para a invisibilidade de questões sérias e urgentes relacionadas à diversas formas de maus-tratos. Por exemplo, o Protocolo ao mostrar os dados que representam a idade das crianças vinculadas ao APOIA poderia relacionar esses números e cruzar com questões como o trabalho infantil.

A invisibilidade de tantas crianças ou dos “ninguéns junto aos equívocos nos dados oficiais compromete a criação de Políticas Públicas voltadas ao propósito de proteger e assegurar os direitos de crianças e adolescentes e, essa situação perversa é a expressão das desigualdades e/ou do que podemos chamar de violência estruturante. (MINAYO, 1994).

Tanto os atrasos no fluxo do Protocolo APOIA observados nas duas cidades (Criciúma e Tubarão), quanto o atraso na criação do NEPRE, observado em uma das Escolas pesquisadas, comprometem o objetivo de proteção e prevenção dada por essas Políticas Sociais. No interior dessas ineficiências está também a violência simbólica, a qual faz com que algumas infâncias sejam menos protegidas do que outras, e reflete no acesso desigual às Políticas Públicas marcadas pela invisibilidade dada aos negros e índios, por exemplo, ou ainda o descompasso de notificações registradas pelo CT entre as classes pobres e as mais favorecidas.

Os itens da lista de motivos elencadas dentro da Plataforma, na sua maioria, não atende às realidades das Escolas. Inclusive alguns itens não traduzem a causa da evasão, por exemplo, “item não encontrado”, “motivo não encontrado na lista”. A falta de clareza quanto aos motivos que precisam ser preenchidos na Plataforma obscurece as situações de maus-tratos dificultando o trabalho de acolhida, e por vezes, anula a possibilidade de investigação a respeito da causa/motivo da criança estar ausente da Escola. Dessa forma, há uma contradição entre a narrativa encontrada nos documentos e a execução do objetivo maior do Programa, que é enfrentar a evasão e solucioná-la. Segundo o MP: “diagnosticar os motivos determinantes e enfrentá-los tem sido a melhor orientação prestada para o retorno efetivo do aluno à escola.” (SANTA CATARINA, 2001, p. 09). Nessa pretensão, o MP cria ações a partir de um diagnóstico estadual sobre a situação da evasão escolar em Santa Catarina e analisa os motivos com vistas ao seu enfretamento. Se os motivos não estão claros e não refletem as realidades encontradas nos contextos de evasão, o diagnóstico estadual torna-se impreciso e ineficiente.

Diante os dados desta pesquisa-tese evidencia-se que os profissionais da Educação carecem de uma capacitação e formação que venha dar suporte técnico e epistemológico e, traga outras ferramentas potencializadoras de sua atuação na Rede de Proteção e desmistifique o medo da denúncia. O que a pesquisa evidenciou foi a urgência de capacitações que tenham um enfoque epistemológico e metodológico capaz de trazer o desenvolvimento de estudos que avancem na compreensão dos conceitos evasão, violências e maus-tratos.

Diante dos dados, podemos dizer: a distância que marca as relações entre Escola e Sistema de Justiça é expressão do entendimento da atuação da Justiça como norma associada ao seu conceito sociológico e ontológico, ou seja, norma como regularidade e como determinação de conduta. E a distância que marca os movimentos/relação entre Escola e MP ― conectados respectivamente à área da Educação e da Justiça ― imergem nas situações de maus-tratos e violências invisibilizados pelo Protocolo. Entre demoras e atrasos emergem marcas indeléveis na pele das crianças e famílias que são vigiadas, reguladas, protocoladas e pouco ou nada cuidadas e protegidas.

1Vinculado ao Centro de Ciências da Educação da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC.

2Tese intitulada: “Infâncias e Violências: uma análise entre Educação e Justiça a partir do Programa de Enfrentamento à Evasão Escolar (APOIA-SC)”. Disponível em https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/214285. Acesso em: 03 fev.2021.

3Núcleo de Educação e Prevenção

4

Dados disponíveis em: UNICEF. Relatório “Um Rosto Familiar: A violência na vida de crianças e adolescentes”. Nova Iorque/Brasília, 1º de novembro de 2017.

Relatório disponível em inglês: https://www.unicef.org/publications/files/Violence_in_the_lives_of_children_and_adolescents.pdf. Acesso em: 26 abr. 2018.

Relatório disponível em português: https://www.unicef.org/brazil/pt/media_37371.html. Acesso em: 26 abr. 2018.

5Disponível em https://issuu.com/visaomundialbr/docs/ra2018_vmb_v10_semsangria__1_. Acesso em: 29 nov. 2018.

6Dados atualizados em 08 de agosto de 2018, com informações até o 2º semestre de 2018. Disponível em: http://www.mdh.gov.br/informacao-ao-cidadao/ouvidoria/balanco-disque-100. Acesso em: 14 dez. 2018.

7“Pouvoir-corps”. In: Quel Corps?. Paris: set-out. de 1975. Tradução de José Thomaz Brum Duarte e Déborah Darrowski (FOUCAULT, 2015, p. 234).

8Disponível em https://issuu.com/visaomundialbr/docs/ra2018_vmb_v10_semsangria__1_. Acesso em: 29 nov 2018.

9Informação contida no Diário de Campo de 04 de julho de 2018. Disponível em https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/214285. Acesso em: 03 fev.2021.

10Informação contida no Diário de Campo de 31 de agosto de 2018. Disponível em https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/214285. Acesso em: 03 fev.2021.

11Informação contida no Diário de Campo de 13 de agosto de 2018. Disponível em https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/214285. Acesso em: 03 fev.2021.

12Informação contida no Diário de Campo de 31 de agosto de 2018. Disponível em https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/214285. Acesso em: 03 fev.2021.

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Recebido: 18 de Abril de 2019; Aceito: 25 de Novembro de 2020

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