infância em relações entre avós e netos: vínculo, amor e potência de vida
Eu tinha o amor do meu avô, e para que mais? Seu carinho me encharcava os olhos quando me oferecia dinheiro, um tostão por fio, para arrancar seus cabelos brancos. Ele gostava era da minha mão de neto, passeando sobre ele, mansa, eu sabia. Ser ou não ser grisalho era outra coisa. E se a tristeza ameaçava meu avô - eu lia isso nas rugas de sua testa ou no arco de suas sobrancelhas - eu me oferecia, de graça, para catar alguns fios a mais, zelosamente. (QUEIRÓS, 1995, p. 19-20).
introdução
As memórias do escritor mineiro Bartolomeu Campos de Queirós nos levam à casa de seu avô e sua avó. Ao revisitar sua infância, marcada pela morte precoce da mãe e pela distância física e afetiva do pai caminhoneiro, o autor rememora cenas de sua vida simples com Joaquim e Maria, seu avô e sua avó paternos, em uma cidade no interior de Minas Gerais. Na palavra escrita, suas lembranças ganham forma de poesia, e, em meio a medos e angústias, destaca-se o amor entre o avô e seu neto. “Um amor mútuo, calado, imenso […] em que o avô reina e o neto é o seu súdito encantado.”1 Um amor tecido nas delicadezas e durezas do cotidiano: nas histórias engraçadas contadas e escritas (!) nas paredes da casa; na tristeza compartilhada pelos esquecimentos de Maria, conforme ela se despedia do mundo; nos fios de cabelo branco, pretexto para um carinho, para estar junto… Entre brincadeiras, segredos, alegrias, tristezas e afagos, são tecidos vínculos.
A prosa poética de Bartolomeu abre este artigo que tem como objetivo tecer reflexões sobre infância, vínculo e amor, a partir das narrativas de avós e avôs, ouvidas/os em uma pesquisa de doutorado em educação. Trata-se de um recorte da pesquisa que teve como objetivo geral analisar os sentidos construídos sobre infância a partir de narrativas de avós, avôs, netas e netos. Infância, neste trabalho, não é compreendida apenas como etapa da vida, mas também como dimensão humana, que pode nos atravessar em qualquer idade.
Infância é entendida como uma experiência humana, que se difere ao longo da vida. Reconhece-se, no entanto, que, na criança, há uma potência infantil outra por ela viver intensos e constantes começos. Nesse sentido, opera-se com duas noções de infância: como categoria geracional e como potência de vida. Trabalha-se com a hipótese de que a qualidade da relação com a criança pode potencializar a infância em ambos - adultos e crianças -, de modos diferentes.
Das narrativas, emergem reflexões sobre relações entre adultos e crianças, construídas a partir da concepção de infância sustentada na filosofia de Walter Benjamin em articulação com a antropologia filosófica de Martin Buber e a psicanálise de Donald Winnicott.
O texto é dividido em cinco partes, além desta introdução. A primeira apresenta a pesquisa (questões, objetivo, metodologia, participantes). A segunda focaliza a infância na perspectiva de Benjamin. A terceira aborda a construção de vínculos a partir das narrativas sobre amor entre avós, avôs, netas e netos. Na quarta parte, discute-se, tendo em vista o que é narrado pelas/os participantes da pesquisa, a infância como uma força geradora de vida, que pode ser potencializada pelo amor em relações entre crianças e adultos mais velhos. Na quinta e última parte, são tecidas as reflexões finais.
a pesquisa
Participaram da pesquisa sete avós e três avôs, na faixa etária de 51 a 71 anos, sendo nove moradores da cidade do Rio de Janeiro e um do município de Niterói, no estado do Rio de Janeiro. Além deles, participaram seis de seus netos, entre 5 e 12 anos, moradores das seguintes cidades: Rio de Janeiro, Niterói, Brasília e Montevidéu, no Uruguai. O critério de escolha foi o de familiaridade: pessoas próximas à pesquisadora indicaram avós e avôs com fortes vínculos2 construídos com suas netas e netos de até 12 anos de idade. Em decorrência da pandemia de Covid-19, contexto que marca este estudo e é tema das narrativas das/dos participantes, o trabalho de campo foi realizado entre maio e dezembro de 2020, através de interações por meios digitais - a plataforma Zoom e o aplicativo WhatsApp. Com as avós e os avôs, foram planejadas entrevistas individuais. Com os netos, a conversa foi coletiva, em um único dia. Todas as entrevistas foram gravadas e transcritas para análise.
Além da metodologia, o contexto de pandemia impactou, também, o perfil das/dos participantes. Inicialmente, a intenção era ouvir pessoas de diferentes extratos sociais. Entretanto, o modo virtual não possibilitou a participação de pessoas que não tinham acesso à internet de qualidade suficiente para sustentar uma chamada de vídeo. Ainda assim, foi possível alguma variedade de perspectivas ao contemplar pessoas que residem em diferentes regiões da cidade do Rio de Janeiro (Zonas Norte, Sul, Central e Oeste) e do município de Niterói (Região Oceânica). Essa diversidade ainda está presente nos níveis de escolaridade dos adultos e nas ocupações profissionais (dona de casa, professor universitário, psicanalista, arte-educadora, profissional do comércio). A metade das avós e dos avôs participantes é aposentada.
Benjamin e Buber foram os principais interlocutores teóricos da pesquisa. Os dois autores sustentam as análises deste trabalho na linguagem, na história e na presença de pessoas, adultos e crianças, que se constituem na relação consigo, com o outro e com o mundo. Além desses, incluem-se comentadores de suas obras e autoras/es de diferentes áreas - filosofia, antropologia, sociologia, psicanálise e literatura - que dialogam com os temas que emergem das narrativas. Neste artigo, são destacadas articulações com Winnicott.
infância em walter benjamin
Em Rua de mão única e Infância em Berlim por volta de 1900, Benjamin (1987b) narra, na forma de fragmentos, lembranças e impressões do seu tempo de criança. A aposta do autor parece ser a de que suas narrativas ecoem nas experiências de seus leitores e suas leitoras. Nas ruas de sua cidade natal, seguimos o menino Walter em incursões a parques, zoológicos, monumentos históricos; na casa dos pais, em armários, esconderijos, escrivaninhas, despensa, com brinquedos; em dias de escola e enfermo.
A despensa. Na fresta deixada pela porta entreaberta do armário da despensa, minha mão penetrava tal qual um amante através da noite. Quando já se sentia ambientada naquela escuridão, ia apalpando o açúcar ou as amêndoas, as passas e as frutas cristalizadas. E, do mesmo modo que o amante abraça sua amada antes de beijá-la, aquele tatear significava uma entrevista com as guloseimas antes que a boca as saboreasse sua doçura. Com que lisonjas entregavam-se à minha mão o mel, os cachos de passas de Corinto e até o arroz! Com que paixão se fazia aquele encontro, uma vez que escapavam à colher! (BENJAMIN, 1987b, p. 87-88).
A quantidade de detalhes lembrados, mínimos e aparentemente insignificantes, evidencia um modo de ver e experienciar o mundo próprio das crianças.
Criança Desordeira. Cada pedra que ela encontra, cada flor colhida e cada borboleta capturada já é para ela princípio de uma coleção, e tudo que nela possui, em geral, constitui para ela uma coleção única. Nela essa paixão mostra sua verdadeira face, o rigoroso olhar índio, que, nos antiquários, pesquisadores, bibliômanos, só continua ainda a arder turvado e maníaco. Mal entra na vida, ela é caçador. Caça os espíritos cujo rastro fareja nas coisas; entre espíritos e coisas ela gasta anos, nos quais seu campo de visão permanece livre de seres humanos. Para ela tudo se passa como em sonhos: ela não conhece nada de permanente; tudo lhe acontece, pensa ela, vai-lhe de encontro, atropela-a (BENJAMIN, 1987b, p. 39).
À criança, cada pedra, cada flor, cada borboleta interessa, assim como o “resíduo que surge na construção, no trabalho de jardinagem ou doméstico, na costura ou na marcenaria” (BENJAMIN, 1987b, p. 19), tudo aquilo que frequentemente passa despercebido ou é abandonado pelos adultos. Sua dimensão sensorial é plena. De corpo inteiro, com intensa atenção, a criança coleta, fareja, rastreia, caça, junta, coleciona, inventa. O que é capturado por ela ganha outra vida, sentido, função. A criança, ao tirar esses restos do seu lugar comum, cria uma nova ordem, com modo próprio de funcionamento. Com o olhar rigoroso, mas não rígido, a criança anima, como magia, objetos inanimados. Para ela, não há diferença entre esses objetos e seres vivos. Em apaixonada relação com a materialidade do mundo, ela própria se torna os objetos.
Esconderijos. Conhecia todos os esconderijos do piso e voltava a eles como a uma casa na qual se tem a certeza de encontrar tudo do mesmo jeito. Meu coração disparava, eu retinha a respiração. Aqui, ficava encerrado num mundo material que ia se tornando fantasticamente nítido, que se aproximava calado. Só assim é que deve perceber o que é corda e madeira aquele que vai ser enforcado. […] E atrás de uma porta, a criança é a própria porta; é como se tivesse vestido um disfarce pesado e, como bruxo, vai enfeitiçar a todos que entrarem desavisadamente. Por nada nesse mundo pode ser descoberta (BENJAMIN, 1987b, p. 91).
A criança se mistura à sua exterioridade e percebe-a de modo diferente dos adultos. Em sua brincadeira, ora a criança é uma porta, ora é um bruxo, ora é tudo junto, ao mesmo tempo. Essa flexibilidade no que se é e no que se pode ser, na interação com as coisas do mundo, revela sua atitude mimética.
O jogo da criança é impregnado de comportamentos miméticos que não se limitam de modo algum à imitação de pessoas. A criança não brinca apenas de ser comerciante e professor, mas também se transforma em moinho de vento ou trem, cavalo ou gato, ou seja, a criança, por meio da mimese, imita o real sendo verdadeiramente aquilo que sua imaginação deseja - pessoas, animais ou coisas. (JOBIM E SOUZA, 2012, p. 139).
Não se trata, no entanto, de uma imitação passiva da realidade, mas uma verdadeira atividade de intercâmbio entre a criança e o mundo que se expressa, produzindo uma semelhança imaterial. Essa atividade é reconhecida por Benjamin (1987a) como a capacidade de produzir semelhanças, que vem se perdendo na modernidade, e migrou para a linguagem (em especial para a palavra escrita). A potência de mimetização da linguagem a coloca em estreita relação com a infância e coloca-se como chave importante para a compreensão da filosofia benjaminiana (CASTRO, 2009).
Sobre isso, Agamben (2005) afirma que infância não é apenas uma etapa cronológica na evolução do ser humano que possa ser estudada independente da linguagem. É na infância que se constitui a necessidade da linguagem: para participar da vida social, a criança precisa transformar a experiência sensível em fala. É por essa experiência de apropriação da linguagem, porque o ser humano um dia foi um in-fans (sem fala), que somos história e não apenas natureza.
Sendo um momento da história do homem [do ser humano], que se repete eternamente, manifesta, nesse retorno, aquilo que essencialmente permanece como fato humano. Uma concepção de infância que só pode ser compreendida com a linguagem, pois é na linguagem que o homem [o ser humano] constitui cultura e a si próprio (JOBIM E SOUZA, 2012, p. 151).
Nessa relação com a experiência histórica e linguística, infância é compreendida como “uma ‘experiência transcendental’ do espaço, do tempo e da linguagem” (CASTRO, 2009, p. 209). Essa experiência, embora frequentemente considerada ingênua e fantasiosa, problematiza as relações do ser humano com a cultura. Refuta-se, assim, uma ideia de infância abstrata, romântica ou ingênua. Criança é parte e produto da cultura, da história.
Para Jobim e Souza (2012, p. 138), o “amor” de Benjamin pela tradição e pelo passado, manifestado em seus textos, “revela uma intuição profunda de que nessa paixão está a força subversiva capaz, de fato, de colocar em crise o presente”. E o autor reconhece, na perspectiva infantil, a potência para orientar outro olhar para a cultura contemporânea: olhar para o detalhe, para o pequeno, mostrando que não somos idênticos, mas semelhantes.
É nesse sentido que a infância se oferece como perspectiva para uma crítica da cultura: pensar a infância não significa isolá-la em sua própria experiência, mas reconhecer nessa experiência os estilhaços da dinâmica social. Por isso, a infância - como fragmento da dinâmica social - pode ser chave para uma crítica da cultura tanto quanto uma crítica da cultura pode ser chave para repensar a experiência da infância. (PEREIRA, 2012, p. 42).
Esse misto de singularidade e inserção cultural conduz a uma concepção de infância que, ao mesmo tempo, não prescinde da sua pluralidade e do que a torna uma categoria social. Concomitantemente plural e única, infância se coloca como crítica a uma cultura capitalista que formata, enquadra, enrijece, individualiza. Pereira (2012, p. 45) identifica uma dimensão política na “utopia da semelhança” de Benjamin, na aposta de que “sujeitos plurais e suas histórias diversas guardam entre si semelhanças a partir das quais se reconhecem”, uns nas lutas dos outros. Essa identificação pode ser pensada também na relação do adulto com a criança. Ao lembrar sua infância, são evocados interesses e desejos infantis, facilmente esquecidos pelos adultos.
Benjamin (2002) tece dura crítica aos pedagogos e a suas intenções com as crianças. Revela o quanto, impregnados por uma racionalidade prática, estão distantes das crianças, que se aproximam mais dos artistas, dos colecionadores, dos magos, dos loucos. Observa como a ciência pedagógica, na modernidade, instrumentalizou a cultura, transformando-a em conteúdos educativos e tornando-a servil. A crítica de Benjamin aos pedagogos, é necessário frisar, é abordada porque, também, entende-se que ele está fazendo uma crítica a um modo de os adultos e a sociedade se relacionarem com as crianças e com o que é considerado “infantil”. Ao tratar do livro infantil, por exemplo, o autor observa que nem todos os adultos preservam “a fiel alegria que ele desperta na criança” (p. 54). Muitos livros e brinquedos são alvos de crítica do filósofo por suas preocupações pedagógicas e artificiais. A experiência da infância, assim, é banalizada, considerada algo menor, a ser superado. Benjamin reconhece, também, preconceito em relação às crianças, o que acarreta um isolamento da infância e um distanciamento entre gerações. O pedagogo (ou o adulto) não mais reconhece aquilo que um dia lhe foi objeto de atenção.
Em sua unilateralidade, ele não vê que a Terra está repleta dos mais puros e infalsificáveis objetos da atenção infantil. E objetos dos mais específicos. É que crianças são especialmente inclinadas a buscarem todo local de trabalho onde a atuação sobre as coisas se processa de maneira visível. Sentem-se irresistivelmente atraídas pelos detritos que se originam da construção, do trabalho, no jardim ou na marcenaria, da atividade do alfaiate ou quer que seja. Nesses produtos residuais elas reconhecem o rosto que o mundo das coisas volta exatamente para elas, e somente para elas. (BENJAMIN, 2002, p. 57-58).
Nesse afastamento, há descrença na capacidade da criança lidar com as questões do mundo no qual está inserida. Se a criança faz parte da dinâmica social, por que privá-la das discussões que afetam a todos - adultos e crianças? Benjamin aposta na potência do diálogo entre gerações, do intercâmbio de experiências entre adultos e crianças, pois uma geração provoca o despertar da outra com as memórias de lutas já vividas (BENJAMIN, 1987a).
A partir dessa aposta, elege as crianças como interlocutoras especiais em seus programas radiofônicos, criados entre 1927-1933. Essa nova tecnologia (ele se referia ao rádio), com apenas três anos de existência à época, deveria atender também às demandas infantis. Questiona o fato de haver falas especializadas, sobre os mais diversos assuntos, para adultos; e não para crianças. Coloca, desse modo, as crianças num “lugar social de relevância”, considerando-as como “parte integrante das transformações sociais” (PEREIRA, 2012, p. 47). Nesses programas, aos quais temos acesso pelos textos das peças, prevalece um tom de diálogo, que se distancia daquele adotado por alguém com pretensão de “ensinamento”. É estabelecida, entre locutor e crianças, uma relação que busca partilhar sentidos, e não as convencer de algo. Tendo como temas livros, brinquedos, teatro de marionetes, transformações na cidade, infâncias de outras épocas, economia, catástrofes e tantos outros, Benjamin coloca-se como adulto cúmplice das crianças, em muitos momentos se diferenciando dos demais.
Suas peças radiofônicas (BENJAMIN, 2015) dão pistas do seu modo de pensar a relação entre adultos e crianças: com estas, partilha aquilo de que ele também gosta, que considera belo e interessante (p. 22; 49; 62); critica o autoritarismo de idade, a imposição dos desejos dos adultos (p. 50); aposta na capacidade de crítica das crianças, de que elas podem não gostar do que foi destinado a elas; cumplicidade (p. 58); reconhece que as crianças podem duvidar do adulto e buscar a verdade (p. 67); compreende que é tarefa do adulto mostrar aquilo que nem sempre é visto, em instigar a leitura e a narrativa do mundo (p. 45); aconselha às crianças a ensinarem aos adultos o que eles esqueceram (p. 66).
a certeza do amor
Nascer é acontecer para o amor de alguém. (SAFRA, 2004, p. 72)
Nasce uma criança, renasce a vida: frágil, inacabada, potente, bela. O começo de uma vida modifica seu entorno, e o mundo recomeça. A chegada de uma criança cria, na família que a recebe, expectativas, fantasias, medos… Nasce uma criança e nasce também uma mãe, um pai, uma irmã, um irmão, uma tia, um tio, uma avó, um avô… Vidas são modificadas, novos papéis são assumidos. É nessa rede de afetos, que nos recebe no mundo, que nossa existência se inicia.
Quando eu soube que a [minha primeira neta] estava chegando foi muito emocionante, foi uma coisa… É um amor que a gente não tem como descrever. Ela é muito fofa, ela já nasceu sorrindo; ela é muito, muito bem humorada. Ela, com um ano e oito meses, faz palhaçada, é quase uma coreógrafa, inventa dancinhas, é muito gostosa. (Clarice,3 Entrev., 29/05/2020).
A minha filha, quando ficou grávida da minha neta mais velha, eu fiquei assustada porque a gente tinha planos para ela: continuar estudando, fazer curso… O que eu não tive gostaria que elas tivessem. Quando ela me falou que estava grávida, eu quase desmaiei, quase que eu caí dura. […] Ela era nova, e eu falei: “E agora, com você estudando, fazendo faculdade, como vai ficar?” (Elisa, Entrev., 17/12/2020).
A maioria das avós e dos avôs lembrou a emoção sentida no anúncio da chegada da neta ou do neto. Clarice fala sobre a felicidade, a emoção atrelada a um amor intenso. Elisa também ressalta, em muitos momentos, seu amor pelos netos e netas - um amor protetor, segundo ela; elogia-os, ressaltando o quanto são maravilhosos. Porém, o anúncio da gravidez da primogênita é marcado pela preocupação, por parte de Elisa: a filha e o neto poderiam passar pelas dificuldades enfrentadas por ela, sendo uma mulher negra que viveu em condição de pobreza. Os relatos de Clarice e Elisa mostram que há diferentes modos de sentir, afetar-se, envolver-se com a chegada de um neto. E eles são marcados tanto pelas condições materiais de vida - por variáveis de classe, gênero, raça - quanto por aspectos simbólicos.
Uma vez fora do útero, você foi imediatamente envolvida ou envolvido em relações com os outros; de fato, pode-se argumentar que, mesmo antes do nascimento, você estava posicionado vis-à-vis a esses outros no sentido de que eles tinham certas expectativas sobre você. As ideias sobre bebês recém-nascidos mantidas por seus pais e outros cuidadores - seus irmãos, avós ou babá, por exemplo - estruturou as condições de sua infância: com que frequência você foi alimentada/alimentado e como foi desmamada/desmamado; se você foi pego assim que chorou, se falaram com você ou não; o tipo de linguagem usada para você e ao seu redor; a forma como foi vestida/vestido, para onde foi levada/levado e como foi carregada/carregado; e assim por diante. (TOREN, 2021, p. 189).
Nascemos em uma dada família, num determinado contexto, numa certa cultura, em condições de existência que não controlamos. Chegamos ao mundo, cheios de histórias; há narrativas que nos precedem. Esses aspectos marcam nossos afetos desde antes da nossa chegada ao mundo.
Eu tenho uma memória muito forte das coisas que a minha avó me contava, das músicas que ela cantava… […] Eu tenho essa necessidade de estabelecer um vínculo assim. Por exemplo, quando a [minha neta] canta a música da lua, olhando para a lua lá em Viçosa, eu tenho certeza que isso tem a ver com a nossa vivência, a nossa experiência quando eu mostrava a lua para ela e cantava a música enquanto ela estava dormindo, estava para dormir. São coisas assim, essa intimidade, que eu sinto muita vontade de ter com elas e com o [meu neto] também quando nascer. […] Eu quero deixar marcas. Marcas de memórias afetivas. (Clarice, Entrev., 29/05/2020).
Na narrativa de Clarice, são as histórias contadas e as músicas cantadas que compõem a tessitura da relação com sua avó. Essas marcas de memórias afetivas mobilizam a necessidade de construir vínculos com suas netas e seu neto, desde bem pequenos, de deixar marcas, vincos… Essa necessidade se apoia nas suas memórias, no reconhecimento de que esses vínculos com sua avó estão presentes em sua vida.
Para Buber (2001), a necessidade de estabelecer vínculo é fundamento da existência humana, é o que nos conduz a dizer Tu. É na relação, na vida dialógica, em recíproca presença, no entre, que se constituem os vínculos. É no movimento de “voltar-se para o outro, percebê-lo e aceitá-lo na sua inteireza, se libertar da indiferença” (KRAMER et al., 2016, p. 138).
Da avó paterna, eu tenho uma lembrança emocional muito forte de me sentir amada. Eu sabia que aquela pessoa me amava, isso era uma coisa muito clara para mim e desde muito criança. […] O que eu percebo de netos e avós é que tem uma cumplicidade. Parece que o neto sabe que você tem um amor… que suplanta tudo. […] E quando eu vejo o meu neto, quando eu sinto esse amor do meu neto por mim, eu me lembro que minha avó me amava também. É muito assim… eu era apaixonada pelas minhas avós. (Cecília, Entrev., 19/05/2020).
Clarice e Cecília parecem recuperar nas suas memórias de infância essas experiências de serem amadas e desejadas, tomando suas histórias como referências para a relação com as netas e os netos desde bem pequenas/os. Cecília atualiza, na experiência de ser avó, o amor vivido na infância com sua própria avó. E é o neto, ao externar o seu amor, quem a faz entrar em contato com o sentimento de ser amada. Como na reminiscência de que trata Benjamin (1987a), Cecília lembra da avó e do amor mútuo entre as duas quando percebe o amor do neto por ela. É o outro - o neto, de apenas dois anos - quem a desloca e evidencia a força do amor em sua vida, quem mostra como é fundante para Cecília ser amada. “O outro detém um segredo: o segredo do que sou”, diz Sartre (1997, p. 454). É com o outro que nos constituímos, é no outro que nos reconhecemos.
Esse jogo de espelhos, de reconhecimento de si no olhar do outro, tem início no começo de nossa existência. Quando chegamos ao mundo, necessitamos ser amparados, precisamos de quem nos alimente, nos banhe, nos acolha, nos assista e nos ajude a conhecer o mundo e a nos constituirmos como pessoas. Carecemos de quem nos diga: Você existe! Você está chegando ao mundo! Para o pediatra e psicanalista inglês Winnicott (2019, p. 182), o bebê percebe sua existência através do olhar do outro: “Quando olho, sou visto. Portanto existo”. Os rostos de quem cuida do bebê exercem um papel de espelho, possibilitando que ele veja a si mesmo.
Diante disso, Winnicott (2021) reforça a necessidade de que pessoas “devotadas” ao bebê, ativa e sensivelmente, sustentem um “ambiente suficientemente bom, que começa com um alto grau de adaptação às necessidades individuais do bebê” (p. 23). Essa adaptação “vai diminuindo de acordo com a necessidade crescente que o bebê tem de experimentar reações à frustração” (p. 23). É esse “ambiente protetor” que sustenta o seu desenvolvimento e a construção de um senso de existir, um senso de self.4 É através dessas primeiras relações, dos olhares e cuidados destinados ao bebê, que ele é apresentado à realidade do mundo e torna-se capaz de ser, de construir a sua pessoalidade. Assim, é em relação - e somente nela - que uma existência pessoal é possível.
Lejarraga (2008, 2012) destaca que, para Winnicott, essas necessidades do bebê não são apenas fisiológicas, mas também emocionais: de contato humano, íntimo, corporal e afetivo. A disposição para lhes atender é desenvolvida pelo adulto a partir de “lembranças conscientes e inconscientes de ter sido um bebê, porque se identifica com a condição desvalida e dependente de seu bebê” (LEJARRAGA, 2008, p. 89). Sobre essa experiência, Winnicott (2011, p. 33) utiliza a palavra amor:
sabemos que, em se tratando de crianças pequenas, é só o amor por aquela criança que torna a pessoa confiável o suficiente. Amamos aquela criança e mantemos com ela um relacionamento ininterrupto - eis vencida a primeira metade da batalha.
Esses vínculos primitivos continuam reverberando ao longo da vida.5 Na perspectiva psicanalítica, “estar vinculado a alguém diz respeito à transmissão simultânea de afeto e de contorno, com o objetivo de sustentação e nutrição psíquica” (RIBEIRO, 2018, p. 12). São os vínculos e as marcas deixadas por eles em nossas vidas que nos sustentam na tarefa de viver.
Tanto Buber quanto Winnicott colocam a relação em primeiro plano, compreendendo o ser humano como um ser-com-os-outros,6 um ser que não é sozinho, que se sustenta em uma rede de afetos. Para ambos, “estar em relação é primário, e o self individual único se desenvolve a partir de nosso estado fundamental de interconexão. […] vida autêntica envolve a consciência da interconexão por meio do envolvimento genuíno e responsável com o mundo” (ADAME, 2020, p. 1, tradução minha).
Em perspectiva próxima, Safra, tendo Winnicott como uma de suas referências, afirma:
[…] a possibilidade de convivência com os outros depende da hospitalidade de alguém, esse é o acesso, em meu modo de ver, para a vida em comunidade. Fora da comunidade, a pessoa se sente inexistente e indiferenciada. Nascer é acontecer para o amor de alguém, morrer é deixar de ser amada, em outras palavras, de ser significativa para alguém. (SAFRA, 2004, p. 72).
Para Buber (2008, p. 83), o ser humano nasce na comunidade; “ela é sua condição, ele vive, respira nela, ela o sustenta”. Comunidade, para o autor, é uma vida em comum. Não é estar “um-ao-lado-do-outro, mas um-com-o-outro”; implica “um dirigir-se-um-ao-outro, um face-a-face dinâmico, um fluir do Eu para o Tu” (BUBER, 2009, p. 66-67). Diferente da sociedade, que silencia a espontaneidade e dificulta as relações autênticas, na comunidade, há o reconhecimento do outro, a confirmação de sua existência, o acolhimento de sua singularidade.
Sobre o amor, Buber (2001, p. 55) afirma que este implica “um verdadeiro sair-de-si-em-direção-ao-outro, […] alcançar-o-outro, […] permanecer-junto-ao-outro. Nesse sentido, amor é responsabilidade de um Eu para com um Tu” (p. 59). Seu oposto não é o ódio, mas a indiferença. A origem do amor não é o sentimento, mas a relação: “os sentimentos, nós os possuímos, o amor acontece” (p. 59). Amor não está dentro das pessoas, mas no entre: os sentimentos residem no ser humano, mas o ser humano habita em seu amor. “O amor não está ligado ao Eu de tal modo que o Tu fosse considerado conteúdo, um objeto: ele se realiza entre o Eu e o Tu” (p. 59).
Acontecer para o amor de alguém implica reconhecimento do outro, movimento em direção ao outro, abertura ao diálogo e à alteridade. O amor, como acontecimento da relação Eu-Tu, surge como uma ética, implica uma ação concreta.
O amor é uma força cósmica. Àquele que habita e contempla no amor, os homens [e as mulheres] se desligam do seu emaranhado confuso próprio das coisas; bons e maus, sábios e tolos, belos e feios, uns após os outros, tornam-se para ele atuais, tornam-se Tu, isto é, seres desprendidos, livres, únicos, ele os encontra cada um face-a-face. A exclusividade surge sempre de um modo maravilhoso; e então ele pode agir, ajudar, curar, educar, elevar, salvar. (BUBER, 2001, p. 59).
hooks (2020) define o amor como uma ação, que envolve “carinho, afeição, reconhecimento, respeito, compromisso e confiança, assim como honestidade e comunicação aberta” (p. 47). Para a escritora e teórica feminista estadunidense, “nós aprendemos sobre o amor na infância. Seja nosso lar feliz ou problemático, nossa família funcional ou disfuncional, é essa a primeira escola do amor” (p. 59). hooks observa que as famílias nucleares - patriarcal e privada -, com laços de parentesco mais restritos, aumentam a possibilidade de alienação e abusos de poder: “mulheres foram obrigadas a se tornar mais dependentes de um homem, e as crianças, mas dependentes de uma única mulher” (p. 162-164). Em contraposição, nas famílias estendidas7, ampliam-se as possibilidades de as crianças aprenderem sobre o amor como uma ética. A autora conta que, na sua infância, seu avô foi uma referência importante nesse sentido.
Para hooks, a família pode ser “um bom lugar para aprender o poder da comunidade” (p. 164). Em sentido próximo ao de Buber, enfatiza que uma comunidade só é possível quando há “comunicação honesta”.
[…] podemos começar o processo de criar comunidade onde quer que estejamos. Podemos começar com um sorriso, um cumprimento caloroso, um pouco de conversa, fazendo um ato de bondade ou reconhecendo a gentileza que nos é oferecida. Podemos trabalhar diariamente para tornar nossas famílias comunidades mais amplas. (hooks, 2020, p. 175).
Os afetos que se estabelecem no âmbito familiar podem se estender para outras relações, em outros espaços que não o doméstico. Nesse sentido, pensar sobre os vínculos entre avós, avôs, netas e netos, que se constituem - e nos constituem - nos minúsculos gestos cotidianos, nas práticas culturais partilhadas, nas histórias familiares narradas, é ir na contramão da indiferença, do desamor. Falar do amor entre avós/avôs e netas/os, portanto, é pontuar “o quanto nossas ações pessoais relacionadas ao amor implicam uma postura perante o mundo e uma forma de inserção na sociedade” (SILVA, 2020, p. 10). É anunciar o amor como potência “para caminharmos rumo a uma ‘sociedade amorosa’” (Ibidem, p. 10).
fora da caixa
amar é um elo entre o azul e o amarelo (LEMINSKI, 2013, p. 312)
O que esse amor mútuo entre avós, avôs, netas e netos produz na experiência da infância? O que esse encontro entre a criança e o adulto de uma geração distanciada provoca em ambos? Como as infâncias de avós/avôs e netas/os são afetadas?
Eu acho que eu tenho muita facilidade de conversar, de dialogar com bebê, de entender as coisas que eles estão querendo transmitir, que eles estão querendo expressar… Isso com os meus filhos foi assim, com a [minha neta] também, com o meu sobrinho - esse que morou aqui - também e com outras crianças que tive contato, sejam primos, mesmo na creche. E é muito prazeroso para mim, é muito gostoso esse vínculo, essas brincadeiras, ficar meio maluca perto deles… Porque eu acho que quando a gente sai da caixinha, fica enlouquecida com as crianças pequenas, é muito gostoso. Eu adoro fazer isso, adoro, adoro fazer palhaçada, falar palhaçada, fazer umas brincadeiras malucas. Enfim, eu acho que isso tudo cria marcas, essas experiências criam marcas. (Clarice, Entrev., 29/05/2020).
A facilidade/disponibilidade em escutar as crianças pequenas é relacionada por Clarice a uma oportunidade de experimentar um estado prazeroso. As crianças - o vínculo com elas - provocam sair da caixinha, ficar enlouquecida, fazer palhaçada ou brincadeiras malucas. Vínculo e brincadeira são intimamente relacionados na fala dessa avó, o que remete à origem das duas palavras. De acordo com o dicionário etimológico, vínculo é “tudo o que ata, liga ou aperta, do latim vinculum, ‘laço’” (CUNHA, 1982, p. 822). E brincadeira vem da palavra brinco, cuja etimologia tem origem nesse mesmo termo latino (p. 124).
[…] brincar, de origem latina, resulta das diversas formas que assumiu a palavra vinculum, passando por vinclu, vincru até chegar a vrinco. É assim que do significado inicial “laço” passa por “adorno, enfeite, joia que se usa presa na orelha ou pendente dela” até chegar à ideia de brinquedo e brincadeira. Na mitologia grega Brincos eram os pequenos deuses que ficavam voando em torno de Vênus, alegrando-a e enfeitando-a. […] brincadeira contém a ideia de laço, relação, vínculo, pondo os indivíduos em relação consigo mesmos, com os outros, com o mundo. (FORTUNA, 2004, p. 2).
Winnicott (2019) confirma essa íntima relação entre vínculo e brincadeira com seu conceito de espaço potencial, localizado nem dentro nem fora de cada pessoa, mas entre seu mundo interno e externo. É no contato íntimo, afetivo, confiável e constante entre o bebê e quem assume seus cuidados, na experiência da mutualidade, “que pode ser descrita tanto como sintonia dos corpos vivos quanto uma forma de intimidade mais sofisticada, quando se inicia a experiência compartilhada do brincar” (LEJARRAGA, 2012, p. 116). Um marco desse processo é quando o bebê, sentindo a necessidade de mamar, tem a ilusão de que o seio da mãe foi criado por ele.8 Entre a necessidade do bebê e sua satisfação, ele se sente real porque criou algo. Esse movimento criativo, para Winnicott, não tem relação com a criação de algo inédito, “mas está relacionada ao sentimento de realidade. Nesse sentido, o mundo é criado de novo por cada um de nós e o sentimento de realidade pode ser experienciado a partir desse movimento” (SEKKEL, 2016, p. 87).
A partir das memórias construídas através de inúmeras impressões sensoriais, o bebê passa a ter cada vez mais material para criar. Aos poucos, conforme ele tenha recursos para lidar criativamente com as falhas do ambiente, o adulto cuidador diminui a satisfação às suas necessidades imediatas. É a partir do estabelecimento de vínculos amorosos e dedicados nos primeiros tempos de vida que a criação e a brincadeira se tornam possíveis.
Um bebê pode ser alimentado sem amor, mas o manejo impessoal ou sem amor não conseguirá produzir uma nova criança autônoma. Aqui, onde há confiança e constância, existe um espaço potencial que se transforma em uma infinita área de separação, que o bebê, a criança, o adolescente ou o adulto podem preencher criativamente com o brincar, transformado ao longo do tempo na fruição do patrimônio cultural. (WINNICOTT, 2019, p. 174, grifos do original).
Aproximando os estudos de Winnicott e Buber, Praglin (2006) observa que ambos expuseram, em seus escritos, visões complementares relativas ao espaço do entre. Na área de transição, para Winnicott, ou no inter-humano, para Buber, “encontram-se os mais autênticos e criativos aspectos de nossa existência pessoal e comunitária, incluindo artística, científica e expressão religiosa” (PRAGLIN, 2006, p. 1, tradução da autora). Desse modo, é no vínculo, na relação, no entre, que se localiza a potencialidade criativa humana e outros modos de viver podem emergir.
Sekkel (2016) aproxima as concepções de Benjamin e Winnicott sobre o brincar, percebendo que ambos fazem referência a “fragmentos, detritos ou resíduos da realidade externa e interna” (p. 91). A criança brinca com os fragmentos do mundo - da realidade externa - a partir de elementos do seu mundo interno, criando um mundo próprio, em constante relação com o mundo da cultura mais ampla.
O brincar é uma atividade entre mundos; não se dá entre pessoas e objetos isolados. Um mundo é um universo de significados que tem um contexto em que estão presentes sentimentos, anseios, valores, fantasias. […] O brincar é esse espaço de conjunção de mundos em que outros mundos se criam. (SEKKEL, 2016, p. 91).
As avós e os avôs da pesquisa narraram experiências em que a brincadeira se faz presente e novos mundos são criados, deslocando também os adultos de seu lugar-comum.
Os gêmeos fazem natação em uma piscina lá em Botafogo, uma piscina especializada e tem que entrar com adulto. A minha alegria é entrar algumas vezes; não me deixavam entrar sempre não, tinha concorrência, mas algumas vezes eu consegui entrar com o [meu neto], dentro da piscina. O professor ensinando-o a nadar e eu do lado, segurando. Que delícia ir para a piscina com o neto! […] Na minha ida à piscina com as crianças, eu acabo me divertindo muito com elas. Eu não gosto de piscina, mas eu gosto de piscina com os netos. Dá para entender? Porque eles são divertidos na piscina. Piscina é um saco, mas os netos são ótimos. É a relação. (Carlos, Entrev., 28/10/2020).
Piscina é chato, mas com os netos é ótimo. É a relação. Para Buber (2001), a relação, o vínculo, preserva a possibilidade do encontro. É o encontro brincante com os netos, mesmo na piscina, que altera o gosto da experiência: de uma experiência enfadonha para uma que provoca alegria, que é agradável, que ganha outra “coloração” (WINNICOTT, 2019, p. 108). Lejarraga (2008, p. 88) define alegria, a partir de Winnicott, como “o afeto característico do brincar e das experiências do espaço potencial”. A alegria do brincar, de estar vinculado, de ser criativo perante a realidade, é o que faz com que a vida tenha valor e seja “digna de ser vivida” (WINNICOTT, 2019).
Para Dolto (1998, p. 199), as crianças trazem “alegria e frescor” para as gerações mais velhas. Winnicott (2019, p. 79) observa que as “crianças brincam com mais facilidade quando a outra pessoa consegue e pode ser brincalhona”. Na relação entre avós, avôs, netas e netos com fortes vínculos, percebe-se uma disponibilidade para o brincar que se alimenta mutuamente, na relação, no reconhecer o outro e ser reconhecido pelo outro.
Eu me chamei de vozão: “O vozão chegou!”. Eu tenho umas brincadeiras com as crianças. Por exemplo, eu ensinava a falar: “Vovô é o máximo”. Repete: “Vovô é o máximo”. É brincadeira. (Carlos, Entrev., 19/05/2020).
Ser chamado de vozão, assim no aumentativo, revela o desejo de se fazer presente, de ser reconhecido por uma presença imensa na vida dos netos e das netas. Na brincadeira que se instaura com a palavra - vozão -, parece se construir uma segurança afetiva que ampara os dois lados.
Uma vez minha mãe me perguntou se o meu estado de depressão, de tristeza, tinha a ver com o fato de eu ficar avó… Eu acho que ela pensou na velhice, se era isso… É o contrário! Eu acho que ele me traz uma potência de vida. […] Eu tenho uma importância muito grande na vida dele e eu acho que isso me dá um ânimo… (Cecília, Entrev., 19/05/2020).
Ao mesmo tempo que as avós e os avôs amparam suas netas e seus netos com a disponibilidade para brincar e estar junto amorosamente, também as crianças as/os amparam com sua força de vida.
Eu me lembro de quando a minha filha era muito pequenininha. Eu trabalhava em Campo Grande e vinha pela Avenida das Américas; não tinha sinal. Eu vinha enfiando o pé, correndo para caramba e vi uma placa assim: “Mamãe, te espero”. Na hora, eu tirei o pé do acelerador. Eu acho que é essa sensação que ele me traz: “Vovó, te espero”. Tem alguém que realmente me quer, na presença do dia a dia, e isso é muito bom, um sentimento muito gostoso para mim. (Cecília, Entrev., 19/05/2020).
Ser significativo para alguém, ser reconhecido como uma pessoa que importa, ter alguém que espere para brincar. Nessa relação, parece se instaurar um movimento de renovação da vida, com abertura e disponibilidade para o novo, para o que ainda não foi experimentado.
A relação com eles é muito boa, muito de brincadeira, eles gostam muito. Eu beijo muito, abraço muito, pego muito, aperto muito. (Marina, Entrev., 06/06/2020).
Outro dia, o Bento fez um vídeo. Ele diz que é youtuber. Ele gosta muito de futebol e ele está fazendo uns posts sobre futebol, falando dos jogadores que ele gosta. E o Jonas também quer fazer como rockeiro, quer falar dos Guns N' Roses. Eles estão demais, mas a gente se diverte com isso também. O Bento conseguiu tirar no piano ontem aquela música dos Saltimbancos dos Trapalhões e ele me ligou. Ele está em Teresópolis e disse: “Vó, eu consegui tirar!”. Tudo eles querem me mostrar, querem que a gente incentive, elogie… (Marina, Entrev., 06/06/2020).
Tanto a criança necessita desse reconhecimento quanto as avós e os avôs precisam ser solicitados. Há um reconhecimento mútuo, que provoca um intervalo, abre um espaço no cotidiano. Esse espaço - da brincadeira, do encontro, do amor - pertence a ambos e é “experimentado como ilimitado”, onde “a causalidade parece estar suspensa” (TICHO, 1974, p. 245, tradução minha). Um encontro que provoca abertura às possibilidades e interrompe o desenrolar mecânico das horas…
A partir da idade madura, a pobreza dos acontecimentos, a monótona sucessão das horas, a estagnação da narrativa no sempre igual pode fazer-nos pensar num remanso da correnteza. Mas, não: é o tempo que se precipita, que gira sobre si mesmo em círculos iguais e cada vez mais rápidos sobre o sorvedouro. (BOSI, 2015, p. 415).
Alves (2013), em pesquisa com velhas avós que assumem o cuidado com os netos, observou que, para elas,
a companhia dos netos traz consigo a volta dos sonhos destas, demonstrando, em algumas ocasiões, até um maior sentido afetivo para suas vidas. O relacionamento entre avós e netos pode ser marcado pelo prazer e trocas intensas (p. 158).
Esse encontro intergeracional, que acontece principalmente na brincadeira, parece produzir nos adultos um estado de infância, que se instaura no entre dessa relação e afeta ambas as partes. Para o escritor moçambicano Mia Couto,
A infância não é um tempo, não é uma idade, uma colecção de memórias. A infância é quando ainda não é demasiado tarde. É quando estamos disponíveis para nos surpreendermos, para nos deixarmos encantar. […] A verdade é que mantemos uma relação com a criança como se ela fosse uma menoridade, uma falta, um estado precário. Mas a infância não é apenas um estágio para a maturidade. É uma janela que, fechada ou aberta, permanece viva dentro de nós. (COUTO, 2011, p. 103-104).
Na relação entre avós, avôs, netas e netos com fortes vínculos, as janelas, mesmo as emperradas pelas durezas ou sofrimentos da vida, parecem ganhar novas dobradiças, menos enrijecidas, mais maleáveis, mais fáceis de manter a janela da infância aberta.
Kohan (2019) compreende a infância como uma força política, inspiradora e geradora de outras possibilidades de vida, que atravessa todas as idades. Infância “confere vida à vida” e, como uma “força reinventora do mundo”, abre as vias para que o impensável aconteça. Nesse sentido, propõe irmos de encontro aos “inícios, não apenas cronológicos, de uma outra relação com a infância, própria e alheia” (p. 164). Essas considerações são construídas com base na análise de princípios filosóficos da vida e da obra de Paulo Freire, para quem nunca se deve deixar de ser menino. Em carta para sua prima Nathercia,9 Freire (2016, p. 50) diz que “o mundo está como está porque os seres humanos esqueceram a infância”. Não deixar a infância esquecida dentro de nós implica permitir que ela nos atravesse, nos eduque: “não se trata apenas (ou sobretudo) de formar a infância, mas de estar atento a ela, de escutá-la, cuidá-la, mantê-la viva, vivê-la. A infância atravessa a vida toda como algo que lhe outorga curiosidade, alegria, vitalidade” (KOHAN, 2019, p. 161).
Curiosidade, alegria e vitalidade estão presentes nas narrativas dos participantes da pesquisa sobre o que vivem juntos, o que os encontros entre avós, avôs, netas e netos fortemente vinculados provocam. Não seriam esses os elementos que fazem a vida valer a pena? Tanto para Buber quanto para Winnicott, viver significativamente envolve “ser criativo, espontâneo, celebrando a inteireza e unicidade do outro, sendo receptivo e aberto ao mundo” (TICHO, 1974, p. 248, tradução da autora).
considerações finais
O destaque das/os participantes da pesquisa está na certeza do amor, construída nos minúsculos gestos cotidianos, que produz uma segurança afetiva que ampara crianças e adultos. Desses encontros amorosos entre os mais novos e os mais velhos, parece instaurar-se uma força infantil, que produz novas possibilidades de vida - fora da caixa. As narrativas instigam reflexões sobre modos de ser adulto e de estar com as crianças, sobre modos de estar na vida, a partir do reencontro com a própria sensibilidade e com a capacidade de brincar, de criar e de, na relação com as crianças, reinventar a si mesmo e reaprender a alegria dos inícios.
Essas reflexões parecem ter se tornado urgentes em meio ao dramático cenário de pandemia. Na mesmice dos dias, a infância irrompe, com sua força de vida, como possibilidade de ver a realidade como algo que pode ser transformado. Nesse sentido, realizar a pesquisa aqui apresentada a partir das fragilidades, deflagradas nesse contexto, acentuou a necessidade de pensar um projeto de sociedade no qual a força infantil não seja contida pela pressa, pelo individualismo, pela indiferença, pelo descuido. Ao contrário: as histórias contadas pelas/os participantes da pesquisa falam sobre desaceleração, relação, solidariedade, cuidado. E sobretudo: criação do novo.