Introdução
Atualmente parte dos brasileiros frequentam e/ou frequentaram um ambiente denominado escola devido à universalização crescente dessa instituição nas últimas décadas. De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PENAD), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgados em 2015, ocorreu crescimento de 17 pontos percentuais entre os anos de 2005 a 2014 no número de crianças matriculadas na Educação Infantil. Esse número continuou a subir em 2015 de acordo com dados do IBGE1 e estima-se que até 2020, 98% das crianças estejam cursando a primeira etapa da Educação Básica2 (IBGE, 2016b).
Contudo, bem maior do que o tempo de permanência na escola é a quantidade de marcas que essa instituição deixa em cada estudante e docente que passa por ela. Trata-se de uma referência marcante, prenhe de lembranças positivas e negativas que sustentam a construção da identidade de seus estudantes, suas memórias, estereótipos e representações concernentes a esse ambiente, dentre elas as relativas à professora e ao professor.
A partir de tais constatações, propomos neste artigo um recorte dos resultados de nossa pesquisa sobre representações acerca da profissão docente3 desenvolvida em nosso grupo de pesquisa - GEPAC/UEM4. Aqui apresentamos os resultados acerca de que características alguém precisa possuir para exercer a docência na visão de crianças com cinco anos de contexto rural, priorizando estudos que favorecem a escuta infantil.
A preocupação crescente da sociedade e da ciência com as representações de infância e de criança presentes na contemporaneidade, enquanto sujeito social digno de direitos específicos referentes a sua fase de desenvolvimento, reflete-se também em documentos legais como a Constituição Federal regente (BRASIL, 1988) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990).
Entre outras, nossa pesquisainspirou-se nas práticas de escuta infantil desenvolvidas pelo Programa Multidisciplinar de Estudo, Pesquisa e Defesa da Criança e do Adolescente-PCA, vinculado a Pró-Reitoria de Extensão e Cultura-PEC/UEM. Inspirou-nos também o estudo de Fernandes (2004), um dos precursores da pesquisa a partir da escuta infantil em nosso país, que na década de 1940 investigou grupos de crianças brincantes ao ar livre nas ruas. Seus resultados apontaram que as crianças possuem uma organização própria que não corresponde ao mundo adulto, mas a uma cultura própria.
As conclusões de Fernandes (2004) corroboram os resultados de várias pesquisas posteriores que demonstram a existência de uma cultura lúdica infantil própria a cada grupo social e cultural. Brougère (1995), em um desses estudos, assinala que as brincadeiras e os jogos são apreendidos culturalmente e socialmente e não se constituem habilidades inatas ao ser humano. Reconhece, portanto, a importância da brincadeira como produção e reprodução da cultura pelas próprias crianças.
De uma perspectiva próxima, Soares, Tomás e Sarmento (2005), ao reconhecerem a construção de uma cultura peculiar e particular das crianças, chamam a atenção para o cuidado necessário com a interpretação do universo infantil para não correr o risco de ser compreendido a partir da visão de mundo do adulto.Dentro desta visão e, ainda, com a influência da etnografia em sua metodologia várias pesquisas foram realizadas nas últimas décadas com o intuito de preservar o lugar de fala infantil e favorecer sua escuta (SPERB; CONTI, 1998; KISHIMOTO, 2001; FONTES, 2004; BARROS, 2006; SOUSA, 2006; TEIXEIRA, S. 2009; MELO 2010; FELDMAN, 2011; MARQUES, 2013; GARCIA-SCHINZARI, 2014; GOSSO, 2005; GOSSO; MORAIS; OTTA, 2006; GUERRA, 2009; QUEIROZ, 2012).
É dessa perspectiva, portanto, que desenvolvemos nossa pesquisa cuja apresentação inicia-se com a definição de dois conceitos de apoio para a análise das produções infantis.
As representações e os estereótipos: conceitos basais
Ao pensarmos em processos psicossociais presentes na construção do mundo em nosso entorno encontramos dois conceitos explorados em diversas áreas como a Psicologia, a Psicologia Social, a Educação e a Filosofia: representações e estereótipos.
No presente estudo, entendemos representações enquanto processos psicossociais que familiarizam, simplificam, recortam o real de forma a constituir uma representação de si mesmo, do outro e do mundo. Concordamos com Jovchelovitch (2008) quando afirma que não há correspondência direta entre o ser humano e o mundo, visto que tal relação é sempre mediada pela representação. Ou seja, os indivíduos não alcançam a realidade das coisas, mas uma representação das pessoas, objetos e saberes dos quais se aproximam. Podemos afirmar com a autora que uma representação equivale sempre a uma mediação entre o eu, o outro e o objeto-mundo.
Com base na tríade eu-outro-objeto-mundo, Jovchelovitch (2008) descreve a constituição das representações nas quais se apoiam diferentes formas de saber como a ciência, o senso comum e a religião.Em direção próxima, como assinalam Jovchelovitch (2008), Jodelet (2005) e Moscovici (2012) podemos afirmar que os processos representacionais fazem parte da produção e reprodução de estereótipos e preconceitos sociais por meio das interações entre os indivíduos e grupos.
De acordo com Bernardes (2003), a construção de estereótipos é parte constituinte do sistema intelectual humano que,em contato com a realidade,apreende parcialidades dos objetosde conhecimento a partir das representações dos grupos a que pertence. Os estereótipos funcionam assim como “faca de dois gumes” (BERNARDES, 2003, p.308), pois, por um lado permitem melhor organização e funcionamento do sistema cognitivo, contudo, por outro, contribuem com a manutenção de preconceitos. Neste processo, os estereótipos fixam e cristalizam as identidades de indivíduos e grupos potencializando as relações hostis entre o eu o outro. A seguir,descrevemos os procedimentos metodológicos de nossa pesquisa realizada com o suporte conceitual apresentado.
Sobre o processo de escuta das crianças
Para a definição dos procedimentos de nossa pesquisa, realizamos cinco estudos-piloto com crianças da escola em que ocorreu a produção dos dados. Esses estudos-piloto contribuíram para a definição da faixa etária a ser pesquisada, assim como os instrumentos e métodos a serem utilizados. Essas crianças não participaram dos procedimentos finais da pesquisa envolvendo entrevistas e “Jogo de areia”. Para a definição da entrevista como procedimento de pesquisa pautamo-nos em Severino (2007, p. 124), para quem a entrevista é uma técnica favorável à apreensão do “que os sujeitos pensam, sabem, representam, fazem e argumentam”.
Nas entrevistas com as crianças,utilizamos vinte e três imagens (Quadro 1) de mulheres e homens. A seleção das imagens baseou-se nas conclusões das pesquisas de Rosa (2011) e Vianna (2002) sobre as características físicas e comportamentais de docentes e buscou apresentar uma multiplicidade de situações possíveis. A disposição das imagens foi aleatória com a certificação da pesquisadora de que as crianças pudessem observar todas as figuras antes de responder às questões propostas.
Após a observação das imagens, solicitamos às crianças que respondessem um conjunto de perguntas com uso de linguagem coloquial e em consonância com as idiossincrasias da comunidade rural na qual a pesquisa foi realizada: Uma dessas pessoas dá aula, quem você acha que é? Vamos dar um nome pra ela? Quem será que é esse professor (a), como é seu jeito? Será que ela mora com quem? Ela tem filhos? Quantos? Grandes ou pequenos? Ela brinca com eles? Ela brinca com os alunos? O que ela faz na escola? Ela ganha alguma coisa pra fazer isso? Ela fez alguma coisa pra virar professora? E na hora do intervalo? Do que ela vai embora? Como é a casa dela? O que será que ela come? Ela faz o que no domingo? Com quem? Tem alguma dessas pessoas que não pode dar aulas? Por quê? A identidade de gênero utilizada pela pesquisadora durante as entrevistas acompanhou a primeira resposta de cada criança.
Essa etapa das entrevistas ocorreu em dois momentos distintos, sendo o primeiro na biblioteca e o segundo no pátio da escola.Para a entrevista no pátio optamos por posicionar uma colcha de retalhos (disponível na própria instituição) no chão. A escolha referente ao uso da colcha baseou-se nos resultados dos estudos-pilotos e da leitura de metodologias utilizadas em pesquisas anteriores, como as de Delgado e Müller (2008). As autoras mencionam que “a investigação com crianças, pelos inúmeros desafios que nos coloca, deve ser sempre um processo criativo” (DELGADO; MÜLLER, 2008, p. 289), por parte da pesquisadora e dos participantes.
A partir dessa premissa buscamos uma maneira de deixar as crianças mais à vontade para expressar seu pensamento durante as entrevistas. Essadecisão apoiou-se também nas conclusões dos estudos de Elali (2003) que associa a qualidade do desempenho infantil ao espaço físico do ambiente, e de Sager, Sperb, Roazzi e Martins (2003), para quem as condições do espaço oferecido às crianças podem influenciar seu comportamento em pesquisa.
Escolhemos, então, dois espaços considerados positivamente pelas crianças da escola selecionada: a colcha de retalhos, utilizada para contação de histórias e rodas de conversas por parte das professoras e o pátio da escola, destinado a brincadeiras livres e orientadas. Assim que estendemos a colcha de retalhos no pátio, a interação criança-criança e criança-pesquisadora intensificou-se rapidamente. Sobre a colcha mantivemos brinquedos como jogo da memória, quebra-cabeça e pega-varetas.
A entrevista foi realizada de forma estendida, com o intuito de que as crianças pudessem interrompê-la, afastar-se para brincar e, mais tarde, aproximar-se para continuar a atividade com a pesquisadora. Enquanto entrevistávamos uma criança, as outras duas brincavam nas outras pontas da colcha.
Em um segundo momento da pesquisa, realizamos o “Jogo de areia”, adaptado do método terapêutico desenvolvido nos anos de 1954 e 1956 por Dora Kalff, analista junguiana. Esse método vem sendo considerado fecundo para a expressão do pensamento infantil de acordo com pesquisas recentes na área da Psicopedagogia (FRANCO; PINTO, 2003; SCOZ; MARTINEZ, 2009). O jogo se realiza em uma caixa retangular, com medidas aproximadas de 72 cm de comprimento por 50 cm de altura e 7,5 cm de profundidade (SCOZ, 2011). Seu interior é pintado da cor azul, para que as crianças possam simbolizar também a água.
Foram realizadas duas sessões com a caixa de areia. Na primeira sessão, incentivamos as crianças a sentirem a areia e apresentamos a elas os brinquedos, com a finalidade de que se adaptassem ao jogo. Na segunda, sugerimos a brincadeira de escolinha para que as crianças inventassem enredos livres a partir do uso da areia e dos brinquedos. Neste segundo tópico, objetivamos verificar valores atribuídos aos docentes dentro e fora do ambiente escolar.
O que as crianças disseram? Quem pode lecionar?
As representações das criançassobre características e condições de quem pode lecionar, ou seja, de quem consideram aptos a desempenhar essa função foram objetivadas a partir da escolha de uma das imagens apresentadas pela pesquisadora. Os dados revelaram representações da docência que a associam a mulheres cujas características parecem reproduzir estereótipos demulher: branca, jovem, com cabelos longos e lisos.
Nas entrevistas individuais realizadas na biblioteca e na colcha de retalhos, assim como no “Jogo de areia”, ao serem solicitadas a escolher a imagem de um/a docente entre as imagens apresentadas, as crianças escolheram com maior incidência imagens femininas. Na biblioteca e na colcha de retalhos, das seis crianças no total, cinco escolheram mulheres e apenas uma escolheu homem, um menino (V) (Quadro 2).
No “jogo de areia”, apenas a menina Y escolheu um homem para representar o docente em seu enredo, contudo, no início do jogo mostrou-se confusa entre escolher uma professora ou um professor para ser personagem de sua história. Além disso, as imagens escolhidas remetem características de pessoas conhecidas das crianças.
Verificamos que das vinte e três imagens disponíveis, as crianças escolheram apenas seis consideradas aptas a lecionar. A maior frequência obtida foi da imagem três, moça branca, de descendência oriental, com cabelos compridos e escuros. A segunda maior frequência foi da imagem dois, moça branca e ruiva, também com cabelos compridos, enquanto a terceira maior frequência foi da figura cinco, moça branca, com cabelos loiros e compridos. As outras três imagens (14, 17 e 21) foram escolhidas por apenas uma criança cada uma.
Dentre as imagens apresentadas às crianças, a moça branca com cabelos escuros e compridos (imagem 3) obteve maior frequência visto que foi escolhida por quatro crianças (Y, L, S, I), todas meninas. As falas dessas meninas sugerem escolhas definidas em parte pela identificação entre as imagens e pessoas conhecidas. Essa suposição confirma-se pela descrição do que as pessoas das imagens gostam e não gostam de fazer e que correspondeu ao jeito de ser de pessoas conhecidas pelas crianças. A menina S, por exemplo, deu o nome de Isadora à professora, recordando-se de uma colega de sua sala. Ao explicar o que a imagem gosta e que não gosta de fazer, forneceu características dessa colega:
Criança S5: (Gosta) de brincá. [...] De pega-pega e esconde-esconde.
P: E do que será que ela não gosta?
S: Fazê bagunça.
P: Por que que você imagina que ela não goste de fazer bagunça?
S: Os aluno dela que faiz bagunça.
P: E o jeito dela assim, como que é? Ela é uma pessoa o quê?
S: Só brinca e dá tarefa.
Além disso, as crianças relacionaram os nomes definidos para as imagens a nomes de pessoas que conhecem. A menina Y, por exemplo, deu o nome de “Larissa” à professora e explicou que a escolheu porque conhece uma prima, que é bonita como a figura escolhida: “Minha prima” é “[...] Bonito”.
A menina I também associou a imagem escolhida a uma prima, cujo nome é “Julia”. De acordo com I, Julia é o nome de uma “[...] priminha [...]” dela que é “legal”. A menina L deu o nome de “Ro” porque é o meu nome: “Você!”, L responde que conhece. Ao explicar porque escolheu essa imagem, parece ter associado a figura a sua avó, que não gosta de varrer a casa, lixaras unhas dela e de colocar sapatos, mas gosta de assistir TV.
Criança L: É [...] É [...] É por causa que ela não gosta é de varrê a casa. [...] De passa pano na casa. [...] I te qui varrê a área. [...] De fazê as unha da vó dela. [...] De pintá as unha da vó dela. [...] Ela num gosta de lixá as unha dela.
P: Ah [...] Da vó?
L: Não dela!
P: Ah entendi. E o que que ela gosta?
L: Ela não gosta de colocá sapato. [...] Ela gosta de ficá [...] Ela gosta de ficá só assistindo TV.
Tais resultados revelam consonância com pesquisas anteriores, em que as crianças expressam em suas falas e brincadeiras elementos de sua cultura e de seu cotidiano como pessoas conhecidas e atividades habituais de seu dia-a-dia(GOSSO, 2005; BARROS, 2006; GOSSO; MORAES; OTTA, 2006; SOUSA, 2006; TEIXEIRA, S., 2009; ROMERO, 2012; MARQUES, 2013).
A segunda imagem de maior frequência foi a da moça branca com cabelos compridos e ruivos, escolhida por três crianças (E, S e I- Meninas). A menina E, após certa indecisão, definiu sua escolha pelo nome da irmã mais velha, Alessandra, cujas características foram atribuídas à imagem escolhida.
Criança E: Ela vai ser [...] o nome dela pode ser [...] o nome dela [...] vai ser [...] pode ser [...] um nome bem lindo. [...] começa com “U”. [...] Uva! (risos). [...] É, é [...] o nome dela vai ser Lorena! (risos, pois sua colega de turma tem este nome). [...] Eu vou dar o nome dela de Wainy (risos). [...] Não, de Sthefany! (risos). [...] Ela [...] O nome dela vai ser [...] é Alessandra![...] Minha irmã chama [...] Ela já é grandona. [...] Ela gosta de comida! [...] Arroz, feijão e carne [...] Ela num gosta, num gosta de. [...] de [...].de linguiça ruim! [...] Ela é uma [...] uma pessoa que [...] uma pessoa que [...] que ela não gosta de quem fica fazenu bagunça, porque [...] ela num gosta porque [...] ela num gosta porque num vai na casa dela.
A menina S identificou a imagem que escolheu com a mãe de uma colega de turma que encontra no portão da escola quando esta vai levar a filha. Comentou que a imagem escolhida é “Igual à mãe da Lorena. [...] Tem cabelo vermelho (risos) [...] Hoje eu vi ela, a Lorena veio de moto. [...] Parece igual”. A menina I dá o nome de “Aline” à imagem, nome de sua “prima” que “mora lá em [...] Lá em Londrina”. A imagem da moça branca com os cabelos loiros (5) foi escolhida por duas crianças (Y, L- meninas). A menina Y, ao fazer esta escolha nomeou e explicou sua alternativa:
Criança Y: Que tal Elza? [...] Ah que nem minha tia, minha tia mora [...] vô sabe lá onde ela mora!.
P: Ah entendi [...] você não sabe onde que sua tia mora. E a sua tia parece com essa moça?
Y: (Balança a cabeça afirmativamente) Só que ela é um pouquinho [...] um pouquinho com cabelo branco.
A menina L refere-se à imagem escolhida (5) como “Lenara”, sua prima, e acrescentou que é “Uma prima, só que eu quero colocar o nome”. L disse que Lenara é “Bom [...] ela levava comida. [...] Pras crianças”. A menina L nos explica que a professora escolhida levava comida para as crianças quando ficavam de castigo no recreio e não podiam sair da sala.
A imagem dezessete foi escolhida pela menina E, que lhe nomeou “Hevelin”, como chamava uma colega de sala que não estuda mais na escola. A criança E menciona que: “Ela, ela já estudava na nossa sala, mas ela mudo. [...] Ela era uma [...] era bem baixinha e nós, e aí nóis [...] e a tia ela [...] ela falou pra tia (nome de sua professora) assim que ela vai mudá”. A menina E explica que não gostava muito de sua colega.
Chama-nos a atenção a menina E escolher uma mulher de cabelos curtos associando-a a uma colega de sala de quem não gostava, evidenciando supostamente uma identificação negativa do ser professora, distintamente das demais crianças que aparentaram associar suas escolhas a pessoas queridas por elas.
A imagem vinte e um foi escolhida pelo menino V e nomeada de “Oziel”. V explicou que conhece seu pai com este nome e que ele imagina que o professor da imagem deve ser “amigo” dos alunos. Questionamos então o que seria ser amigo dos alunos e a criança V nos respondeu que é “brincando”. A imagem (14) também foi escolhida pelo menino V que o nomeou de “Wilson” e explicou que se lembrou do avô que é “legal”.
Análise e reflexão sobre as representações infantis de docência
A relação entre as imagens escolhidas pelas crianças e pessoas de sua convivência ou conhecidas sugerem ancoragens de suas representações de docente no que lhes é familiar, como membros da família, mães de colegas ou amigos que admiram. Além disso, as pessoas associadas às imagens reproduzem padrões de beleza feminina hegemônicos nos meios de comunicação e até mesmo nos próprios materiais escolares.
Com base nos estudos de Moscovici (2010) consideramos que as crianças atribuíram propriedades de pessoas conhecidas a estranhos com o intuito de familiarizá-los revestindo-os de características com as quais predominantemente identificam-se. Assim, as representações de quem pode ser docente parecem estáveis e ancoradas em traços da mulher branca, jovem e com cabelos longos e lisos que reproduzem a figura da maioria das docentes da Educação Infantil em sua escola. Além disso, nos remetem aos estereótipos da mulher branca e considerada convencionalmente bonita, presente nas diferentes mídias sociais como personagens de novelas, filmes, propagandas e web. Essas representações, ao buscar a familiarização do desconhecido sugerem produzir e reproduzir estereótipos do ser docente.
A escolha predominante de imagens femininas também pode ser explicada pela ancoragem das representações infantis em estereótipos decorrentes do processo crescente de feminização do magistério em nosso país desde meados do século XX. Nesse período, ser docente transformou-se em uma atividade profissional eminentemente feminina devido à inserção das mulheres no mercado de trabalho. Enquanto o trabalho em fábricas ampliou a demanda de operários e operárias, escolas necessitaram de mais docentes favorecendo a saída das mulheres de sua dedicação exclusiva às famílias para tornarem-se também trabalhadoras assalariadas (SAFFIOTI, 1979).
Curiosamente, os resultados de nossa pesquisa indicam que as escolhas das crianças expressam a permanência da naturalização da figura da mulher-professora por conta de suas experiências nas instituições escolares que frequentaram, histórias familiares, mídias e outras formas de circulação de informações.Além disso, podemos assinalar que juventude e cuidado de crianças por parte das mulheres também fazem parte do ideário cristão e moderno no qual o feminino tem como função a maternidade, a família e o lar.
Como explica Priore (1995, p. 107), com a modernidadea manutenção da mulher “no mais recôndito do lar, do fogo doméstico, o modelo da boa-e-santa-mãe tinha por objetivo valorizar o matrimônio” e, dessa maneira, a divisão do trabalho necessária ao desenvolvimento da sociedade burguesa.O magistério e a lida com os pequenos parecem,portanto, ainda ser encarados como extensão do lar em que a mulher possui função de cuidadora, esperada e exclusiva do gênero feminino. Nossa hipótese é de que a escolha das imagens pelas crianças expressa representações de quem pode ser docente ancoradas na naturalização do vínculo entre gênero feminino e cuidado infantil, tratando-se novamente da reprodução de estereótipos sociais.
Também é possível entender as escolhas recorrentes de imagens femininas por parte das crianças como consequência de suas experiências cotidianas com os materiais escolares. É importante considerar que os materiais aos quais as crianças têm acesso reproduzem padrões de beleza e comportamento feminino nas capas de cadernos, estojos, mochilas, cartazes de propagandas, entre outros artefatos culturais.Estudos como os de Nunes (2009) e Baliscei, Silva e Calsa (2018) mostram que a sala de aula tem sido um ambiente repleto de estereótipos sociais, incluindo os que envolvem o gênero feminino. As feminilidades presentes nesses materiais são valorizadas por sua beleza, ou seja, traços delicados, magros e brancos, esteticamente padronizados pela atualidade (BALISCEI; SILVA; CALSA, 2018).
Durante o “Jogo de areia”, as escolhas das crianças reforçaram os resultados mostrados nas entrevistas realizadas na biblioteca e na colcha de retalhos. Observamos apenas uma vez a escolha de um boneco masculino como docente. Isto ocorreu durante um tempo, mas foi logo substituído por um feminino.Essa escolha foi feita pela menina Y que no meio de sua brincadeira comentou “Nossa professora [...], professora tá aqui! Aí a professora ficou aqui! (segurou um dos bonecos)”. Perguntamos para Y se menino também pode ser professor. Então Y nos respondeu que: “Pode ser professô [...] professora”, entretanto, manteve sua personagem como professora do gênero feminino.
A menina I também selecionou uma boneca-professora e disse: “A pofessola! Ponto, a pofessola (disse isso na medida em que posicionou a mesa e a cadeira em frente dos bonequinhos-alunos)”. Em outro momento, I pegou outro bonequinho e falou: “Finge que era ota pofessola. [...] Sou professora dee [...] ma-te-má-ti-ca e di bola (enfatizou as sílabas da palavra matemática)”. A menina S também mencionou que construiu em sua brincadeira uma escola que tinha uma professora: “As pô! Minhas professora”. O menino também escolheu uma professora e disse, durante a brincadeira na caixa de areia, que: “Essa é a professora (pega um boneco preto) e esse é o aluno (pega o boneco branco)”.
Ratificando os dados encontrados nas entrevistas com imagens, as escolhas dos bonecos-docentes na caixa de areia reproduziram traços de pessoas conhecidas das crianças. Um dos exemplos mais evidentes foi o da menina Y que, ao brincar, atribuiu ao mesmo boneco a função de pai e professor (Figura 12) durante os momentos em que manteve esta escolha. Supomos que a representação da docência como a de alguém que ensina e se constitui uma autoridade, momentaneamente, foi associada a figura de seu pai que se transformou em professor.
Das manifestações da menina Y, bem como as outras crianças da pesquisa, inferimos que resultam de processos de identificação com figuras significativas presentes em todas as etapas da vida humana. Esses processos de identificação nem sempre conscientes por parte dos indivíduos vão constituindo suas identidades.Hall (2000) explica que os processos de identificação implicam uma fusão do eu com traços alheios e constituem as identidades dos indivíduos em interação e reciprocidade com o outro. Essas identificações são, de acordo com o autor (2000, p.107), ambivalentes e podem ter como alvo de seu objeto tanto “aquele que é odiado quanto àquele que é adorado”, como foi o caso das atribuições de características às imagens e aos bonecos realizados pelas crianças entrevistadas.
Em todas as escolhas de imagens, as crianças atribuíram características de pessoas admiradas positivamente, como foi o caso de Y, L, I, V e L ou negativamente como fez E (que relacionou a figura à sua colega de sala Hevelin, que ela não gostava muito). Colegas da turma, mãe de uma colega, tias, primas, pai, avô e a própria pesquisadora foram modelos de identificação expressos pelas crianças-entrevistadas.
As escolhas de imagens e de bonecas-professoras, ambas femininas, convergiram também com resultados de pesquisas recentes sobre representações sociais dessa profissão entre estudantes de licenciaturas.Realizada em vários países, a pesquisa (SOUZA; VILLAS BÔAS, 2011) mostra a existência de processos de naturalização de representações da mulher maternal sobre as escolhas profissionais desse/as estudantes. Seus resultados evidenciaram a associação entre trabalho docente e vocação da mulher, de modo que a profissão parece ser ainda representada como correspondente à natureza da mulher. O magistério exige assim, atributos pessoais, como “‘ter jeito com criança’, ‘ser comprometido, dedicado, afetuoso e abnegado’” (SOUZA; VILLAS BOAS, 2011, p. 281).
Esses resultados vão ao encontro do censo escolar da Educação Superior, divulgado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira - INEP6, em 2016, que aponta a continuidade da predominância feminina nos cursos das ciências humanas, em especial nos cursos de licenciatura. Dos 1.520.494 matriculados nas licenciaturas, 1.081.040 são mulheres e 439.454 homens. Na região sul, local em que nossa pesquisa foi realizada esses dados repetem-se, considerando que dos 247. 472 matriculados nos cursos de licenciatura, 187.119 são mulheres e 60.353 são homens (INEP, 2016). Vários estudos anteriores (BRUSCHINI; AMADO, 1988; CASTRO, 2002; RABELLO; MARTINS, 2007; ROSA, 2011) já assinalavam essa tendência de escolha das mulheres ao magistério, evidenciando suas origens histórico-sociais e culturais.
Além do gênero, as crianças entrevistadas em nossa pesquisa justificaram as escolhas das imagens e dos bonecos-docentes do “Jogo de areia” por conta da aparência dessas imagens ou das pessoas com as quais realizaram as identificações. Características como a roupa, a cor da pele, o tamanho e tipo dos cabelos, a idade, ter ou não deficiência física, parecem ter sido levadas em conta pelas crianças em suas escolhas.
Das seis imagens femininas escolhidas cinco eram jovens, três possuíam cabelo liso e longo e nenhuma possuía algum tipo de deficiência. Mais uma vez os estereótipos relacionados à beleza feminina e a mulher cuidadora parecem ter sido reproduzidos nessas escolhas e, portanto, ancorado suas representações de quem pode ser docente. Aventamos novamente a possibilidade de que as escolhas realizadas evidenciam suas representações do ser mulher reduzidas a sua aparência física ou material. Suposição sustentada em estudos recentes (BAUMAN, 2007; 2009; NUNES, 2009; BALISCEI; SILVA; CALSA, 2018),de acordo com os quais, na contemporaneidade os indivíduos estão cada vez mais expostos a valores e comportamentos que reduzem suas identidades àquilo que consomem e aparentam. Neste sentido, aparência e bens são privilegiados pelas crianças e parecem responder ao discurso interpelativo que nos convocam para assumir “nossos lugares como sujeitos sociais” (HALL, 2000, p. 112) bem como (re) produtores de estereótipos e preconceitos com o diferente.
Como consequência disso, os cabelos, seu tamanho e qualidade, parecem ter influenciado as escolhas das crianças sobre quem pode ser docente, principalmente por parte das meninas de nossa pesquisa. Das doze escolhas feitas (duas imagens por criança) dez foram mulheres e, entre essas, nove apresentaram cabelos lisos e longos, apenas uma possuía cabelos curtos.Dessas nove escolhas oito foram feitas por meninas e nenhuma pelo menino que optou por dois homens de cabelos curtos. A menina L explicou sua escolha por achar a moça bonita e com cabelos lisos: “por causa ela tem cabelo liso e ela é muito bonita”. Salientamos que L frisou em vários momentos de sua fala a importância do cabelo liso como condição para ser docente: “Tem que se liso que nem o seu” (diz duas vezes passando a mão nos cabelos da pesquisadora).
As opções por figuras magras, brancas, com cabelo liso por parte das crianças reforçaram também as conclusões das pesquisas de Cechin (2014) sobre a influência dos filmes infantis sobre a subjetividade infantil. De acordo com a autora, esses filmes retratam personagens femininas que reproduzem esses padrões de beleza e condutas feminis, ou seja, são “brancas, ocidentais, heterossexuais, ostentando os ideais da nobreza e da burguesia”(CECHIN, 2014, p. 173) que parecem ter se manifestado também nas escolhas das meninas e meninos de nossa pesquisa.
Este é o caso do menino V que justifica sua escolha da imagem que poderia ser professora, descartando a que não poderia ser por estar em uma cadeira de rodas. Essas considerações em conjunto com as anteriores levam-nos novamente a supor que as escolhas das crianças-participantes de nossa pesquisa expressaram representações de quem pode ser docente uma vez que sugerem elementos estáveis de suas características e condições para sê-lo.
Estereótipos de condutas e rotinas escolares também parecem ter servido como critérios de seleção das imagens de quem poderia ser professor/a. A menina Y, por exemplo, selecionou uma imagem feminina que foi retratada sentada em uma cadeira e justificou sua escolha dizendo que aquela moça era professora porque estava sentada em uma cadeira comum como suas professoras na sala de aula: “porque ela tá numa cadeira que nem a nossa professoras”.
Estar sentada foi também conduta apontada como uma das marcas do ser professora assinalada por outras meninas, ora na caixa de areia. A menina Y distingue a professora de seus alunos pela cadeira em que está sentada (Figura 13), bem como a menina I na figura seguinte (Figura 14) e a menina E (Figura 15):
A menina E manifestou a mesma justificativa de Y para o uso da cadeira da professora em sua brincadeira (Figura 15).
A cadeira como marca da docência mencionada por essas crianças (Y, I e E) remete aos estereótipos do ser professora como centro da sala de aula e de sua dinâmica. A posição da professora representada pela cadeira é acentuada por uma posição de hierarquia, superior a seus alunos quanto ao conhecimento e seu poder controlador e disciplinador.
Apesar das mudanças propostas nas relações docente-estudantes e no processo de ensino-aprendizagem com a difusão de metodologias mais circulares e participativas na sala de aula, em especial na Educação Infantil, as representações objetivadas pelas crianças sugerem uma imagem tradicional da docência.Em busca de uma interpretação às manifestações das crianças encontramos apoio em Charlot (2008, p. 24) para afirmar que as professoras brasileiras parecem continuar adotando práticas baseadas na pedagogia tradicional, embora não assumam tal posição, pois, esta injunção tornou-se uma espécie de “insulto, evocando a poeira das antigas casas e as lixeiras da pedagogia”.
Embora negadas ou omitidas, essas práticas que remetem a práticas pedagógicas centralizadoras e eminentemente disciplinadoras manifestam-senas representações das crianças sobre o que é ser docente e, portanto, de suas expectativas do que esperar da instituição escolar.Rotina, disciplina, vigilância e punição parecem ser os elementos consolidados nas representações objetivadas pelas crianças entrevistadas em nossa pesquisa.
Considerações finais
Ao término do presente artigo podemos concluir que as representações das crianças entrevistadas sobre quem pode ser docente ancoraram-se principalmente em marcas estéticas das figuras femininas selecionadas em detrimento de outros aspectos dessa atividade como a atuação das docentes em sala aula e relacionamento com alunos/as, entre outros. Além disso, verificamos que o contexto rural, distintamente de pesquisas anteriores (ROMERO, 2012), não pareceu influenciar as representações expressas pelas crianças.Esse resultado pode ser explicadoem parte pelo intenso processo de trocas culturais entre grupos urbanos e rurais, bem como do processo de midiatização de padrões sociais e culturais predominantes que avançam sobre culturas minoritárias como é o caso da rural.
Entretanto, o mais surpreendente para nós foi constatar que as crianças representaram as docentes associando-as a determinados padrões de beleza e comportamentos considerados estereótipos do gênero feminino. Tanto as meninas como os meninos indicaram como pessoas que podem lecionar não somente mulheres em detrimento de homens, como indicaram mulheres com características muito específicas como ser brancas, jovens e ter cabelos compridos e lisos.
A ancoragem de suas representações nesses estereótipossugerea identificação das crianças com esses padrões do ser feminino e, portanto, a formação de suas identidades a partir dessa normatividade. Inferimos também que essas representações sinalizamos efeitos da interação exclusiva das crianças com o gênero feminino na instituição escolar em que homens tem ainda uma presença insignificante, em particular, na Educação Infantil. O mesmo ocorre com as características apontadas como correspondentes às mulheres docentes e destacam as consequências da quase inexistência de mulheres de etnias, gêneros, sexualidades e tipos físicos diversos e inclusivos. Essa negação do diferente podem ter contribuído para a constituição do abjeto, ou seja, perfis de indivíduos entendidos como inadequados para serem docentes como os homens e mulheres com cabelos coloridos, mulheres com tatuagens ou mulheres com deficiências físicas.
Queremos dizer com isso que o sistema educacional não tem favorecido a interação das crianças com um corpo docente diverso que inclua diferenças e permita-lhes identificar-se e conviver com o outro diferente de si e da normatividade social. Apresentar às crianças o contato com corpos e belezas diversas pode constituir-se um caminho para a relativização de estereótipos estéticos e comportamentais como contraponto às suas experiências cotidianas de normatização.
Tais achados facilitam a hipótese de que o convívio com a diferença preconizado pelas políticas nacionais de inclusão escolar precisa envolver não apenas os estudantes, mas também os docentes considerados diferentes do socialmente esperado. Isso porque, se considerarmos que a formação das identidades passa necessariamente pela identificação das crianças com os adultos que lhe são significativos, a diversidade e a inclusão de docentes oferecem o enriquecimento deste processo. O contato com o diferente pode ser entendido como um meio para que o medo do estranho possa, aos poucos, ser dissipado, abrindo portas para a necessidade de conhecê-lo e apreendê-lo melhor.Podemos acrescentar também que a apresentação de indivíduos e corpos diferentes às crianças também pode se configurar uma alternativa da escola para a redução de casos de bullying, uma vez que se apoia na não aceitação e negação do outro, do estranho e diferente.
Diante dos resultados de nossa pesquisa somados às notícias sobre o crescentesofrimento dos indivíduos por conta da não aceitação de si, concluímos que a presença da diversidade (de corpos, de etnias, de gostos, de gênero, de estilos de vida) tanto de estudantes como de docentes se faz necessário e urgente para que a instituição escolar corresponda ás demandas sociais de tolerância, diálogo e democracia. Tal empreendimento pode, de fato, contribuir para que estudantes e docentes sintam-se valorizado/as pelo que são, capazes e genuínosfrente a sua diferença.