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Eccos Revista Científica

Print version ISSN 1517-1949On-line version ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.61 São Paulo Apr./June 2022  Epub Feb 09, 2024

https://doi.org/10.5585/eccos.n61.15709 

Artigos

PAULO FREIRE E SEU LEGADO PARA UMA EDUCAÇÃO DEMOCRÁTICA: UMA ANÁLISE DIALÓGICA DO RETRATO ROUBADO DOS EDUCADORES BRASILEIROS

PAULO FREIRE AND HIS LEGACY FOR DEMOCRATIC EDUCATION: A DIALOGIC ANALYSIS OF THE STOLEN PORTRAIT OF BRAZILIAN EDUCATORS

PAULO FREIRE Y SU LEGADO PARA UNA EDUCACIÓN DEMOCRÁTICA: UN ANÁLISIS DIALÓGICO DEL RETRATO ROBADO DE LOS EDUCADORES BRASILEÑOS

Laura Sacco dos Anjos Torres, Mestra em Educação1 
http://orcid.org/0000-0003-4880-3518

Maristani Polidori Zamperetti, Doutora em Educação2 
http://orcid.org/0000-0001-9600-1988

1Mestra em Educação, Universidade Federal de Pelotas - UFPEL. Pelotas, Rio Grande do Sul - Brasil.

2Doutora em Educação, Universidade Federal de Pelotas - UFPEL. Pelotas, Rio Grande do Sul - Brasil.


Resumo

Atualmente, a palavra democracia vê-se mascarada através de sentidos despolitizados frente às demandas de mercado, à conjuntura geopolítica contemporânea, sendo operacionalizadas ações de coerção social através de mecanismos pelos quais o poder disciplinar estatal é exercido. Assim, há que se indagar sobre como este atua no sentido de construir “verdades”, “mitos”, correlacionando-as à problemática de construção de saberes. Nesse sentido, torna-se evidente a atualidade do pensamento freiriano, tendo em vista o seu clamor por uma sociedade justa, consciente, democrática. Diante disso, em frente às transformações políticas e socioeconômicas oriundas de um paradigma produtivo globalizado, os educadores brasileiros encontram dificuldades em compreender as relações entre educação e economia. Neste ambiente, passam a vigorar questionamentos a respeito das atribuições da escola e das funções desempenhadas pelo professor. Além disso, pode-se afirmar que no Brasil as representações de professor são construídas a partir de vozes e discursos que não emanam dos educadores, mas provêm de outros profissionais, tais como jornalistas, economistas e políticos. Isto significa que a sociedade está imersa em um processo de globalização que tende a adotar uma política educacional pelos parâmetros da ideologia capitalista neoliberal, o que torna imprescindível o pensamento de Paulo Freire, em seu legado para uma educação democrática e em sua pedagogia dialógica, reiterando a sua importância em virtude dos ataques que vem sofrendo frente à política de intolerância que tem assolado o país, e que se intensificou após período das eleições de 2018.

Palavras-chave: educação brasileira; pedagogia dialógica; identidade; professor; democracia.

Abstract

Currently, the word democracy is masked through depoliticized meanings faced by market demands and the contemporary geopolitical conjuncture, involving actions of social coercion being operationalized through mechanisms by which state disciplinary power is exercised. Thus, it is necessary to inquire about how it acts in the sense of building “truths”, “myths”, correlating them to the problem of knowledge construction. In this sense, it is evident that Freire's thought becomes current, in view of his cry for a fair, conscious and democratic society. In view of this, following political and socioeconomic transformations arising from a globalized productive paradigm, Brazilian educators find it difficult to understand the relationship between education and economy. In this environment, questions about the school's attributions and the functions performed by the teacher come into force. Furthermore, it can be said that in Brazil, teacher representations are constructed from voices and discourses that do not emanate from educators, but come from other professionals, such as journalists, economists and politicians. This means that society is immersed in a process of globalization that tends to adopt an educational policy by the parameters of neoliberal capitalist ideology, which makes Paulo Freire's thought essential, in his legacy for a democratic education and in his dialogic pedagogy, reiterating its importance due to the attacks it has suffered in the face of the policy of intolerance that has devastated the country, and which intensified after the 2018 elections.

Keywords: brazilian education; dialogical pedagogy; identity; teacher; democracy.

Resumen

Actualmente, la palabra democracia se enmascara a través de significados despolitizados ante las demandas del mercado y la coyuntura geopolítica contemporánea, con acciones de coerción social operando a través de mecanismos mediante los cuales se ejerce el poder disciplinario estatal. Así, es necesario indagar sobre cómo este actúa en el sentido de construir “verdades”, “mitos”, correlacionándolos con el problema de la construcción del conocimiento. En este sentido, se hace evidente la actualidad del pensamiento de Freire, ante su clamor por una sociedad justa, consciente y democrática. En vista de eso, frente a las transformaciones políticas y socioeconómicas derivadas de un paradigma productivo globalizado, los educadores brasileños enfrentan dificultades para comprender la relación entre educación y economía. En este ambiente, cobran fuerza los cuestionamientos sobre las funciones que se atribuyen a la escuela y las funciones que desempeña el docente. Además, se puede decir que en Brasil, las representaciones docentes se construyen a partir de voces y discursos que no emanan de los educadores, sino de otros profesionales, como periodistas, economistas y políticos. Esto significa que la sociedad está inmersa en un proceso de globalización que tiende a adoptar una política educativa según los parámetros de la ideología capitalista neoliberal, por lo que se hace imprescindible el pensamiento de Paulo Freire, en su legado por una educación democrática y en su pedagogía dialógica, reiterando su importancia por los embates que ha sufrido frente a la política de intolerancia que ha azotado al país, y que se intensificó tras las elecciones de 2018.

Palabras clave: educación brasileña; Pedagogía dialógica; Identidad; Profesor; Democracia.

1 Introdução

[...] e “não existe amor em SP” ou “no coração do Brasil”/ fraturado nesses dias brutos de coturnos xucros /a chutar a cara de quem ama arte, cultura, educação, liberdade de expressão, diversidade, cidadania, solidariedade, democracia /mas não se dá a mínima / o que importa é se subiu a bolsa/ caiu o dólar/ se todos vão prosseguir seguindo docilmente para o abismo/ nessa insanidade coletiva em que o Brasil nega qualquer Brasil possível/cega qualquer futuro possível/ e o ódio/ o horror/ e o ódio/ e nada que se diga faz sentido mais/ para quê expor na cara desses caras a palavra explícita (gravada em vídeo e repetida, repetida, repetida) do seu “mito” dizendo “eu apoio a tortura”, “eu defendo a ditadura”, “eu vou fechar o congresso” ,“não servem nem para procriar”, “não te estupro porque você não merece”, “a gente vai varrer esses vagabundos daqui”, “o erro foi torturar e não matar”, “viadinho tem que apanhar”/ etc, etc, etc, etc, etc/ e tudo mais que repete incansavelmente há anos ante câmeras e microfones/ para quê mostrar de novo e de novo o mesmo nojo se é justamente por isso que o idolatram?/ [...] mas como li por aí: “como explicar a lei Rouanet para quem ainda não assimilou a lei Áurea?”/ ou: como explicar a lei da gravidade para quem ainda crê que a terra é plana? (ARNALDO ANTUNES, 2018).

Inseridos em um cenário político em que se mascara a palavra democracia com sentidos despolitizados frente às demandas de mercado, à conjuntura geopolítica contemporânea, sendo operacionalizadas ações de coerção social através de mecanismos pelos quais o poder disciplinar estatal é exercido, há que se indagar sobre como este atua no sentido de construir “verdades”, “mitos”, correlacionando-as à problemática de construção de saberes.

Nesse sentido, torna-se evidente a atualidade do pensamento freiriano, tendo em vista o seu clamor por uma sociedade justa, consciente, democrática. A diversidade, para Paulo Freire, não se encontra na passividade da tolerância, mas necessária à produção de saberes, de conhecimentos, de cultura... Sobre esse anseio de construção de uma sociedade democrática, salienta-se que ainda se encontra em um plano utópico, ou seja:

Um desses sonhos para que lutar, sonho possível mas cuja concretização demanda coerência, valor, tenacidade, senso de justiça, força para brigar, de todas e de todos os que a ele se entreguem, é o sonho por um mundo menos feio, em que as desigualdades diminuam, em que as discriminações de raça, de sexo, de classe sejam sinais de vergonha e não de afirmação orgulhosa ou de lamentação puramente cavilosa. No fundo, é um sonho sem cuja realização a democracia de que tanto falamos, sobretudo hoje, é uma farsa (FREIRE, 2001a, p.25).

Em um período de intolerância ao pensamento divergente, de “ódio à democracia”, há que se destacar a função perturbadora de uma proposição de luta pela conscientização, a qual, por ser política, por ser ideológica, confronta o neoliberalismo que tem como marca, em seu substrato ideológico, o neoconservadorismo.

Uma educação conscientizadora, como a que se preconiza através da Pedagogia do Oprimido, atua em sua dimensão de denúncia da realidade social para anunciar novas perspectivas, novas possibilidades de divergência e de resistências plurais em busca de pedagogias libertadoras, que por meio da criticidade tensionam e desmascaram os sentidos perniciosos propagados pelas fakenews (notícias falsas), as quais expressam, por sua vez, em seu conteúdo fundamental, uma falta de ética indubitável que se traduz pela intencionalidade de que a injúria e a falsidade apareçam em princípio, antecedendo a leitura de mundo.

Desse modo, diante da conjuntura geopolítica contemporânea indaga-se: como reconstruir a consciência de um povo que se percebe estranho à coletividade, à noção de cidadania? Como estaria a nossa atuação enquanto educadores, professores, formadores para a edificação de uma sociedade mais humanitária? Estamos, de fato, contribuindo para a apreensão de uma educação em termos dos direitos humanos, da atuação coletiva, da promoção de uma cultura participativa, inclusiva, cidadã?

O combate às ideias de Paulo Freire, bem como os impropérios dirigidos à educação através de políticas públicas, denota, para além de um projeto excludente de sociedade, um posicionamento unilateral que visa coibir práticas dialógicas. Desse modo, se o pensamento freiriano ainda é alvo de ataques isso se deve à força que possuí, à capacidade de formar para a insurgência, de direcionar para uma educação emancipatória, humana, oposta a um modelo opressor de sociedade.

2 (Re)definindo (per)cursos: conexões necessárias às atuais demandas educativas

Em vista das transformações políticas e socioeconômicas oriundas de um paradigma produtivo globalizado e dos dispositivos governamentais e institucionais, os educadores brasileiros encontram dificuldades em dissociar educação e economia. Neste ambiente, além de outras consequências, passam a vigorar questionamentos a respeito das atribuições da escola e das funções desempenhadas pelo professor. Diante destes questionamentos, impostos pelas exigências da sociedade pós-industrial, há quem aponte não só para a extinção da profissão de professor como também para mudanças radicais no ambiente escolar, usando como justificativa a eficácia dos meios de comunicação em transmitir informações e a capacidade agencial do aluno.

O que não se considera, ou o que se visa ignorar em virtude de uma intencionalidade perversa, são os modos pelos quais a informação, o conhecimento e os saberes circulam nas redes digitais, espaços em que se tensiona a real dimensão de uma conectividade planetária, visto que há uma apropriação da riqueza e dos instrumentos de produtividade por uma parcela limitada da população mundial, que visa restringir e tarifar o acesso a esse saber que é experiencial, que é enciclopédico. A construção do conhecimento em rede se desenvolve de maneira complexa, tarifada, em que se percebe a predominância de conglomerados norte-americanos que estabelecem cobranças por esses conhecimentos.

Assim, evidencia-se que a gratuidade ao acesso a um conhecimento global, conectivo e em rede é apenas aparente, porque nosso ingresso a esse universo “interconectado” se devolve através da cessão de nossas informações pessoais que se convertem em um conjunto de valores cedidos a interesses de intermediação publicitária.

O pensamento freiriano, nesse contexto, é relevante pois nos fortalece na luta contra a despolitização e as fake news, na busca pela construção colaborativa e interativa de um pensamento global, ou seja, na luta contra a desigualdade social, visto que o caminho:

[...] para um trabalho de libertação a ser realizado pela liderança revolucionária não é a “propaganda libertadora”. Não está no mero ato de “depositar” a crença de liberdade nos oprimidos, pensando em conquistar a sua confiança, mas no dialogar com eles (FREIRE, 2018a, p. 74).

Desse modo, reitera-se, conforme evidenciado pelo autor, a dimensão de um saber revolucionário que ao oprimido “não lhe foi doado por ninguém, se é autêntico” e que, portanto, não é passível de ser depositado por outrem, pois quem se encontra em situação de opressão só se engaja na luta quando se percebe enquanto sujeito, enquanto agente de transformação social e em sua participação cidadã (FREIRE, 2018a, p.74).

É nesse sentido que Rancière (2014, p. 122) nos fala que a “democracia está nua em sua relação com o poder da riqueza”, e que “[...] não se fundamenta em nenhuma natureza e não é garantida por nenhuma forma institucional”. A democracia prescinde da luta e do engajamento social para que tenha sua existência continuada, ou seja, prescinde do engajamento das minorias por participação cidadã. Diante disso, salienta-se a importância do legado de Paulo Freire por promover o empoderamento dos oprimidos.

Entretanto, é necessário destacar que o pensamento de Paulo Freire não é prescritivo, nem manipulador, mas “se a conscientização das classes populares significa radicalização política é simplesmente porque as classes populares são radicais, mesmo quando não o sabiam”, assumindo a conscientização, portanto, “os sinais de uma perigosa estratégia de subversão”, afirma Francisco Weffort no prefácio de Educação como prática da liberdade, de Freire (2018ª, p. 19).

Logo, quando opositores ao pensamento freiriano dizem que o educador brasileiro tinha como intencionalidade destruir o Brasil, evidencia-se o “ódio à democracia” e a tentativa de impossibilitar que a população brasileira seja por ela transformada. O que Paulo Freire defende em seus escritos não é a deterioração do Brasil. Muito pelo contrário, seus textos são em defesa da educação, em defesa do estado brasileiro, pelo desenvolvimento do país, pela redistribuição de renda, pela superação da pobreza.

As mensagens contrárias à obra de Paulo Freire que têm se difundido no Brasil não podem ser entendidas como críticas, mas como ataques que têm sua fundamentação no “ódio” e no “horror”. A crítica possui um caráter produtivo, tendo o educador incorporado os posicionamentos críticos referentes à Pedagogia do Oprimido, escrevendo a Pedagogia da Esperança como resposta.

O centro de seu pensamento está justamente na criticidade, o que corrobora para uma educação que vai de encontro a um modelo de educação autoritária. Exatamente aí se encontra o ponto de embate! A obra de Paulo Freire é alvo de ataques por propor a conscientização como processo de reconhecimento da realidade social e desconstrução de “pseudo-verdades”, o que só pode ser recebido com rejeição por quem quer impor um modelo único de sociedade.

Salienta-se, assim, que alterações estão se realizando no sentido de buscar promover a censura nos espaços escolares, fazendo-se vigente a tentativa de extrair as questões transversais dos currículos, logo, de restringir a criticidade. Assim, até o momento de lançamento da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), os dispositivos que “regulamentavam” a educação brasileira, como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), requisitavam professores aptos a exercer novas práticas de leitura e escrita na construção de sentidos através de uma pedagogia de multiletramentos que levasse em consideração as Tecnologias da Informação e da Comunicação (ROJO, 2012).

Vale lembrar que a emergência do movimento conservador autodenominado Escola sem Partido (ESP) deslocou as negociações políticas na elaboração da Base Nacional Curricular Comum, conduzindo as negociações em prol do funcionamento uma normatividade neoliberal, entendida em matriz pós-estrutural (MACEDO, 2017). Buscando as raízes do ESP, vê-se que tem como base

[...] uma racionalidade fundamentalista cristã, que vem sendo assumida por indivíduos que não estão ligados diretamente a esses grupos religiosos, sinalizando um fenômeno cultural que se expande e que estabelece um regime de verdade cada vez mais consolidado. [Está] alinhado com um pensamento conservador que vem se consolidando progressivamente não apenas no Brasil, mas também no cenário internacional (SARAIVA; VARGAS, 2017, p. 68).

O presente estudo tem como objetivo confrontar e avaliar criticamente as representações de professor discursadas em três documentos: 1) o livro Você sabe estudar? Quem sabe estuda menos e aprende mais, de Claudio de Moura Castro (2015), que sugere um conjunto de técnicas e estratégias para estudar; 2) Os Referenciais Curriculares do Rio Grande do Sul (2009); e 3) num conjunto de reflexões feitas pelo educador José Carlos Libâneo (2011) em Adeus professor, adeus professora: novas exigências educacionais e a formação docente.

A análise dos dados vem amparada na concepção dialógica da linguagem (BAKHTIN, 2002) em que se procura através das marcas linguísticas dos enunciados os sentidos discursivamente construídos, nesse caso sobre as representações do professor. Objetiva-se, portanto, verificar as representações de professor discursadas nos documentos referidos acima, analisando como a sua identidade é forjada.

Procura-se, assim, resgatar o retrato do professor, identificando os ladrões de sua profissão (economistas, administradores, políticos brasileiros) que têm discursado sobre suas atribuições, transitando a questão do pertencimento de classe em uma esfera de fluidez considerável. Essa investigação justifica-se, pois “enquanto não construirmos um novo sentido para a nossa profissão, sentido esse que está ligado à própria função da escola na sociedade aprendente, esse vazio, essa perplexidade e essa crise deverão continuar” (GADOTTI, 2011, p.22-23). Ressalta-se, portanto, para relevância da atual crise de sentido como importante para o deslocamento das identidades, encontrando-se a identidade do professorado imersa nesse contexto.

3 Desvelando representações sobre a identidade profissional do professor

Questionando-se um modelo de aprendizagem em que se minimiza a mediação, um dos papéis fundamentais do professor, procede-se à análise dos documentos anteriormente mencionadas enfatizando que a “educação não vira política por causa da decisão deste ou daquele educador. Ela é política” (FREIRE, 2001b, p.124).

No que concerne ao primeiro documento analisado, o livro Você sabe estudar? Quem sabe estuda menos e aprende mais, percebe-se que o autor, Claudio de Moura Castro: apresenta um conjunto de técnicas e estratégias para estudar; sugere a organização e a separação de um espaço e de um tempo para o estudo; insiste no desenvolvimento de bons hábitos e boas técnicas para a memorização e especifica isso através de uma prática individual e autocentrada, numa espécie de vácuo sociocultural.

Desse modo, Claudio de Moura Castro idealiza um aprendiz autônomo, desvinculado de seu entorno sociocultural e linguístico, fundamentalmente amparado em sua aprendizagem por técnicas e estratégias, e se distancia das relações interfuncionais entre o pensamento e a linguagem ou entre a aprendizagem e a linguagem. Esse vínculo, segundo Vigotski (2003), é uma relação fundamental a ser considerada para qualquer discussão específica da área. Nas palavras de Castro (2015, p.15): “É muito grande a coleção de técnicas confiáveis para estudar. Este manual nada mais é senão uma apresentação dessas técnicas, de forma direta e simples. Não há aqui discussão de teorias. Em vez disso, ensinamos como estudar, na prática.”

Fica, então, claro que Castro se distancia de qualquer teorização, por isso questiona-se: É possível propor a construção do conhecimento sem apoiar-se em uma teoria? Será que a proposta de Castro não se fragiliza?

Percebe-se, portanto, um apelo à educação bancária, criticada por Freire (2018b), sendo atribuído ao professor, por Claudio de Moura Castro, o papel restrito de transmitir informações e delegar tarefas, conforme demonstrado no fragmento subsequente:

Como a mão não opera na velocidade da boca do professor, temos que selecionar alguns segmentos do que ele disse. Enquanto o professor fala, para anotar, mantemos um diálogo silencioso com ele. Antes de pôr a funcionar o lápis (ou o notebook ou o tablet), é como se indagássemos ao professor quais são os pontos mais importantes que estão sendo apresentados (CASTRO, 2015, p. 53).

Percebe-se, dessa forma, o papel passivo desempenhado pelo aluno na construção do conhecimento, visto que não é aberto espaço para que este estabeleça um diálogo com o professor, não é aberto espaço para que se desenvolva um processo de interação. Além disso, Castro (2015), em sua obra, defende a construção do conhecimento por intermédio de materiais em detrimento à interação entre professor e aluno. Para o economista, cabe ao professor a tarefa de transmitir conhecimentos a serem estruturados quase que unicamente pela memorização, o que justificaria a criação de um manual de técnicas e estratégias. Assim, o ‘outro’ aparece em sua obra somente como elemento auxiliar das técnicas de memorização (2015, p. 53), conforme exposto pelo autor: “como é o caso em outras técnicas, o grupo não faz mágicas e não à prova de usos desastrados. Entram as combinações, para evitar problemas mais comuns.”

Portanto, Castro sugere em seu livro uma série de estratégias como a organização do espaço de estudo, a utilização de mapas conceituais, uma leitura não linear de livros no primeiro contato com a obra, estratégias para controlar o tempo de estudos, entre outras técnicas para o estudo. Pode-se afirmar que a obra de Castro apresenta um diferencial em relação às demais publicações, aqui analisadas, por habilmente utilizar-se de elementos multimodais através da exploração de recursos visuais. Entre esses: a seleção de cores vibrantes, a associação entre o texto e as imagens, a utilização de setas que direcionem a leitura, o tamanho da fonte, a presença de mapas conceituais.

Entretanto, o modelo de aprendizagem proposto por Castro desconsidera o lugar dos objetos de aprendizagem, do professor ou dos mediadores, do “outro”, os únicos a estabelecerem relações entre conhecimentos e vivências externas ao ambiente escolar. Em síntese, pensar na aplicação do modelo de aprendizagem proposto por Castro trata-se de considerar apenas a construção de saberes necessários à inserção do aluno numa sociedade globalizada e competitiva, ignorando todo aprendizado que o aluno desenvolve nas relações com o meio em que está inserido e, principalmente, o aprendizado que se dá nas interrelações com todos envolvidos neste processo de desenvolvimento sociocognitivo.

Em se tratando das Novas Tecnologias da Comunicação e da Informação, apesar de Castro conceber o seu impacto na vida social dos estudantes, não as considera como mediadores culturais, mas somente destaca o seu papel enquanto instrumentos de informação:

Há milhões de sites com informações úteis e interessantes. Mas sua confiabilidade não fica evidente, pelo menos não à primeira vista. A internet traz uma extraordinária riqueza de informações, bastando apenas pressionar algumas teclas no Google. Porém, também traz novos níveis de riscos na qualidade da informação (CASTRO, 2015, p. 104).

A questão da confiabilidade das informações presentes na internet poderia ser a deixa para que o economista destacasse o papel importante assumido pela escola e pelo professor na construção de um conhecimento crítico. No entanto, a construção de seus argumentos está completamente voltada à adaptação do indivíduo a uma sociedade competitiva.

Sobre essa perspectiva para a educação, que encontra seus subsídios em uma perspectiva neoliberal, Paulo Freire se manifesta contrário a essa “ideologia fatalista, imobilizante” - segundo a qual “só há uma saída para a prática educativa: adaptar o educando a esta realidade que não pode ser mudada” - e reitera que sua proposta aos leitores, definitivamente, não é esta que “nos nega e amesquinha como gente” (2001b, p.22).

No que se refere aos Referenciais Curriculares do Rio Grande do Sul, em diversas passagens - seja através de propostas didáticas, ou por meio de sugestões metodológicas - é salientado o papel do professor mediador. Também se discorre a respeito dos impactos das Novas Tecnologias da Comunicação e da Informação, o que acarretaria na necessidade de investimento em formação continuada de professores. Por exemplo, abaixo segue uma proposta didática:

A mediação do professor, que pode se dar através de excertos de textos críticos de revistas ou jornais, possibilita também que os alunos se apropriem de estratégias de leitura literária que ainda não dominam, ampliem as condições de reflexão a respeito do texto, contribuindo para o crescimento individual, e favoreçam a autonomia da competência leitora (SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO. Referencial Curricular: Lições do Rio Grande. 2009, p.91).

No que concerne às tecnologias da comunicação e da informação, o documento indica que “[...] é preciso um servidor de apoio, de multimeios, que saiba operar o hardware, mas os professores precisam ser capacitados para usarem a tecnologia da informação [...] como recursos didáticos em suas aulas” (SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO. Referencial Curricular: Lições do Rio Grande. 2009, p. 7).

Entretanto, há que se questionar como a formação continuada é percebida e se não estaria essa imersa nessa mesma lógica neoliberal, tão questionada por Paulo Freire (2001b). É nesse sentido que Gadotti (2011, p. 42) nos fala que:

[...] a formação continuada do professor deve ser concebida como reflexão, pesquisa, ação, descoberta, organização, fundamentação, revisão e construção teórica e não como mera aprendizagem de novas técnicas, atualização em novas receitas pedagógicas ou aprendizagem das últimas inovações tecnológicas.

Uma formação continuada com tal enfoque seria da ordem do experimento, ou seja, aproximada da perspectiva (des)educativa preconizada por Claudio de Moura Castro. Desse modo, tornam-se relevantes a considerações de Libâneo (2013, p.31), que reafirmam o que já fora apontado por Paulo Freire através da Pedagogia do Oprimido, concluindo um período de quase quatro décadas posteriores à sua publicação:

O ensino exclusivamente verbalista, a mera transmissão de informações, a aprendizagem entendida somente como acumulação de conhecimentos, não subsistem mais. [...] O que se afirma é que o professor media a relação ativa do aluno com a matéria, inclusive com os conteúdos próprios de sua disciplina, mas considerando os conhecimentos, a experiência e os significados que os alunos trazem à sala de aula, seu potencial cognitivo, suas capacidades e interesses, seus procedimentos de pensar, seu modo de trabalhar.

No que se refere às Novas Tecnologias da Informação e da Comunicação, Libâneo enfatiza a relevância de os professores reconhecerem o seu impacto, utilizando-as como um conjunto de instrumentos para a mediação do ensino, sendo indispensável:

[...] que os professores modifiquem suas atitudes diante dos meios de comunicação, sob risco de serem engolidos por eles. Mas é insuficiente ver os meios de comunicação social como recursos didáticos. Os meios de comunicação social (mídias e multimídias) fazem parte do conjunto das mediações culturais que caracterizam o ensino (LIBÂNEO, 2013, p. 42).

Em oposição, Castro (2015) minimiza o papel do professor mediador, atribuindo-lhe apenas a atividade de transmitir informações e designar tarefas ao educando. Desse modo, estaria dispensada a função do professor, podendo o aluno utilizar-se unicamente de materiais auxiliares para aprender, como manuais de técnicas de estudo (tais como o livro de autoria do economista). Conforme suas palavras (2015, p. 53): “Enquanto o professor fala, para anotar, mantemos um diálogo silencioso com ele. (...) é como se indagássemos ao professor quais são os pontos mais importantes que estão sendo apresentados.”

Pensando em possíveis articulações entre Vigotski (2003) e Paulo Freire (2018b, 2001), ambos voltados a problematizações relativas ao sistema educacional das épocas em que se inseriram, salienta-se o que estes nos ensinam sobre aprender:

  • As características tipicamente humanas são fruto da interação dialética do homem com o seu meio sociocultural;

  • A cultura é constitutiva dos humanos e como tal os humanos são seres de aprendizagem;

  • Os seres humanos também são seres falantes, seres da linguagem e é na linguagem, na interação que aprendem e se constituem;

  • A linguagem é o signo mediador por excelência da aprendizagem - ela carrega os conceitos e, por assim dizer, ela os distribui.

Disso nasce a importância da mediação!

O aspecto interacional da linguagem é para Paulo Freire (2018b) indispensável para a prática educativa, sendo o diálogo considerado na sua potencialidade humanizadora e transformadora da realidade, em que ação e reflexão são dimensões intimamente atreladas, assim o diálogo entendido como:

[...] uma exigência existencial. E, se ele é o encontro em que se solidarizam o refletir e o agir de seus sujeitos endereçados ao mundo a ser transformado e humanizado, não pode reduzir-se a um ato de depositar ideias de um sujeito para o outro, nem tampouco tornar-se simples troca de ideias a serem consumidas pelos permutantes. [...] É um ato de criação. Daí que não possa ser manhoso instrumento de que lance mão um sujeito para a conquista do outro. A conquista implícita no diálogo é a do mundo pelos sujeitos dialógicos, não a de um pelo outro (p.109-110).

Percebe-se o diálogo como oportuno para atuar socialmente como um modo de transformação e libertação do homem, sendo requisitada a cooperação entre os seus integrantes, e não como instrumento para subjugar, dominar ou alienar alguém.

Além disso, Freire destaca a importância de os interlocutores se colocarem em relação de simetria entre si, em posição de cooperação, visto que: “Como posso dialogar, se me admito como um homem diferente, virtuoso por herança, distante dos outros, meros ‘isto’, em que não reconheço outros eu?” (2010, p.93). A educação libertadora seria, assim, um meio para que diálogos dessa qualidade fossem buscados.

Nesse ínterim, há que se destacar o caráter dialógico da linguagem em que os sujeitos interagem socialmente, demonstrando através de seus discursos aspectos como posição social e esferas de atuação. Os enunciados são produzidos por sujeitos em resposta a outros. É no diálogo com o outro, em um dado contexto social, que o enunciador constrói seu discurso e são criados os sentidos. Evidencia-se, assim, que através das interlocuções estão dispostos os sentidos (BAKHTIN, 2011). Conforme Sobral e Giacomelli (2015, p. 1082):

A interação, ou intercâmbio verbal, é a própria base, raiz e fundamento do sentido, porque é nela que acontece a relação entre sujeitos, a interlocução. E é da interlocução que vem o sentido. Para a ADD [Análise Dialógica do Discurso], portanto, a interação não é só o que acontece aqui e agora: ela vai da conversa face a face à relação entre sujeitos de lugares distintos e mesmo de épocas distintas.

Depreende-se que a interação não se esgota na situação imediata, outrossim, estendese para as relações dos sujeitos com a sociedade, ou seja, os grupos sociais em que os sujeitos estão inscritos e os papeis sociais que desempenham. Há, portanto, uma heterologia (diversidade de elementos que caracterizam o discurso) responsáveis pela atribuição dos sentidos que se estabelecem na interação, nas interlocuções. Sobre o sentido, há que se destacar:

A índole responsiva do sentido. O sentido sempre responde a certas perguntas. Aquilo que a nada responde se afigura sem sentido para nós, afastado do diálogo. Sentido e significado. O significado está excluído do diálogo, mas abstraído dele de modo deliberado e convencional. Nele existe uma potência de sentido (BAKTHIN, 2011, p. 381).

O dialogismo bakhthiniano é importante para essa pesquisa devido aos dois tipos de sociabilidade e ao caráter ideológico da linguagem, essenciais para que reflitamos acerca dos processos envolvidos na proposta arte/educativa em questão que envolve as interações entre professor e alunos, dos alunos entre si e suas intersubjetividades.

Assim, a construção do conhecimento é uma ação dialógica entre educadores e educandos mediatizados pelo mundo e pelas palavras que o designam. O diálogo, portanto, é essencial para a prática da liberdade, para o exercício da democracia, para que se construa uma escola em que a consciência crítica esteja ajustada com os direitos culturais.

O pensamento neoliberal que tem pautado as atuais políticas em torno da educação quer excluir as possibilidades de encontro, de diálogo, de reflexões e de exercício da compreensão crítica e da conscientização sobre a realidade. Nesse ínterim, são propagados valores distorcidos por uma elite que detém os meios de produção. Logo, fica evidente a urgência da escola recuperar sua função ética para a formação de crianças, adolescentes, jovens e adultos. Se a educação não é direito condicional a outros direitos, estando atrelada às lutas pela garantia de outros direitos, por outro lado ela se admite vinculada a questões de ordem social.

Quando são iniciadas práticas educativas nos contextos escolares é importante que se atente para esses fatores contextuais de ordem social que são de central importância no estabelecimento de interações. É preciso recuperar a humanidade dos sujeitos que se veem roubados nesses aspectos, sendo feita a seguinte indagação: em que processos educador e educando se veem roubados em sua humanidade?

4 À guisa de conclusão

Nesse artigo, buscou-se demonstrar como operam os efeitos de sentido na identidade do professor que tem seu retrato leiloado a políticos, economistas e administradores que têm articulado a sua imagem em termos de suas necessidades e atribuições. Pode-se afirmar que no Brasil as representações de professor são construídas a partir de vozes e discursos que não emanam dos educadores. Isto significa que a sociedade está imersa em um processo de globalização que tende a adotar uma política educacional pelos parâmetros da ideologia capitalista neoliberal (HALL, 2002).

Assim, enfatiza-se a gravidade dos acontecimentos que tem acometido o Brasil por um movimento partidário doutrinador que tem como objetivo criminalizar os professores que desenvolvam um trabalho de conscientização e criticidade com seus alunos, ou seja, intencionam silenciar as vozes dos professores, mais do que já lhes ocorre em termos identitários.

O exemplo mais evidente do que se relata é o Projeto Escola Sem Partido que está pautado em uma escola parcial, de pensamento único e intolerante à diversidade, onde todo projeto de educação e de democracia é colocado em ameaça. É imprescindível a nós educadores, colocarmo-nos contrários ao projeto de ditadura que vem sido esboçado através de ações de perversidade que intentam criminalizar o professor e que visam impor a militarização das e nas escolas, em uma nítida intenção de convertê-las em centros de segurança máxima.

Recorremos, nesse texto, a Rancière (2014) por percebemos alguns pontos de encontro entre os seus constructos teóricos e alguns posicionamentos defendidos por Paulo Freire, pois, em sua obra intitulada Ódio à democracia, o autor empenha-se em demonstrar a complexidade de sua consolidação, evidenciando os processos de formação da democracia que tem como característica central ser uma primeira tentativa de igualdade entre indivíduos em termos de consumo e propriedade, estando no sistema representativo a legitimação do preconceito pertinente à democracia, o ponto de central de debate, revolta e ódio.

Desse modo, o autor desvela os processos abrangidos por um sistema que torna uma minoria mais forte apta a governar sem restrições, submetendo a todos que não estão capacitados em decidir pelo bem comum a se submeter à máquina oligárquica paralisada, sendo a ideia de estado democrático de direito:

Esquecida de toda política, a palavra democracia tornou-se então o eufemismo que designa um sistema de dominação que não se pode mais chamar pelo nome e ao mesmo tempo o nome do sujeito diabólico que tomou o lugar desse nome obliterado: um sujeito compósito, em que o indivíduo que sofre esse sistema de dominação e aquele que o denuncia se misturam. É com os traços combinados de um e de outro que a polêmica desenha o retrato falado do homem democrático: jovem consumidor imbecil de pipoca, reality show, safe sex [sexo seguro], previdência social, direito à diferença e ilusões anticapitalistas ou altermunididas. Com eles, os denunciantes têm aquilo de que precisam: o culpado absoluto de um mal irremediável. Não um pequeno culpado, mas um grande culpado, que causa não só o império do mercado ao qual os denunciantes se acomodam, mas a ruína da civilização e da humanidade (RANCIÈRE, 2014, p.112-113).

Por se assumir avesso ao princípio dessa maquinaria oligárquica, Paulo Freire procurou gestar projetos através de conselhos por considerar que:

[...] a participação não pode ser reduzida a uma pura colaboração que setores populacionais devessem e pudessem dar à administração pública. Participação ou colaboração, por exemplo, através dos chamados mutirões por meio dos quais se reparam escolas, creches, ou se limpam ruas ou praças. A participação, para nós, sem negar este tipo de colaboração, vai mais além. Implica, por parte das classes populares, um “estar presente na história e não simplesmente estar nela representadas”. Implica a participação política das classes populares através de suas representações no nível das opções, das decisões e não só do fazer o já programado. Por isso é que uma compreensão autoritária da participação a reduz, obviamente, a uma presença concedida das classes populares a certos momentos da administração. Para nós, também, é que os conselhos de escola têm uma real importância enquanto verdadeira instância de poder na criação de uma escola diferente. Participação popular para nós não é um slogan mas a expressão e, ao mesmo tempo, o caminho da realização democrática (FREIRE, 2000a, p.75).

Diante do cenário esboçado previamente, questiona-se: poderá ainda uma educação de qualidade promove algum efeito positivo ou influenciar de alguma maneira nos acontecimentos sociais? Para essa pergunta a resposta de Freire (2000b, p.67) é assertiva, pois: “Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”. Seria isso sonho, utopia? Gadotti (2012) evidencia que a utopia é o verdadeiro realismo do educador.

Desse modo, acreditamos na potencialidade da educação enquanto elemento que pode contribuir para construir um mundo menos discriminatório, menos injusto. Entretanto, utilizando-nos das palavras do poeta João Cabral de Mello Neto, consideramos fundamental frisar que:

Um galo sozinho não tece uma manhã: / ele precisará sempre de outros galos. /De um galo que apanhe esse grito que ele/ e o lance a outro; de um outro galo/ que apenhe o grito de um galo antes/ e o lance a outro; e de outros galos/ que com muitos outros galos se cruzem / os fios de sol de seus de gritos de galo,/ para que a manhã, desde uma teia tênue/ se vá tecendo, entre todos os galos/ E se encorpando em tela, entre todos, /se erguendo tenda, onde entrem todos,/se entretendendo para todos, no toldo/(a manhã) que plena livre de armação/A manhã, toldo de um tecido tão aéreo/que, tecido se eleva por si: luz balão (MELO NETO, 2010, p. 274)

Finalizando esse artigo, reitera-se a importância de continuarmos lendo a obra de Paulo Freire como alternativa de resistência que nos permita nutrir esperança em tempos tenebrosos. Sendo a educação, em uma perspectiva freiriana, um processo de construção permanente em que nos educamos mutuamente e em comunhão, o convite à leitura da obra de Freire mostra-se como um apelo a uma prática de engajamento social para a libertação pela qual as pessoas se tornem capazes de lerem o mundo, de se compreenderem em sua subjetividade e edificarem o mundo através de meios alternativos e de resistência à lógica fatalista do neoliberalismo.

Os autores dos ataques à obra de Paulo Freire são os mesmos que se filiam a uma concepção limitada de educação enquanto conteúdo, os quais propagam uma série de falsos juízos em torno da representatividade de seu pensamento e da importância da perspectiva dialógica do processo educativo.

Para Paulo Freire, nenhuma educação teria eficácia se não fosse comunicativa, se não fosse dialógica, se não fosse participativa; surgindo através da interface educação e comunicação, aspectos não considerados pela educação tradicional, que estava unicamente voltada aos conteúdos e aos seus efeitos subsequentes. Essa educação tradicional, muito utilizada a serviço de uma perspectiva funcional neoliberal, não subsiste na perspectiva freiriana de educação que incorpora uma prática dialética, em que respeita a cultura e os direitos humanos.

Sendo a comunicação entendida como um direito fundamental, concedido pela ONU através da Carta dos direitos humanos (1949), o combate às fake news mostra-se enquanto uma prática educomunicativa, em que o direito à expressão deve ganhar espaço na educação formal e não formal. A comunicação é um direito fundamental e uma formação tradicional é incapaz de dar conta da demanda de preparar os estudantes para se expressar de maneira adequada. Esse objetivo, fundamentado em uma pedagogia dialógica, logo em uma educação processual e transversal, é de grande escopo, pois contribui para uma formação que não é somente técnica, mas é também humana, abrangendo saberes que consideram questões culturais, étnicas, relações de gênero, ou seja, compreendem o respeito e a valorização de uma convivência em coletividade.

Referências

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Recebido: 30 de Setembro de 2019; Aceito: 18 de Fevereiro de 2021

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