INTRODUÇÃO
O artigo apresenta resultados de uma pesquisa desenvolvida com o propósito de examinar como são constituídos, em mídias sociais do Facebook, os estudantes bem-sucedidos no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Instituído em 1998, pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), o Enem tem por objetivo avaliar o desempenho dos estudantes que concluem o Ensino Médio em quatro áreas: Linguagens, Códigos e suas Tecnologias; Matemática e suas Tecnologias; Ciências Humanas e suas Tecnologias e Ciências da Natureza e suas Tecnologias.
Atualmente, o Enem vincula-se a um conjunto amplo de ações, capturando diferentes parcelas da população, principalmente os jovens. Uma das principais funções do Exame é servir como forma de vestibular para grande parte das universidades federais, estaduais e faculdades. Seus resultados também têm sido utilizados para o ingresso em cursos técnicos, subsequentes ao Ensino Médio. Além disso, desde 2004, o Enem é exigido para os estudantes que desejam obter uma bolsa para o ProUni. Em 2010, a participação no Enem passou a ser obrigatória também para a solicitação do Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies). Desta forma, percebe-se que o Exame é uma etapa praticamente “obrigatória” para quem deseja ingressar em cursos técnicos ou no Ensino Superior.
Na área da Educação, a produção acadêmica com foco no Enem é ampla e diversificada. Uma revisão desses trabalhos evidenciou que grande parte envolve análises que compreendem o Exame enquanto avaliação (DIAS, 2013; MACHADO, 2012; SARAIVA, 2015) e/ou aspectos específicos das diferentes áreas do currículo escolar (SERRA, 2015; LUFT, 2014; MIRAGEM, 2013; LERINA, 2013). Nossa pesquisa diferencia-se dessas investigações, pois não tivemos o interesse de problematizar aspectos referentes à elaboração das provas do Exame ou discutir a validade dessa avaliação em larga escala.
Nosso propósito foi considerar o Enem como um mecanismo de condução de condutas e, assim, examinar seus efeitos sobre a população, em especial sobre os jovens que se preparam para sua realização. Nessa direção, o estudo aproxima-se de trabalhos realizados com o referencial teórico aqui utilizado - conceitos da matriz foucaultiana - para analisar tecnologias de governo sobre a população, como a Prova Brasil (ANADON, 2012), a Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas - a OBMEP - (PINHEIRO, 2014), as Políticas de Assistência Social que tem a escola como espaço de efetivação (LOCKMANN, 2013) e a constituição da docência no Ensino Médio produzida pela mídia (SILVA, 2011). A seguir, serão apresentados alguns elementos do referencial teórico que embasou a pesquisa realizada.
DO SOLO TEÓRICO
Nesta seção, destacamos reflexões sobre os estudos de Michel Foucault acerca do conceito de governamentalidade, principalmente no que se refere aos seus escritos do final da década de 1970. Nosso intuito é embasar a discussão que considera o Enem uma engrenagem que conduz condutas e contribui para a produção dos modos de ser um estudante (bem-sucedido) na contemporaneidade. Em efeito, na aula de primeiro de fevereiro de 1978, no Collège de France, que deu origem à obra Segurança, Território e População, Foucault (2008) descreve questões acerca do problema do governo no século XVI, discutindo suas diferentes concepções, não limitadas a do Estado. Partindo dessa reflexão, o filósofo tece considerações sobre a temática do governo e, por conseguinte, da condução de condutas, ideias centrais para essa investigação.
A partir do século XVI e em meados do século XVII, de acordo com Foucault (2008), foram escritos muitos tratados nas áreas da Filosofia, Medicina, Religião e Pedagogia que, além de se caracterizarem como conselhos aos príncipes, podem ser pensados como manifestações das “artes de governar”, referindo-se à arte de governar os outros e a si mesmo. Citando textos de François La Mothe Le Vayer, o autor identifica três tipos de governo - o de si mesmo (pertencente à moral), a arte de governar uma família e a arte de bem governar o Estado - e mostra uma continuidade existente entre as diferentes formas de governar. Destaca que, para bem governar um Estado, o soberano deveria, primeiramente, aprender a governar a si mesmo.
Durante a Modernidade, segundo Veiga-Neto e Lopes (2007), todas essas formas de governo se institucionalizaram, focadas nas problemáticas envolvendo o poder do Estado. Para evitar possíveis confusões entre esses diferentes tipos de governo, os autores utilizam a palavra “governamento” para designar um conjunto de ações de conduta sobre si ou sobre os outros e “governo” para referirem-se às instâncias do Estado. Para eles, “o governamento é a manifestação “visível, material, do poder” (VEIGA-NETO E LOPES, 2007, p.953). Baseadas nessas afirmações, neste artigo usaremos também a expressão “governamento” para mencionar os mecanismos de regulação de condutas traduzidos pelos programas de avaliação em larga escala do Ministério da Educação, como o Enem.
Foucault (2008) expressa que a arte de governar os homens está diretamente relacionada a um conjunto complexo de relações formadas pelos indivíduos e seus vínculos, riquezas, territórios, constituindo costumes, hábitos e maneiras de pensar. A família passa a ser “instrumento privilegiado para o governo das populações e não modelo quimérico para o bom governo” (FOUCAULT, 2008, p. 139). Desta forma, emergem as campanhas de combate à mortalidade e a favor da vacinação, entre outras, pois a família passa a ser instrumento para governo de toda uma população.
Ao discutir sobre as práticas de governamento, Foucault define o conceito de governamentalidade em três dimensões, as quais estão articuladas:
1. O conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e reflexões, cálculos e táticas que permite exercer esta forma bastante específica e complexa de poder, que tem por alvo a população, por forma principal de saber a economia política e por instrumentos técnicos essenciais: os dispositivos de segurança. 2. A tendência que em todo o Ocidente conduziu incessantemente, durante muito tempo, à preeminência deste tipo de poder, que se pode chamar de governo, sobre todos os outros - soberania, disciplina etc. - e levou ao desenvolvimento de uma série de aparelhos específicos de governo e de um conjunto de saberes. 3. O resultado do processo através do qual o Estado de justiça da Idade Média, que se tornou nos séculos XV e XVI Estado administrativo, foi pouco a pouco governamentalizado (FOUCAULT, 2008, p. 143-144).
Olena Fimyar (2009, p.38) enfatizou a relação direta entre as práticas - que seriam o exercício de governamento - e as “[...] mentalidades que sustentam tais práticas”. Assim, a governamentalidade seria o “[...] esforço de criar sujeitos governáveis através de várias técnicas desenvolvidas de controle, normalização e moldagem das condutas das pessoas” (FIMYAR, 2009, p. 38). A autora destaca, ainda, que o termo “condução de condutas”, na governamentalidade, não é visto apenas a partir do aspecto político, mas sob uma perspectiva mais ampla. “A governamentalidade enfatiza a interdependência entre as práticas governamentais e as mentalidades de governamento que racionalizam e com frequência perpetuam práticas existentes de conduta da conduta” (FIMYAR, 2009, p.41).
Para fundamentar o conceito de condução de condutas, recorremos a Foucault quando afirma que a conduta se relaciona com a atividade de conduzir, mas “[...] também a maneira como uma pessoa se conduz, a maneira como se deixa conduzir, a maneira como, afinal de contas, ela se comporta sob o efeito de uma conduta que seria ato de conduta ou de condução” (2008, p. 255). Sendo assim, a condução de que tratamos no presente estudo não é somente a atividade de conduzir o outro, mas sim todo o ato de conduzir a si mesmo e as estratégias de subjetivação que fazem parte do processo.
Estudos da área da Educação, como os de Marín-Díaz (2012), Loureiro e Lopes (2015), Lockmann (2013) e Santaiana (2015), analisaram diferentes práticas de governamento postas em ação sobre alguns setores da população. Marín-Díaz (2012) investigou processos de regulação das condutas dos sujeitos, enfatizando a literatura da autoajuda. A autora construiu um exame sobre exercícios e técnicas presentes nos discursos de autoajuda, sendo esta uma forte estratégia de condução de condutas de si e dos outros, muito difundida na atualidade. Como material de pesquisa, foram escrutinadas obras de autoajuda, pois esses livros “[...] permitem perceber o funcionamento de práticas dirigidas para o autogoverno, isto é, para a condução da própria conduta” (MARIN-DIAZ, 2012, p.20).
Inspiradas também nos conceitos foucaultianos de governamento e governamentalidade, Loureiro e Lopes (2015) problematizam o discurso sobre o uso das Tecnologias Digitais nas escolas. Conforme as autoras, tais discursos, mobilizados pela mídia, pelas políticas públicas e pelo campo da Educação criam “[...] as condições de possibilidade para a condução eletrônica das condutas e operam na constituição de sujeitos, cujo comportamento deve afinar-se com as condições de vida próprias da contemporaneidade” (LOUREIRO E LOPES, 2015, p.359). Essa necessidade de os comportamentos dos sujeitos estarem afinados às condições da vida contemporânea é representada pela ideia de que todas as pessoas devem estar digitalmente incluídas, pois somente assim elas estariam participando de forma integral da sociedade. Nesse sentido, é preciso assegurar que todos tenham acesso ao mundo digital, sendo as intervenções na maquinaria escolar - por intermédio de inúmeras políticas públicas - possibilidades de garantia para esse acesso.
Para o exercício da governamentalidade, de acordo com Loureiro e Lopes (2015), é necessária a existência de tecnologias de governamento (ações dos outros) e práticas de subjetivação (nas quais cada indivíduo é responsável pela sua conduta, ou seja, pelo autogoverno). Justamente à escola, como uma das poucas instituições em que circula obrigatoriamente grande parte da população, foi concedida a tarefa de ensinar às crianças a se disciplinarem por si mesmas. Apoiadas em Foucault, as autoras ressaltam que estes investimentos direcionados à escola buscam organizar as multidões confusas, perigosas, para que estas entendem as regras sociais de condutas as quais estão submetidas.
Entendemos que não somente a escola propriamente dita, mas os mecanismos criados para avaliá-la, controlá-la e gerenciá-la também operam como práticas do exercício da governamentalidade. Estudos como o de Lockmann (2013) e Santaiana (2015) preocuparam-se em discutir acerca dessas práticas, seja por intermédio dos programas de Assistência Social direcionados à escola, como é o caso de Lockmann, seja por meio das políticas de Educação Integral que também possibilitam que as áreas da saúde e da assistência social ganhem espaço de controle na escola, como enfatizou Santaiana.
Na esteira desses estudos, compreendemos que o Enem foi adquirindo importância à medida que os estudantes - e, consequentemente, as escolas - foram sendo capturados por programas de ingresso no Ensino Superior condicionados aos seus resultados. Assim, podemos entender o Enem como um mecanismo de captura de estudantes e instituições escolares, que produz efeitos no currículo das escolas, na formação de professores, nos cursinhos preparatórios e, até mesmo, nas formas pelas quais as próprias condutas dos candidatos são moldadas para que obtenham um bom resultado nessa avaliação.
São as ideias brevemente apresentadas nessa seção que sustentaram a análise das postagens do Facebook endereçadas aos candidatos inscritos no Enem. A seguir, destacamos os materiais examinados e a estratégia analítica posta em ação para operar sobre eles.
METODOLOGIA
O Facebook, rede social de compartilhamento de informações, foi pano de fundo para a obtenção dos materiais empíricos examinados. O conjunto desses materiais somou mais de 100 postagens coletadas entre outubro de 2015 a julho de 2018. O motivo para a escolha de uma rede social justifica-se pela dimensão que ela alcançou nos últimos anos. De acordo com Amante (2014), a compressão da vida social exige que consideremos as novas conexões e relações estabelecidas em âmbito virtual. Para a autora, redes como o Facebook “alteraram profundamente nos últimos anos a forma como milhões de pessoas se comunicam e compartilham informação entre si” (2014, p.28).
Ao considerarmos que a maior parte dos indivíduos que se candidatam ao Enem são jovens que vivenciam essa sociedade em rede e estabelecem inclusive novas formas de aprender, parece-nos que as enunciações difundidas sobre o Exame nessas redes tendem a ter uma força de captura maior que até mesmo as matérias de outros canais, como jornais ou portais de notícia. Afinal, “atualmente, as redes sociais são parte integrante da vida dos nossos estudantes e entre estas se destaca o Facebook que é uma das redes sociais mais utilizadas em todo o mundo como espaço de partilha, de interação e de discussão de ideias”. (MOREIRA E JUNUARIO, 2014, p.74).
As páginas escolhidas para a composição da empiria da pesquisa foram:
a) Ministério da Educação (MEC): Página administrada pela Assessoria de Comunicação Social do Ministério da Educação e que tem por objetivo difundir informações, campanhas, projetos e experiências que envolvem o Ministério da Educação. Atualmente, possui mais de três milhões de seguidores e pode ser acessada pelo link: https://www.facebook.com/ministeriodaeducacao/ (Acesso em: 27/02/2019).
b) Guia do Estudante: Página destinada a publicações relacionadas aos temas abordados na Revista Guia do Estudante. De acordo com a página, ela é destinada a divulgação de notícias e dicas de estudos para os estudantes de todo o Brasil. Atualmente, conta com mais de três milhões de seguidores e pode ser acessada pelo link: https://www.facebook.com/GuiaDoEstudante/ (Acesso em: 27/02/2019).
c) Descomplica: Página destinada a divulgar os serviços oferecidos pelo site educacional Descomplica, que disponibiliza videoaulas para os candidatos ao Enem e Vestibulares, além de oferecer a correção de redações, monitorias e divulgar dicas e orientações de estudo. A página no Facebook tem mais de dois milhões de seguidores e pode ser acessada pelo link: https://www.facebook.com/descomplica.vestibulares/ (Acesso em: 27/02/2019).
Estas páginas foram selecionadas a partir dos seguintes critérios: a página do MEC foi escolhida por estar vinculada a uma instituição governamental, pública e que oferece conteúdos totalmente gratuitos, incluindo plataformas digitais de aprendizagem; a página do Guia do Estudante é privada, mas oferece conteúdo online em sua maioria gratuito; e a página do Descomplica também é privada e a maioria dos seus serviços é pago e exige contratação. Ao examinarmos as diferentes postagens presentes nessas páginas, evidenciamos uma série de táticas que esforçam-se para capturar os possíveis candidatos ao Exame e às vagas que são oportunizadas para o ingresso no Ensino Superior. Percebe-se algumas técnicas para atrair a atenção dos estudantes, principalmente os jovens formandos do Ensino Médio, tais como: humor, disponibilidade de recursos tecnológicos, oportunidades de organização de planos personalizados de estudos etc.
A estratégia utilizada para operar sobre as postagens de Facebook foi a análise do discurso com inspiração nas obras de Michel Foucault. Como temos aprendido com o filósofo, todo discurso está relacionado com as relações de poder e saber que nele se estabelecem. “Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder.” (FOUCAULT, 1996, p.10). Estas relações de poder, portanto, são fundamentais para entendermos as práticas que dão vida aos discursos.
Para Foucault, de acordo com Fischer (2001), nada existe de forma oculta, escondida, em nosso meio, mas que existem enunciados e relações que são postos em funcionamento pelo discurso. Para a autora, “analisar o discurso seria dar conta exatamente disso: de relações históricas, de práticas muito concretas, que estão vivas nos discursos.” (FISCHER, 2001, p.199). Seguindo essa discussão, podemos considerar que os discursos se cruzam e se fortalecem em outros discursos. Assim, atualmente, o discurso pedagógico, reforçado pelo discurso da mídia e pelo discurso político se entrelaçam e fortalecem a concepção de que as avaliações externas, realizadas em larga escala, como o Enem, funcionam como um diagnóstico para guiar os caminhos da educação brasileira, principalmente quando são focadas nas escolas públicas de Educação Básica.
Após a obtenção e organização dos materiais, nos dedicamos a outro processo importante que Bujes (2001) denominou como “escrutínio”, um exame minucioso das possibilidades que o material de pesquisa permitia. Tentamos enxergar nas postagens certas formas de permanência que toda materialidade documental apresenta, como Foucault (2002) expõe em A arqueologia do saber. Para o autor, com o decorrer dos tempos, começamos a não mais nos preocupar em memorizar os monumentos e descrevê-los em documentos, mas, pelo contrário, iniciamos um processo de enxergar os documentos como monumentos e, assim, encontramos uma série de elementos a serem confrontados, relacionados e organizados, em diferentes formas de conjunto. Sendo assim, “onde se tentava reconhecer em profundidade o que tinham sido” se desdobra “uma massa de elementos que devem ser isolados, agrupados, tornados pertinentes, inter-relacionados, organizados em conjuntos.” (FOUCAULT, 2002, p.8).
Na próxima seção, serão evidenciadas as costuras analíticas produzidas a partir do material empírico reunido e a fundamentação teórica elegida para subsidiar essas discussões.
Os estudantes bem-sucedidos no Enem
O exame das postagens do Facebook selecionadas mostrou que processos de objetivação e de subjetivação se fazem presentes nesse material, atuando sobre a constituição de modos de ser um estudante bem-sucedido no Enem. Foucault (1995) afirma que um dos pontos principais de sua obra foi a tentativa de entender o funcionamento de como, em nossa cultura, os seres humanos tornam-se sujeitos, ou seja, quais os processos de objetivação e de subjetivação que levam os indivíduos a enxergarem a si mesmos como sujeitos pertencentes a um grupo cultural ou a possuírem características de determinados grupos.
Para o filósofo, as formas, os modos ou os processos de objetivação se atrelam às práticas que fazem do homem um objeto. Os estudos, nesse sentido, seriam aqueles que mostram como o sujeito se transformou em um indivíduo moderno, ou seja, em um “objeto dócil e útil” (FONSECA, 2003, p.25), facilmente governável. Em sua obra, Foucault foi conduzido a discutir o sujeito não como uma instância de fundação, mas sim como efeito de uma constituição (CASTRO, 2016). Nesse sentido, o filósofo desenvolveu discussões que permeiam o que chamou de processos - ou modos - de subjetivação, ou seja, “práticas de constituição do sujeito” (CASTRO, 2016, p.408). O autor destaca ainda que, nessa perspectiva, o trabalho do filósofo pode ser considerado como uma história dos modos de subjetivação e objetivação pelas quais os seres humanos se tornam sujeitos em nossa cultura.
Ressaltamos que os processos de subjetivação e objetivação não são independentes e se reforçam com o mesmo objetivo, conforme destaca Fonseca (2003). Esses processos, juntamente com as estratégias, práticas e mecanismos que os compõem, aproximam-se uns aos outros com o mesmo fim de atuar na constituição do sujeito. Assim, entendemos que a constituição do sujeito é mobilizada a partir dos processos de objetivação, que transformam os seres humanos em sujeitos, e a partir das técnicas que permitem ao ser humano se constituir como sujeito da própria existência (os processos de subjetivação).
Nas empirias selecionadas, percebemos algumas evidências que elucidam a operacionalização dos processos de objetivação produzidos por enunciações que incentivam a participação de todos no Enem e também a relevância do preparo e do estudo para a obtenção de um bom desempenho na avaliação, como mostram os excertos abaixo:
A Figura 1 representa a dúvida entre aproveitar o feriado ou “colocar a matéria em dia”, inferindo que a busca por bons resultados e por um bom desempenho no Exame exige que os candidatos façam alguns sacrifícios e deixem de “aproveitar” determinados momentos de lazer e entretenimento - como é o caso do feriado. A Figura 2 mostra claramente o investimento na formação de um adolescente que não gosta de balada, pois “balada é coisa de adulto. Adolescente gosta mesmo é de estudar para o Enem”. Já na Figura 3, salientada abaixo, está presente uma das enunciações mais fortificantes da captura dos estudantes pelo Exame e da objetivação de um sujeito que valoriza e reconhece a importância da avaliação:
A postagem do Descomplica menciona que “O Enem já está mais certo que o Natal e que é a prova mais importante da sua vida!”. Muitas das postagens manifestam incentivos e expressam a importância de os candidatos se dedicarem ao Exame, evocando determinado modelo de estudante ideal para a obtenção de um bom desempenho. Para as páginas de Facebook que foram solos empíricos deste estudo, está claro que a tão esperada “nota 1000” pode ser alcançada por aquele que se prepara para o futuro fazendo sacrifícios, que entende que o Enem é a prova mais importante da sua vida e que se dedica e estuda muito para isso. Essas ideias estão presentes na figura abaixo:
O Ministério da Educação, em uma postagem realizada em janeiro de 2016, destaca que “o Enem garante aos brasileiros a oportunidade de chegarem à educação superior” e apresenta um retrato de um personagem fictício, João, que realizando o Enem, vai ingressar em um curso superior por meio do ProUni, Sisu ou Fies. A mensagem da postagem conclui ainda: “O João é um cara estudioso. Seja como João, prepare-se para o Enem 2016”.
Nas figuras 3 e 4, apontamos a relação que Foucault mostrou em suas obras entre os processos de subjetivação e objetivação. Na Figura 3, temos a enunciação de que o Enem é a prova mais importante da vida dos jovens - principalmente daqueles que concluem o Ensino Médio - e, de outro, temos um modelo “a seguir” de um candidato que se preparou para o Enem 2016, que vai ingressar em um curso superior e que é, portanto, um “cara” estudioso. Aqui é apresentado um modo de ser estudante, em que “ser estudioso” é uma condição compulsória para o ingresso no Ensino Superior e, até mesmo, para o sucesso pessoal e profissional.
As enunciações relacionadas ao Exame Nacional do Ensino Médio apresentadas até aqui se configuram também como modos de fabricação de sujeitos, no caso, modos de ser um estudante bem-sucedido. Determinadas práticas regulam o comportamento e as formas de subjetividade dos jovens que se preparam para esse Exame, vivenciando o que Larrosa (1994) chamou de experiência de si. Para o autor, essa experiência “não é senão o resultado de um complexo processo histórico de fabricação no qual se entrecruzam os discursos que definem a verdade do sujeito (...)” (LARROSA, 1994, p.44).
Em outro grupo de recorrências que construímos aparece regularmente uma estratégia que integra os processos de subjetivação: a de apresentação de modelos e depoimentos de pessoas que conseguiram alcançar seus objetivos e tiveram a oportunidade de qualificação “prometida” pelo Exame. Essas manifestações aparecem principalmente em uma campanha criada pelo MEC e difundida nas redes sociais demarcada pela #aeducacaotransforma, que reúne histórias e depoimentos de pessoas que, por meio de políticas como o ProUni, por exemplo, puderam ingressar no Ensino Superior. Nas figuras abaixo, seguem alguns desses depoimentos mostrando pessoas que compartilharam nas redes sociais suas histórias de sucesso, vinculando-o ao esforço e à dedicação aos estudos - mesmo que em situações adversas - e, principalmente, agradecendo ao MEC a oportunidade de, por intermédio do Enem, ingressar no Ensino Superior:
Na Figura 5, um jovem conta que é grato ao programa, pois, até os 26 anos, só havia concluído a 7ª série. “Fui perseverante, corri atrás e terminei o ensino médio por meio da EJA. Prestei Enem e através do PROUNI estou no 2º ano de Educação Física”. Já a outra estudante, conforme expresso na Figura 6, diz: “Na minha adolescência, parei os estudos por problemas familiares, mas corri atrás, (...). Este ano, depois de fazer o Enem duas vezes, consegui a bolsa de estudos integral e estou tão feliz, pois vou conseguir chegar ao meu sonho”.
Nas Figuras 7 e 8, destacadas abaixo, também mostramos o quanto estas pessoas manifestam em seus depoimentos a experiência vivenciada na esteira do que explica Larrosa, reforçando a ideia de que o esforço, a dedicação e a persistência em “correr atrás” permitem aos sujeitos alcançarem seus objetivos, ou seja, bons resultados no Exame para ingressar no Ensino Superior:
Na Figura 7, uma estudante escreve ao MEC: “Obrigada pela oportunidade que me deram”. A página responde: “Ficamos felizes com o esforço e dedicação de cada um aos estudos. Parabéns! A educação transforma vidas. Se você tem uma experiência, conte para a gente”. A Figura 8 expressa a mesma ideia, por meio de outro depoimento: “Consultando a internet, fiz o Enem e consegui a bolsa do ProUni. Estou no 4º semestre de fisioterapia, tenho 51 anos e vou chegar lá”. Os dois excertos reforçam, além da questão do esforço e da dedicação das estudantes - que mesmo depois de algum tempo sem frequentar um espaço de educação formal, retomaram os estudos - o sentimento de gratidão e de “sonho” podendo se tornar realidade. Na Figura 8, a estudante explica que a filha também está cursando faculdade, que estudou com os livros dela e com apoio da Internet, provavelmente, em plataformas de estudo, projetos como o Hora do Enem (criado pelo MEC) ou site e páginas com dicas e conteúdos para os candidatos.
Em grande parte das imagens selecionadas para a composição do material empírico desta pesquisa, foi possível perceber a tendência que as páginas de Facebook aqui examinadas têm de fornecer dicas e apresentar técnicas de controle e autorregulação, visando a um melhor aproveitamento dos momentos de estudo. A maioria das postagens refere-se à possibilidade de o candidato estudar sozinho, somente com o material disponível na Internet, como é o caso do projeto Hora do Enem. Assim, independe se os estudantes têm recursos financeiros ou não para acesso à internet, o projeto pretende, ao apresentar um caráter mais acessível, atingir a todos que finalizam a Educação Básica e desejam ingressar no Ensino Superior.
Nesse sentido, os estudantes que finalizam o Ensino Médio ou que desejam, mesmo depois de alguns anos, ingressar no Ensino Superior, acabam por submeterem-se a um jogo de competição em que cada investimento na preparação para o Exame é fundamental. Eles entendem que somente por meio do esforço e da dedicação é viável alcançar seus objetivos. Podemos dizer que as páginas examinadas indicam que é possível se preparar sozinho para o Enem, gerenciando e organizando seu tempo e suas atividades, sem depender da escola ou de cursos preparatórios. Assim, as páginas do Facebook examinadas criam um ambiente e instalam a ideia de que o estudante, ao se autorregular, pode tornar-se bem-sucedido na avaliação.
Essa ideia nos remete às discussões de Costa (2009) sobre a governamentalidade neoliberal e o empreendedorismo. Discutindo sobre as formas pelas quais determinados valores migram da economia para outras esferas do mundo social, como a educação, o autor destaca que esses valores ganham um forte poder normativo, instituindo políticas de subjetivação que transformam “sujeitos de direitos em indivíduos-microempresas - empreendedores” (COSTA, 2009, p.172). Apoiando-se na discussão foucaultiana sobre a governamentalidade neoliberal e sobre o Capital Humano, Costa expressa que o sujeito produzido nesta atmosfera encontra-se cada vez mais investido por mecanismos de governo que transformam o processo educativo em uma competição e fragmenta os indivíduos “em mônadas, cada uma ficando responsável apenas por si mesma” (2009, p.182). Na esteira dessas reflexões, podemos dizer que o Enem materializa essa competição, por meio das lentes do material empírico observado, fazendo com que cada sujeito que dele participa se torne responsável, unicamente, pelo seu sucesso ou fracasso.
Estudos como os de Saraiva (2016) apontam nessa direção. Utilizando-se também das discussões de Foucault e Costa sobre a governamentalidade neoliberal e o empreendedorismo de si, a autora analisa subjetividades produzidas pelo Club Penguin, um ambiente online voltado ao público infantil, que foi lançado em 2005 e teve seu funcionamento encerrado em 2017, com grande abrangência entre as crianças. A autora, em sua pesquisa, toma como hipótese que este artefato “é orientado para a produção de indivíduos ‘empresários de si’, capazes de fazer escolhas de consumo e prover os meios para provê-las” (SARAIVA, 2016, p.223). Aqui é importante atentar que o termo empreendedor não se restringe ao âmbito econômico ou empresarial, uma vez que se vincula a um tipo de atividade, uma racionalidade, um modo de ser que os indivíduos passam a desenvolver.
Assim, ao examinar as subjetividades engendradas pelo Club Penguin, Saraiva (2016) evidencia a produção de modos de ser que os participantes do jogo adquirem e desenvolvem: estabelecem metas e têm iniciativa, persistência, comprometimento com seu rendimento e capacidade de prover seus próprios recursos. “Ninguém, a não ser o próprio usuário, pode produzir esses recursos. Ele é o único responsável pela satisfação de seus desejos” (SARAIVA, 2016, p.238). E, prossegue a autora: “os jogadores devem comportar-se como empresários de si, gestores de sua vida-pinguim, em conformidade com a governamentalidade neoliberal, racionalidade dominante na atualidade” (SARAIVA, 2016, p.238).
Seguindo essas reflexões, diríamos que os participantes do Enem, subjugados pelos processos de objetivação e subjetivação produzidos pelas postagens do Facebook selecionadas nessa pesquisa, aprendem que o Exame é relevante para sua vida como “porta de entrada” para o Ensino Superior e que por meio de sua iniciativa e autocontrole poderão alcançar bons resultados na avaliação. Dessa forma, os candidatos tornam-se empreendedores de seu próprio desempenho nas provas, constituindo modos específicos de ser um bom estudante, o qual precisa, basicamente, de muito estudo e dedicação. Assim, os indivíduos constituem as subjetividades desejáveis não apenas para participarem com êxito da competição presente no Enem, mas para manter e fortalecer a racionalidade neoliberal que impera em nossa sociedade.
CONCLUSÃO
Nos últimos anos, muitos estudos no campo da Educação vêm sendo desenvolvidos a partir da abordagem foucaultiana. Em um artigo que discute as possibilidades e reflexões acerca dessa abordagem, Gallo e Veiga-Neto (2007, p.03) afirmam que o objetivo de Foucault foi o de “trazer problematizações sobre o que se considerava verdadeiro em determinado campo do saber e em determinado momento histórico”. No caso desta pesquisa, a problematização está justamente na tentativa de olhar, de forma diferenciada, para uma avaliação em larga escala que não se comporta apenas como um instrumento para obtenção de um diagnóstico do Ensino Médio brasileiro, mas sim como um Exame que gera efeitos nas escolas, nos cursos de preparação para vestibulares - que passam a ampliar seu foco de atuação -, nas editoras de materiais didáticos, na formação dos professores da Educação Básica e, principalmente, nos modos pelos quais os candidatos são conduzidos por meio de mecanismos que os fazem “ser” e “comportarem-se” de determinadas formas em detrimento de outras.
Na obra de Foucault é possível perceber um viés da desacomodação e da transgressão, não com a finalidade de apenas contestar ou contrariar, “mas para instigar e desconstruir determinadas maneiras tradicionais de pensar” (GALLO E VEIGA-NETO, 2007, p.3). Nesse sentido, tomando como pano de fundo a intenção foucaultiana de enxergar determinadas “verdades” que circulam no campo da Educação e nas enunciações difundidas pela mídia, buscamos, ao longo desta pesquisa, outras possibilidades de olhar para o Exame Nacional do Ensino Médio e sua relação com os sujeitos que com ele se envolvem.
Nesse sentido, identificamos que os modos de ser um candidato que se prepara para o Exame não são produzidos somente no ambiente escolar, mas em diversos ambientes virtuais, tais como páginas de Facebook. O universo da internet e das redes sociais destinadas à aprendizagem personalizada tornam-se outro núcleo de compartilhamento de experiências e, consequentemente, de modos de ser sujeito. No caso, um aluno empresário de si, dedicado, estudioso, que alcança seus objetivos a partir de seu esforço. Desta forma, esta pesquisa nos mostra que, muito mais do que servir como uma forma de ingresso no Ensino Superior, o Enem captura os sujeitos que a ele se vinculam, produzindo modos de ser um estudante bem-sucedido, modos estes alinhados à racionalidade neoliberal