uma atitude epistêmica: acolher a infância
Hannah Arendt diz que só existe educação porque chegam novos no mundo. Há um encontro, portanto, entre o que já existe e o que está chegando ao mundo, e essa chegada seguramente inaugura algo novo, para ambos. O encontro entre estes dois mundos é o novo que nasce. E o mundo, diz Larrosa (2003a), precisa acolher essa novidade.
Acolher. Eis aqui, nesta palavra, o ponto central sobre o qual nos debruçaremos neste texto. Nossa defesa é a de que pode ser interessante pensar a infância a partir de uma atitude epistêmica, a da acolhida, em contraposição a uma leitura da suspeita. Assim, em seguida trataremos de discutir e contextualizar a diferença entre essas duas hermenêuticas e em um segundo momento proporemos algumas categorias que avaliamos como pertinentes para integrar uma leitura da acolhida para a infância. A relação que temos com as crianças, dependerá da compreensão que temos delas. Em face desta afirmação, propomos então apresentar a elaboração de Paul Ricoeur de que existe uma “leitura da suspeita” e uma “leitura da acolhida”.
Tais leituras constituem-se como duas possibilidades, como duas atitudes epistêmicas na atribuição de sentidos que a hermenêutica nos permite e nos ensina. Passamos a expô-las a seguir.
Para introduzir o tema é necessário nos situarmos no campo da fenomenologia. Ricoeur (1993) mostra que o projeto fenomenológico, mais especificamente da fenomenologia que nasce com Husserl, deve ser contrastado com o projeto kantiano e com o projeto da “fenomenologia do espírito” de Hegel. Mas em todos eles persiste a distinção fundamental entre Erscheirung e Schein, isto é, segundo os tradutores Ricoeur e Walhens, o “fenômeno-índice” e o “fenômeno máscara”, entre o “aparecer-manifestar-se” e o “parecer-apresentar as aparências”, distinção que remonta a Kant.
Portanto, segundo Ricoeur, o projeto fenomenológico é vasto e faz não só uma releitura de Kant, Hume e Descartes, mas que compreende a fenomenologia dos psicólogos de Munique (Pfänder e Geiger), mas também a axiologia de Scheler, a analítica existencial de Heidegger, a metafísica do conhecimento de Hartmann, mas também a psicologia fenomenológica das concepções de mundo de Jaspers.
Vamos tomar o que Heidegger (1964) diz sobre “o método fenomenológico”. O autor procura desvendar pela etimologia e por uma filosofia da linguagem, o sentido do termo “fenômeno”. Deriva do verbo “phainesthai” que quer dizer mostrar-se. Fenômeno significa, portanto, aquilo que se mostra, o manifesto. Envolve-se com o verbo “phaino”, “colocar a luz do dia”, portanto com “phos”, a luz, a clareza, algo em que algo possa se tornar manifesto, visível em si mesmo. De onde Heidegger conclui: fenômeno é aquilo-que-se-mostra-em-si-mesmo, o manifesto. Heidegger (1964, p. 46) atribui ao termo fenômeno o sentido positivo e original de “phainomenon”, que se distingue do fenômeno da aparência, que é “uma modificação privativa do fenômeno”, ou seja, Heidegger se refere ao “fenômeno-índice” ou “puro fenômeno”. Mostra a seguir a construção da manifestação fenomênica em seu “fundamento-fundação”. Porque o “fenômeno-índice” não é em si a manifestação, quer dizer, há um “pressuposto” de manifestação. Aquilo é índice de algo que não se manifesta e que talvez jamais possa se manifestar. Esse não-manifestado, que constitui o halo do fenômeno, faz com que o fenômeno seja sinônimo de produção ou coisa produzida. Esse não-manifestado é um “x” de que o fenômeno é quase um processo e se desfigura nos produtos do fenômeno-aparência-máscara.
Heidegger chega a um conceito provisório de fenomenologia, querendo significar “fazer ver de si-mesmo aquilo que se manifesta”, tal qual, de si mesmo, aquilo que se manifesta. A partir desta perspectiva, Ricoeur (1969) estabelece uma leitura bifronte: por um lado um desvendamento-desmistificação dos fenômenos máscaras e, por outro lado, propiciar a emergência da “pletora de sentido”. A primeira Ricoeur chama de “leitura da suspeita”, que corresponde ao que G. Durand (2000) denominou como “hermenêuticas redutivas”. A segunda é a “leitura da acolhida”, que foi denominada por “hermenêuticas instauradoras” por G. Durand (2000). No primeiro vetor estão Freud, Marx, Nietzsche, Dumezil e Levi-Strauss. No segundo estão Cassirer, Heidegger, Jung, Van der Leew, Eliade, Bachelard e o próprio Ricoeur.
Chamaremos as primeiras de “hermenêuticas explicativas” porque reduzem toda a problemática à busca de um fator explicativo de base e de última instância; e as segundas de “hermenêuticas compreensivas” porque recolhem as vozes das alteridades, sem praticar exclusões, pois aceita, acolhendo, os sentidos que se manifestam.
Assim, se partirmos dessa elaboração, as concepções de infância que surgem dos diversos âmbitos do conhecimento também são tributárias destas duas leituras. Então, que implicações surgem disto para este campo de estudos? Do nosso ponto de vista, as infâncias que nascem destas duas leituras são radicalmente distintas e, portanto, o modo como nos relacionamos com a infância também se modifica, bem como ela mesma.
A posição que defenderemos aqui, como já antes anunciado, é a de que pensemos a infância pelas hermenêuticas compreensivas, ou seja, olhar a infância por uma leitura da acolhida. Neste percurso, encontramos apoio em Jorge Larrosa, (2003a, p. 184) que em seu ensaio “O enigma da infância” nos alerta quanto a essa nossa tentativa de explicação da criança, que acaba nos levando a uma espécie de controle da infância:
A infância é algo que nossos saberes, nossas práticas e nossas instituições já capturaram: algo que podemos explicar e nomear, algo sobre o qual podemos intervir, algo que podemos acolher. A infância, deste ponto de vista, não é outra coisa senão objeto de estudo de um conjunto de saberes mais ou menos científicos, a coisa apreendida por um conjunto de ações mais ou menos tecnicamente controladas e eficazes, ou a usuária de um conjunto de instituições mais ou menos adaptadas às suas necessidades, às suas características ou às suas demandas. Nós sabemos o que são as crianças, ou tentamos saber, e procuramos falar uma língua que as crianças possam entender quando tratamos com elas, nos lugares que organizamos para abrigá-las.
Identificamos esse ato de capturar a infância como resultado de uma leitura da suspeita, advinda das hermenêuticas explicativas, e dele queremos nos afastar. Pois:
Não obstante, e ao mesmo tempo, a infância é um outro: aquilo que sempre além de qualquer tentativa de captura, inquieta a segurança de nossos saberes, questiona o poder de nossas práticas e abre um vazio em que se abisma o edifício bem construído de nossas instituições de acolhimento. Pensar a infância como um outro é, justamente, pensar uma inquietação, esse questionamento e esse vazio. É insistir uma vez mais: as crianças, esses seres estranhos dos quais nada se sabe, esses seres selvagens que não compreendem a nossa língua. (LARROSA, 2003a, p. 184).
Queremos tanto saber delas, que as objetivamos. Tiramos delas a condição de sujeitos. E quando alguém tira a condição de sujeito de outros também nos objetivamos, perdemos humanidade. Como seria, por outro lado, olhar a infância por uma leitura da acolhida? Talvez um caminho seja o de ir fazendo este exercício de pensar categorias que nos afastam de uma captura de infância e que nos aproximam de um lugar em que a infância seja acolhida.
Identificamos já alguns pontos: a necessidade de ver a criança como sujeito e a compreensão de que este sujeito é um outro. É um outro não apenas porque é criança, mas também porque é um outro de nós, que está além de nós. Não bastasse isso, cada um de nós não é um bloco monolítico, linear, evolutivo, cronológico. Somos, como disse Fernando Pessoa, uma legião, o que desvela a nossa complexidade, profundidade, intensidade, ambivalência com que habitamos o mundo. Há, portanto, alteridades dentro de nós que dificultam esse caminho que os “explicadores da infância” insistem em percorrer, com suas tentativas de unificação e redução do outro que, entretanto, insiste também em resistir a essa captura.
Uma leitura da suspeita olha a infância como que de fora. É alguém, externo, que busca teorizar sobre o tema. Em uma leitura da acolhida há alguém que olha, mas que também é olhado e se coloca em relação. É nesta direção que Jorge Larrosa (2003a, p. 192) apresenta uma imagem e uma contra-imagem da infância, contrapondo-se a uma imagem, que para ele, configura-se como totalitária.
[a contra-imagem] é o rosto daqueles que, quando olham para uma criança, já sabem de antemão, o que vêem e o que têm que fazer com ela. A contra-imagem poderia resultar da inversão da direção do olhar: o rosto daqueles que são capazes de sentir sobre si mesmos o olhar enigmático de uma criança, de perceber o que, nesse olhar, existe de inquietante para todas as certezas e seguranças e, apesar disso, são capazes de permanecer atentos a esse olhar e de se sentirem responsáveis diante de sua ordem: deves abrir para mim, um espaço no mundo, de forma que eu possa encontrar um lugar e elevar minha voz!
Acolher significa receber. Receber o que está dado, o que se manifesta, o que se mostra tal como é, sem qualquer pretensão prescritiva e normativa sobre o outro e sua vida. É aceitar o enigma que existe em cada um de nós e na dimensão de nossas vidas. É receber esse enigma na sua autenticidade, sem desfigurá-lo e enquadrá-lo em esquemas explicativos que supostamente tranquilizariam as nossas inquietudes, preenchendo lacunas que na verdade precisariam se manter tal como são: espaços de incertezas, que podem revelar mais delas mesmas do que qualquer tentativa de controle. Esta atitude epistêmica permite que passemos de um “sujeito explicador” para um “sujeito da acolhida” - o que se deixa atravessar pelo outro, pelo enigma. Este sujeito só pode ser um sujeito da experiência, posto que “[...] é aquele que sabe enfrentar o outro enquanto outro e está disposto a perder o pé e a se deixar tombar e arrastar por aquele que lhe vai ao encontro: o sujeito da experiência está disposto a se transformar numa direção desconhecida.” (LARROSA, 2003a, p. 197).
O sujeito da acolhida inaugura sentidos e abre um lugar outro, destituindo-se de uma postura adultocêntrica e evolucionista, na qual há sempre um que é menor, e sabe menos, e outro que é maior, e sabe mais; um que já é e outro que ainda não é, que se mantem num estado embrionário e que deve seguir o caminho de realização de promessas políticas e pedagógicas formuladas pelos que se colocam como os que já estão no mundo e sabem como este deve funcionar.
Este sujeito explicador é também o que delimita espaços de existência diversos e estanques para crianças e adultos. Ele, adulto, por já ter sido criança um dia, sente que sabe mais desta experiência, ao mesmo tempo em que a coloca fora dele, como um espaço e tempo já superados, anulando qualquer possibilidade de infância dentro de si mesmo e não reconhecendo os conhecimentos e saberes das crianças. Estabelece, tanto com a criança quanto com a infância, uma relação de hierarquia e poder, enrijecendo e tornando inflexíveis as relações, impedindo a si mesmo e ao outro, esvaziando um modo outro de existir e de estar no mundo, talvez mais humano, justo e interessante.
Diferentemente do sujeito explicador, que transforma a diferença em hierarquia, em superiores e inferiores, em bem e mal, o sujeito da acolhida relativiza. Ele vê a diferença como possibilidade de conhecimento. O outro se oferece a mim e eu ao outro em nossas alteridades, compartilhando seus horizontes semânticos, suas soluções diversas aos seus limites existenciais comuns. Assim, a diferença não se equaciona como ameaça, mas como alternativa. Relativizar é, assim, uma atitude epistêmica.
A antropologia, em especial a antropologia das crianças, mostra a fecundidade do diverso. Ao elaborar um inventário de modos de viver, coloca em evidência que há muitas formas de se compreender a infância (conceito que pode nem existir para uma determinada cultura), de ser criança, bem como destaca as nuances que a relação criança-adulto assume nos diversos pontos do mundo.
Entre os Manu da nova Guiné, por exemplo, Mead (1953) estudou as crianças e o modo como vão aprendendo as competências necessárias para a vida adulta. Em seu livro Crescendo em Nova Guiné, ela demonstra uma fina capacidade de observar e descrever as crianças manu. Em Bali, juntamente com seu marido, o antropólogo britânico Gregory Bateson, elabora um método fotográfico de análise do cotidiano das crianças e de suas interações. Enquanto ela tomava notas, Bateson tirava fotos, que abrangiam desde as brincadeiras das crianças até os modos como eram carregadas por suas mães e as interações com a antropóloga. Esse trabalho é publicado em 1942 com o título A Personalidade Balinesa: uma análise fotográfica. Suas conclusões principais versavam sobre o modo de aprendizado dos balineses, que Mead definiu como visual (pela observação) e cinestésico (porque os movimentos de danças, por exemplo, eram aprendidos com o “professor-tutor” movimentando o corpo de seu aprendiz, concluindo Mead ser esse um tipo de aprendizado que ensinaria a passividade e uma consciência particular do corpo). Mead estudou as crianças arapesh, doces, amáveis e gentis, segundo ela, e as crianças mundugumor, formadas num ambiente hiperagressivo, canibal, onde triunfa a competição. Ela vai mostrar como se dá a relação adulto-criança, no sentido de formar uma personalidade a partir da imagem particular de homem que cada cultura quer promover. Os resultados foram publicados no livro Macho e Fêmea: um estudo dos sexos num mundo em mudanças.
Além de Margaret Mead, pioneira, Clarice Cohn menciona um estudo de Barbara Ward sobre o choro e as práticas socializadoras em Hong Kong, publicado numa coletânea intitulada "The Approach from Social Anthropology", organizada por Phillip Mayer em 1973 (London: Tavistock Publications). Menciona textos antropológicos de autores brasileiros, também pioneiros. São eles: Egon Shaden, "Educação Indígena", artigo publicado na revista Problemas Brasileiros (ano XIV, n.152, p.23-32), de 1976; Florestan Fernandes, "Aspectos da educação na sociedade Tupinambá", publicado em 1976, numa coletânea organizada por Egon Shaden, "Leituras de etnologia brasileira" (São Paulo: Companhia Editora Nacional, p.63-86); e ela mesma, Clarice Cohn, "Crescendo como um Xikrin. Uma análise da infância e do desenvolvimento infantil entre os Kayapó-Xikrin do Bacajá", artigo publicado em 2000 pela Revista de Antropologia (v.43, n.2, p.195-222).
Para Clarice Cohn, a contribuição desses estudos é inegável, porém os seus pressupostos limitavam o seu alcance. Dentre eles, o de que às crianças é inculcada a cultura, ou o de que elas são socializadas e inseridas por agentes e práticas socializadoras na sociedade mais ampla. Essas análises pressupunham um fim último e uma imutabilidade do processo estudado e conhecido pelo pesquisador.
Seria necessário dar um passo adiante e abordar a criança e suas práticas em si mesmas.
Através da observação participante, utilizando-se da etnografia, um estudioso das crianças pode observar diretamente o que elas fazem e delas ouvir o que têm a dizer sobre o mundo. Esse foi o avanço, desencadeado a partir da década de 1960, que marcou os estudos no âmbito da antropologia da criança. Esse avanço aconteceu, obviamente, a partir de um grande esforço no qual se engajaram os antropólogos, no sentido de avaliar e rever os conceitos elaborados até então no campo da antropologia. Novas formulações para conceitos centrais ao debate antropológico surgem, permitindo que se estude a criança de maneira inovadora.
Estudar a criança tem sido um desafio para a antropologia e a principal razão parece ser a dificuldade em reconhecer na criança um objeto legítimo de estudo. Em várias esferas, que vão do senso comum às abordagens do desenvolvimento infantil, pensa-se nelas como seres incompletos a serem formados e socializados.
De acordo com Clarice Cohn, esses estudos nos mostram que as crianças elaboram sentidos para o mundo e suas experiências compartilhando plenamente de uma cultura. Esses sentidos têm uma particularidade e não se confundem nem podem ser reduzidos àqueles elaborados pelos adultos: as crianças têm autonomia cultural em relação ao adulto. Essa autonomia deve ser reconhecida. Mas os sentidos que elaboram partem de um sistema simbólico compartilhado com os adultos. Negar isso seria ir de um extremo a outro. Seria afirmar a particularidade da experiência infantil sob o custo de cunhar uma nova cisão entre os mundos e tornar esses mundos incomunicáveis.
Porém, do mesmo modo que essa diversidade cultural nos diz que há diferentes maneiras possíveis de ser criança, numa mesma sociedade - dependendo de sua complexidade - também podemos encontrar uma pluralidade na experiência de ser criança. Eleger uma delas em detrimento de outras é cair numa armadilha perigosa. É restringir horizontes e mundos possíveis para se viver, priorizando relações de poder que empobrecem e esvaziam a experiência e as possibilidades de existir no mundo. A experiência de ser criança é plural e a atitude epistêmica da acolhida é um ato político. Qualquer leitura é um ato político. Entendemos, entretanto, que há também diversos atos políticos e a leitura da acolhida parece-nos que caminha numa direção mais libertária, menos opressiva e criadora de mundos diversos, mas que podem ser compartilhados, enquanto a leitura da suspeita acaba pressupondo uma hierarquização, pela homogeneização e exclusão da diferença.
Esse mundo diverso e compartilhado pode se tornar mais interessante quando, ao reconhecer o enigma que é o outro, abrimos um espaço em nós mesmos para esse mesmo enigma. Ou seja, há que se conhecer e se reconhecer a potencialidade daquilo que se oculta, pois se o que se manifesta nos situa em um determinado lugar do mundo, é o que não se conhece ainda que pode nos lançar em direção a um desconhecido que resiste ao controle, a um futuro pré-fabricado, ao previsível que nos faz permanecer no mesmo lugar.
Este reconhecimento de que há algo em nós, no outro e no mundo que nos escapa, é eminentemente uma atitude epistêmica. Tal atitude é bem característica nas crianças, uma vez que estão entrando no mundo, inaugurando um lugar, começando a falar e a andar neste lugar desconhecido, nesta aventura curiosa que é a vida. Quem é a criança, em qualquer parte do mundo? É o novo. É o novo que recebe o velho como novo. É justamente aquela que acolhe o mundo, que não quer controlá-lo. Parece que sabe que tem quem já queira fazer isso. As crianças sabem que têm muita coisa para saber ainda - estão disponíveis e abertas ao saber - e talvez por isso “não sei” seja uma expressão tão comum na fala delas, mas também já sabem muitas coisas. Não somos os poderosos detentores de um saber que deve ser levado até elas. Pensar a infância, portanto, é aprender com ela, praticando uma leitura da acolhida e, assim, decidindo-se por também acolher quem sabe acolher o mundo.
Se entendermos - e entendemos - a leitura como experiência, veremos que apenas a da acolhida torna esse caminho possível. Diz Larrosa (2003b, p. 104): “A leitura, portanto, não é uma experiência pessoal ou, dito de outro modo, a leitura é uma experiência em que o pessoal fica abandonado como condição da própria experiência.” O ensaio em questão - Leitura e metamorfose - está discutindo a leitura e o leitor de uma obra, mas pensamos ser pertinente a transposição desta ideia para uma leitura de mundo. Os olhos do leitor, em uma condição da/de experiência, seriam olhos que se assemelham aos das crianças, que olham e se deixam olhar, são aqueles que podem ver o manifesto, sem pretensão de saber de antemão o que este pode significar. Assim, com Larrosa (2003b, p. 113), vejamos:
Os olhos sem cobiça do leitor, seu topar-se com um mundo pleno e pronto, seriam então, uns olhos que adquiriram algo do olhar pueril de uma criança. Os olhos do leitor, como o das crianças, “vivência”, ou melhor, “experiência”. A palavra é erfehren e sua tradução habitual é “experiência”, contendo algo desse sair-para-fora-e-passar-através, da forma latina ex-per-ientia. E o que esse olhar experiência é “o existente”- das Vorhandene -, o mundo-diante-da-mão, o mundo que já ex-siste fora de si porque está como que arremessado a uma existência sem finalidade e sem fundamento, literalmente a-teleológica e anárquica. Por isso, com esse olhar, o “vivenciar o existente” não é mais o distinguir, classificar, ordenar do mundo interpretado e administrado, não é mais julgar ou valorar as coisas. Não é se apropriar do que existe, mas é um deixar aparecer o existente em seu ser, em sua plenitude e em seu distanciamento, isto é, em sua verdade.
Queremos deixar aparecer quem são as crianças e com elas também saber de nós. Por isso escolhemos ser atravessados pelo mundo. Por isso acolhemos uma leitura da acolhida para pensar a infância.