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Eccos Revista Científica

Print version ISSN 1517-1949On-line version ISSN 1983-9278

Eccos Rev. Cient.  no.61 São Paulo Apr./June 2022  Epub Feb 09, 2024

https://doi.org/10.5585/eccos.n61.21758 

Dossiê 61 - Cidades Educadoras

ENTRE A VIOLÊNCIA DOS SENTIDOS E OS SENTIDOS DA VIOLÊNCIA: AS VOZES DA MEMÓRIA OPERÁRIA SOBRE OS REGIMES AUTORITÁRIOS PORTUGUÊS E BRASILEIRO DO SÉCULO XX1

BETWEEN THE VIOLENCE OF THE SENSES AND THE SENSES OF VIOLENCE: THE VOICES OF WORKER’S MEMORY ABOUT THE PORTUGUESE AND BRAZILIAN AUTHORITARIAN REGIMES OF THE 20TH CENTURY

ENTRE LA VIOLENCIA DE LOS SENTIDOS Y LOS SENTIDOS DE LA VIOLENCIA: LAS VOCES DE LA MEMORIA OBRERA SOBRE LOS REGÍMENES AUTORITARIOS PORTUGUÉS Y BRASILEÑO DEL SIGLO XX

Eliane Cristina da Silva Nascimento, Doutoranda em Ciências Humanas e Sociais, Pedagoga1 
http://orcid.org/0000-0002-8050-3219

Sidney Jard da Silva, Professor, Investigador Visitante2 
http://orcid.org/0000-0003-3444-1763

1Doutoranda em Ciências Humanas e Sociais (UFABC), Pedagoga da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR)

2Professor do Centro de Engenharia, Modelagem e Ciências Sociais Aplicadas (CECS/UFABC), Investigador Visitante do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES/UC)


Resumo

Movimentos de irrupções de memória têm ganhado força atualmente, pois além de uma função documental e histórica, tais registros tornam-se instrumentos educativos, sociais e de resistência política. Este trabalho tem como base testemunhos de operários e operárias, vítimas do regime autoritário brasileiro e português, duas ditaduras que emergiram e desenvolveram-se em contextos diferentes, mas que podem originar possíveis aproximações entre os discursos e narrativas dos que as viveram. Os testemunhos foram obtidos em projetos temáticos conduzidos pelo Centro de Documentação 25 de Abril (CD25A), Museu do Aljube - Resistência e Liberdade e Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses - Intersindical Nacional (CGTP-IN), em Portugal, e pela Associação de Anistiados e Anistiandos do ABC (AMA-A ABC), no Brasil, e consultados para uma pesquisa sobre memória da resistência operária aos regimes autoritários, que integra o Projeto Direitos Humanos: dos fundamentos teóricos às tendências contemporâneas no nível local (cidades). Os discursos produzidos por estas narrativas articulam enunciados que evidenciam que tanto as vítimas atribuem sentidos ao que sofreram, como a violência política também coloca em questão sentidos já estabelecidos no imaginário destas pessoas, assim como revelam lugares pedagógicos de memória.

Palavras-chave: Brasil; Portugal; ditadura; memória; resistência; discurso.

Abstract

Nowadays, memory eruption movements have gained strength because, in addition to a documental and historical function, such records become educational, social, and political instruments of resistance. This article has as its object of analysis the testimonies of workers who were victims of the Brazilian and Portuguese authoritarian regimes, two dictatorships that emerged and developed in different political contexts, but that can give rise to possible approximations between the discourses and narratives of those who lived them. The interviews were carried out by scientific research on the memory of workers' resistance to authoritarian regimes, which is part of the project Direitos Humanos: dos fundamentos teóricos às tendências contemporâneas no nível local (cidades). In addition, were also consulted documental archives of the Centro de Documentação 25 de Abril (CD25A), Museu do Aljube - Resistência e Liberdade and Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses - Intersindical Nacional (CGTP-IN), in Portugal, and Associação de Anistiados e Anistiandos do ABC (AMA-A ABC), in Brazil. The discourses produced by these narratives articulate statements that show that victims attribute different meanings to what they suffered; however, political violence, on the other hand, calls into question meanings already established in these people's imaginations. Finally, this paper also reveals pedagogical places of memory related to workers' resistance to authoritarian regimes.

Keywords: Brazil; dictatorship; discourse; memory; Portugal; resistance.

Resumen

La investigación centrada en la memoria de los periodos autoritarios ha ido ganando espacio em la actualidad, porque además de una función documental y histórica, dichos registros se convierten en instrumentos educativos, sociales y de resistencia. Este estudio se basa en testimonios de trabajadores y trabajadoras víctimas de los regímenes autoritarios brasileño y portugués, dos dictaduras que surgieron y se desarrollaron en contextos diferentes, pero que pueden dar lugar a posibles aproximaciones entre el discurso de quienes las vivieron. Los testimonios se obtuvieron en proyectos temáticos realizados por el Centro de Documentação 25 de Abril (CD25A), el Museu do Aljube - Resistência e Liberdade y la Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses -Intersindical Nacional (CGTP-IN), en Portugal, y por la Associação de Anistiados e Anistiandos do ABC (AMA-A ABC), en Brasil, y consultados para una investigación sobre la memoria obrera de la resistencia al autoritarismo, que forma parte del Proyecto Direitos Humanos: dos fundamentos teóricos às tendências contemporâneas no nível local (cidades). Los discursos producidos por estas narrativas articulan enunciados que muestran que tanto las víctimas atribuyen significados a lo que sufrieron, como la violencia política también pone en cuestión significados ya establecidos en el imaginario de estas personas, así como, revelan lugares pedagógicos de la memoria.

Palabras clave: dictadura; discurso; memoria; resistência; trabajadores.

Introdução

Deviam passar estas memórias aos mais novos e principalmente aos professores, do secundário e do primário. Eles é que vão ensinar os mais novos (REGO, s.d, PT).2

Eu gostaria que os estudantes hoje [...] os trabalhadores [...] ouvissem, vissem o que foi a ditadura militar (CUNHA, 2019, BR).

Este trabalho tem como objetivo apresentar resultados parciais de pesquisas integrantes do Projeto CAPES-PrInt Direitos Humanos: dos fundamentos teóricos às tendências contemporâneas no nível local (cidades), constituídas em torno da questão da Memória, Violação e Reparação de Direitos Humanos na Ditadura Militar.3

Movimentos de irrupções de memória têm ganhado força atualmente. Refletindo sobre a política da memória de regimes autoritários, o historiador Luís Reis Torgal questiona: silenciar ou documentar? Para o autor, a memória deste passado não deve ser escondida, pois torná-la viva “deve ser entendido como um acto de civismo, mas de ciência e de divulgação científica” (TORGAL, 2009, p. 46). Esta reflexão cabe também para outros acontecimentos considerados obscuros, como guerras, catástrofes coletivas etc. e, no caso da violência política, consideramos que além de uma função documental e histórica, tais registros tornam-se também instrumentos educativos, sociais e de resistência, principalmente, em momentos nos quais a democracia é desafiada.

Este trabalho trata das memórias de um dos atores que tiveram expressivo protagonismo na resistência aos governos autoritários no Brasil (1964-1985) e em Portugal (1926-1974): a categoria operária.

Em ambos os países, ao se movimentar por melhores condições de salário, de salubridade e segurança no trabalho, a categoria operária passou a ser vigiada pelo regime, de forma intervencionista e repressiva, com intimidação e demissões de militantes e representantes de classe, proibição de reuniões, censura aos boletins sindicais, prisões de dirigentes, inserção de informantes na estrutura administrativa dos sindicatos, conforme aponta Nunes et al (2011) sobre o contexto português, mas que, perfeitamente, pode ser também uma descrição sobre o contexto brasileiro. Assim, uma disputa que, normalmente, seria entre patrões e empregados, passa a ser também uma luta de resistência ao próprio regime, como podemos perceber em um dos testemunhos registrados no Brasil: “na medida em que o governo se posiciona de um lado só [...] a gente muda o foco das nossas reivindicações, que eram trabalhistas e daqui a pouco passa a ser política verdadeira” (SOUZA, 2019).

A partir do pressuposto de que testemunhos não são estoque de experiências, mas representam o trabalho de elaboração da memória, constituída por sentidos a partir da recriação constante do vivido (CRUZEIRO, 2018), o recorte da pesquisa apresentado é uma análise sobre como os discursos da categoria operária brasileira e portuguesa significam a violência política sofrida, no contexto dos regimes autoritários dos seus respectivos países.

O texto está organizado em três seções. Após esta breve introdução são explicitados os aspectos teóricos e metodológicos que orientam este trabalho e, na sequência, a apresentação e discussão sobre as duas perspectivas de significação da violência política, evidenciadas no discurso da categoria operária.

Aspectos teóricos e metodológicos

A especificidade do tipo de fonte utilizada neste trabalho requer considerar algumas questões, entre elas, e talvez a mais importante, é que o trabalho com fontes testemunhais está no âmbito das significações e não dos fatos dados, pois a memória compartilhada representa determinados discursos legitimados para cada pessoa, ou seja, o relato do entrevistado é uma reconstrução do vivido a partir de imagens e ideias de hoje. Ainda, que testemunhos oriundos de entrevistados com posições-sujeito similares, neste caso, operários e sindicalistas que sofreram algum tipo de repressão por regimes autoritários, não significam as mesmas visões sobre os acontecimentos (PAULO, 2008).

Tais questões põe em evidência o papel que o sujeito entrevistado exerce na percepção deste real, pois conforme Cruzeiro (2018), neste processo ocorrem lembranças e esquecimentos, conscientes ou não, que sofrem mediações políticas, ideológicas e sociais, e que revelam à pesquisa uma dimensão humana e uma significação ética e política que os documentos históricos estão longe de alcançar.

O referencial teórico que suporta este trabalho - a Análise de Discurso francesa (AD) - contempla as preocupações levantadas pelas autoras, pois um dos seus principais pressupostos é a noção de que um discurso, que pode ser oriundo de um texto, de um vídeo, de uma imagem, de um som, de uma obra de arte etc. produz sentidos nos e para os sujeitos e é constituído em determinadas condições de produção. Michel Pêcheux (1938 - 1983), linguista francês e um dos grandes nomes da AD, define discurso como efeito de sentido entre interlocutores, sendo assim, como esclarece Orlandi (2007), o discurso não é uma simples transmissão de informações, não há uma linearidade entre emissor e receptor, ambos realizam o processo de significação, que é afetado pela língua e pela história.

Aproximando tais pressupostos deste trabalho, que se propõe a analisar testemunhos, o gesto de leitura a ser feito terá como guia a compreensão do funcionamento dos discursos dos entrevistados, neste sentido, é uma interpretação que objetiva “a compreensão do que o sujeito diz em relação a outros dizeres, ao que ele não diz” (ORLANDI, 2005, p.11). Em outras palavras, os sentidos produzidos por nossa interpretação, que será um dentre tantos possíveis, estará no entrecruzamento da materialidade do discurso (a gravação, a transcrição) com a inscrição sócio-histórica do texto (o contexto de produção do discurso).

Fazer uma análise discursiva tendo em conta as condições de produção de um discurso significa considerar não só os testemunhos em si (a materialidade discursiva), mas também quem são estes interlocutores, não como personificação, mas qual é o seu lugar de fala (a posição-sujeito); quais outros discursos se entrecruzam, a memória do já dito que o sujeito toma como se fosse sua (o interdiscurso); e, quais são as regras às quais o discurso está submetido (o que pode e deve ser dito em determinadas conjunturas). Destacamos que feita a análise “os textos particulares analisados desaparecem como referências específicas para dar lugar à compreensão de todo um processo discursivo” (ORLANDI, 1995, p. 117), ou seja, o texto é materialidade e espaço significante ao mesmo tempo.

Buscando os sentidos e a dimensão humana dos fatos históricos que aqui nos interessam, a partir do olhar de um dos atores envolvidos, o corpus desta pesquisa foi constituído por meio de consulta, em Portugal in loco e no Brasil pela disponibilização dos vídeos para download, a testemunhos de operários e sindicalistas, registrados em áudio, vídeo e transcrição, como segue:

  • I - Centro de Documentação 25 de Abril, Coimbra, Portugal: 1 testemunho.

  • II - Centro de Documentação do Museu do Aljube Resistência e Liberdade, Lisboa, Portugal: 11 testemunhos.

  • III - Centro de Documentação da Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP), Lisboa, Portugal: 9 testemunhos.

  • IV - Associação de Anistiados e Anistiandos do ABC (AMA-A ABC), São Bernardo do Campo, Brasil: 13 testemunhos.

Quanto ao perfil dos entrevistados, em Portugal, apesar de as entrevistas selecionadas abrangerem operários de diversas categorias, conseguimos manter a predominância entre sindicalistas e operários das áreas da metalurgia e afins, garantindo, assim, proximidade com o perfil dos entrevistados brasileiros, que são todos oriundos da categoria dos metalúrgicos.4 Tanto em Portugal como no Brasil, o gênero dos entrevistados é predominantemente masculino.

Metodologicamente, o dispositivo de análise foi construído a partir da seleção, em cada um dos testemunhos consultados, de trechos ou frases, tomados como unidades de sentido que atribuem significados à violência política sofrida por estes atores, no contexto dos regimes autoritários brasileiro e português.

Faz-se necessário uma ressalva quanto ao conteúdo dos testemunhos e a quantidade de registros obtidos em cada um dos países. As entrevistas foram realizadas pelas respectivas instituições e disponibilizadas para pesquisa acadêmica, motivo pelo qual os roteiros são diferentes e determinados temas têm mais ênfase em algumas entrevistas do que em outras. Com relação ao quantitativo de entrevistas que serviu de base para este trabalho, os leitores perceberão que o número de referências feitas aos testemunhos oriundos de Portugal é maior do que aos oriundos do Brasil, pois o registro destes últimos estava em andamento entre 2019-2020 e foi interrompido devido à pandemia de Covid-19, o que nos deixa, temporariamente, com dados parciais. Ainda assim, optamos por manter a abordagem de colocar os dois países em perspectiva, por entendermos que esta condição não invalida os resultados aqui apresentados porque os testemunhos brasileiros trazem elementos relevantes para a análise, mesmo que em menor proporção.

A categorização apresentada surgiu no próprio movimento de leitura e interpretação, e percebemos que ao significar, os discursos dos entrevistados articulam-se entre os sentidos atribuídos à violência política e os sentidos estabelecidos no imaginário, que a violência política coloca em suspenso, questões sobre as quais a continuidade deste texto deter-se-á.

Significando a violência política

Antes de passarmos, especificamente, aos sentidos produzidos pelos discursos da categoria operária sobre a violência decorrente de regimes autoritários, faz-se necessário assinalar algumas notas preliminares sobre o contexto destes discursos.

Em primeiro lugar, as duas ditaduras - brasileira e portuguesa - são regimes oriundos de contextos diferentes, tanto temporalmente como na questão de suas lideranças. Não é propósito deste trabalho fazer um recorte histórico minucioso, assim, nos limitaremos a destacar, de forma sintética, uma questão que interessa para esta análise.

O regime autoritário português durou quase meio século (48 anos), tendo início na década de 1920, e é resultado de uma convergência de descontentamentos com as ideias demoliberais5 e comunistas vigentes no início do século XX e a emergência de um forte movimento de cultura de direita, em vários setores da sociedade, inclusive, nas Universidades. Conforme Luís Reis Torgal, o projeto político de Salazar foi fruto de uma construção e foi defendido, como sendo a terceira via, uma solução ditatorial temporária, mas viável.

Daí a formação do Estado Novo, que resulta da acção de um homem, Salazar, ou de um grupo de homens, salazaristas, que, dessa amálgama, conseguem construir uma ideia e uma prática, que acabam por impor pela persuasão e pela repressão, num processo de ideologia única (TORGAL, 2009a, p. 316).

O regime autoritário brasileiro durou 21 anos, estando inscrito entre as décadas de 1960-1980 e foi fruto de um golpe militar que derrubou um governo constitucional. Assim como em Portugal, teve apoio de alguns setores conservadores da sociedade (latifundiários, industriais, banqueiros etc.), defendia a bandeira do anticomunismo e, em tese, era para ser uma solução temporária.

Desde as primeiras horas, uma perseguição violenta atingiu sobretudo indivíduos e organizações mais identificados como esquerdistas, como o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), a União Nacional dos Estudantes (UNE), as Ligas Camponesas e grupos católicos como a Juventude Universitária Católica (JUC) e a Ação Popular (CNV, 2014, p. 98).

O que queremos destacar com esta brevíssima contextualização é a diferença existente entre Brasil e Portugal, no campo discursivo, sobre o papel-representação dos Militares, questão que emerge nos testemunhos consultados. Enquanto no Brasil, os militares são associados a repressão, autoritarismo e tortura, em Portugal, são aclamados como sinônimo de liberdade e redemocratização, pelo fato de que esta instituição esteve à frente do movimento que pôs fim ao regime autoritário, apesar de, paradoxalmente, a literatura apontar que eles também deram suporte ao regime salazarista durante seus anos de força. Também digno de nota, é a aproximação entre as ditaduras dos dois países quanto ao fato de terem sido aventadas como uma solução temporária, mas que, no poder, a aparente boa intenção de somente reorganizar o país da alegada balbúrdia - social, política e econômica - deu lugar à mobilização de todo um arsenal para lá manterem-se indefinidamente.

Outro aspecto a considerar sobre o contexto de produção dos discursos dos testemunhos é o papel-sujeito dos entrevistados e como se deu o devido registro.

O lugar de fala destas pessoas refere-se a um grupo social específico - vítimas do regime autoritário por atividades de resistência e de lutas trabalhistas. A maioria declarou ser casada e com filhos, lembrando que este contexto de trabalhador-homem-casado-pai, inscreve-se em uma ordem social, aproximadamente, entre as décadas de 1960-1970/início de 1980.

Quanto aos registros, foram produzidos em ambientes específicos - projetos temáticos conduzidos pelas instituições - Dias da Memória, Vidas Prisionáveis e Vidas na Resistência, no Museu do Aljube; Testemunhos Orais - das origens da Intersindical ao Congresso de Todos os Sindicatos, na CGTP; História Oral - testemunhos e histórias de vida, de alguns dos principais protagonistas da transição para a democracia, no Centro de Documentação 25 de Abril; e Memórias de Vida e de Luta, na AMA-A ABC.

Podemos perceber que os temas dos projetos realçam determinadas dimensões na relação destes atores com o regime autoritário em questão - a memória; a prisão; a resistência; o sindicato; a história pessoal; o reconhecimento como protagonista. Ou seja, as condições de produção destes discursos são determinadas por mediações sociais, políticas e ideológicas, assim como pelos discursos legitimados pelo próprio indivíduo ou pelo seu grupo de pertença, mas também, pelas representações que cada um faz das dimensões-papéis ressaltadas no âmbito de cada projeto. De forma consciente ou não, tais elementos permearão suas narrativas.

Com alguns dos traços das condições de produção dos discursos como panorama, passemos aos sentidos produzidos pelos mesmos, que conforme declarado anteriormente, de início, imaginávamos que seria somente um caminho de interpretação, mas que a prática nos mostrou que havia diversidade, em ambos os grupos de entrevistados (Brasil e Portugal).

Os sentidos da violência no discurso da categoria operária

As narrativas sobre as experiências vividas como operários, militantes, sindicalistas, em tempos ditatoriais, revelam que ao elaborar esta memória com o objetivo de compartilhá-la, os entrevistados não só narram fatos, mas também, atribuem sentidos ao que viveram, que é fruto do seu olhar de hoje sobre o ontem, ou seja, conforme afirma Santos Junior e Menezes, “são também elementos vivos e mutáveis, longe de estarem presos e estanques num passado longínquo em que aconteceram” (2019, p. 225).

A violência política ficou marcada para alguns entrevistados, como sendo uma força motriz para a solidariedade interpessoal. Aqui, não nos referimos a ajudas institucionais para os perseguidos ou presos, como aquelas advindas do sindicato, da igreja ou de partidos políticos, que eram comuns tanto no Brasil como em Portugal, mas sim, a uma dimensão mais particular da solidariedade, que vinha não só de quem estava na mesma situação de violência e que foi enfatizada, com emoção, em alguns testemunhos.

Os presos comuns sempre respeitaram os presos políticos de uma forma comovedora (CRUZEIRO, 2003, PT).

Foi negado o seguro da casa porque eu estava preso, [no tempo de renovar o arrendamento] mas minha mulher conseguiu ficar na casa porque o dono abriu mão do seguro [...] isso não se esquece [...] exemplo de solidariedade que existia com os presos políticos (MARCELINO, s.d., PT).

A relação com os outros presos era de total solidariedade, tive um companheiro que todos os dias recebia um bife da família e dividia entre os onze da cela, tudo era dividido por onze [...] Raul me emprestou um pijama dele para não estar em contato com a almofada e a cama que eram nojentas, tinham pedaços de pele grudada (REGO, s.d., PT).

[Durante a prisão] os trabalhadores [da empresa] pagavam-me o ordenado, faziam uma subscrição no final do mês para o meu ordenado e de mais alguns companheiros que estava presos. Era uma solidariedade muito grande (CANDEIAS, 2010, PT).

Apesar de constar em um único testemunho, encontramos uma perspectiva diversa, registrada na fala de uma mulher que ao narrar a situação de prisão do seu esposo, desabafa, também emocionada:

E aí veio a minha revolta dessa situação política em que ele viveu e que eu não sabia [...] porque nenhum colega [...] procurou a família pra saber alguma coisa, sabendo da nossa situação, se faltava alguma coisa, se nós tínhamos comida, se nós não tínhamos, nunca ninguém apareceu na minha casa [...] eu falo sempre, eu me revoltei muito contra isso (TORINI, 2019, BR).

Questões como estas tem uma dimensão pessoal direta, ou seja, a capacidade de empatia com o sofrimento alheio, principalmente, quando se trata de pares, mas também, podem decorrer dos contextos sociais no qual vivem as pessoas. Por exemplo, há entrevistados cujas narrativas remetem a um modo de vida das pequenas cidades interioranas e localidades rurais nos quais práticas de convivência e de partilha, normalmente, fazem parte da rotina das famílias e entre colegas de trabalho. Por outro lado, há entrevistados inseridos nas grandes cidades, capitais, regiões industrializadas, o que configura um modo de vida totalmente urbano o que, por conseguinte, pode afetar o modo de relacionamento interpessoal, até entre o mesmo grupo de pertença.

A violência também assume em alguns relatos o sentido de aprendizado, que se desdobra em diversas vertentes: para autodefesa, para a continuidade da resistência, e como forma de conscientização.

O que eu aprendi foi a disciplina necessária para lidar com a PIDE [Polícia Internacional e de Defesa do Estado], o que era preciso na clandestinidade (CRUZEIRO, 2003, PT).

[saída da prisão] é outra luta não menos importante, é mais doloroso do que quando eu estava em Peniche porque ganhamos consciência do que era o fascismo, do que tínhamos que fazer para derrubar o regime e para libertar os companheiros (MARCELINO, s.d., PT).

Não cheguei a ir ao tribunal, fui preso por não saber e acho muito bem porque eu tinha a obrigação de saber, pela idade que tinha [...] são estas coisas que eu me preocupo e considero como legado daquilo que achei injusto que me tivessem feito, mas que bom que fizeram porque acordei (REGO, s.d., PT).

Todos tínhamos medo da prisão, mas mais forte era o sentimento de fazer algo de bom na vida (PAULO, s.d., PT).

Em 1945 foi quando, as dificuldades da guerra, do fascismo, da exploração, foi uma escola para o nosso despertar [...] nos perguntamos o que é isso? Por que isso? (OLIVEIRA E SILVA, s.d., PT).

Neste aspecto destacamos os não ditos, por vezes inconscientes, que se entrecruzam aos discursos. Apesar de alguns serem explícitos ao dizer que não se consideram heróis, que não era deles que falavam, a luta é maior, não há como negar que esse imaginário de heróis, de líderes e de protagonistas pairou sobre suas narrativas, afinal, foram entrevistados em contextos específicos, projetos temáticos que reforçavam tal condição. Consideramos que é neste momento que surgem narrativas como “eu tinha a obrigação de saber, pela idade que tinha”, “que bom que fizeram porque acordei” e “mais forte era o sentimento de fazer algo de bom na vida”.

A violência política foi também compreendida como instrumento de poder e os discursos indicam que poderia ser um poder direto - de controle, um poder financeiro, um poder intelectual e um poder simbólico.

Eles tinham que justificar a prisão para justificar a repressão aos sindicatos, e o motivo era a ligação com o partido comunista e o trabalho clandestino (CANDEIAS, s.d., PT).

O problema da repressão era um instrumento do poder, repressão foi transversal a toda a sociedade, as maiores vítimas foram os comunistas, mas atingiu os sindicatos também de forma transversal (DIAS, s.d., PT).

[...] aquilo tinha objetivos, manter o poder, mas o poder pelo poder ou para meter a mão no dinheiro do Estado? Não quer dizer que quem luta contra também não possa se corromper quando chega ao poder (REGO, s.d., PT).

Todo estudante que era cabeça foi morto. A finalidade da ditadura era destruir quem pensa (CARVALHO, 2019, BR).

Sabe por quê? [ficou preso mais tempo] porque eu tinha livro em casa. Eles levaram mais de 100 livros meus, aí foi outra sessão de tortura [...] eu entro na sala eu vejo aquelas pilhas de livros, é lógico eu reconheci (STEIN, 2019, BR).

Escolheram [para prender] estrategicamente um elemento que pudesse ter impacto em cada sindicato que vissem que fazia mossa e depois arranjavam a acusação [...] como não conseguiram com a tortura, eles tinham que continuar porque queriam justificar no exterior que a repressão não era exercida por mero acaso, nós seríamos altamente perigosos (CANDEIAS, 2010, PT).

[...] também tinha aquela teoria de pensar que quantos mais nomes de militares fossem para a cadeia, mais confusão e mais efeito tinha (CRUZEIRO, 2003, PT).

Aquela época - ditadura - você imagina como é que o trabalhador era tratado dentro das fábricas [...] até a roupa do supervisor era verde, da cor do exército [...] o trabalhador não tinha direito de falar nada, faz o que eu mando e não tem resposta (EUSEBIO E SILVA, 2019, BR).

Os testemunhos revelam formas clássicas de uso da violência como instrumento de poder, como o controle e a repressão intelectual, mas destaca-se a emergência da questão da corrupção financeira, tema muito em voga na atualidade, em qualquer parte do mundo, assim, poderia ser esse um reflexo, no discurso, do olhar do hoje para o vivido ontem.

Sobre a questão da violência simbólica, chamamos a atenção para um exemplo de como os discursos evidenciam outros que se entrecruzam, imaginários construídos inconscientemente e que se significam nos discursos, ou como nos explica Orlandi, “relação da linguagem com a história, em seus mecanismos imaginários” (1994, p. 57), quando um entrevistado brasileiro reforça que no ambiente da fábrica “até a roupa do supervisor era verde, da cor do exército”, ou seja, era o imaginário do militar exercendo um poder de repressão simbólica na rotina de trabalho destas pessoas.

A violência como poder simbólico também foi utilizada tanto na perspectiva de estratégia de resistência - quanto mais militares presos, mais forte o movimento de resistência pareceria, quanto como estratégia de repressão - a prisão de uma pessoa representativa de cada sindicato, demonstraria a solidez do regime.

Na sequência tratar-se-á da violência dos sentidos, perspectiva de análise que surgiu no decorrer das nossas leituras e que se tornou relevante para este trabalho.

A violência dos sentidos causada pela violência política

Por violência dos sentidos, entendemos os sentidos estabelecidos no imaginário dos entrevistados, que no compartilhamento de suas memórias sobre o regime autoritário do qual foram vítimas, percebemos que foram colocados em suspenso e que geraram tensionamentos.

O primeiro deles, muito presente nas narrativas, foi o sentido de família.

Eu sei que prejudiquei meus filhos, minha família, porque fui empenhado em muitas lutas, nas coletividades onde atuei foi uma vida cheia na militância (CANAL, s.d., PT).

Na verdade, a gente erra também porque a gente fica entusiasmado [...] e isso dá um problema de família sim [...] no começo entendia [a militância] depois passou a não entender (CASSEMIRO, 2019, BR).

Eu não era um bom marido, eu era um bom pai. Marido, eu era um péssimo marido [...] então, a minha esposa ela sofreu muito como minha mulher, primeiro por causa das prisões, segundo por causa do sindicato, terceiro por causa da política partidária [...] minha segunda esposa, que também [...] respeita, mas não aceita muito, mas ela tem mais respeito do que a primeira esposa (CUNHA, 2019, BR).

Quando meu pai saiu da cadeia estava debilitado fisicamente, lúcido, e nunca se arrependeu, manteve-se nos mesmos ideais, apesar de sofrer e fazer sofrer a família (GOMES, s.d., PT).

Assumir um cargo de diretor [no sindicato] no período do regime militar [...] era brabo, era muito brabo e a gente ou era muito maluco, não é possível, porque as crianças eram pequenas, a gente tava começando a vida da gente, difícil. E aí a gente conseguiu, inclusive, com essa atitude, a gente adquiriu um inimigo mortal, que eram nossas mulheres [...] O movimento sindical trouxe pra mim bastante entrevero na família [...] a minha esposa, eu gastei mais conversa com a minha mulher, pra convencer a minha mulher, não só na questão do sindicato, mas na questão partidária, do que qualquer outro companheiro que eu tentei convencer na fábrica, pra ser pelo menos simpático ao sindicato [...] [emoção na fala] é a história da minha vida e ninguém faz história sozinho, mesmo com a minha mulher que foi uma adversária ferrenha, sem o amparo dela eu não teria feito quase nada (VILLAUTA, 2019, BR).

muito julgado pela família, por ele ter participado, por ele ter sido condenado e torturado [...] [quando saiu da prisão] a primeira coisa que ele me falou: a partir de hoje não me pergunte nada da prisão e não comente nada com ninguém perto de mim porque eu não quero saber, eu não vou responder (TORINI, 2019, BR).

A primeira confusão relacionada ao casamento foi por causa do sindicato. E tivemos muitas confusões daí pra frente [...] eu estava sendo dividido entre a família e o sindicato e, segundo ela, eu estava dando preferência ao sindicato (ROSA, 2019, BR).

Mesmo com todas as dificuldades, não vi revolta nem recusa por parte da minha mãe, sobre as escolhas do seu companheiro de vida (GOMES, s.d., PT).

Minha mulher nunca envolveu [...] nunca falou nem que eu tava certo nem que tava errado (EUSEBIO E SILVA, 2019, BR).

A família à parte, sempre à parte, não misturava as coisas. Não misturava a parte da indústria com a parte de relacionamento de casa. Era separada [...] quando eu fui preso minha esposa tinha 19 anos e tinha um filho de 1 ano e meio. Você imagina o choque [...] pra ela foi um trauma aquilo lá. Foi uma visão que acho que deve ter levado pra vida (LINCHTENTHALER, 2019, BR).

[...] minha mulher que me acompanhou sempre, ela aguentou tudo, as pessoas não falam muito disso, mas as mulheres seguram tudo isso (CANDEIAS, s.d., PT).

A minha esposa, ela é mais atirada do que eu, mas você não disse sim por quê? [ao convite para fazer parte da direção do sindicato no período da ditadura]. Até hoje eu não tenho certeza da onde que veio isso, eu tenho certeza de uma coisa, ela foi a grande, ela teve uma grande participação no meu posicionamento e nas nossas lutas (SOUZA, 2019, BR).

[depois que foi solto da detenção] Eu fui pra casa no mesmo horário do trabalho porque eu não queria que a minha mulher soubesse, que os meus pais soubessem, que eu tinha sido preso por causa do sindicato, fiquei quieto, eu escondi da família. E não era por vergonha, mas era pra não criar problema (CUNHA, 2019, BR).

Anos depois do 25 de abril encontrei um dos PIDES no Algarve, num restaurante, todo generoso com os netos, com os funcionários [...] como pode isso? Aquele animal [...] o ser humano tem dessas coisas, parecem normais e fazem atrocidades, autênticos animais que depois saíam dali com a família e eram normais (CARMO, s.d., PT).

Quando o assunto é o sentido de família, várias questões veem à tona pelos discursos dos entrevistados. O imaginário de família como lugar reconfortante, de aconchego e de bem-estar foi colocado em xeque e, se não foi possível perceber arrependimento, ao menos, o impacto da violência política foi o sofrimento destas pessoas com relação a isto, até porque, faz parte desse imaginário sobre o que é família, também, o papel exercido pelo homem quanto à harmonia deste núcleo social, conforme expresso em enunciados como “eu sei que prejudiquei meus filhos, minha família”, “na verdade a gente erra”, “eu era um péssimo marido”. Há também um movimento inconsciente, de autojustificação “eu não era um bom marido, eu era um bom pai” e “nunca se arrependeu, manteve-se nos mesmos ideais, apesar de sofrer e fazer sofrer a família”.

Em sentido semelhante há enunciados que revelam a consciência desta quebra do imaginário sobre o que significa ser família, entretanto, sem, necessariamente, isto significar sofrimento, mas com o sentido de constatação, é o que podemos inferir de narrativas como “trouxe pra mim bastante entrevero na família”, “muito julgado pela família”, “a primeira confusão relacionada ao casamento foi por causa do sindicato” e “a gente adquiriu um inimigo mortal, que eram nossas mulheres”.

Por outro lado, há relatos que ressaltam não haver conflito entre a militância e a vida familiar: “não vi revolta nem recusa por parte da minha mãe”, “minha mulher nunca envolveu”, “família à parte, sempre à parte, não misturava as coisas”. Entretanto, cabe ressaltar e problematizar se esta ausência de conflito decorre de uma real concordância e apoio dos familiares, em especial das companheiras, ou se foi devido ao espaço de fala e de contestação que as mulheres e os filhos tinham nos modelos de família da época (décadas de 40, 50 até os anos 1970), que eram muito mais restritos do que na atualidade, por exemplo.

Também há um movimento de consciência de que houve uma ruptura do sentido de família, mas que serviu para, na sequência, fortalecê-lo. É o que está evidenciado em narrativas que ressaltam e valorizam o papel exercido por suas mulheres, no período em que foram perseguidos ou mesmo presos, “as pessoas não falam muito disso, mas as mulheres seguram tudo isso”, “quando eu fui preso minha esposa tinha 19 anos e tinha um filho de 1 ano e meio [...] Foi uma visão que acho que deve ter levado pra vida”, “é a história da minha vida e ninguém faz história sozinho [...] sem o amparo dela eu não teria feito quase nada”, e um relato empolgado “a minha esposa, ela é mais atirada do que eu”.

Duas dimensões mais íntimas, que a violação do sentido de família representou para os entrevistados, revelaram grande motivo de tensão. De um lado, a violência política sofrida causou incapacidade para tratar o assunto com os familiares e, até como forma de autoproteção, a opção foi o silenciamento e a negação: “fiquei quieto, eu escondi da família”, “a partir de hoje não me pergunte nada da prisão e não comente nada com ninguém perto de mim porque eu não quero saber, eu não vou responder”. Em outro caso, a cena de deparar-se com um policial que foi seu torturador, já nos pós-regime, em uma situação familiar comum - um almoço de família - causou grande inquietação e a pergunta “como pode isso?” expressa tanto um questionamento sobre as facetas que um ser humano pode assumir, como um não dito presente no interdiscurso de que ter uma família não seria merecimento para todos os tipos de pessoas.

Correlacionado ao sentido de família e consideramos que decorrente da construção social sobre o papel masculino - homem como provedor da família - emergem enunciados que expressam uma tensão entre a militância, a noção de responsabilidade e o papel a ser exercido no seio familiar.

Eu tinha muito medo do desemprego. Primeiro porque minha família ia me atacar, é porque você se meteu com esse negócio de política, com esse negócio de sindicato, é só isso o que você arruma pra você, eu tinha esse medo (CUNHA, 2019, BR).

Todos eles tinham a lista [lista negra] [...] você chegava lá para pedir emprego, não, não tem, a gente sabia que tinha [...] e muitos companheiros menos preparados se suicidaram, largaram família, aconteceu uma tragédia naquela época (LINCHTENTHALER, 2019, BR).

Não foi só a tortura da prisão, foi a tortura estando fora da prisão também [não arrumar emprego por causa de ter sido preso político] (TORINI, 2019, BR).

A violência política afeta a dignidade humana. Esta afirmação não é nenhuma novidade, mas digno de nota, é a ênfase dada nos discursos a aspectos que denotam uma dimensão mais íntima desta dignidade, no sentido da honra pessoal de cada um ou, no limite, o imaginário do significado de honra masculina, que foi violado.

[...] aqueles animais nos cuspiam na cara (CARMO, s.d., PT).

Embora torturassem com o objectivo de sacar, descaracterizar-nos, despersonalizar-nos, de conseguirem denúncias e arranjarem, nem que fossem forjados, alvos para outros indivíduos (CANDEIAS, 2010, PT).

Na prisão tínhamos o recreio/visitas, no início recusei para que minha família não me visse todo roxo e machucado (CANDEIAS, s.d., PT).

Ele veio deitado no banco traseiro pra que ninguém visse [quando saiu da prisão] (TORINI, 2019, BR).

Eu tenho um trauma, eu devo ter mais, um trauma que está até hoje e eu vou morrer com ele porque eu não consegui soltar ele. Sabe o que era soltar esse trauma? Era dar um tapa na cara do [...] quando ele tivesse em alguma solenidade [...] eu ia me sentir mais aliviado se eu fizesse isso [...] Eu tomei e não devolvi (STEIN, 2019, BR).

Como eu era o que mais questionava eu levei um tapa na cara [...] eu digo a vocês que enquanto criança eu não fui nenhum santo não e assim sendo apanhei várias vezes [...] mas nunca nem meu pai nem minha mãe me bateram no rosto, nunca. E esse cara bateu (SOUZA, 2019, BR).

O discurso dos entrevistados também revela que a violência política alcança até sentidos de coisas rotineiras na vida de qualquer pessoa, como a passagem do tempo e o sono, mas o fato de que tais questões foram contempladas em suas falas denotam a dimensão que tomaram, em função de estarem associadas a situações de violência.

[...] o pior de tudo, na cadeia, sabe o que é? É o tempo. O tempo não passa [...] E o tempo deixava de contar [...] eu construí a minha autodefesa (CRUZEIRO, 2003, PT).

nos interrogatórios me puseram em pé, estátua e na tortura do sono [...] aí fiquei mais 3 dias e 3 noites e era uma das coisas que mais tinha medo, porque como rapaz o que mais eu gostava de fazer era dormir (CANAL, s.d., PT).

Por fim, apresentamos enunciados que envolvem certa tensão quanto a aspectos éticos da vida humana, e que foram impactados pela experiência de violência vivida pelos entrevistados - o sentido de justiça, de perdão e de amizade.

Pra quem não tinha feito nada julguei que estava a pagar por demais. A partir daí jurei que ia fazer qualquer coisa, a não ser que não pudesse [...] é difícil [...] por muito que eu queira dizer, nunca chegarei nem perto a realidade, tudo era arbitrário e tudo o que eu fizer depois está justificado (REGO, s.d., PT).

[...] eu tolero, mas não desculpo, se eu tiver a desculpar estou a ser conivente, estou a permitir que as gerações vindouras não possam criar, sejam cortadas [...] perante os fatos a gente, a gente age de formas diferentes, cruzei com um PIDE que vinha com um miúdo, seu filho. Eu vi o PIDE agarrar-se ao filho e este a ele instintivamente, eu passei, conheci-o, ele me reconheceu, avancei e não disse nada a meus companheiros, estávamos em uns 20. Depois quando relatei, meus companheiros disseram tu és um merda, podíamos ter [...] então senti que fiz bem. Prefiro ficar com o peso de não ter feito o que eles faziam [...] eram 4 ou 5 indivíduos numa sala a darem pancadas em indefesos, não havia necessidade, pancadas, fiz a estátua em pé, o sono, espancamentos brutais, sem o mínimo de defesa (CANDEIAS, s.d., PT).

[ao sair da prisão] fazer algo e correr o risco de ser preso pela segunda vez, mínimo de 5 anos de pena, ou deixar os companheiros lá (MARCELINO, s.d., PT).

Os enunciados acima evidenciam que a violência política assumiu para estas pessoas o sentido de uma encruzilhada ética: Tudo o que for feito em resposta à violência justifica-se? Perdoar ou não? Não revidar com a mesma violência é um peso? Proteger-se ou arriscar-se em nome da amizade?

Ainda que, neste momento, não seja possível uma comparação exaustiva entre os discursos da categoria operária brasileira e portuguesa, algumas pistas podem ser assinaladas frente aos achados nos depoimentos.

O discurso da categoria operária portuguesa significa a violência política sofrida no sentido de solidariedade, momento de aprendizado e instrumento de poder, praticamente com o mesmo peso. Por outro lado, no discurso da categoria operária brasileira o sentido de violência como instrumento de poder prevalece, inclusive, sendo neste grupo a ocorrência de referências ao poder de repressão intelectual.

A significação da violência como poder simbólico está presente entre brasileiros e portugueses, mas em situações diversas. Pelo discurso dos operários portugueses ela pode ser estratégia de resistência ou de demonstração de solidez do regime - prisão de militares versus prisão de líderes sindicais; e no discurso dos operários brasileiros percebe-se a violência simbólica cotidiana, como repressão à rotina das fábricas - roupa do supervisor ser propositadamente da cor verde.

Na questão da violência dos sentidos, o discurso da categoria operária brasileira revela que estas pessoas sentiram com muito mais força a quebra do sentido de família e seus conflitos decorrentes, como o medo de desemprego, enquanto a manifestação de sentidos éticos violados, o que denominamos de encruzilhadas éticas, esteve presente no discurso da categoria operária portuguesa. Quanto a violação do sentido de dignidade humana, na dimensão da honra masculina, manifesta-se nos depoimentos consultados em ambos os países.

Uma questão em comum é a referência a lugares de resistência, que por vezes também tomam a conotação lugares de afeto: o Bairro (Brasil), a Aldeia (Portugal); a Escola; a Fábrica; o Sindicato; a Universidade; as prisões Aljube e Peniche (Portugal), DOI-CODI (Brasil); ruas, avenidas e praças onde ocorreram enfrentamentos; bares, cafés e restaurantes; regiões como o Alentejo (Portugal) e o ABC Paulista (Brasil); e cidades como Coimbra, Lisboa, Porto (Portugal) e Diadema, Santo André, São Bernardo do Campo (Brasil). Tais espaços, hoje, podem ser compreendidos como lugares pedagógicos da memória, ou seja, espaços que podem contribuir para manter viva a história da luta pela democracia, no Brasil e em Portugal.

Considerações finais

Nosso objetivo foi compreender como os discursos da categoria operária brasileira e portuguesa significam a violência política sofrida, neste momento, sem a pretensão de uma comparação exaustiva, afinal os dados brasileiros ainda são parciais, e sim, colocá-los em perspectiva e contemplá-los em seus movimentos de significação.

O fato de um ou outro sentido ser percebido no discurso da categoria de um país e não de outro não quer dizer sua inexistência e sim que ao olhar para este passado e recontá-lo no presente, cada entrevistado de certa forma edita os fatos e “deixa entrever a história que se quer apresentar” (SANTOS JUNIOR; MENEZES, 2019, p. 227), colocando em paralelo à história oficial a dimensão humana e ética que ressalta a pesquisadora portuguesa Maria Manuela Cruzeiro, já aqui citada.

Percorrer os caminhos de significação, fundamentados pela Análise de Discurso, nos permitiu perceber nuances que podem contribuir com os estudos sobre regimes autoritários, entre eles, destacamos a dimensão da positividade da violência política, revelada em discursos que a significam como força motriz para a solidariedade e aprendizado, aspectos que podem ser explorados na perspectiva de que estes registros sirvam como instrumentos sociais, educativos e de resistência.

Na vertente da violência dos sentidos que a violência política provoca, destacamos o peso que o sentido de família e de honra exerce nas memórias dos entrevistados, inclusive, pelo entrecruzar com outros discursos, principalmente, o imaginário associado ao papel de homem-trabalhador-esposo-pai-provedor.

Como vimos, para as classes operárias brasileira e portuguesa, as reivindicações trabalhistas e a resistência ao regime autoritário acabaram por tornar-se uma só luta, uma luta política, entretanto, estes mesmos operários, quando relatam suas memórias deixam aflorar o impacto destes acontecimentos na dimensão humana de suas existências e tudo se entrecruza em seus discursos.

O que apresentamos é um recorte, a partir da nossa posição de pesquisadores-interlocutores neste discurso, e sendo assim, pesquisas como esta podem suscitar outras abordagens. De momento, esperamos contribuir com o estudo dos regimes autoritários, ultrapassando sua dimensão factual com a perspectiva simbólica desta história.

2Além da indicação de referência, os registros dos testemunhos trarão a indicação da nacionalidade do entrevistado - BR (Brasil) e PT (Portugal).

3Esta investigação vem sendo realizada a partir de uma parceria entre a Universidade de Coimbra (UC) e a Universidade Federal do ABC (UFABC), sede do referido projeto, em um primeiro momento orientada pela Professora Doutora Isabel Maria Freitas Valente do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra (CEIS20-UC) e pelo Professor Doutor Sidney Jard da Silva do Centro de Engenharia, Modelagem e Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal do ABC (CECS-UFABC); e num segundo momento, conduzida pelo Professor Doutor Sidney Jard Silva no âmbito do seu período como investigador visitante no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES-UC), sob a supervisão do Professor Doutor Elísio Estanque.

4Dentre os arquivos, encontramos dois registros feitos a partir de testemunhos de familiares, filho e esposa, por motivo de falecimento.

5Forma como alguns autores caracterizam a Primeira República portuguesa enquanto experiência político-institucional. Cf. NUNES, J. P. A. Progresso, ordem, crise e regeneração: do Ultimato à Ditadura Militar. Biblos, 2002, p. 117-130. Disponível em: https://digitalis-dsp.uc.pt/bitstream/10316.2/32280/1/BiblosX_artigo5.pdf?ln=pt-pt

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O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

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