Introdução
O presente trabalho tem como objetivo analisar a docência com bebês e crianças bem pequenas, enfatizando as especificidades da ação pedagógica na educação infantil com esse grupo etário. Esta escrita é resultante de um processo analítico que integrou pesquisa e extensão na realização de um curso de formação continuada para professoras de educação infantil. Este trabalho apresenta uma reflexão sobre as ações e interações das crianças no espaço-tempo pedagógico, partindo da compreensão de que esta docência precisa ser compreendida a partir de seu caráter relacional/interativo.
Tendo em vista contribuir para a compreensão da docência na educação infantil, especialmente no que diz respeito à creche, realizamos a opção metodológica pela produção e análise de memoriais de formação. A análise de narrativas, ou relatos de memórias, é valioso instrumento de investigação para a compreensão do processo de construção da identidade profissional docente e os processos de formação docente (LOPES, 2001; NÓVOA, 1992; SOUZA, 2003). A análise de relatos autobiográficos como recurso de pesquisa, permite conhecer trajetórias formativas e práticas pedagógicas. Desse modo, o memorial, como um procedimento metodológico, “possibilita ao professor registrar o resultado de sua própria narrativa [...] o professor relata sua própria história, possibilitando ao leitor o conhecimento de uma prática pedagógica situada em um tempo e um espaço específicos” (SOUSA, 2003, p.20).
Acerca disso Martins Filho e Martins (2016) assinalam que as professoras de bebês são aquelas cujas vozes têm sido menos escutadas, pelo fato da sociedade lhes reconhecer menos poder. Portanto, “é legítimo afirmar a necessidade de que as peculiaridades e singularidades da docência em creches sejam conhecidas com base nas narrativas discursivas das professoras para que essas possam se ver como sujeitos constituidores de suas próprias práticas” (MARTINS FILHO; MARTINS, 2016, p. 23). Nesse sentido, “para compreender a educação e os processos educacionais na sua complexidade é preciso conhecer também as histórias daqueles que a fazem no cotidiano” (KRAMER, 2005, p. 26).
As professoras participantes do curso de formação continuada, realizado com profissionais de um Centro Municipal de Educação Infantil da rede municipal de educação de Francisco Beltrão/PR, foram convidadas a registrar sua trajetória formativa, suas experiências profissionais, sua ação pedagógica, suas observações sobre as crianças, apostando no potencial formativo e autoformativo da escrita do memorial. Partimos do entendimento que a prática do registro permite rever o cotidiano educativo e o trabalho desenvolvido junto ao grupo de crianças (OSTETTO, 2009a). O ato de registrar necessita estar permeado pelo exercício de “desabituar-se”, para melhor perceber as crianças e as relações. Ostetto (2009a, p. 23) assinala que: “É com o registro dos fatos, dos atos, dos acontecimentos do dia-a-dia que aprendemos a ver o grupo em geral e cada criança em particular, compreendendo, assim, que lá estão meninos e meninas em busca de tempo para viverem a infância”.
Como propõe Coutinho (2014) é preciso que as práticas pedagógicas assumam efetivamente a criança como ator social competente, como sujeito de direitos e a infância como construção social, realizando a necessária aproximação às “crianças reais”. No entanto, como salienta Ostetto (2009b, p.129), “olhar a criança real e concreta à sua frente, muitas vezes [...] é difícil para o professor tantas vezes acostumado a ver as imagens idealizadas e universais das crianças que aparecem nos manuais de psicologia e pedagogia”. Diante disso, emerge um aspecto essencial para a formação de professores: aprender a olhar para a própria prática, ampliar o foco da visão. Afinal, uma reconceitualização da criança e da instituição de educação infantil está associada à uma reconceitualização dos profissionais para a primeira infância de modo que seja parte inerente do trabalho pedagógico a análise crítica constante da prática (MOSS, 2002). Nesse sentido:
Temos que pensar de modo diferente, construindo o trabalhador para a primeira infância como um profissional que reflete sobre sua prática, um pesquisador, um co-construtor do conhecimento, tanto do conhecimento das crianças como dele próprio, sustentando as relações e a cultura da criança, criando ambientes e situações desafiadoras, questionando constantemente suas próprias imagens de criança e seu entendimento de aprendizagem infantil e outras atividades, apoiando a aprendizagem de cada criança mas também aprendendo com ela (MOSS, 2002, p.246).
É nessa perspectiva que esta escrita coloca em discussão as especificidades da presença dos bebês e crianças bem pequenas nas instituições de educação infantil propondo refletir sobre como se efetuam as ações e as interações que as crianças estabelecem entre si e com os adultos nestes espaços. Para tanto, apresentamos como material de análise os registros de observação que compõe o memorial de formação produzido por uma das professoras participantes do projeto (que será neste texto identificada como professora A), atuante em uma turma de crianças de 1 a 2 anos de idade, maternal I. As narrativas sobre o cotidiano pedagógico com as crianças possibilitam realizar uma análise acerca dos elementos constitutivos da docência.
Entendemos que é necessário visibilizar o cotidiano do trabalho pedagógico com bebês e crianças pequenas, possibilitando a reflexão sobre os limites e possibilidades das instituições de educação infantil como espaços de vivência. Nesse sentido, consideramos a instituição de educação infantil “como campo de produção de conhecimentos sobre a infância” e não simplesmente como campo de aplicações (PRADO, 2002, p.99).
A docência na creche e as relações entre adultos e crianças
Os saberes e práticas profissionais das professoras de creche constituem importante campo de investigação tendo em vista que se trata de uma categoria profissional ainda em constituição. A docência e a prática pedagógica nesse contexto são campos ainda distantes de se encontrar consolidados. As mudanças legais das últimas décadas sinalizam a transição de uma concepção assistencialista de atendimento à criança pequena para uma que acentua a indissociabilidade entre cuidado e educação, constituindo assim um novo campo profissional, o de professor de educação infantil (OLIVEIRA et al, 2006).
A docência na educação infantil possui condições específicas, envolve saberes e práticas particularizadas para esse nível escolar e trajetórias formativas diferentes da dos professores das outras etapas da educação que configuram uma profissionalidade especifica do trabalho docente com crianças pequenas (OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2002). Nesse sentido, apresenta-se um “novo grupo profissional”, que sugere a constituição de novos significados (AMBROSETTI e ALMEIDA, 2007). A profissão docente na educação Infantil, portanto, se constitui nas relações com os saberes comuns à docência e também na demarcação das especificidades da educação da criança pequena.
Compreendemos docência como a atividade humana interativa, em que a relação como o outro é o próprio objeto de trabalho docente (TARDIF e LESSARD, 2005; SCHMITT, 2014). A docência envolve as relações estabelecidas entre os professores e as crianças (ou jovens, ou adultos, a depender a etapa educacional), está ainda atrelada a regras que constituem a profissionalidade docente, bem como a ação de outros atores sociais da instituição e da sociedade, dentre os quais podemos citar gestores, os outros profissionais das instituições educativas e famílias.
No que concerne à educação infantil,
É relativamente recente a denominação “docência” para categorizar a profissão daquelas que se ocupam da educação e cuidado de crianças pequenas em instituições de educação coletiva no Brasil, ainda mais, a utilização do adjetivo “docente” para definir as ações das profissionais que que atuam, especificamente, com a faixa etária de 0 a 3 anos” (SCHMITT, 2014, p. 33).
A implantação e definição legal da educação infantil como primeira etapa da educação básica a partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB/1996 - repercutiu no “surgimento” da professora de educação infantil (BUSS-SIMÃO e ROCHA, 2018). Desse modo, a constituição dessa docência na educação infantil é parte do processo de constituição e profissionalização deste campo que apresenta o desafio de afirmar sua especificidade.
Esse processo é marcado por dois movimentos. O primeiro afirma o caráter docente e pedagógico da ação educativa das instituições de educação infantil, a LDB/1996, especialmente, contribui para caracterizar o trabalho dos profissionais de educação infantil aproximando-o ao dos demais docentes da educação básica. Esse processo realiza o reconhecimento político da função de professor de educação infantil, afirmando os aspectos que há em comum entre a ação das profissionais que atuam com esta etapa e os demais professores do Sistema Educacional (SCHMITT, 2014).
O segundo movimento procura identificar as especificidades da Educação Infantil considerando as singularidades de bebês e crianças pequenas e a função social conferida historicamente à educação infantil diferenciando a docência exercida nesta etapa das demais, mudando do foco do ensino para o da indissociabilidade entre cuidado e educação (SCHMITT, 2014).
Nessa perspectiva, para compreender a docência na educação infantil e refletirmos sobre as especificidades do trabalho do professor de crianças pequenas é importante analisarmos a formação profissional para a área que também possui um histórico diferente da dos profissionais das outras etapas educativas. A formação dessas profissionais historicamente se constituiu com características peculiares, sendo que a ausência de formação profissional marcou a história da educação infantil no Brasil (CERISARA, 1996; CAMPOS, 2002).
A preocupação com a formação de professores para atuar na educação infantil e as especificidades da educação das crianças pequenas foi acentuada com a promulgação da LDB/96, estabelecendo-se um consenso sobre a importância da formação dos profissionais para a qualidade da educação (ALBUQUERQUE; ROCHA; BUSS-SIMÃO, 2018).
Acerca disso, em sua narrativa no memorial de formação, professora A faz a seguinte constatação sobre sua formação profissional:
A graduação [pedagogia] e a pós-graduação possibilitou-me a refletir sobre diversas questões que envolvem o contexto educacional, contudo, ainda acredito que faltou elementos mais específicos no que se refere ao meu nível de atuação, mas que ainda pretendo continuar estudando (Memorial professora A).
Existe como podemos perceber, nestes apontamentos a reflexão sobre as limitações da formação inicial, no que se refere à preparação para atuar com crianças pequenas. No que concerne ao curso de Pedagogia, Kishimoto (2002) assinala que um mesmo plano curricular visa formar profissionais de vários níveis de atuação - educação infantil, anos iniciais, gestão, dentre outras especificidades do curso. Com isso, o curso forma profissionais com conhecimentos superficiais e genéricos sobre as diferentes áreas de atuação. A autora ainda acentua que “o curso dilui-se na fragmentação disciplinar e perde solidez. Há de tudo um pouco. É preciso considerar o saber educativo como área de saber específico, não genérico” (KISHIMOTO, 2002, p. 110). Em um curso voltado para uma formação genérica o conteúdo específico para a educação infantil acaba sendo insuficiente e os conteúdos específicos da área acabam sendo trabalhados de maneira esparsa em disciplinas ou componentes curriculares de disciplinas, o que não dá conta de oferecer uma base sólida de formação para aqueles que irão atuar na educação infantil.
Especialmente no que concerne à docência com bebês e crianças bem pequenas e a atuação em creches essa carência na base formativa é ainda mais evidenciada. Predomina nos cursos de Pedagogia, lócus de formação de profissionais da educação infantil, a centralidade do processo de escolarização e da ideia de criança-aluno na formação para a docência, de tal modo que a creche e os bebês permanecem na invisibilidade (ALBUQUERQUE; ROCHA; BUSS-SIMÃO, 2018).
Mello (2012, p. 30) acentua que “ser professora de bebês é uma nova profissão na área da pedagogia”, pois o caráter educacional dos processos de cuidado e educação coletivos de crianças pequenas foi apenas recentemente reconhecido. O subgrupo etário bebês tem sido o menos visibilizado quando nos referimos à infância, embora atualmente existam pesquisas que colocam esses sujeitos como foco. Os bebês são os que menores possibilidades de deixar marcas de sua presença possuem, os menos ouvidos pelos adultos, aqueles que são menos percebidos em seus contextos de pertença (GOTTLIEB, 2009; COUTINHO, 2010). Plaisance (2004) destaca que o movimento de valorização da criança, efetuado nas últimas décadas, tem operado a promoção da criança pequena como sujeito, em que o bebê passa a ser considerado como “pessoa”.
Os bebês e as crianças bem pequenas e a sua educação colocam-se como foco de interesse, a partir da definição da infância como sujeito social de direitos, que emerge balizada por instrumentos legais, sinalizando uma mudança na sociedade em que, nos atuais processos de institucionalização da infância, a educação deixa de ser apenas um direito da mãe trabalhadora, para constituir-se em direito subjetivo da criança. Essa mudança de foco tem colocado em questão, nos últimos anos, sua educação em instituições educativas. Nesse panorama, pesquisadores têm se empenhado na realização de estudos interdisciplinares, com o fim de apreender a infância, a partir de múltiplas perspectivas, contribuindo para retirá-la de sua histórica obscuridade (SARMENTO, 2007b).
Nesse movimento investigativo que coloca as crianças e suas práticas sociais como objeto, bebês e crianças pequenas passam a ter maior relevância nas pesquisas, a partir de múltiplos olhares, contribuindo para configurar um campo de investigação específico sobre o trabalho pedagógico com crianças pequenas que consolida uma pedagogia da educação infantil (ROCHA,1999; STRENZEL, 2000). Esta centra sua atenção na criança, especialmente na educação das crianças pequenas, seus processos de constituição como seres humanos em diferentes contextos sociais, suas culturas, suas capacidades intelectuais, criativas, estéticas, expressivas e emocionais e os processos de cuidado e educação desenvolvidos nas instituições de educação infantil (ROCHA, 1999; BARBOSA, 2006).
Nesse sentido, os debates atuais sobre a educação infantil consensualmente assinalam que a educação infantil deve pautar-se pelo binômio cuidar-educar. Azevedo assinala que a integração entre cuidado e educação deveria fundamentar a educação infantil e a formação de seus professores, “concebendo essas duas dimensões como tendo igual importância no desenvolvimento das atividades cotidianas do professor” (AZEVEDO, 2013, p. 82).
Ações e interações no cotidiano de uma instituição de Educação Infantil
Vem sendo questionado o entendimento em relação aos bebês de que “não há muito o que se fazer com eles”. Percepção essa relacionada a uma visão da criança pequena como “pacote biológico” tão somente, pois “passam a maior parte do tempo mais envolvidos em processos corporais do que em atividades intelectuais” (GOTTLIEB, 2009, p. 323). Como destaca Coutinho (2011) tem sido recorrente a tendência de restringir as competências dos bebês apenas às dimensões biológicas. Essa ênfase em ações voltadas para o atendimento das necessidades básicas das crianças aponta para uma perspectiva adultocêntrica, onde “não há lugar para o reconhecimento dos bebês e das crianças pequenas como seres linguageiros, ativos e interativos”, como acentuam Richter e Barbosa (2010, p. 89). Nessa perspectiva, os bebês são um “não-sujeito” que ocupam um “espaço negativo” na sociedade, esse olhar tem colocado empecilhos para que estes sujeitos pequenos sejam percebidos como sujeitos legítimos, produtores ativos de cultura (GOTTLIEB, 2009).
Tristão (2005, p. 42) afirma que “é um desafio pensar em alteridade quando este outro é um bebê”, efetivamente é “mais fácil pensar que as crianças são atores sociais, potentes, criativos, quando falamos de crianças maiores”. Contudo é fundamental refletirmos que
Os bebês sabem muitas coisas que nós culturalmente não conseguimos ainda ver e compreender e, portanto, reconhecer como um saber. As suas formas de interpretar, significar e comunicar emergem do corpo e acontecem através dos gestos, dos olhares, dos sorrisos, dos choros, enquanto movimentos expressivos e comunicativos anteriores à linguagem verbal e que constituem, simultâneos à criação do campo da confiança, os primeiros canais de interação com o mundo e os outros, permanecendo em nós - em nosso corpo - e no modo como estabelecemos nossas relações sociais (RICHTER; BARBOSA, 2010, p. 87).
Ainda é um desafio entender os modos dos bebês relacionarem-se com o mundo, entender como seu corpo é “estruturado (pelas) e estruturador (das) ações” (COUTINHO, 2011 p. 113). Nesse sentido, trazemos para esta reflexão alguns registros sobre os bebês, que sinalizam a necessidade de que aqueles que trabalham com crianças pequenas precisam aguçar o olhar para perceber seus modos de ação e interação no espaço pedagógico e as múltiplas possibilidades de diálogos, interações, experiências com bebês e crianças bem pequenas.
A perspectiva que caracteriza a ação docente por seu caráter interativo e relacional coloca ênfase na necessidade de análise da ação ocorrida em contextos reais (SCHMITT, 2014). Assim, “só se poderia conhecer de fato o que ocorre na docência pela observação do contexto real, ou seja, a ação dos atores de base, os profissionais da instituição educativa” (LESSARD apud SCHMITT, 2014, p 57).
A narrativa a seguir nos provoca a ter essa sensibilidade de perceber as formas de comunicação e interação de bebês e crianças bem pequenas:
Sexta-feira, vinte e cinco de agosto, no final do dia estávamos sentados na sala manuseando livros de tecido, Heitor vai até a professora que está grávida e diz “nenê”, e começa tentar abrir os botões de seu jaleco, a professora pergunta “você quer fazer carinho no nenê da professora Heitor?” E a professora abre o jaleco, Heitor acaricia a barriga da professora e outros colegas juntam-se, Heitor beija a barriga da professora e começa tentar fechar o jaleco, vai se afastando e despedindo-se dizendo “tchau nenê” (Memorial da professora A).
Essa e as narrativas que seguem denotam alguns elementos interessantes que podem ser percebidos no trabalho pedagógico com bebês e crianças bem pequenas. Eles são sujeitos aprendentes, observam, percebem o mundo, estabelecem relações, exploram o mundo a sua volta, constroem estratégias de resolução de problemas; são sujeitos interativos que dialogam, trocam experiências, estabelecem vínculos e relações de afetividade. O registro a seguir mostra uma situação interessante de interações entre duas crianças expressando a troca de conhecimentos entre elas:
Nos dias entre oito de junho a dezenove de junho realizamos atividades pedagógicas com as crianças a partir do tema “Dia e noite” na turma do maternal I. No planejamento organizamos atividades cujos recursos os alunos pudessem participar ativamente das experiências relacionadas a temática proposta, entre as atividades destacaram-se: contação de histórias, com o uso de palitoches, bem como dramatização da estória por meio da utilização de máscaras dos personagens pelas crianças. Também foram expostos cartazes - nessa faixa-etária as atividades devem ser curtas e bastante lúdicas para despertar a curiosidade e a imaginação das crianças. Num momento de brincadeira mediado pelas professoras chamou-nos atenção as atitudes e as falas de algumas crianças. Alice (um ano e oito meses) observava que o sol acaba de aparecer no céu, caminha até Manuela (um ano e dois meses), que apenas engatinha, abaixa-se para ficar na mesma altura que a colega, assim como fazem as professoras, e aponta para fora, tentando balbuciar, a professora atenta ao fato, pergunta: você quer contar a Manuela que o sol apareceu Alice? É o sol? Alice balança a cabeça positivamente e também aponta para o cartaz ilustrativo sobre dia e noite que havia na parede, em que aparecia a imagem do sol, a professora elogia dizendo muito bem Alice, parabéns! (Memorial da professora A).
As duas narrativas que destacamos assinalam um elemento importante nas interações entre adultos e crianças no espaço-tempo pedagógico: o acolhimento. A professora percebe através de sua escuta atenta e acolhe as crianças ampliando as possiblidades de relação e interação.
Os bebês, com poucas palavras e especialmente através de seus corpos e suas ações conseguem reproduzir através do brincar elementos de sua vida diária, demonstrando que estão inseridos no mundo da cultura, mas não apenas reproduzem o que lhes foi ensinado, como também acrescentam elementos próprios, singulares, como por exemplo utilizar um copo como suporte para deixar uma boneca na posição vertical como expõe o registro a seguir:
Em outro momento de brincadeira livre, realizado no dia dez de junho, Maitê junta alguns objetos e brinquedos e os leva para baixo da mesa para poder brincar, primeiramente com a boneca sobre o colo diz “água” e tenta colocar o copo em sua boca, como se estivesse tentando saciar a sede de seu bebê, posteriormente observa que se utilizar um copo grande consegue que a boneca fique de pé sem a sua ajuda. Então, com copinhos e colheres brinca de alimentar seu bebê dizendo “papa”. Aos poucos Gabriel aproxima-se de Maitê para participar da brincadeira (Memorial da professora A).
Assim, concordamos com Martins Filho (2005) quando se refere à criança produtora de cultura.
A criança não só aprende e consome a cultura do seu tempo, como também produz cultura, seja a cultura infantil de sua classe, seja reconstruindo a cultura a qual tem acesso. O fato da criança não falar ou não escrever ou não saber fazer as coisas que os adultos fazem transformam-na em produtora de uma cultura infantil, justamente através dessas especificidades. A ausência, a incoerência e a precariedade características da infância, em vez de serem falta, incompletude, são exatamente a infância (MARTINS FILHO, 2005, p.16).
Nessa perspectiva, as crianças são agentes ativos que constroem suas próprias culturas e contribuem para a produção do mundo adulto (SARMENTO, 2005, 2007a; DELGADO; MÜLLER, 2005; CORSARO, 2011). As crianças estão ativamente produzindo aspectos inovadores com sua participação na sociedade, assim como contribuindo para a preservação social. Elas recebem “através das múltiplas instâncias de socialização as culturas socialmente construídas e disseminadas, que interpretam de acordo com os seus códigos interpretativos próprios” (CORSARO, apud SARMENTO, 2007a, p. 23). Desse modo, a participação das crianças no âmbito social configura-se através do processo de “reprodução interpretativa” em que as crianças colocam-se como sujeitos ativos na produção cultural. Corsaro (2011) explica que a expressão reprodução significa que as crianças estão ativamente contribuindo para produção e a mudança cultural, não apenas internalizando a sociedade e a cultura; e, a expressão interpretativa expressa o caráter inovador e criativo da participação das crianças na sociedade.
Conforme Sarmento (2007a) as culturas da infância são as ações sociais das crianças, são as ações dotadas de sentido, os processos de representação e os artefatos produzidos pelas crianças. Ou ainda, como propõe Martins Filho (2005) são maneiras específicas de ser das crianças. Elas criam atividades baseadas no ato de brincar, na imaginação e na interpretação da realidade de uma forma própria dos grupos infantis. Desse modo, as culturas infantis são produzidas na interação com adultos e crianças, a partir das culturas em que estão inseridas, ou seja, possuem uma dimensão relacional.
As crianças aprendem e ensinam sobre a vida em sociedade, manifestam interesse pelas ações daqueles que estão a sua volta como podemos observar no registro seguinte:
No mês de agosto, no dia vinte e cinco, durante o almoço, Pedro Henrique percebe que Davi está comendo sem utilizar a colher, apenas leva o alimento até a boca utilizando as mãos, e Pedro chama a atenção de Davi dizendo “ Davi, Davi usa a colher Davi”, Davi continua a comer com a mão e Pedro mostra a colher pra Davi que está ao seu lado e ignora a sugestão do amigo, Pedro Henrique em uma última tentativa pega o alimento de seu prato e leva até a boca de Davi, que recusa, a professora interfere dizendo “escuta o amiguinho Davi é para usar a colher” e Davi começa a pegar a colher (Memorial da professora A).
A criança através das suas cem linguagens, conforme provoca Malaguzzi (1999), atua no mundo a sua volta. Desse modo, as crianças em qualquer idade, com suas especificidades, são produtoras de cultura, uma cultura própria, que também é única e fruto das relações sociais e das mediações a que tem acesso, por isso, enquanto ambiente educativo, na educação infantil temos como prioridade considerar essa produção infantil, e não conceber o conhecimento como algo pronto e acabado, mas que muitos saberes são construídos nas relações culturais.
A última narrativa destacada sinaliza outra dimensão ainda pouco explorada das interações entre as crianças que diz respeito às relações afetivas, aos vínculos que os pequenos estabelecem entre si, os modos como cuidam uns dos outros e sinalizam através do contato corporal, dos gestos, enfim de maneiras plurais.
No início do mês de agosto (dia 03), organizamos a sala para a hora do descanso soninho, já estávamos todos deitados quando Heitor levanta-se vai até o colchão de Manu (a criança mais nova da turma, ainda não caminha) e senta ao seu lado, começa a dar pequenos toques, fazendo nananana Manu, passando a mão em seu cabelo. Manu sente-se incomodada e resmunga, a professora chama “Heitor volta para o seu colchonete, já está na hora de você dormir” Heitor, insiste dizendo “Manu duni” e a professora fala “deixa que a professora faz a Manu dormir e você também”, então a professora coloca o colchonete de Heitor ao lado de Manu, para que eles possam dormir próximos e fica entre eles acalentando até que adormeçam (Memorial da professora A).
Novamente no registro apresentado fica explícito a disponibilidade da professora ao acolher as necessidades das crianças, colocando Heitor e Manu próximos um do outro, incentivando Heitor a demonstrar afetividade, a dispor-se a cuidar da colega. A professora reflete sobre esse relato, acentuando que:
Nesse episódio percebemos como as crianças demonstram afetividade de várias formas. Manu é a bebê mais nova da turma, também há um cuidado e proteção especial com ela, pelo fato de não caminhar e ainda ser mais dependente que os outros. As professoras repetem várias vezes ao dia que as crianças não devem brigar com Manu, devem cuidar para não pisar nela. Então percebemos que esse sentimento de proteção acabou passando para as crianças, a maioria deles a pega pela mão, beija, abraça, quer dar água, e mesmo fazer dormir como é o caso do Heitor (Memorial da professora A).
Diante disso, é central refletirmos sobre o modo pelo qual as singularidades de bebês e crianças bem pequenas marcam a ação docente. As atividades voltadas para as necessidades fisiológicas das crianças são muitas vezes aquelas que aparecem mais. Como expressa Tristão (2006, p. 40), o trabalho com bebês “não aparece”, os bebês “não produzem”, a partir de uma tendência predominante de que “deve haver a produção para estar caracterizado um processo educativo”. A autora ainda acentua que os cuidados corporais, para além de medidas de assistência, são cuidados com a saúde da criança, afinal “lidamos com crianças inteiras” e a educação infantil não pode ser “responsável apenas por um fragmento dessa criança” (TRISTÃO, 2006, p. 46).
A ação docente se constitui na relação com as crianças, portanto, os modos de interação constituem a docência e marcam o espaço-tempo da creche, ela “funda-se no encontro com o outro, ou com outros, o que torna a relação condição para a sua existência, em qualquer etapa da educação, da educação infantil à pós-graduação” (SCHMITT, 2014, p.53-54). Nesse caso, é pertinente refletir sobre as marcas, as singularidades dessa relação quando se trata da docência com bebês e crianças bem pequenas, considerando que tais singularidades interferem na forma como as professoras organizam sua ação (SCHMITT, 2014).
A professora tem um olhar atento que a faz perceber as sutilezas que compõem o tempo-espaço da relação pedagógica com os bebês. Sua narrativa salienta a riqueza interativa no cotidiano com as crianças e o modo como buscam compreender e se apropriar do mundo a sua volta.
A docência tem “como função principal uma ação (educativa-pedagógica formal) sobre e com outro humano” (SCHMITT, 2014, p 54). Ao tratrarmos da educação infantil, particularmente quando se trata de bebês e crianças bem pequenas é pertinente o questionamento de Ostetto (2000, p. 191) sobre o que se convencionou chamar na educação infantil de “hora da atividade”: “Será que o planejamento na educação infantil compreende somente a chamada “hora da atividade”, momento pedagógico por excelência?”. Essa compreensão deixa os bebês de fora. Nesse sentido, a autora problematiza que: “Se assim fosse, pobres bebês, não poderiam desfrutar dessa hora! Afinal, o que se pode fazer com eles, em meio a tanto choro, fraldas, banhos, mamadeiras, colos, sonos?” (OSTETTO, 2000, p. 191). Portanto, o “pedagógico” na prática educativa com bebês e crianças bem pequenas “envolve o que se passa nas trocas afetivas, em todos os momentos do cotidiano com as crianças” (OSTETTO, 2000, p. 191). As narrativas da professora sinalizam as ações e interações entre as crianças e com os adultos, muitas vezes invisíveis para alguns, e o potencial formativo, numa perspectiva de formação humana, que estas apresentam.
As crianças pouco produzem numa perspectiva de atividade pedagógica entendida como um conjunto de folhas a preencher, mas interagem ativa e criativamente entre si, com os adultos e o contexto a sua volta, elas se expressam através de múltiplas linguagens. Ainda está muito presente uma compreensão de que com bebês “é só cuidar”, contudo, consideramos que é preciso refletir sobre o significado desta afirmativa. Ela invisibiliza muitas das singularidades das ações e interações dos bebês e crianças bem pequenas no espaço da creche. O memorial da professora A explicita que tanto no horário do sono e da alimentação não é só o comer e o dormir que acontecem, mas relações e interações que propiciam às crianças ampliar seu conhecimento e às professoras o conhecimento sobre elas.
O cuidado não se limita ao auxílio das necessidades básicas das crianças como: tocar, sono, sede, fome e higiene.
[...] O cuidado está pautado na necessidade do outro. Isso significa que quem cuida não pode estar voltado para si mesmo, mas deve estar receptivo, aberto, atento e sensível para perceber aquilo de que o outro precisa. Para cuidar, é necessário um conhecimento daquele que necessita de cuidados, o que exige proximidade, tempo, entrega. (KRAMER, 2005, p. 82).
E a dimensão educativa implica numa ação consistente, que tem como princípio conhecer os interesses e necessidades de cada criança possibilitando a ampliação de seus conhecimentos e experiências. Sendo assim, não há como educar sem cuidar, assim cuidado e educação estão profundamente articulados (KRAMER, 2005). São duas dimensões indissociáveis do trabalho pedagógico na educação infantil. Como pontua Coutinho (2011, p.232), “os bebês são atores sociais competentes, tendo em vista que o corpo é para eles não só meio de comunicação, mas, sobretudo, uma forma de ser e estar no mundo, de colocar-se em relação com o outro e produzir cultura”. Nessa perspectiva o contato é o condutor de práticas de cuidado e educação com bebês e crianças bem pequenas (NÖRNBERG, 2016).
Considerações finais
Estudos que possibilitem visibilizar as relações estabelecidas com as crianças e entre elas mostram-se promissores para a ampliação da compreensão das singularidades da docência na educação infantil. Entendemos que é relevante refletir, analisar e socializar reflexões sobre a docência e experiências do trabalho pedagógico com bebês e crianças bem pequenas que contemplem seus modos de ação e interação na instituição de educação infantil. Esse processo possibilita aproximarmo-nos da prática docente, conhecer as profissionais que trabalham, suas práticas, bem como, contribuir com o pensar acerca das especificidades da atividade docente com crianças pequenas.
Por fim, os cursos de Pedagogia, lócus de formação de professores de educação infantil precisam contemplar em seus currículos as especificidades da prática pedagógica com crianças pequenas, possibilitando a compreensão dessa docência. É preciso tirar a creche e os bebês da invisibilidade nos currículos de pedagogia tendo em vista a importância da formação dos profissionais para a qualidade da educação infantil.