Introdução
A pandemia que assolou a humanidade desde o primeiro semestre de 2020, causada pela COVID-19, uma doença infecciosa causada pelo vírus SARS-CoV-2 (coronavírus), impôs diversas restrições para o ensino presencial devido aos riscos de contágio. As atividades nesse formato foram suspensas em instituições públicas e privadas do país cenário, o que intensificou a apropriação e o uso sistemático das tecnologias digitais para o ensino em todo o mundo.
O saber particular, intitulado Conhecimento Tecnológico Pedagógico do Conteúdo (Technological Pedagogical and Content Knowledge - TPACK) (MISHRA; KOEHLER, 2006), tornou-se, nesse contexto, fundamental aos professores. Contudo, o desenvolvimento dessa habilidade ainda encontra inúmeros entraves: licenciaturas com matrizes curriculares que desconsideram saberes relativos ao uso das TDIC para o ensino; políticas públicas insuficientes para a integração efetiva das tecnologias digitais aos diversos níveis educativos; falta de estrutura técnica e de acesso a redes wifi em grande parte da rede pública e evidenciada pela pandemia. Enquanto sujeitos oriundos de uma tradição, grande parte dos docentes tem raízes fincadas no paradigma educacional positivista. Ao serem pressionados pela necessidade em fazer uso das TDIC no ensino, não raro acabam por criar arremedos e arranjos, que pouco contribuem para uma formação ampliada do ser humano.
O presente artigo partiu da seguinte questão: como as TDIC, aliadas ao ensino pela pesquisa, podem auxiliar no planejamento e na realização de práticas pedagógicas? Definimos como objetivo geral: analisar possibilidades e limites da integração das TDIC ao ensino pela pesquisa, em práticas pedagógicas, no Instituto Federal do Maranhão. Traçado o objetivo, passamos à escolha do corpus e dos sujeitos da pesquisa: docentes do Instituto Federal do Maranhão que faziam uso das Tecnologias Digitais de Informação, em sua prática pedagógica. Os sujeitos da pesquisa foram 31 docentes efetivos dos campi Maracanã, Centro Histórico e Monte Castelo. Os dados foram coletados por meio dos seguintes instrumentos: questionário on-line e, posteriormente, a aplicação de um grupo focal on-line.
No percurso da pesquisa, consideramos imperativa a análise da relação entre cibercultura e ensino, com a inserção das TDIC nos processos educativos nos últimos anos no Brasil. Apresentamos também a proposição conceitual do ensino pela pesquisa, que contempla a participação ativa dos sujeitos, tendo em vista o conhecimento.
Cibercultura e ensino: tecnologias digitais de informação e comunicação no ensino
A cibercultura é fenômeno em curso, de natureza prática e simbólica, que se expandiu com base no desenvolvimento das novas tecnologias eletrônicas de comunicação nos anos 60, através da convergência do pensamento cibernético e da informática da comunicação. A web tornou-se a base material e o recurso operacional para o desenvolvimento das práticas ciberculturais possíveis devido ao intenso processo de informatização da sociedade. A economia, a política e a sociedade adentraram a lógica dos fluxos, definida como “o intercâmbio e a interação entre posições fisicamente desarticuladas, mantidas por atores sociais” (CASTELLS, 1999, p. 436) que impactam diretamente sobre a concepção de saber na era digital.
Assmann (1998) explica que o pensar se articula em uma rede interna e externa, de acordo com as dimensões técnicas e coletivas da cognição, as tecnologias digitais estimulam cada vez mais o potencial cognitivo humano. O poder dessas trocas é potencializado pelos próprios dispositivos artificiais e pela parceria cognitiva dos “aprendentes”.
Existe uma relação cooperativa entre o ser humano e as máquinas inteligentes. O papel delas já não se limita à simples configuração e formatação, ou, se quiserem, ao enquadramento de conjuntos complexos de informação. Elas participam ativamente do passo da informação para o conhecimento (ASSMANN, 1998, p. 10).
À medida que as TDIC permeiam a experiência, professores e alunos tornam-se sujeitos ubíquos e, por sua vez, os processos educativos formais serão cada vez mais desafiadores. Nesse sentido, é mister o estímulo à pesquisa no cotidiano da sala de aula, que se torna uma espécie de provocação para a reinterpretação do conhecimento, movimento que requer participação ativa para a imersão no horizonte da investigação científica, no reconhecimento da relação entre o cotidiano escolar, comunitário e a pesquisa.
Ensinar pela pesquisa
O ensino realiza-se de maneiras e de modos distintos, manifestos na realidade de professores e alunos. Consideramos aqui a circularidade hermenêutica como possibilidade interpretativa do ensino, que se contrapõe ao paradigma educativo moderno, uma vez que a formação humana se desvela a partir do movimento do sujeito, que necessita afastar-se de si, para apropriar-se do sentido do mundo, para depois retornar a si mesmo. A dimensão interpretativa do ser, ou seja, sua situação hermenêutica, requer horizontes de compreensão em que possam ser inseridas as questões colocadas em nós pela tradição. Esses horizontes não estão fechados em si, de modo que é necessário submeter nossos preconceitos à prova, mediante o confronto com a tradição, em um movimento dialético consciente entre familiaridade e estranheza, distanciamento e pertencimento. O que aqui propomos como ensino pela pesquisa ancora-se em pressupostos tais como liberdade, autoria, diálogo, habilidade metodológica e atividade crítica.
O primeiro pressuposto, a liberdade, é aqui compreendida como algo da essência humana, que se antecipa, projetando tal, como “em-vista-de”, em geral e não o produz também como eventual resultado de um esforço humano. A ultrapassagem para o mundo é a própria liberdade, que mantém o “em-vista-de” e o “em-face-de-si”, ou seja, a liberdade como possibilidade de compromisso e de obrigação em geral. Somente a liberdade pode deixar imperar e acontecer um mundo como mundo; ela é conquistada a partir da transcendência e da estrutura fundamental do ser-aí. É por meio da liberdade que ocorre a verdade como descobrimento, pois liberdade e transcendência fundam a possibilidade de mostração do ente. É por meio da liberdade que o homem pode deter-se no ente que se mostra.
Somente a partir do exercício pleno da liberdade é possível adentrarmos no segundo pressuposto: a autoria. Ser autor de si mesmo é trilhar o percurso da criação, dando às experiências novos sentidos, como, por exemplo, o ensino como arte e invenção, como algo que pretende sempre escapar daquilo que aparentemente está “dado” ao professor. A autoria de si, que parte da singularidade, em um exercício de si mesmo, requer espaço para o novo, para interferir nos contextos vivenciados. Necessita-se de professores e alunos com capacidade de autoria, aqui entendida como “habilidade de pesquisar e de elaborar conhecimento próprio” (DEMO, 1995, p. 8), com relevância pedagógica para o exercício da autonomia.
Para que o desenvolvimento da autoria do professor se efetive, Demo destaca a necessidade de uma formação continuada que propicie oportunidades de pesquisa e de elaboração, que introduzam o professor em um contexto de produção científica e resulte em produção própria de conhecimento. A autoria deveria ser desenvolvida e exercitada para acentuar o processo de autoformação, de dentro para fora, do ponto de vista do observador, sendo um aporte teórico contrário à aula instrucionista. A realização do trabalho de autoria é baseado na oportunidade de escrever/elaborar, a partir da construção de ambientes efetivos de aprendizagem autoral para o docente. Demo defende a oferta de cursos que possibilitem aos professores o estudo e a elaboração de textos próprios, relativo à sua área de atuação docente, baseados em leitura, elaboração, revisão por pares e reelaboração, para alcançar um resultado satisfatório.
Na obra Aprender como Autor, Demo apresenta alguns resultados dessa proposta de fomação:
(...)o curso é um exercício intensivo de exercício e elaboração, em geral visto como muito cansativo (pensar cansa!), porque os docentes não estão habituados a estudar com afinco e responsabilidade pelos resultados; a parte central do curso está no estilo de aprendizagem autoral, os três primeiros dias são reservados para pesquisar textos, levando-se em conta a carência extrema de leitura entre os docentes; a cada fim do dia os cursistas preenchem um diário de bordo no qual relatam sua impressão do curso. O curso em geral consegue construir a mensagem de que aprender não é aula; consegue também estabelecer que todo professor, se estudar adequadamente, melhora muito seu desempenho como mediador da aprendizagem discente; se é verdade que seus textos são, inicialmente, uma miséria escabrosa, isso vai mudando rapidamente, vindo à tona a grande vocação docente: saber aprender bem (DEMO, 2020, p. 67).
Outra proposição do autor para fomentar a autoria é a realização de formações continuadas que fujam da concepção de treinamento, mas que prepare para o uso das TDIC, para o exercício da produção individual e coletiva e para a aprendizagem a partir do uso das tecnologias digitais.
Todas as propostas elencadas provocam o professor a desnaturalizar o olhar sobre a própria realidade da atuação pedagógica, para entrever modos e espaços de ensino cada vez mais autorais, que possibilitem construir o conhecimento de forma colaborativa.
Ensinar pela pesquisa requer também a disponibilidade dos sujeitos do processo para estabelecer uma troca genuína, figurando aí o terceiro pressuposto, o diálogo. Dialogar parte da elaboração do questionamento, da pergunta e da compreensão da realidade, que se entrelaçam para dar a verdadeira dimensão à experiência hermenêutica do ser. O ato de construir a pergunta possui uma dimensão filosófica, que traz consigo o saber que não sabe e que reconhece a ignorância inicial do não saber. O questionamento é, portanto, condição fundamental para o autoconhecimento, considerando a oposição sim/não e a dialética da produção de conhecimento que admite o contraditório. A questão produzida através do diálogo remete à elaboração contínua de novas reflexões, conduzidas pela arte de desconcertar.
O diálogo entre professores e alunos requer disposição para a entrega e a abertura, para o reconhecimento mútuo; com capacidade de escuta e de renúncia a verdades postuladas.
Nos diálogos entre professores e alunos são construídos novos sentidos, capazes de ampliar a formação dos envolvidos. Reside aí a ideia de (re)construção do conhecimento, que se faz e se refaz, em uma “educação mútua”, pois, do confronto de concepções, nasce a compreensão ampliada da realidade.
Dialogar é próprio da pesquisa, de sua teoria e de sua prática, que devem romper o universo dos programas stricto sensu, na iniciação científica, para ser assumido como um princípio (DEMO, 1995), ou seja, superar a ideia comum de que ministrar aulas não é algo que pode ser associado à pesquisa; desmistificar a cisão comum que existe entre a compreensão do que é pesquisar e o ato de ensinar.
Nesse sentido, Schuck (2013) define que a escuta é essencial, elemento constitutivo do ser autêntico: “o ritmo que o mundo urbanizado impõe aos indivíduos, bem como a disputa pelo espaço físico, de trabalho, e assim por diante, parecem criar um espaço desfavorável para que o ente concreto ou autêntico possa ir além do senso comum” (SCHUCK, 2013, p. 93). O ato de ouvir já é algo constitutivo do ofício do aluno, uma vez que a escola historicamente conduz os sujeitos do processo educativo a assumirem papéis predeterminados, uma vez que as atividades solicitadas aos alunos restringem-se a meras cópias ou a reproduções de conhecimentos preestabelecidos.
Quando integramos o diálogo como essencial à prática docente, novas relações se estabelecem, ou seja, o ensino pela pesquisa assume a assinatura particular dos sujeitos do processo. Nesse contexto, professor e alunos atuam de forma criativa na elaboração própria do conhecimento. Nesse sentido, o desenvolvimento do ensino pela pesquisa requer um quarto pressuposto: a habilidade metodológica.
O que aqui definimos como habilidade metodológica é a base que torna o professor um pesquisador: o interesse por um tema relativo à sua atuação profissional, a seleção de textos científicos voltados à temática selecionada para o desenvolvimento de textos científicos próprios, que sigam algumas etapas da metodologia científica, tais como a definição de tema, problema de pesquisa, hipóteses, base teórica, análise de dados e verificação. A capacidade de pesquisar é considerada uma competência básica do docente, cujo principal resultado é o desenvolvimento de uma produção intelectual criativa e uma postura autocrítica.
A última etapa da proposição ensino pela pesquisa é a atividade crítica delimitada como um modo de revisão do percurso, no sentido de reformular aquilo que não surtiu o efeito desejado.
Metodologia
A pesquisa seguiu o método fenomenológico, enquanto postura investigativa para interpretação dos fenômenos, a partir da compreensão dos significados atribuídos pelos sujeitos à experiência (MOREIRA, 2011). Pesquisador e objeto estão mutuamente implicados devido à natureza subjetiva da experiência humana. Nesse sentido, analisar os fenômenos pelo viés fenomenológico-hermenêutico, proposto por Hans George Gadamer, consiste em assumir a interpretação das experiências dos sujeitos em sua dimensão intersubjetiva. A experiência é vista, aqui, como sendo mediada pela linguagem (GADAMER, 2007), uma vez que o contexto é repleto de chaves de sentido, cuja leitura somente é possível, a partir da realidade linguística humana (GADAMER, 2004).
Para viabilizar a coleta de dados, foi aplicado um questionário via Google Forms, enquanto o grupo focal foi realizado em formato on-line. A aplicação do grupo focal nesse formato foi necessária para observação das experiências dos professores entrevistados dos Institutos Federais e os modos de ensinar na pandemia. Optamos pela formação de um único grupo focal, limitado a cinco participantes, em um encontro com duração média de 60 minutos, realizado e gravado pela plataforma do Google Meet.
Para o tratamento dos dados coletados, foi adotada a abordagem da análise textual discursiva (MORAES; GALIAZZI, 2003), para desconstrução dos textos (falas) e a organização em unidades de sentido ou de significado.
Análise e discussão
A organização dos dados segue as categorias a priori estruturadas no questionário aplicado com os docentes relativo a A) Apropriação das tecnologias digitais para o ensino; B) Compreensão do ensino pela pesquisa com as TDIC. A desmontagem e a extração de sentidos dos textos produzidos pelos professores definiram as categorias emergentes. Em cada uma delas, foi desenvolvida a relação entre teoria, dados e fenômeno. As categorias emergentes resultantes da aplicação metodológica foram: apropriação das TDIC para o ensino e o ensino pela pesquisa, segundo a visão dos professores. Cada uma delas é explicitada a seguir.
Apropriação das TDIC para o ensino
A questão aplicada aos docentes para a obtenção de respostas discursivas, que resultaram no desenvolvimento dessa primeira categoria, refere-se ao uso pedagógico das tecnologias digitais, à capacidade do docente para desenvolver a interiorização das potencialidades das TDIC e relacioná-las aos objetivos e ações. Inicialmente identificamos como “unidades de significado” termos que apresentaram sentidos comuns, uma vez que a vivência com as TDIC pelos professores é resultado da integração das tecnologias digitais ao cotidiano de ensino.
Percebeu-se que 58,6% dos professores utiliza diariamente alguma TDIC em suas práticas de ensino, com prevalência do datashow, seguido pela reprodução de vídeos/áudios e o uso de AVAs. O uso do recurso datashow é comum, uma vez que pode estar relacionado à substituição de recursos tradicionais como quadro e pincel.
O professor 7 explica a questão da apropriação tecnopedagógica nos seguintes termos:
[...] ao longo desses dez anos já no Instituto eu sempre como bacharel eu sempre senti muita falta de andar em compasso com o que as tecnologias já estavam demandando da gente e a gente não conseguia, na parte de ensino a Instituição demorou muito a avançar até por conta de a gente ser uma instituição centenária, a gente sempre recebe um pouco da carga de quem tá vindo antes, então essas tecnologias elas demoraram mesmo a fazer parte do cotidiano e do hábito. O que eu falo é o tempo de transição de uma tecnologia a outra, o tempo de transição que a gente levou pra sair do quadro e passar pra esses novos recursos, eles demoraram demais (Professor 7).
É sabido que uma mudança dessa natureza não é simples, sequer rápida, ainda que as determinações políticas da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (BRASIL, 2016) orientem a respeito do desenvolvimento dos currículos e de Projetos Político-Pedagógicos, com destaque para Práticas Culturais das Tecnologias de Informação e Comunicação, que exigem o uso das TDIC ao longo do currículo. Essas transformações estão diretamente ligadas à formação inicial e continuada dos docentes, que, por sua vez, são determinados por uma tradição epistemológica em relação aos saberes e aos modos de ensinar ditos tradicionais.
Para Mizukami (1986), cada abordagem pedagógica é marcada por princípios epistemológicos. A autora destaca, por exemplo, que a abordagem tradicional e a cognitivista comumente, adotada em grande parte das instituições de ensino brasileiras, está baseada na “instrução”, por meio de aulas expositivas, nas quais “o professor é o agente e o aluno é o ouvinte” (MIZUKAMI, 1986, p. 16), bem como está centrada na quantidade, na padronização e prevê a reprodução dos objetos de conhecimento como indicadores dos níveis de aquisição desse conteúdo.
Na apropriação destas tecnologias para o ensino, alguns problemas têm origem em três pontos: na formação inicial frágil e distanciada da realidade dos sujeitos, no formato do sistema educacional e na ausência de reflexão sobre o paradigma educacional em que se ancoram as práticas pedagógicas dos professores (ALMEIDA, 2008), que se confirma com a fala do professor 9.
A minha formação é uma formação de bacharel, eu não tenho a formação de licenciado que viesse a me auxiliar com isso, eu tive que correr atrás quando eu escolhi a carreira docente a partir das experiências que eu tive na graduação, sobretudo em pesquisa; então eu percebi que se eu quisesse levar a cabo essa ideia de ser docente eu precisava “compensar” essa ausência de formação então eu fiz muitos cursos livres por fora tentando correr atrás daquilo que eu identificava como deficiência na minha formação. Nesse aspecto pedagógico, também tive auxílio, assim que eu entrei na instituição, alguns colegas cientes da formação em bacharel foram muito bondosos em me auxiliar nessas deficiências me emprestando livros, todo material foi importante pra compensar essa ausência e também um pouco da lembrança de como eu, como estudante, me deparava com todos os anseios e a dificuldade que eu tinha em aprender a alguns aspectos, então, são muito dessa vivência como estudante (Professor 9).
A fala do professor 9 evidencia que a formação e os saberes relativos à apropriação das TDIC não foram suficientes para qualificar o ensino. Percebe-se que Alonso (2008) reflete nessa mesma linha:
A tentativa de superar o anacronismo entre as práticas docentes e as demandas educativas vem “conformando” algumas das propostas de formação do professorado que têm por base a ideia de “profissionalização”, isso como primeiro passo no resgate do trabalho do docente, em sentido amplo. A compreensão sobre a natureza do trabalho do docente, das características de sua constituição, vem, ultimamente, imprimindo novas propostas de formação de professores, cuja ambição ou objetivo seria superar ou minimizar o quadro elaborado (ALONSO, 2008, p. 13).
A dinâmica e a pressão para substituir uma tecnologia por outra, a exemplo dos ambientes virtuais de aprendizagem, aparecem na resposta dos professores em relação à necessidade de atualização:
Na parte de ensino a instituição demorou muito a avançar até por conta da gente ser uma instituição centenária a gente sempre recebe um pouco da carga de quem tá vindo antes, então essas tecnologias elas demoram mesmo a fazer parte do cotidiano e do hábito, as falas dos demais professores contemplam bastante o que eu penso. Eu não estou fazendo nenhuma crítica eu sou desde a época da datilografia, do mimeógrafo, trabalhei muito com esses materiais, mas o que eu falo é o tempo de transição de uma tecnologia a outra, o tempo de transição que a gente levou pra sair do quadro e passar pra esses novos recursos eles demoraram demais (Professor 7).
Outro desafio imediato mencionado pelo professor 9 foi o uso sistemático do ensino remoto durante o período de distanciamento causado pela pandemia da Covid-19.
O pensamento era de que o Google estava na sala de aula, os recursos que trazia funcionariam como um aditivo, no entanto, ele se tornou o principal, em vez de coadjuvante ele passou a ter a característica de protagonista, porque foi por meio dele que o instituto decidiu que nós atuaríamos dentro da nossa prática docente. A gente retornou tem pouco mais de seis meses, então durante todo esse tempo, aquilo que deveria ser anteriormente coadjuvante, acabou tomando proporções de principal e isso fez com que me mobilizasse ainda mais pra correr atrás, conhecer e ver quais eram as possibilidades (Professor 9).
As mudanças impostas pela pandemia, a desterritorialização da sala de aula, evidenciou a ausência da formação inicial e continuada específica para a apropriação tecnopedagógica. As respostas permitem identificar a vontade de buscar o aprofundamento do conhecimento sobre as TDIC para desenvolver práticas pedagógicas que façam sentido para os professores e, consequentemente, para os estudantes.
As tecnologias digitais, por um lado permitem a exploração, a criação de novos contextos, mas por outro lado seus usuários também podem estar sujeitos a uma lógica que leve a limitar os potenciais humanos (RUDIGER, 2013) na era digital, frente aos avanços da globalização, do neoliberalismo e do mercado. O desafio é constante, como explica o professor 8:
[...] recentemente eu peguei algumas turmas de alunos e aí foi um tabu pra mim, alunos que estão começando leitura de partitura, como que eu vou ensinar isso com a tecnologia? Como é que eu vou mostrar pra esses meninos? Pedi ajuda para alguns que estão mais avançados, já tem outras disciplinas e tudo. Teve um aluno que chegou pra mim e falou, professor o senhor conhece um programa chamado Canva? Eu vi que o programa tinha muito recurso aí eu comecei e mexer, mexer a formular mais ou menos como eu faria pra desenvolver essas aulas específicas, mas pra mim ainda é um ambiente bem estranho (Professor 8).
Na fala do professor 8, referente à apropriação tecnológica para o ensino, evidencia-se que, historicamente, o movimento carrega antigos e novos problemas que perduram: deficiências na formação dos professores e na infraestrutura física e tecnológica dos instituições de ensino; necessidade de reformulação dos currículos de modo que contemplem a apropriação tecnopedagógica; efetivação de políticas públicas paraa inclusão digital. Além de tudo isso, há ainda a proposição dos estudos em educação (ALMEIDA, 2008; GATTI, 2008; PRETTO e RICCIO, 2010), que compreendem o professor como mediador, no sentido de que mediar é provocar a reflexão, estimular novos entendimentos sobre o mundo.
Para uma atuação docente com esse viés, é fundamental a revisão das concepções que os docentes têm acerca da episteme do conhecimento científico e, consequentemente, uma mudança para uma nova postura epistemológica com relação aos objetos de conhecimento e ao ensino.
Com esse entendimento, os modos de ensino são colocados sob análise, pois o tato pedagógico necessita de constante avaliação para evitar que se acentue apenas a hierarquia entre professores e alunos, bem como que seja considerado o que permanece comum e o que ainda não foi observado pelos sujeitos, como explica o professor 11:
O que eu devo informar a ele pelo Google Meet? Talvez descobrir, eu acho que isso é fundamental, eu acho que isso é muito importante, que ele tem acesso a todas as informações que ele precisa, mas que eu preciso chegar a tocar no âmago daquelas informações, uma coisa que eu percebo é trazer uma coisa que possa trazer dificuldade a ele, e aí sim eu vou lá naquele ponto e posso permitir que ele então se desenvolva mais porque eu o provoquei. Outro aspecto é de que forma ele, lá do outro lado, ele busca essas informações, porque eu não estarei perto, nem estarei olhando (Professor 11).
A fala do professor 11 permite inferir a perspectiva do professor com relação à sala de aula desterritorializada, representada pelo ambiente virtual, bem como pontua a participação e a argumentação dos alunos, tendo as TDIC como meio para produzir uma experiência compartilhada. Ser docente autor é desenvolver um caminho de criação e de experimentação, um movimento para provocar o aluno a elaborar questionamentos, a fazer uso de habilidades metodológicas para, a partir da pesquisa empreendida, produzir um conhecimento autoral. É importante ainda desenvolver atividade crítica, para analisar o que foi produzido. Nessa perspectiva, a atuação assumida é vista como ato político de formação de cidadania, com compreensão ampliada e análise dos contextos sociais e culturais.
A segunda categoria apresenta os sentidos atribuídos à pesquisa aplicada ao ensino. Para a criação dessa categoria, observamos questões relativas à compreensão da mudança paradigmática no campo do ensino, a concepção de pesquisa e suas características e o modo de ensinar baseado no ato de pesquisar.
Ensino pela pesquisa segundo a visão dos professores
Partimos da compreensão do ensino pela pesquisa pelos professores, para uma posterior descrição das unidades de sentido identificadas. Passemos, então, à análise da resposta do professor 1:
atribuo aos discentes um portfólio com o objeto de estudo a ser explorado, com as diretrizes básicas, em seguida os alunos têm um prazo para apresentarem os resultados alcançados, a partir daí trabalhamos com interações até que o objetivo estabelecido seja alcançado (Professor 1).
O docente identificou alguns pontos de contato entre os procedimentos metodológicos científicos e os procedimentos metodológicos didáticos, ao descrever que seu primeiro passo é atribuir uma tarefa denominada “portfólio”, que contém um objeto de estudo a ser conhecido (“explorado”). Em seguida orienta os discentes em relação às diretrizes, ou seja, encaminha os objetivos a serem cumpridos, além de acompanhar o desenvolvimento do trabalho. Outro sinal importante a ser reconhecido é o da aparente compreensão da união entre a atividade científica e a atividade educativa.
Quando um professor reconhece que sua prática de ensino pode associar-se a uma prática investigativa, como sendo a ação imprescindível do aluno, já se percebe uma mudança no modo de compreender a relação entre ensino e pesquisa. O docente está atento à necessidade de envolvimento do aluno com o ato científico, por mais vaga que seja a definição de ensino pela pesquisa presente em seu horizonte de compreensão.
No termo interação, é possível identificar uma atitude ou uma expectativa de abertura dialógica da parte professor, embora se perceba que esta não parece ser considerada previamente, pois as diretrizes já são dadas aos alunos, ou seja, haveria maior abertura dialogal se fossem construídas junto com os discentes. Ainda assim, deve-se questionar: poderia realmente um professor atribuir uma atividade investigativa, sem que ele execute um ato interpretativo acerca do sujeito envolvido nesse processo?
O domínio da habilidade metodológica é perceptível na fala do professor 1, como demonstra o uso de termos tais como prazos, objetivos, resultados. Todavia, não há subsídios suficientes para avaliar a execução de uma atividade crítica, capaz de revisar os momentos da prática e de fortalecer a formação do aluno.
Passamos agora à análise da resposta do professor 2: “uso de textos e artigos científicos de acordo com a temática da aula e a elaboração por parte dos alunos de resumos com temáticas sobre a realidade vivenciada com embasamento científico” (Professor 2). As características de ensino pela pesquisa iniciam pelo estudo de “textos e artigos científicos”, associados ao tema da aula, sendo a decodificação e a sintetização textual exigida pelo docente na forma de resumos, uma ação proposta aos alunos, que precisam unir a apreensão da leitura científica à interpretação da própria “realidade vivenciada”. Uma condição para o desenvolvimento da atividade proposta pelo professor é o fato de ela exigir embasamento científico. Apesar de curta, a resposta evidencia alguns sinais de relação com a pesquisa: “textos e artigos científicos” são adotados como geradores de conexão entre o campo escolar e o campo de pesquisa, pois, num primeiro momento, não há uma expectativa de produção, mas de recepção.
Destacamos a resposta do professor 3, em relação ao sentido atribuído ao ensino pela pesquisa: “problematização de temas específicos e retorno dos resultados encontrados por meio de socialização em sala para apreciação e contribuição de outros olhares” (Professor 3). A fala corresponde a um passo importante na pesquisa científica, que é o da “problematização”. A composição de perguntas a partir de temas específicos às respostas “encontradas por meio de socialização em sala” mostram-se como etapas de um recurso de ensino. Cabe ressaltar a valorização de diferentes perspectivas acerca dos problemas enfrentados, expressa em“outros olhares”. Pode-se discutir, neste âmbito, como a busca pela problematização de temas pertinentes ao contexto da socialização já está inserida no horizonte do docente.
Segundo o professor 6, o ensino pela pesquisa se concretiza “através do desenvolvimento de pequenos projetos nas disciplinas ou em projetos de iniciação científica, por meio de aulas, debates, esclarecimentos de dúvidas e atividades de acompanhamento”.(Professor 6) A reposta apresenta um sentido relacionado à experiência com o ensino pela pesquisa como resultado da implantação de “pequenos projetos nas disciplinas” ou mediante ações de “iniciação científica”. O autor ainda sinaliza que a modalidade de ensino é oferecida por meio de atividades como “debates”, momentos para “esclarecimento de dúvidas” e atividades de supervisão. Merece destaque o termo “pequenos projetos”, como algo relativo à concepção de iniciação científica, que pode ser um tema salutar para discussão e debate dentro das universidades e institutos federais.
A resposta do professor 6 evidencia um dos princípios do ensino pela pesquisa, pouco mencionado nas respostas anteriores, que é a atividade crítica. O uso de debates, o levantamento de dúvidas e o acompanhamento no passo a passo da pesquisa evidenciam modos de revisão do percurso de um estudo científico. A atividade crítica é o momento de verificar os caminhos a partir dos quais um trabalho tem sido empreendido e também configura-se como uma forma de avaliação. Contudo, ela não se trata de um processo meramente avaliativo, nem de um ato de controle ou exclusão; sua intenção, sua referência é o ato educativo.
De um modo geral, pode-se avaliar que os sentidos identificados nas respostas apresentam pistas relativas à incorporação do paradigma emergente e sua adaptação ao campo científico da educação. Pode-se ainda reconhecer sinais que refletem uma consonância entre o papel da ciência e o do ensino. Embora muitos elementos do ensinar pela pesquisa tenham sido verificados ao longo das afirmações dos docentes, seria temerário concluir que eles têm uma perspectiva completa do que se propõe como ensino pela pesquisa. É possível identificar alguns traços dessa proposição na fala do professor 8, que demonstra estar alinhado a essa perspectiva:
quando a gente começa a entrar no conteúdo tem aluno que dá uma certa travada, nossa eu imaginei que música era só pegar o violão e cantar. Aí você vai desconstruir música com ele e uma das coisas que eu trabalhava bastante por ser da área de humanas é eu sempre jogava como trabalho de final de módulo: gente o que vocês querem é fazer uma análise crítica. O que está acontecendo no curso de vocês, o que está acontecendo na rotina do Campus, que a gente pode desenvolver uma peça, a gente pode desenvolver um teatro musical, levar isso pra o palco. O Monte Castelo ele tinha essa vantagem porque o anfiteatro era dentro do Campus. Isso na prática hoje, com esse cenário mais complexo, foi uma coisa que eu tive que destravar em mim. Levar essa conversa aberta com o aluno mais das vezes me fez ter conversas maravilhosas, ver uma evolução e me surpreender, tem hora que eles vem com umas respostas pra gente, eles constroem um diálogo. Você tem que provocar, implicar pra que o aluno comece a pesquisar outros assuntos (Professor 8).
O professor se usa da provocação, do estímulo à reflexão sobre a própria experiência em sua estratégia de ensino. Como compromisso subjetivo e social, o convite ao questionamento exige dos alunos habilidades metodológicas e políticas, para que eles possam realizar intervenções conscientes na realidade a partir de elaboração própria (DEMO, 2008), constituindo-se progressivamente como sujeitos históricos, críticos e autônomos. Em suma, o domínio tecnopedagógico das TDIC auxilia o docente em seu trabalho, no sentido de potencializar os pressupostos do ensino pela pesquisa.
Considerações finais
A pesquisa nos levou a novos olhares na relação entre a apropriação tecnológica e ensino a partir da pespectiva docente. Foi possível identificar a vontade de buscar o aprofundamento do conhecimento sobre as TDIC, para desenvolver práticas pedagógicas que façam sentido para os professores e, consequentemente, para os estudantes.
Assumir uma nova postura epistemológica em relação aos objetos de conhecimento e ao ensino é um enorme desafio ao docente comprometido com a própria formação, uma vez que os materiais instrucionais, os currículos, os programas e as ações relativas à apropriação tecnológica para o ensino não são apenas aspectos técnicos próprios da educação, mas são elementos que pretendem orientar o modo como o docente deve fazer uso desses dispositivos, a fim de evitar que se circunscreva sistematicamente o ensino a um modelo ou formato que limita a abertura e o diálogo. Contudo, é evidente a dificuldade para lidar com a liberdade, que é essencial para autonomia docente.
Ainda que haja uma necessidade de todos fazerem uso desses dispositivos, o desafio é torná-los aliados, para uma produção de conhecimento mais autoral. O professor necessita estar consciente da sua ação e sua situação. Não é possível fugir da noção de interpretação, de um ensino como tarefa e atividade sempre inconclusa, que deve ser realizada a partir da reflexão acerca da prática concreta, como modo de autocompreensão.
As falas revelaram ainda que as TDIC são aliadas no desenvolvimento de problematizações e na elaboração própria dos sujeitos envolvidos no processo. Como compromisso subjetivo e social, o questionamento exige dos alunos habilidade metodológica e política, para que possam realizar intervenções conscientes na realidade. Nesse sentido, cabe destacar a proposição de Pedro Demo acerca da necessidade do desenvolvimento da habilidade política, resgatando assim a qualidade formal do conhecimento (DEMO, 1988). Ser um docente autor é desenvolver um caminho de criação e de experimentação, um movimento para provocar o aluno a vontade de elaborar questionamentos e de fazer uso de habilidades metodológicas para, a partir da pesquisa empreendida, produzir conhecimento autoral.
O relato dos professores acerca da experiência de ensino na pandemia e os respectivos desafios evidenciou um exercício constante de abertura, manifesta no questionamento do uso das TDIC de forma significativa para o exercício de um modo próprio de ensinar. Nas falas dos docentes, o que se identifica não é apenas a apropriação tecnopedagógica das TDIC, mas elementos de auto-observação, a necessidade de interpretação e a reinterpretação do fenômeno educativo e a análise das condições de possibilidades vivenciadas no cotidiano de ensino. Mas, acima de tudo, a autoreflexão acerca do que acontece conosco em termos de ensino, em um mundo onde cada vez mais estamos imergindo nas TDIC.