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Eccos Revista Científica

Print version ISSN 1517-1949On-line version ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.60 São Paulo Jan./Mar 2022  Epub Feb 08, 2024

https://doi.org/10.5585/eccos.n60.13627 

Artigos

INDÚSTRIA CULTURAL E REIFICAÇÃO: A SUBJETIVIDADE INFANTIL EM FOCO

CULTURAL INDUSTRY AND REIFICATION THE CHILD SUBJECTIVITY ON FOCUS

Lucilene Schunck Costa Pisaneschi, Doutora1 
http://orcid.org/0000-0002-7647-3133

1Doutora, Universidade Nove de Julho - UNINOVE. São Paulo - Brasil.


Resumo

O presente artigo apresenta um recorte de uma investigação que se dedicou a pesquisar a construção da subjetividade infantil no seio do modelo social capitalista vigente. As considerações aqui tratadas têm como objetivo discutir as relações existentes entre a Indústria Cultural e o processo de reificação infantil. A contemporaneidade tem produzido uma infância que expressa uma criança cada vez mais fragmentada: ora segura de si, ora dependente; ora autônoma; ora tutelada; ora um indivíduo que existe aqui e agora; ora um ser a ser preparado para o futuro. A pesquisa em questão, de caráter qualitativa, tomou como fontes de análise matérias jornalísticas veiculadas pela mídia impressa e digital que apresentam a maneira como os pequenos têm sido inseridos, de forma frenética, na lógica do consumo. Do ponto de vista teóricometodológico tomamos como referência a teoria crítica frankfurtiana, em especial, as reflexões dos pesquisadores da primeira geração da escola de Frankfurt. A análise do material possibilitou identificar como a presença de mecanismos criados pela Indústria Cultural tem operado a favor da universalização dos sujeitos contribuindo, do ponto de vista da infância, para a anulação das singularidades e para a reificação das crianças. Foi possível, também, trazer à tona as formas com que os pequenos olham para a realidade para além dos destroços que acumula, indicando-nos caminhos possíveis de resistências.

Palavras-chave: crianças; indústria cultural; infância; reificação; teoria crítica

Abstract

The current article presents a section of an investigation dedicated to researching the construction of children's subjectivity within the prevailing capitalist social model. The considerations here are aimed at discussing the existing relations between the Cultural Industry and the process of child reification. The contemporaneity has produced a childhood that expresses a more and more fragmented child: sometimes self-assured, sometimes dependent; sometimes autonomous; sometimes tutored; sometimes an individual who exists here and now; sometimes a being to be prepared for the future. The research in question, of a qualitative nature, took as sources of analysis journalistic articles published by the print and digital media that present how the little ones have been inserted, in a frenetic way, in the logic of consumption. From the theoretical-methodological standpoint we take as reference the Frankfurt critical theory, in particular, the reflections of the first generation researchers of the Frankfurt school. The analysis of the material made it possible to identify how the presence of mechanisms created by the Cultural Industry has operated in favor of the universalization of subjects, contributing, from the point of view of childhood, to the annulment of singularities and to the reification of children. It was also possible to bring to light the ways in which the little ones look at reality beyond the debris it accumulates, indicating to us possible paths of resistance.

Keywords: childhood; children; critical theory; cultural industry

Introdução

A constituição da República Federativa do Brasil de 1988 apresentou um avanço significativo ao reconhecer a criança como sujeito social de direitos. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), regulamentado pela Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, constitui-se em um importante instrumento na luta pela preservação dos direitos das populações infantis, na medida em que os reafirma e os detalha. A inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral; a preservação da imagem, da autonomia, dos valores, das ideias e crenças compõem o cenário que reconhece as crianças como sujeitos históricos (ECA, 1990, art. 17).

Entretanto, tal como nos diz Romanelli (1996, p. 179) “nenhuma lei é capaz, por si só, de operar transformações profundas, por mais avançada que seja, nem tampouco de retardar, também por si só, o ritmo do progresso de uma dada sociedade, por mais retrógrada que seja”. Dito de outra forma, se a realidade objetiva não fornecer as condições necessárias, tais transformações não têm como se firmar.

Os direitos sociais das crianças têm esbarrado em limites concretos que a sociedade capitalista lhes impõe, sobretudo, quando pensamos as singularidades infantis. Tais limites afetam de forma contundente o entendimento que se tem da autonomia e da valorização infantil, impondo aos pequenos uma lógica que ao mesmo tempo em que defende tais preceitos, nega as condições objetivas para sua consecução levando a um percurso de negação da subjetividade infantil.

Para Adorno (1986), o impedimento da constituição da subjetividade está atrelado ao processo de dominação social que a partir do princípio de identificação universal indiferencia sujeito e objeto, levando a uma “pseudo-individuação” (SEVERIANO, 2006).

Entretanto, a ordem social vigente não apenas tem processado a indiferenciação entre sujeito e objeto, como também têm celebrado a equivalência entre os próprios indivíduos produzindo um fechamento do homem em si mesmo:

A fragmentação sempre mais intensa a que está submetido o homem contemporâneo (...) induz o homem ‘unidimensional’ a tornar-se, também, narcisista, de um narcisismo fruto genuíno de uma cultura homogeneizante que, longe de significar um real fortalecimento do eu, indica mais a profunda descrença e o isolamento a que está submetido o homem ‘pós-moderno’. Este, para sobreviver, desinveste o mundo e refugia-se em soluções estreitamente pessoais, onde objeto/imagem de consumo passa a se configurar na única forma de alteridade possível (SEVERIANO 2006, p. 113).

Partindo do pressuposto defendido por Adorno (2015) de que a subjetividade agrega em sua construção elementos de ordem psicossocial e que os homens só se constituem mediados pelas relações sociais que estabelecem entre si, a cultura assume papel de destaque na dialética presente entre a construção e a negação das subjetividades infantis.

Crochík (2010, p. 33) alerta para o fato de que se a formação pode ser definida pela interiorização da cultura, tal como apregoa Adorno, e se essa “última tem como uma de suas fortes tendências atuais se expressar como mercadoria, ambas - a formação e a cultura - perderam sua relativa autonomia”. Para o pesquisador, a formação dos indivíduos presa a uma perspectiva mercadológica:

[...] seria propícia não ao desenvolvimento de uma interioridade, mas à contínua exteriorização ou projeção, posto que a identificação forjada com as imagens da publicidade que não se distinguem mais das mercadorias é, no capitalismo [atual] voltada à reprodução do capital: ou como reprodução da força do trabalho ou como ampliação do lucro, e não objetiva que o indivíduo se torne diferente do que já é (CROCHÍK, 2010, p. 33).

Partindo das considerações de Horkheimer e Adorno (1991), Crochík chama a atenção para o papel da conformação social exercido pela cultura sobre os indivíduos, na sociedade capitalista atual, de forma que esses tenham limitadas sua percepção, cognição e sensibilidade a tal ponto que levam à não coincidência entre indivíduo e sujeito (CROCHÍK, 2010, p. 34).

Nesse sentido é que levantamos como problemática central a influência da Indústria Cultural1 no percurso de individuação infantil. A hipótese que orientou a investigação foi a de que a Indústria Cultural produz mecanismos que inserem as crianças no universo adulto, tanto como consumidores quanto como mercadorias a serem consumidas e, nesse processo vem promovendo a negação da subjetividade infantil, produzindo assim um movimento de reificação da criança.

A pesquisa realizada, de caráter qualitativa, teve como base teórico-metodológica a teoria crítica frankfurtiana e pautou-se na análise de matérias jornalísticas veiculadas pela mídia impressa e digital buscando compreender como a Indústria Cultural tem inserido as crianças no sistema produtivo como consumidores em potencial e como mercadorias a serem consumidas.

Indústria cultural e reificação: a criança dessubjetivada

A apreensão do comportamento adulto pelas crianças não representa uma inovação provocada pela Indústria Cultural, entretanto, cada vez mais é possível observar o avanço dessa apreensão por parte dos pequenos, processo esse que tem sido mediado pela lógica do consumo e que vem sendo expresso, não apenas pela determinação do adulto, mas também, pela escolha da própria criança.

Tal perspectiva, segundo Marcuse, vincula-se à dinâmica do sistema capitalista cuja eficiência:

[...] embota o reconhecimento individual de que ela não contém fato algum que não comunique o poder repressivo do todo. Se os indivíduos se encontram nas coisas que moldam a vida deles, não o fazem dilatando, mas aceitando a lei das coisas - não a lei da Física, mas a lei da sociedade (MARCUSE, 1973, p. 31).

Sampaio et al (2012) aponta para a ampla inserção dos pequenos em contextos que não estão relacionados com a infância, inserção essa que, aparentemente, os supervaloriza em importância e autonomia fortalecendo, assim, suas subjetividades. Entendemos, entretanto, que é imperativo pensarmos que autonomia é essa e qual o seu real papel diante do percurso de individuação infantil.

A Indústria de cosméticos, da moda, e até de veículos, que tradicionalmente deveriam se ocupar do mundo adulto, cada vez mais têm se dirigido ao público infantil.

Segundo a Agência Brasileira da Indústria de higiene pessoal, perfumaria e cosméticos (BIHPEC), só este último item, passou de um lucro de 3,4 bilhões de reais em 2012, para 6,4 bilhões de reais em 2017, tornando-se o segundo maior mercado consumidor do mundo e um dos maiores do mercado brasileiro. Um exemplo desse êxito pode ser verificado no lançamento da linha de cosméticos GeoGirl para crianças entre 08 e 12 anos composta por blush, rímel, batom e cremes em geral, alegando ser “tudo” o que uma criança de oito anos precisa para estar alinhada às tendências de beleza.

Fonte: Filosomídia, 22/3/2011. Versão eletrônica disponível em: http://filosomidia.blogspot.com/2011/02/walmart-lancamaquiagem-anti.html

Imagem 1 Linha de cosméticos GeoGirl 

Dentre as tendências contemporâneas de beleza é possível encontrar os produtos de rejuvenescimento facial, o que inclui a aplicação da Toxina botulínica (Botox), substância que atua na inibição de estímulos neurais relacionados à contração muscular, utilizada no universo da estética para atenuar rugas e marcas de expressão.

Uma reportagem publicada em 16/05/2011, pelo Opera Mundi (TERRA, 2011), denunciou uma mãe que submetia a filha, de 8 anos, a seções periódicas de aplicação de Toxina Botulínica (Botox) e de depilação com cera quente alegando que a pequena participava de concursos de beleza mirim.

Para além dos riscos que este tipo de procedimento pode trazer à saúde das crianças2, os tratamentos estéticos aos quais os pequenos têm sido submetidos colocam dois elementos fundamentais aos debates acerca das crianças e suas subjetividades: a erotização dos corpos infantis e o adiantamento de fases da vida adulta.

O Instituto Alana, por meio do Projeto Criança e Consumo, tem chamado a atenção para tais questões com veemência e, em 2011, solicitou esclarecimentos à Rede Walmart acerca do lançamento da linha de cosméticos GeoGirl.

A notícia da Walmart mostra uma situação ainda mais delicada: além da maquiagem, que, com certeza é dispensável na vida de uma criança quando não serve para brincar, o produto em questão ainda previne o antienvelhecimento. Pois é, o antienvelhecimento. O que soa estranho já que é feito para crianças. Aqui temos dois problemas, a erotização precoce e o adiantamento de fases da vida adulta, problemas seríssimos que passam batidos aos olhos de alguns adultos. Nos cabe a reflexão. Qual é o objetivo da empresa ao lançar a linha de cosméticos GeoGirl, direcionada para crianças de 8 a 12 anos? Vender, lucrar e conquistar um público mais jovem? Seria isso ético? São muitas perguntas diante de uma verdade, a de que hoje em dia o poder da indústria de beleza é sem dúvidas gigante, e o setor é um dos que mais cresce no mundo e que mais compra espaço publicitário. No Brasil, em dez anos, o faturamento do setor de beleza passou de R$ 4,9 bilhões para R$ 21,7 bilhões. (ALANA, Instituto, 2011).

A Revista Folha de São Paulo publicou uma reportagem (30/03/1997) intitulada “As novas bonequinhas de luxo”, apresentando situações muito semelhantes à da divulgada pela Ópera Mundi:

Carina, 11 anos e Samantha Ignácio Ferreira, 09, frequentam o salão de beleza desde os 07 anos. “A gente tem que cuidar agora, para mais tarde, o cabelo não ficar armado, sem vida”, diz Samantha. Uma vez por semana, o pai vai buscá-las em Sorocaba, onde moram com a mãe e as leva ao Studio W, um dos mais caros de São Paulo. Para elas, é o dia mais divertido da semana. [...]. “Outro dia fui buscá-la [pai] e fiquei muito surpreso: Samantha tinha feito relaxamento”. A menina explica: “Tenho o cabelo muito ondulado, preciso cuidar. Eu queria fazer luzes, mas tenho medo que meu cabelo fique muito amarelado” (FOLHA DE SÃO PAULO, 1997, p. 6-7).

O Relatório InterScience Informação e Tecnologia Aplicada, vinculado aos trabalhos do Instituto Alana, revelou que 80% das crianças brasileiras interferem nas decisões de compra das famílias, compras essas, que transitam em seguimentos que não fazem parte do universo infantil.

O estudo afirmou, também, que diferentemente do que se possa pensar, essa influência está disseminada em todas as classes sociais, raças e gêneros, situando o consumismo como uma ideologia marcante da sociedade atual:

O consumismo é uma ideologia, um hábito mental forjado que se tornou uma das características culturais mais marcantes da sociedade atual. Não importa o gênero, a faixa etária, a nacionalidade, a crença ou o poder aquisitivo. Hoje, todos que são impactados pelas mídias de massa são estimulados a consumir de modo inconsequente. (TNS/InterScience, 2014, p.18).

Essa ideologia do consumo tem na Indústria Cultural um ambiente privilegiado de produção e expansão de mercadorias. Nesse contexto, as crianças acabam sendo enredadas em uma dupla dimensão. Tal como pontuado anteriormente, os pequenos oscilam entre a condição de consumidores e de objeto de consumo.

Tanto na primeira situação, quanto na segunda, movimentam um mercado milionário. Se de um lado as crianças contribuem para alimentar mercados tradicionalmente voltados para elas, por outro, têm sido cada vez mais integradas ao consumo de produtos do mundo adulto, o que inclui o consumo de determinadas formas e estilos de vida. Neste processo, a erotização dos corpos infantis e o adiantamento da vida adulta têm atravessado a constituição das subjetividades infantis, situando-as em um movimento de constante dessubjetivação.

Corazza (2002) nos apresenta um estudo que traz para o debate contemporâneo números alarmantes no que diz respeito ao mundo infantil, onde estão presentes o infanticídio; o culto ao corpo; o top of mind; o humanware; a maturidade precoce; a violação de corpos e das almas das crianças em uma nítida expressão das múltiplas contradições que a infância contemporânea tem vivenciado.

A hipersexualização infantil, expressa, sobretudo, pela exposição e sensualização dos corpos infantis, aparece diluída em propagandas veiculadas por diversos meios de comunicação e oculta nas inúmeras modalidades de concursos mirins de beleza. Por meio desses, as crianças não somente expõem marcas e rótulos, como também publicizam seus rostos e corpos, muitas vezes, tão transmutados, que se torna difícil desconsiderar a permanência de uma visão de criança como adultos em miniatura.

Não se pode perder de vista, também, o fato de que a hipersexualização a que estão expostas estas pequenas as vulnerabiliza situando-as como presas em potencial da violência sexual, fenômeno que retira de meninas e meninos suas infâncias, suas subjetividades, sua condição de crianças e, por vezes, suas próprias vidas.

Combater estas ações é um ato de resistência que precisa ser, cotidianamente, reiterado. Tal percurso envolve, segundo Nascimento (2017) um olhar de proteção sobre os pequenos e atitudes de acolhimento e orientação.

Esse cenário retrata uma contemporaneidade que, em meio às ambiguidades com que trata a criança, tem como uma das suas características a existência de um movimento de encurtamento da infância. Tal movimento, a nosso ver, vincula-se à ação de uma indústria que vê os pequenos como um excelente negócio.

Entretanto, a Indústria Cultural, respondendo à dinâmica da Sociedade capitalista que a cunhou, é tão contraditória quanto ela. No interior desta contradição, ao mesmo tempo em que nega a infância preconizando o adiantamento da fase adulta dos pequenos, acaba por conclamar a vivência da infância ao apostar na imaginação infantil, sobretudo, para movimentar mercados onde a imaginação é fundamental.

Neste aspecto, destacam-se não somente os tradicionais mercados infantis como os de brinquedos, como outros que, a princípio, não tinham vínculo com as crianças. É o caso, por exemplo, da indústria farmacêutica que cada vez mais tem apelado à imaginação infantil para movimentar seus negócios.

O Instituto Alana protocolou em agosto de 2015 uma representação contra a comunicação mercadológica da empresa Bayer que trouxe para o cenário a divulgação do medicamento “Redoxitos” de forma abusiva, situando-o como substituto alimentar:

Dentro do seu âmbito de atuação, o Projeto Criança e Consumo constatou prática de publicidade abusiva, consistente no desenvolvimento de estratégias de comunicação mercadológica direcionadas diretamente a crianças, realizadas pela empresa Bayer, para a promoção do Redoxitos, suplemento alimentar de vitamina C, em forma de bala de goma. (INSTITUTO ALANA, 2015, p. 3).

Para fundamentar a denúncia, o Instituto Alana, no âmbito do Projeto Criança e Consumo, destacou a associação do produto em questão a vários canais de divertimento infantil, lançando mão de recursos televisivos e de canais da Web, destacando que

A publicidade da Bayer “Os três porquinhos - em novo formato” é veiculada em canais infantis, utilizando-se de animações com forte apelo infantil e efeitos visuais que constroem uma ligação direta entre diversão e o consumo do produto. O comercial, exibido em canais segmentados infantis da televisão fechada (Gloob, Nickelodeon), e que pode ser visualizado no canal do Youtube da Redoxitos e na página da rede social Facebook da marca, mostra uma nova versão do conto infantil “Três Porquinhos” narrada por uma criança. (INSTITUTO ALANA, 2015, p. 3).

Na infância tecida sob a égide da Indústria Cultural, crianças das diferentes classes sociais, gêneros e etnias têm sido envolvidas por uma praxis fetichizada que, segundo Roggero (2010, p.172), só permite a aceitação dos indivíduos que vivam dentro do padrão regido pela “cultura afirmativa”.

Nessa cultura, a criança assume características cada vez mais fragmentadas oscilando entre a inocência e a independência; entre a autonomia e a heteronomia; entre o “vir-a-ser” e o “ser”. Múltiplas imagens que correspondem a uma realidade onde a criança como ser em si, continua negada em suas particularidades.

As imagens de meninos e meninas conectados às tendências atuais vão da posse dos mais modernos brinquedos aos mais avançados procedimentos estéticos e transitam entre a fantasia de ser criança e o encurtamento da infância. Entretanto, tanto na primeira perspectiva, quanto na segunda, a lógica que impera é a do consumo.

A subjetividade infantil nesse contexto parece-nos cada vez mais comprometida. Se na modernidade a criança se via aprisionada a um, eterno, devir que a negava em sua concretude histórica, hoje, elas se veem cada vez mais subjugadas pela criação de necessidades que as situam ao mesmo tempo, como consumidoras e como objetos a serem consumidos.

Na ambiguidade entre a aclamação dos seus direitos como sujeitos singulares em desenvolvimento e a negação das condições objetivas para a consecução de tais direitos, vive-se na atualidade a máxima da construção do sujeito dessubjetivado.

A infância capturada pela lógica da Indústria Cultural e a imagem de criança que dela decorre têm sido apresentadas pela sociedade burguesa como um ideal, possível de ser alcançado por todas as crianças, independentemente do local social que ocupem na estrutura capitalista. Nela, não são apenas produtos que estão - aparentemente - à disposição de todos e sim, um estilo de vida.

Tal contexto nos parece atualizar as considerações de Marcuse (1973) acerca da manipulação e da unidimensionalidade que a sociedade capitalista, por meio da criação de pseudonecessidades e do falseamento da realidade, vem impondo aos indivíduos.

Roggero (2010, p. 181), nos trilhos de Marcuse, argumenta:

Falsas necessidades vão sendo criadas a fim de uniformizar um estilo de vida e um nível de consumo compatível com a manutenção, quando não com o aumento, das taxas de lucro. Assim, até mesmo as necessidades básicas como alimentar-se, vestir-se, descansar, são falseadas pelas estratégias mercadológicas. São fatores que põem as necessidades humanas no campo da heteronomia exigida pelos interesses da dominação.

A primazia do todo - própria da cultura afirmativa capitalista - prossegue a pesquisadora, perpetua a si e à sociedade que ajuda a instaurar, por meio do sacrifício da subjetividade (ROGGERO, 2010, p. 189).

Adorno (2009) considera que a lógica predominante do capitalismo, ao instaurar uma sociedade orientada pelo e para os negócios, cria instrumentos que impedem a realidade de existir fora do processo de reificação.

Nessa perspectiva, não é o indivíduo que aparece como retrato de uma época e sim, o individualismo. O homem, como ser social, vai se tornando cada vez mais capturado por uma totalidade que torna invisível o singular:

[...]. Quanto mais socializado é o mundo, quanto mais espessamente é tecida a camada de determinações universais que envolve seus objetos, tanto mais o estado de coisas singular (...) tende a tornar-se, imediatamente, transparente em vista de seu universal. (ADORNO, 2009, p. 78)

O princípio da equivalência universal, sob a égide da Industria Cultural, não se limita à não diferenciação entre os indivíduos, estendendo-se em direção à identificação entre os homens e as mercadorias, que produzem e consomem.

Nesse contexto, a Indústria Cultural tem celebrado a reificação da criança e das suas infâncias contrariando assim, o preceito constitucional que concebe os pequenos como sujeitos sociais de direitos que precisam se considerados e respeitados em suas particularidades.

Segundo Pucci (2012, p. 19), a sociedade burguesa tem fomentado a poda do espírito crítico, subtraindo aos homens as possibilidades de irem além do instituído. Para o pesquisador, a cultura falseada produzida pela Indústria Cultural tem operado, também, na destituição da espontaneidade e capacidade perceptiva dos indivíduos.

Escovando a história a contrapelo: subversão e resistência

Entretanto, quando nos dedicamos a olhar para as crianças, percebemos que suas possibilidades de lidarem com a realidade de forma diferente dos adultos nos indicam caminhos possíveis de enfrentamento à lógica reificante.

A espontaneidade, a criatividade, a fantasia, constituem-se em características fundamentais da infância e nos mostram que apesar de inseridos na dinâmica objetificante do capital, as crianças constroem percursos que lhes permitem resistir, no limite do possível, ao processo a que estão expostas.

As crianças, mesmo submetidas a agendas exaustivas em concursos de belezas, festivais de músicas infanto-juvenis ou desfiles de modas, mesmo trabalhando em faróis, vendendo doces nas ruas, sendo por vezes chamadas a tomar decisões que ainda não têm condições de fazer, seguem reinventando, sonhando, fantasiando, brincando de ser gente grande, brincando de ser criança...

Tal como postula Benjamim (2002), ao narrarem suas fantasias, medos, desejos e esperanças, as crianças não apenas nos falam do mundo, como também, nos ajudam a olhá-lo em uma outra perspectiva.

Por mais que a sociedade capitalista acumule a seus pés as ruínas e os destroços (BENJAMIM, 2014, p. 246) que ela mesma produziu, a dialética da ruína nos aponta possibilidades de trilhar novos caminhos. Como nos diz Rouanet (1981, p. 27-28):

Faz parte da dialética da ruína não somente a faculdade subjetiva de ver o mundo enquanto ruína, como a realidade objetiva de um mundo que desmorona. (...). A figura da ruína é ambivalente. Ela designa o que foi destruído pelos opressores, ao mesmo tempo que aponta para a desagregação do mundo que eles construíram com os escombros. Na primeira acepção, a ruína é recapitulação do sofrimento, a figura de tudo o que na história é prematuro, sofrido, malogrado (...). Mas a categoria da ruína tem também sentido antecipatório. Memória da injustiça, ela designa também o lugar de uma luta.

Os pequenos atribuem novos e distintos significados à realidade, “ultrapassando o sentido único que as coisas novas tendem a adquirir” (JOBIM E SOUZA, 1996, p. 49) e ao fazê-lo denunciam a forma estática com que o adulto olha para a objetividade. O mundo reinterpretado pelas crianças configura-se, segundo Benjamim (2002, p. 77) em um mundo pequeno inserido em um maior.

Essa construção feita a partir dos restos da história nos dão indicativos da possibilidade que as próprias crianças nos fornecem de desmascarar o fetiche das relações de consumo e a consequente reificação a que estão expostas. Resta saber se nós, adultos, estamos dispostos a ouvir o que nos dizem os pequenos a respeito de si mesmos e do universo que os cerca...

Considerações finais

A pesquisa nos permitiu compreender a importância de se pensar os mecanismos que têm negado a subjetividade infantil. A compreensão de tais mecanismos e o desvelamento de uma realidade que para perpetuar a lógica da dominação social vigente institui, por meio da troca universal reificante, a equivalência entre os indivíduos e desses com as mercadorias que produzem e consomem fomentando assim, a construção de sujeitos dessubjetivados.

A infância enquanto construto histórico não é indiferente à dinâmica sociocultural e econômica em que está inserida. O sistema capitalista tem produzido novas formas de dominação social que têm se estendido, indistintamente, a todas as pessoas.

A Indústria Cultural se tornou uma das bases desse modelo apresentando uma capacidade de inserção na vida subjetiva de adultos e crianças que os tem colocado na condição de apêndice do capital.

Para mascarar as diferenças sociais e as contradições que lhes são próprias, a sociedade burguesa tem produzido uma aparência de igualdade de oportunidades que se expressa, sobretudo, pela ideia de possibilidade de realização dos desejos consumistas a todas as pessoas, independente, das suas condições sociais.

Essa igualdade, entretanto, não se sustenta nem do ponto de vista da forma, nem do seu conteúdo (CROCHÍK, 2010). Na primeira, o que se tem é a aparência de que tudo está acessível a todos, desde produtos até estilos de vida. E que essas mercadorias são individualmente pensadas para suprir as “necessidades” particulares de cada um. Oculta-se dessa maneira, tanto as diferenças sociais existentes, quanto a oferta do sempre igual.

No âmbito do seu conteúdo, a sociedade dos negócios (ADORNO, 2009), que não admite a liberdade e tampouco a igualdade social que tanto aclama, não apenas nega a realização desses preceitos, como diversifica e consolida suas formas de dominação.

Por outro lado, tal como pontua Benjamim (2002), a criança ao fazer história com os cacos da história interpreta, inventa, constrói e desconstrói permanentemente o seu cotidiano. Amontoando destroços e deles edificando novas e surpreendentes possibilidades, os pequenos nos ajudam a olhar para a realidade com outras lentes: nos desafiam, como elas, a buscar, em cada canteiro, fragmentos para se reinventarem.

Dessa forma, compreender os limites e as dificuldades que a sociedade contemporânea tem imposto à subjetividade infantil produzindo, cada vez mais rápido e com mais eficiência, mecanismos que operam a favor da reificação das crianças é fundamental, para que possamos buscar na própria contradição que a define, os caminhos de resistência e, quem sabe, de superação...

Nesse sentido, os pequenos têm muito a nos ensinar. Ao terem suas subjetividades sistematicamente negadas pelos mecanismos do capital, não se limitam a ter em seus pés um amontoado de ruinas, antes, a partir delas e com elas, desconstroem e reconstroem seus jeitos de ser criança.

1Industria Cultural em maiúscula para se referir a sua dimensão conceitual, tal como definida por Adorno (2009).

2O uso do Botox pode promover a paralisia muscular permanente, caracterizando a doença botulismo. A esse respeito cf. LEMOS, 2021.

Referências

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Recebido: 15 de Abril de 2019; Aceito: 02 de Setembro de 2021

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