INTRODUÇÃO
No período de 1860-1918 o Estado italiano tentava criar estratégias, mesmo que forçadas, para a formação de uma identidade nacional. Entre a unificação da Itália e a Primeira Guerra Mundial, os esforços do Estado e das elites italianas para romper as divisões linguísticas, regionais e culturais que impediam os diferentes povos da Itália de se sentirem realmente italianos foram intensos. Este desenvolvimento teve reflexos nas colônias italianas espalhadas pelo mundo:
É quase consenso entre os historiadores da imigração italiana que a identidade local (aldeia/província) e o regionalismo ou identidade regional (regiões) que caracterizavam os imigrantes italianos em fins do século XIX e início do século XX, estavam sendo gradativamente substituídos, nas primeiras décadas do século XX, por uma identidade italiana, o que, em boa medida, deve ser atribuído justamente à força do nacionalismo que emanava da Itália e atingia as coletividades italianas no exterior (BERTONHA, 2005, p. 60).
As primeiras famílias de imigrantes italianos chegaram ao Paraná no ano de 1871. Somente em 1875, já com a um número representativo de famílias na região, foi fundada no litoral do Paraná a colônia Alexandra, que não progrediu por muito tempo. Foi então no ano de 1878 que tais famílias italianas decidiram se transferir para o planalto, após os primeiros contatos que passaram a ter com os tropeiros, que passavam pelo Paraná vindo do Rio Grande do Sul para chegar até São Paulo. “Foi nesse período que as famílias que tinham algumas economias formaram colônias espontâneas, caso de Santa Felicidade, Campo Magro, Bateias e outras” (MARANHÃO, 2014, p. 35).
Com o passar dos anos as famílias passaram a se organizar em lotes de terras na colônia Santa Felicidade. “A pequena produção de hortaliças, verduras e frutas e as manifestações étnicas-regionais (vênetas), como a religiosidade cristã-católica e a gastronomia, eram características das colônias” (HUTTER, 1987, p. 36) assim como atividades recreativas, como a bocha, os jogos de baralho e o próprio futebol também eram (e ainda são) presentes no local. É nesse contexto que os italianos começam a explorar espaços, construir campos e organizar times para jogar futebol.
Não era um fenômeno singular, no caso brasileiro, de modo geral, nas primeiras décadas do século XX, as comemorações e festas nacionais italianas, a criação de agremiações, clubes e sociedades justificam e reafirmam tal identidade imigrante. No futebol, por exemplo, em 1914 acontece a fundação da Palestra Itália (atual Palmeiras) como instrumento para a criação de uma identidade imigrante na cidade de São Paulo. “Outros elementos como a língua, a cultura, a música e a literatura italianas foram o ‘cimento’ utilizado para fazer dos italianos uma nação” (BERTONHA, 2005, p. 57).
Ao se estabelecerem em Santa Felicidade, os colonos italianos fizeram daquele local, uma extensão da própria Itália - ao menos, o que acreditavam ser a própria Itália. A construção dos espaços, as relações sociais, sobretudo entre as famílias, ainda eram muito pautadas nas referências ítalo/regionais que trouxeram para o Brasil. Dentro de Santa Felicidade, até a terceira geração dos imigrantes que fundaram a colônia, a língua, falada e ensinada na escola era o italiano:
Meu pai, foi para a escola, e o que ele aprendeu? Italiano. Não aprendeu português, ele aprendeu italiano. E depois aí vieram os professores, no Francisco Zardo1, que era professor que dava aula de português (ADARCISIO FERRO, 2017).
Hoje Santa Felicidade é um dos bairros mais tradicionais de Curitiba. Muito famosa pelos seus restaurantes de comida típica, Santa Felicidade é casa de dois dos clubes de maior tradição do futebol amador da capital paranaense, a Sociedade Operária Beneficente Esportiva (SOBE) Iguaçu e o Trieste Futebol Clube (FC). Dois Clubes que se estruturaram nos primeiros anos do século XX pela intervenção e trabalho das famílias de imigrantes que saíram da região do Vêneto, na Itália.
O presente artigo objetiva entender como o futebol participou(a) da (re)construção da identidade “italiana” dentro da colônia/bairro Santa Felicidade. Buscando, a) conhecer os Clubes e entender a rivalidade existente entre eles; b) avaliar se houve mudanças nas dinâmicas sociais na transição colônia/bairro que afetaram o futebol e os clubes; c) compreender se, diante de tais mudanças, a (re)construção de uma suposta “identidade imigrante italiana” foi comprometida.
PROPOSTA TEÓRICO-METODOLÓGICA
A análise das entrevistas coletadas aconteceu por meio dos fundamentos teóricos e metodológicos da História Oral.2 Alguns aspectos motivaram a escolha da metodologia: i) os nossos colaboradores, desde a infância, participam da história dos clubes e da colônia Santa Felicidade; ii) essas pessoas encontram-se com uma idade avançada e é do interesse da comunidade tornar a história da colônia e dos clubes conhecida; iii) a escassez de fontes primárias correlatas ao nosso tema.
No caso de SOBE Iguaçu e Trieste FC, isso se confirma, já que foram duas equipes criadas nas primeiras décadas do século XX na antiga colônia de Santa Felicidade, bem distante do centro de Curitiba, que vinha se desenvolvendo como espaço urbano. Esse distanciamento espacial não permitiu que as equipes se tornassem conhecidas pelo público externo à colônia, tanto que ambas não figuraram nos principais periódicos da capital naquela época. Outro aspecto, é o péssimo cuidado que os documentos oficiais das instituições de clubes receberam ao longo dos anos e hoje se apresentam em péssimo estado.
Para Verena Albertti (2005, p. 24), “a História Oral privilegia a recuperação do vivido conforme concebido por quem viveu”. Assim, não se pode pensar em História Oral, sem ter em conta o amparo nas narrativas memorialísticas; tais narrativas não podem ser consideradas retratos fiéis do passado, já que são elaboradas e trabalhadas no presente, sendo assim constroem mecanismos de ajuda às aspirações no tempo em que se vive e à formação da identidade (THOMSON, 1997; CANDAU, 2011). Portanto:
[...] a memória, é acima de tudo, uma reconstrução continuamente atualizada do passado, mais do que uma reconstituição fiel do mesmo. [...] A ideia segundo a qual as experiências passadas seriam memorizadas, conservadas e recuperadas em toda sua integridade parece “insustentável” (CANDAU, 2011, p. 9).
As entrevistas semiestruturadas seguiram os procedimentos teóricos e metodológicos propostos por Verena Alberti (2005). Assim, uma pesquisa prévia foi realizada para o conhecimento do objeto, assim como para a elaboração dos roteiros. O contato inicial com os entrevistados foi realizado tanto por telefone como pessoalmente. Foi previsto e acordado que as entrevistas durassem entre uma hora e meia e duas horas, o que foi respeitado, já que os colaboradores demonstraram uma boa retórica e conhecimento da história pertinente ao estudo. Outro ponto previamente definido foi à localidade em que as entrevistas seriam realizadas. A entrevista com o representante do Trieste FC3 aconteceu no museu do clube, no estádio Francisco Muraro, após uma vitória da equipe pelo campeonato amador da capital. A entrevista com o representante da SOBE Iguaçu4 aconteceu na sede social do clube, em um ambiente que dava vista para o campo de jogo que estava recebendo o treinamento da equipe principal.
Sabendo-se que a SOBE Iguaçu é de 1919 e o Trieste FC é de 1937, não foi possível investigar a história de ambos a partir das narrativas dos seus precursores. As pessoas entrevistadas são descendentes diretos dos imigrantes que participaram da fundação, e acompanharam o processo posteriormente, herdando a memória:
Acontecimentos vividos pelo grupo ou pela coletividade à qual a pessoa se sente pertencer. São acontecimentos dos quais a pessoa nem sempre participou mais que, no imaginário, tomaram tamanho relevo que, no fim das contas, é quase impossível que ela consiga saber se participou ou não. A esses acontecimentos vividos por tabela, tão forte que podemos falar de uma memória quase que herdada (POLLAK, 1992, p. 2).
Após a realização das entrevistas o discurso passou pelo processo de transcrição seguindo os pressupostos metodológicos propostos por Verena Alberti (2008), que consistem em corrigir vícios de linguagem, erros de concordância ou ortografia, repetições de oralidade, com objetivo de adequar a leitura do texto.
COSA SARA LÓ STA MÈRICA5: DO VÊNETO À COLÔNIA SANTA FELICIDADE
“As demandas globais que influenciaram os processos migratórios, correspondem: fim da escravidão nas colônias europeias na América; difusão das industrias pelo mundo; constituição de Estados independentes na América” (BERTONHA, 2005, p. 85). Mas, de acordo com as reminiscências de um colaborador, no Paraná o processo de imigração passou por alguns desdobramentos:
Então, eles viviam em barracões, todas as famílias morando juntas em barracões e recebiam lá uma mixaria e os caras começaram a economizar e economizar até que um belo dia disseram: “- Vamos sair daqui, vamos voltar pra Itália ou arranjar outro lugar melhor que esse mais parecido com o nosso.” Aí graças aos tropeiros que saiam de Curitiba e iam para Paranaguá buscar açúcar, cachaça, levavam o que não tinha lá e traziam o que não tinha aqui. Então faziam esse intercâmbio, e conseguiram se entender. Aqui em cima, no planalto, tinha geada. Que dava isso e dava aquilo e os italianos começaram a conhecer e sabiam o que era aquela fruta e perceberam que tinha frio lá. Em Paranaguá nunca viram geada, pegaram a sacolinha e saíram a pé de lá e vieram pra cá. (ADARCISIO FERRO, 2017).
A região do Vêneto é formada por diversas províncias, e por essa causa não se pode afirmar, sobretudo no caso da Itália, que existe entre essas famílias uma identidade única entre eles, sobretudo uma identidade nacional. É interessante notar que quando ele trata de “os italianos” ele está falando de todos que participaram, de alguma forma, da construção e ascensão da colônia. Ele não faz nenhuma diferença entre famílias, localidades e discursos. Logo após esse relato, o colaborador conclui:
É por isso que eu me orgulho de ter um pouco de sangue italiano, porque foram machos, foram heróis, chegaram aqui e desbravaram, não tinha nada, dormiam porque fizeram as casas deles de pau a pique coberto com folhas de palmeiras. Com todo mundo junto e começaram a trabalhar, com cinco, seis anos construíram casas, quem faz isso? Isso é força de vontade, é união. (ADARCISIO FERRO, 2017).
Nota-se no discurso traços de uma identidade social e étnica6 ‘italiana’, pautada no localismo, que ainda é viva em Santa Felicidade. Para os habitantes locais, Santa Felicidade é um dos bairros mais tradicionais de Curitiba, por conta da união das famílias que trabalharam no desenvolvimento da colônia: “Santa Felicidade se tornou Santa Felicidade pela união das famílias, eram uma por todas e todas por uma, era muito unido. Por isso que venceram” (ADARCISIO FERRO, 2017). Adiante será possível perceber, por meio do futebol, que tal coesão não era assim tão sólida.
Por volta de 1950-70, as colônias de imigrantes europeus começaram a ser assimiladas pelo crescimento intenso da cidade de Curitiba, transformando-se em bairros. Santa Felicidade passou, então, a ser reconhecida e se destacar pela gastronomia (principalmente, mas não só, pelos restaurantes de comida típica italiana), pelas construções símiles às da Itália e também pela força dos clubes no cenário do futebol amador do Paraná. Foi nesta época que as equipes de Santa Felicidade começaram a ganhar títulos importantes no futebol amador, pois passaram a aceitar em seus quadros jogadores que não eram moradores locais e muito menos descendentes de italianos, “nos anos 1960, o Trieste ganhou em 64 e já tinha dois, três jogadores que não eram de Santa” (ADARCISIO FERRO, 2017). Antes desse período, só jogavam descendentes de italianos: “na época não tinha jogador estranho, de fora de Santa Felicidade, então enchia o estádio porque vinham todas as famílias” (ADARCISIO FERRO, 2017).
Essa abertura para jogadores que estavam fora do bairro foi fator preponderante no processo de ruptura da identidade criada pelas famílias que participaram da fundação das instituições. Essa ruptura teve início por volta dos anos 1960 e é comum nos clubes hoje. Um dos colaboradores sintetizou o processo:
Era muito difícil ter um jogador estranho, porque nem tinham pessoas estranhas, era só italiano. O resto nem tinha pra ninguém. Foi aí que começou a rivalidade para ganhar títulos, para ser o melhor, pra ser reconhecido, começaram a ver que o clube cresceu, tinha condições e começou a entrar dinheiro, um jogo de futebol aqui tinha um monte de cerveja, churrasco, faziam vaquinha, tinha dinheiro, aí começaram a ver que tinha um jogador bom que morava fora e falavam: “- Vamos jogar lá, te damos 50 reais por jogo” o cara pegava a bicicleta e vinha jogar. Era sábado e domingo, aí começou a ver que tinha os caras bons e chamavam porque tinha que ganhar do Trieste, precisamos enxertar uns caras de fora, aí trouxeram os caras de fora e começou... (ROMEU STIVAL, 2017).
A Sociedade Operária Beneficente Esportiva Iguaçu e o Trieste Futebol Clube fazem parte da vida e da construção da identidade do imigrante italiano dentro da colônia Santa Felicidade, na tentativa de instituir, mesmo que de forma estereotipada7, aspectos da vida social italiana, dentro do Brasil.
SOCIEDADE OPERÁRIA BENEFICENTE ESPORTIVA IGUAÇU
Na medida em que Santa Felicidade foi se estabelecendo, as manifestações da suposta etnicidade italiana passaram a fazer parte das relações de convivência nas relações sociais dentro da colônia, na religiosidade, a partir da construção das igrejas, do cemitério e da chegada dos padres; o trabalho na lavoura; posteriormente, o aparecimento dos comércios e oficinas; a música cantada pelos corais vocais; a comida que fazia parte dos momentos de reunião das famílias; e, não seriam diferentes, os jogos e esportes. Já nos primeiros anos, os jogos de baralho e o futebol faziam parte da vida dos colonos. “Naquele tempo, “lá”, na “colônia”, sempre tinha um campinho, naquele tempo tinha um campinho aqui, outro lá.” (ROMEU STIVAL, 2017). A partir deste relato, por sinal, no início da fala, já que o colaborador seguiu uma linha cronológica, já se pode dar início as primeiras interpretações da memória e identidade8. Segundo Stival, existiam espalhados pela “colônia” campos para jogar futebol. Ao dizer “lá” está se referindo a região mais central da Colônia. Até os dias de hoje, os torcedores da SOBE Iguaçu e moradores do Butiatuvinha, se referem a essa região como “colônia”:
Aqui nós somos do Butiatuvinha, também é Santa Felicidade, mas Santa Felicidade é mais vista pelo centro, “lá”. Se tiver um evento bom, eles só levam “lá” para o centro, só que o Butiatuvinha também é Santa Felicidade. (ROMEU STIVAL, 2017)
Foi na região do Butiatuvinha que os membros das famílias Pietrobelli, Budel, Stival, Benato, Gulim, Culpi, Toaldo, Túlio, Braganholo e Casa Grande se reuniam para jogar futebol em um campo onde hoje se encontra a sede do Clube. Liderados por Egídio Ricardo Pietrobelli começaram a se organizar para fundar, no ano de 1919, o Iguaçu Futebol Clube. O próprio terreno do clube foi adquirido devido ao esforço de Pietrobelli:
Ele tem uma história muito bonita. Ele penhorou a casa dele para comprar o terreno do Iguaçu. A casa ele deu como garantia, caso não conseguisse pagar o terreno. Hipotecou a casa dele para comprar o terreno que hoje é o estádio. Ele gostava do futebol e gostava da turma que jogava bola, eles eram amigos, esse era um líder nato. (ROMEU STIVAL, 2017).
Desde o início, o Iguaçu optou por não fazer nenhuma referência direta à Itália na escolha do nome da entidade. Frisa-se direta, pois a escolha das cores do clube, por exemplo, foi pensada a partir da referência da Juventus de Turim. Isto repercute dentro das famílias de Santa Felicidade, principalmente nas famílias do Trieste FC que criticam a opção: “Iguaçu não tem nada de italiano. Iguaçu se deu porque foram jogar perto do Rio Iguaçu e a bola caiu dentro do rio, mergulharam para pegar a bola e depois voltaram a jogar bola e puseram o nome no time” (ADARCISIO FERRO, 2017).
Mesmo sem os laços diretos com a italianidade, o crescimento do clube, por meio da ajuda das famílias locais, aconteceu de forma exponencial, já que no ano de 1937, fora inaugurada a sede social do clube. Durante os anos subsequentes a entidade ficou conhecida pelos bailes que promovia em sua sede.
Para o colaborador, a Sociedade Operária Beneficente Esportiva Iguaçu é parte daquilo que ele é como indivíduo:
Primeiro é Deus, depois a minha família e o Iguaçu é a terceira coisa. Toda noite eu venho no Iguaçu, aqui é a vida da gente. Nós ficamos aí porque estamos enraizados e estamos aí pra não deixar cair, se a gente sair acaba. Nós vivemos isso aqui [silêncio]. Veja só, eu com essa idade não precisava estar aqui. Poderia estar em casa, pescando, mas tem que ficar aí. Sábado tem jogo e se a gente não gostasse não vinha, nós vivemos isso... nós vivemos o futebol até hoje, porque nós passamos por isso aí (ROMEU STIVAL, 2017).
Na narrativa se percebe aspectos que confirmam a existência de uma “identidade-nós"9. Para o momento, vale frisar que a SOBE Iguaçu tem papel fundamental na vida social da Colônia Santa Felicidade há um século, isto é, a partir de sua fundação.
TRIESTE FUTEBOL CLUBE
É difícil falar da história do Trieste Futebol Clube sem passar pelos acontecimentos que contam a história da Sociedade Operária Beneficente Esportiva Iguaçu. “A história é bonita pelo seguinte, eu sempre digo o Trieste foi fundado por causa do Iguaçu” (ADARCISIO FERRO, 2017).
Para a compreensão dos motivos da fundação do Trieste, deve-se olhar para a organização espacial de Santa Felicidade, no ano de 1919, “Butiatuvinha é uma coisa, é Iguaçu. E depois, aqui Monte Bérico, na região mais central, é Trieste. Santa Felicidade era dividida, na época” (ADARCISIO FERRO, 2017). Já se podem notar indícios de uma possível rivalidade por conta dessa divisão espacial - por sinal, já alertada por Romeu Stival. Compreendê-la é fundamental para entender a gênese dos dois clubes, pois existe uma disputa de poder em torno da memória futebolística da colônia.
Adarcisio Ferro relata a existência de apenas um campo oficial entre os anos 1920-30, localizado na região onde habitavam as famílias da SOBE Iguaçu. Mesmo estando localizado fora da região central da colônia era possível a outras pessoas - sempre da própria colônia - jogar ali:
Na verdade tinha bastante gente e a preferência era do Iguaçu. Aí que entra a história. A preferência do Iguaçu eram os caras que moravam ali perto, os mais próximos. Então você, veja, de lá para chegar aqui na Igreja Monte Bérico, (sabe onde é a Igreja? Aqui em cima, onde tinham os Culman, tinha os Esmanhoto, pessoal que ia jogar no Iguaçu era mais longe.) Então eles chegavam lá e sempre a preferência para jogar e treinar era deles. Então tinha lá uns quarenta, cinquenta caras e quem eles chamavam? Os que moravam mais próximos. Os amigos deles, os Culpi, os Budel, aquela raça [risos] raça no bom sentido, eles tinham preferência. (ADARCISIO FERRO, 2017).
Narrativas como essas denotam que essa divisão imaginária do espaço social da Colônia podem ser um dos principais motivos que levaram o Trieste FC a ser fundado e, posteriormente, motivar a rivalidade com a SOBE Iguaçu. Já que, segundo o colaborador, os sujeitos que saíam da região central da colônia não encontraram espaço para jogar o futebol e começaram a se organizar para construir algo que era deles:
Então vamos fundar um time [...]. Aí que os velhos, fundaram um clube. E começaram a conversar entre eles lá e deram a saída. De repente não deu nada, os velhos desistiram. Foi aí que os mais novos, os filhos deles falaram: “- Vamos fazer, vamos fazer”. Aí comandado pelo José Ferro, se reuniram e começaram. (ADARCISIO FERRO, 2017).
A primeira reunião para fundação do Trieste Futebol Clube aconteceu em 1933, liderada por José Ferro. Ela aconteceu sem mesmo ter um campo de jogo: “‘Onde é que vamos jogar?’ Eles começaram a treinar em um campo no terreno da família Túlio, que era o chamado potreiro, pois era onde soltavam os cavalos e as vacas”. (ADARCISIO FERRO, 2017). Foi somente no ano de 1937, pela liderança de José Ferro que resolveram registrá-lo em cartório: “oficializaram o clube e compraram esse terreno onde o Trieste é hoje, compraram da família Muraro” (ADARCISIO FERRO, 2017).
Não se sabe ao certo a origem do nome, mas a contribuição da afinidade musical do italiano foi fundamental para a escolha:
La Campana Di San Giusto, uma música que até o Pavarotti gravou, fala de Trieste, “Le ragazze di Trieste cantan tutte con ardore”. Então o italiano sempre foi ligado em música, né? E cantaram muito essas músicas, e aí tiraram de uma música o nome Trieste, porque é uma cidade, tudo bem, mas é mais por causa da música. (ADARCISIO FERRO, 2017).
Sendo assim, não se pode relacionar a origem do nome do clube à cidade de Trieste - localizada na região Friuli Venezia Giulia, praticamente na fronteira com a Eslovênia - partindo-se da premissa de que os imigrantes que vieram à Santa Felicidade eram oriundos da região do Vêneto. Logo, pode-se ver a importância da música, sobretudo como uma manifestação étnica. O clube foi crescendo e ganhando maior representatividade na colônia, passando a fazer parte da vida social daqueles indivíduos:
Na época nós não tínhamos chuveiro em casa. Eu com 7, 8 anos vinha tomar banho aqui no Trieste. Então a gente tinha muita amizade com o caseiro. Todo mundo se conhecia, eu conhecia, [silêncio/emoção] eles me conheciam. Então eu vinha aqui, enchia a caixa, dois tambores de água. Aqui [apontou para o local] era a casa do caseiro, na entrada do portão, ali era um vestiário do Trieste e ali tinha dois tambores pra tomar banho e eu vinha tomar banho aqui. (ADARCISIO FERRO, 2017)
Quando perguntado sobre suas primeiras lembranças e contatos com o clube, o colaborador narra, que além do futebol, este já contribuía na vida dos habitantes da região de outras formas. Podem-se notar aspectos do cotidiano, como um simples banho, como motivo para a construção de uma memória afetiva com o clube. Afeto que remete ao saudosismo do período da infância e adolescência:
No domingo a gente vinha aqui jogar bola e jogava bola, pegava aquela bola de pelica, de tênis, e vinha aqui jogar. Depois meu tio, montou um time de juvenil na época chamava de juvenil, aí disse “vamos jogar.” Aí arrumou um monte de piazada, até tem a foto aqui [apontando para os quadros na parede]. E eu comecei a treinar com 12 anos, comecei a treinar. E com 14 anos já estava registrado no Trieste para jogar (ADARCISIO FERRO, 2017).
No início, jovens, crianças e adultos usavam do campo para jogar de maneira informal. Foi no decorrer dos anos que a organização dos times que representariam o Trieste FC em competições passou acontecer por meio das categorias. Ainda segundo o colaborador, os jogos de futebol, no início, aconteciam aos finais de semana, geralmente aos sábados e domingos, ou seja, quando as pessoas não estavam na lavoura. Eram aos domingos, após a missa e o almoço em família, que os jogadores vestiam seus uniformes e chuteiras, e as famílias, cheias de orgulho, iam juntas ao campo, torcer:
Aquela época quem jogava no Trieste tinha um orgulho enorme. Porque você queria ser conhecido em Santa. Você tinha que ser jogador de futebol. Então você era mais conhecido. Na época, imagine só, eu tive essa sorte de jogar, era o orgulho da família. Quando o Trieste jogava os parentes, os meus tios todos iam assistir o jogo, minha mãe, meus primos, só ficava o cachorro em casa e às vezes nem o cachorro. (ADARCISIO FERRO, 2017).
As famílias passaram a ter, a partir do futebol e do Trieste FC, algo a mais que as ligava, mais um ponto em comum na construção identitária da colônia. Inclusive, quando foi montada sua sede social: “o Trieste montou a sociedade para ganhar dinheiro. O clube era sustentado pela sociedade, que fazia jantar, bailes e festas de casamento na sede” (ADARCISIO FERRO, 2017).
Assim como a SOBE Iguaçu, o Trieste FC fez, e ainda faz, parte da (re)construção da identidade local italiana dentro de Santa Felicidade, a partir do grande impacto que causou na vida daqueles que estão ligados à fundação. Quando perguntado sobre a importância do Trieste em sua vida, Adarcisio Ferro, respondeu:
O Trieste faz parte da vida do triestino [silêncio/emoção]. Eu fui presidente 10 anos, meu primo não sei quantos anos. O Trieste é uma doença, é um vício. Eu saio de casa e venho no Trieste eu me sinto bem, aqui a gente manda. (No bom sentido). Não tem briga, tomo cerveja, jogo baralho. Tem atleticano, coxa, paranista, tem de tudo aí. Nunca deu briga por causa disso. O Trieste faz parte da minha vida, é a minha segunda casa.
O Trieste FC foi fundado e se desenvolveu pela força e união das famílias que se organizaram desde 1933. Por outro lado, da mesma forma que os indivíduos foram importantes para o desenvolvimento do clube, percebe-se por meio da “fala” a importância da instituição nas suas vidas. “Trata-se de um processo de retroalimentação que serve como elemento constitutivo de uma identidade imigrante italiana” (BERTONHA, 2005 p. 55). Por sinal, mais coesa na colônia do que na própria Itália.
Como mencionado, a história do Trieste FC só pode ser contada a partir referência cruzada que remonta à SOBE Iguaçu. Portanto, entende-se a narrativa histórica dos dois clubes, como uma memória já assentada, porém, com tensões que remetem as identidades familiares e, mais tarde clubística.
NEMICI IN CAMPO: AS FAMÍLIAS E A RIVALIDADE ENTRE OS DOIS CLUBES DA COLÔNIA
A divisão existente no espaço geográfico da colônia Santa Felicidade, já nas primeiras décadas de 1900, fez com que duas equipes (ao menos de destaque) fossem criadas. A SOBE Iguaçu foi a primeira equipe fundada por “italianos” dentro da Colônia. O campo adquirido pelo próprio senhor Pietrobelli, fundador da SOBE Iguaçu onde se encontra atualmente o estádio do clube era distante do local onde habitavam as famílias que fundaram o Trieste FC. “A rivalidade começou porque o pessoal do Iguaçu não deixava o pessoal do Trieste jogar; os que eram aqui da banda de baixo10 não podiam jogar” (ADARCISIO FERRO, 2017). Para conseguir jogar, os habitantes da região mais central da colônia se encaminhavam até o campo e encontravam resistência: supostamente, tinham preferência aqueles que moravam mais nas cercanias do campo. Esses constantes episódios passaram a causar conflitos e tensões entre os membros das famílias, ao menos é esta a versão memorialística:
Foi aí que começou a rivalidade. Porque o José Ferro falou para o fundador do Iguaçu, Egídio Pietrobelli: “- Olha, vocês não deram chance pra jogar lá, agora eu vou fundar um time que nós vamos ganhar de vocês”. Aí ele disse: “- Fundar o quê? Os melhores jogadores estão aqui” [fez uma cara de deboche]. E estava certo, tanto é que o Trieste hoje tem o triplo de títulos do Iguaçu. Tem a Taça Paraná como campeonato regional. (ADARCISIO FERRO, 2017).
As narrativas dos dois colaboradores são contundentes: há uma rivalidade entre as equipes desde as respectivas origens, movida pelas famílias que participaram da fundação dos clubes. Mas qual seria o impacto desta rivalidade na relação entre as famílias assentadas? A princípio, a máxima era a de que o futebol deveria ser entendido como algo à parte:
Jogava Trieste e Iguaçu no domingo. Na segunda-feira acontecia com algumas famílias. A família Benato e a Culpi, iam pra lá fazer lavoura (a lavoura não era feita aqui em Santa Felicidade, a lavoura era feita no município de Tamandaré, Campo Magro, essa região, que dava uns 15, 20, 30 quilômetros). Saiam de carro de manhã, segunda de manhã e voltavam só no sábado. Lá tinha o rancho e eles dormiam lá, só que tinha rancho que era feito em duas, três famílias, conjunto. E aí na segunda se reuniam famílias de Trieste e Iguaçu trabalhando junto, comendo junto, cozinhando junto e não brigavam, respeitavam. Outra, era proibido falar em futebol, por quê? Pra não dar briga. “- Não vai se discutir futebol aqui!” [com sotaque italiano]. (ADARCISIO FERRO, 2017).
A maioria dos imigrantes que chegaram a Santa Felicidade tinha como ocupação o trabalho na lavoura. Estes espaços de terra para o cultivo não eram dentro da colônia, ficavam localizados em instâncias distantes, inviabilizado a volta diária dos “imigrantes” após o labor. Segundo o colaborador, de modo a pacificar o interesse em comum da comunidade, eram respeitados acordos tácitos de convivência, um deles era não tratar do assunto futebol na colônia. Uma “fala” que tende a homogeneizar comportamentos em prol de uma narrativa com pouca tensão. Talvez o interlocutor representante do Triste tenha estabelecido um enredo que fizesse certa coerência com a questão feita pelo entrevistador. Quando perguntado sobre a dificuldade de se relacionar com pessoas das famílias do outro clube, o representante do Iguaçu respondeu:
Na família Benato, que jogava aqui no Trieste, casou com uma de lá. Essa família de lá não queria saber: “- Tem que casar com alguém do Iguaçu, tem tanto moço aqui, por que você vai pegar um lá de baixo?”; “- Ou você vem jogar aqui no Iguaçu ou você não vem namorar aqui...”; e não tinha muito papo. Aí a guria dizia: “- Se meu pai falou assim tem que ser assim”. E se a guria fugisse, seria deserdada e seria um escândalo em Santa Felicidade. Isso era um fanatismo, a rivalidade tava forte ali mesmo, esse Benato preferiu a mulher e saiu do Trieste. (ROMEU STIVAL, 2017).
O caso, provavelmente, se tratava de uma exceção ou até de um exagero para ilustrar o quanto era forte a rivalidade entre os dois clubes. O próprio colaborador é casado com uma integrante da família Pietrobelli, principal fundadora da SOBE Iguaçu. É possível que em determinado momento o pertencimento clubístico afetasse de alguma forma as relações sociais na colônia, mas, ao que tudo indica, com menos intensidade do que no imaginário coletivo.
As contendas, de acordo com os colaboradores, sobretudo, nos dias de clássico, também eram recorrentes entre membros das famílias: “brigas famosas aqui em Santa Felicidade... Foi em um Trieste e Iguaçu que acabou, uns 15 dias depois, as brigas entre três famílias que tinha ali” (ADARCÍSIO FERRO, 2017). Ideia reforçada pelo representante do Iguaçu:
Porque a italianada é assim, a italianada ia tudo na Igreja. A missa era lá (região central da colônia), e o jogo era no domingo e não no sábado. De manhã ia todo mundo na missa e a tarde iam para o campo brigar. Aí sempre tinha as brigas nos jogos e o pessoal daqui chamava o pessoal de lá de bacalhau, o Trieste chamava o Iguaçu de peixe podre. (ROMEU STIVAL, 2017).
Observa-se que as brigas aconteciam entre os imigrantes com certa frequência. Ainda hoje, as famílias do lado da SOBE Iguaçu se referem aos indivíduos do Trieste FC como “bacalhau”, significado atribuído por conta do mau cheiro.
A rivalidade entre a SOBE Iguaçu e o Trieste FC passa muito pela importância e pelo papel da família dentro da colônia. Bertonha (2005, p. 254) reforça a ideia ao afirmar que “nada intensifica mais os italianos do que a importância que atribuem à família”. Assim como na construção do espaço público, na ascensão da colônia, na fundação dos clubes e na (re)construção da identidade italiana local, dentro de Santa Felicidade, a família tem papel fundamental no contexto social analisado. Para Fábio Bertonha, “não obstante, a família ainda é vista, na cultura italiana, como o centro da vida social e da própria identidade do indivíduo” (BERTONHA, 2005, p. 255).
Antes de 1960, só jogavam nos clubes da colônia, “italianos”. Após este período, motivadas pela busca de títulos e vitórias, as instituições começaram a permitir que jogadores de fora da colônia pudessem participar das esquadras. Tal mudança não refletiu somente na dificuldade que os “italianos” passaram a ter dentro do campo, mas também, na ruptura com a forte identidade “imigrante italiana” que foi construída em torno dos clubes, a partir do futebol.
Sabendo disto, nota-se que é fundamental tecer apontamentos sobre como os imigrantes italianos da colônia Santa Felicidade atuaram para uma (re)construção da sua identidade local, do bairro, a partir do futebol. Deve-se avaliar se a identidade construída a partir dos dois clubes e da rivalidade entre eles e das famílias se mantém.
DE COLÔNIA A BAIRRO: QUESTÕES DE IDENTIDADE “ITALIANA” E A COLABORAÇÃO DO FUTEBOL
Desde o início da colônia até a criação das primeiras escolas de ensino sistematizado dentro de Santa Felicidade, em 1943, o português não fazia parte do cotidiano local. Porém, após a Segunda Grande Guerra, foi notória a ocorrência de uma política pública de assimilação cultural, condição que passa a influenciar na construção da identidade imigrante.
Maldita evolução [risos]! Ninguém falava português em casa, todo mundo falava italiano. Na minha casa... Na minha avó só se falava italiano. Nós falávamos italiano com meu irmão mais novo, ele respondia em português porque ele foi pra aula mais cedo, não pegou tanto aquela influência tanto do italiano, pois foi o último a nascer (ADARCISIO FERRO, 2017).
Durante o Estado Novo, sobretudo durante o período após a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial “o governo brasileiro, na tentativa de desenvolver uma nacionalização forçada, tomou diversas medidas repressivas contra os imigrantes europeus e seus descendentes” (SOUZA, 2014, p. 20). O governo proibiu publicações em língua estrangeira, fechou clubes e associações culturais étnicas e procurou impedir qualquer manifestação de culturas estrangeiras, principalmente as agora oficialmente “inimigas”. Esse cenário atingiu sutilmente à Colônia Santa Felicidade:
O que aconteceu foi o seguinte: não se manifestavam, se evitava falar o italiano, procuravam falar o português ou nem falavam. As pessoas saiam e nem conversavam, evitavam mesmo, se eram perguntados de algo nem davam resposta, para evitar ser identificado como italiano (ADARCISIO FERRO, 2017).
O acontecimento que marcou a geopolítica global parece não ter efeitos intensos em Santa Felicidade. Durante esse período, os atos de repressão contra manifestações étnicas que afetavam fortemente o cotidiano dos imigrantes que moravam nos grandes centros urbanos, chegaram apenas como uma marola à colônia. Por exemplo, o Trieste FC, manteve o nome, provavelmente por não ter representatividade sequer no cenário regional. Quando perguntado se o Trieste FC teve que mudar seu nome ou as cores do uniforme durante esse período, o colaborador respondeu: “o Trieste não mudou de nome e nem a cor, ficou a mesma, ninguém veio para cá para isso” (ADARCISIO FERRO, 2017). A análise é feita a partir do Trieste FC, pois a SOBE Iguaçu, como afirmando anteriormente, optou por não fazer analogias à nacionalidade italiana desde a sua fundação.
O panorama passou por mudanças radicais, principalmente, quando Santa Felicidade foi incorporada ao perímetro urbano de Curitiba. Outro acontecimento que começou a modificar esse cenário foi o estabelecimento de moradores não italianos dentro da localidade.
Os dois clubes, a partir da década de 1960, começaram a passar por processos de reestruturação identitária, por motivos associados exclusivamente ao futebol. Ambos passaram a adotar medidas para conseguir melhorar o rendimento das equipes, com o objetivo de ganhar os campeonatos que disputavam. Para isso, começaram a aceitar em suas agremiações jogadores/atletas que não faziam parte das famílias italianas e não moravam em Santa Felicidade. Com isso, o futebol passou de amador à semiprofissional. Já nesse período, os jogadores que vinham “de fora” começavam a ganhar para se deslocar e defender os clubes.
Começaram a ver que tinha um jogador bom que morava fora e falavam: “- [Venha] jogar, te damos 50 reais por jogo.” O cara pegava a bicicleta e vinha jogar, era sábado e domingo, aí começou a ver que tinham caras bons e chamavam porque tinha que ganhar do Iguaçu, precisamos enxertar uns caras de fora (ADARCISIO FERRO, 2017).
Nota-se que o futebol agora passa a ter outro caráter dentro da colônia. Esse processo de semiprofissionalismo, é proposto por Waldenyr Caldas (1990)11 ao elaborar um modelo explicativo para a evolução do futebol nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo. Ressalta-se também o papel de ajuste da memória quando o agente menciona valores em uma moeda atual - é a fusão entre o presente e o passado tão alertada por Pollak (1992). Em discursos referentes a períodos anteriores, não se fazia referência à importância da vitória e do resultado. Logicamente este processo não foi harmônico e consensual:
Quem ficava chateado era a família do cara que era substituído, a família falava: “- Poxa, esse cara nem é daqui, o cara vem jogar aqui, como é que vocês deixam jogar? Meu filho não joga!” e respondiam: “- Não, mas veja bem, ele é um grande jogador e nós precisamos ganhar...” e, de repente, contornavam a situação, mas ninguém gostava de ficar fora. (ADARCISIO FERRO, 2017).
Algumas famílias tradicionalistas criaram uma resistência com relação à “invasão” de jogadores que não eram da colônia. Pessoas que não faziam parte do processo, que poderiam não atribuir aos clubes os significados identitários que lhes era oportuno. Aos poucos foram vencidos. Sobressaíram-se outras questões: quem seria responsável por tais contratações/acordos? Quem estava extrapolando, projetando o futebol local para além do limite de uma identidade étnica/local?
À medida que SOBE Iguaçu e Trieste FC ganhavam competições em âmbito amador, menos se questionava acerca da inserção de atletas “estrangeiros”. Em paralelo, Santa Felicidade se assentava como parte da própria identidade curitibana. Trata-se de um paradoxo: os times passaram a ser representados em sua maioria por atletas que moravam fora do bairro e poucas vagas eram ocupadas por descendentes de imigrantes italianos.
E, de repente, o pessoal começou a estudar, trabalhar, e não tinha tempo, podia ser bom jogador, mas não ia jogar bola. Aí chamava o cara lá de fora e começou a vim o pessoal de fora. Ó hoje não tem um jogador do Trieste, faz 10 anos que não tem um cara de Santa Felicidade, o Iguaçu é a mesma coisa. A última geração do Iguaçu que tinha cara aqui de Santa, foi o Cuca12 e olha lá, acho que foi o Cuca o último. Então não existe, clássico Trieste e Iguaçu ainda existe, mas só existe uma rivalidade entre a diretoria, entre o jogador, não. (ROMEU STIVAL, 2017).
Novamente, percebem-se aspectos de assimilação (agora espontânea) influenciando na vida social da colônia. Até a segunda geração dos imigrantes que chegaram à Santa Felicidade, a ocupação era essencialmente voltada ao trabalho na lavoura e/ou manual. Com o passar de décadas, a dinâmica muda: além da presença de novos residentes no bairro, os descendentes passaram a trabalhar fora da colônia. Esta mudança reverbera na participação dos sócios no funcionamento e na vida dos clubes originalmente de imigrantes. A última geração que representou as famílias foi a liderada pelo atualmente técnico Cuca (Alexi Stival), há aproximadamente trinta anos. Como foi apontada anteriormente, a rivalidade entre os clubes se acentuou por conta dos espaços ocupados pelas famílias dentro da colônia, sendo assim, como consequência da ausência de membros das famílias no grupo de jogadores, pode-se afirmar que a rivalidade entre SOBE Iguaçu e Trieste FC tornou-se decadente. Ela só se mantém entre os membros/sócios mais velhos, aqueles que atuam na gestão dos Clubes.
Quanto a essa dinâmica atual de futebol da SOBE Iguaçu e do Trieste FC, nota-se que os clubes atualmente disputam competições que não são profissionais, devido suas conjunturas, mas administram suas entidades a partir dessa perspectiva. Mesmo assim o tom nostálgico está enviesado à “fala”:
Naquele tempo jogava por amor a camisa por causa da família. A família incentivava. Hoje, o jogador tem a despesa, ele não pode vir aqui jogar de graça. Hoje nós já temos os patrocínios, temos as placas [publicidade]. O Trieste, se o Stival não pegasse lá, era time que não tinha vida. Aqui talvez um dia o Iguaçu vai ter que fazer o mesmo. Na crise que é hoje é difícil tocar um time de futebol. É a semana inteira, é médico, é massagista, tem despesas, né? Se não tiver patrocínio como é que você vai tocar? Então naquele tempo eles tocavam porque vinham aqui e se desse a roupa já estava bom. Eu, quando jogava, tinha que comprar minha chuteira, tinha época que não tinha chuteira. Naquela época não se pagava nada, mas também todo mundo morava por aqui e hoje infelizmente têm despesas (ROMEU STIVAL, 2017).
No início da narrativa atribui à vontade de vestir a camisa por conta da influência da família, por conta da identidade que tinha com o clube. Fato que não se repete com os atletas que ali atuam atualmente. Tanto a SOBE Iguaçu como o Trieste FC, hoje, são os clubes que mais pagam e mais vencem no cenário do futebol amador da capital do Paraná. Consequentemente têm os melhores elencos para a disputa dos campeonatos. Via de regra, os atletas mais qualificados transitam entre os dois clubes de temporada em temporada. Não existe mais aquela situação de que aquele que veste a camisa da SOBE Iguaçu não poderia jamais vestir a camisa do Trieste FC, como acontecia na origem dos Clubes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O processo de formação de uma identidade italiana - ainda mais no exterior, entre os imigrantes - foi (e ainda é) um fenômeno em construção. Ao emigrar, o italiano passa a ter o desafio de constituir essa identidade agora em outro país, que não o seu. Essa tentativa de (re)construção da identidade na colônia/bairro Santa Felicidade é produto de desdobramentos que acontecem ao longo dos anos, já nas mãos dos oriundi.
O futebol, por exemplo, ao lado da gastronomia e da arquitetura manteve no bairro de Santa Felicidade supostos traços de uma Itália dentro do Brasil por um tempo considerável. Tanto a SOBE Iguaçu como o Trieste FC foram fundados para que os imigrantes italianos pudessem jogar futebol, como forma de rememorar um hábito vivenciado em seu país de origem.
Atualmente os clubes passam a ser formados, em sua maioria, por indivíduos “de fora” do bairro, logo, não são descendentes de italianos. Esse processo começou a acontecer por volta dos anos 1960, quando a colônia Santa Felicidade passou a fazer parte do perímetro urbano de Curitiba e a comunidade externa começou a viver no bairro. Isso aconteceu também dentro do futebol. À medida que jogadores “de fora” começaram a participar das equipes, com o objetivo de conquistar mais vitórias, os ‘italianos’ passaram a jogar menos e, consequentemente, a participar menos das atividades dos clubes. Logo, passaram a não ter mais a identificação familiar, como acontecia no início das entidades. A identidade dos indivíduos para com seus clubes só se mantém por meio do conhecimento de sua história, por aqueles que são mais velhos e de alguma forma ajudaram a “escrevê-la”.
Algumas tradições ditas italianas, mesmo que estereotipadas, foram criadas e ainda hoje são associadas ao derby. Por exemplo, em véspera de clássico entre Trieste FC e SOBE Iguaçu, as mulheres mais idosas, descendentes, ainda preparam na sexta-feira a polenta com frango ao molho para aqueles que vão estar de alguma forma envolvidos com a partida. Fato que se perpetua desde a época em que o certame era jogado somente pelos imigrantes italianos.
Para concluir, sabe-se que Santa Felicidade é um dos bairros mais tradicionais de Curitiba, por conta de sua aproximação com a Itália. As manifestações étnicas, como os restaurantes típicos e a arquitetura singular, mostram como os italianos construíram ao longo dos anos uma identidade dentro de Santa Felicidade. Mais sólida, possivelmente, do que a própria identidade nacional italiana.
Tal identidade, a de imigrante italiano, ainda é evidenciada quando se visita as sedes dos clubes após as dezoito horas, quando ocorre a sociabilização dos descendentes diretos de imigrantes italianos. Em sua maioria, idosos jogando baralho ao redor da mesa, gritando seus feitos em português, mas com um sotaque marcado, entre as paredes com quadros, fotos e troféus que contam a história do respectivo clube.