INTRODUÇÃO
Os grupos minoritários passaram a ter seus interesses considerados com maior significância a partir da década de 1940, quando da publicação da Declaração dos Direitos Humanos. Na sequência, documentos foram elaborados enfatizando as particularidades das diferentes populações, dentre elas, as com alguma condição de deficiência, fomentando discussões sobre a inclusão social dessas pessoas (MAZZOTTA; D’ANTINO, 2011).
De acordo com o Decreto-Lei n° 3298, de 20 de Dezembro de 1999 (BRASIL, 1999), a deficiência se refere a toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gera incapacidade para o desempenho de uma atividade, dentro do padrão esperado para o ser humano em dada cultura. Neste mesmo entendimento, o Relatório Mundial sobre a Deficiência (OPS, 2003) sugeriu o uso da Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF) como ferramenta para o entendimento do amplo e complexo conceito de deficiência, categorizando-a segundo as dificuldades encontradas em uma ou mais das três áreas da funcionalidade - nas alterações das estruturas e funções corporais; nas limitações, ou seja, nas dificuldades para executar certas atividades, como ao caminhar ou comer; e nas restrições à participação em certas atividades em quaisquer que sejam os aspectos da vida diária, como ao enfrentar discriminação no emprego ou nos transportes.
Nesta conjuntura, eventos como a Conferência Mundial de Educação para Todos, realizado em 1999, na Tailândia, e a Conferência Mundial sobre Necessidades Educativas Especiais, em 1994, em Salamanca, na Espanha, orientaram construções de conhecimentos e de políticas para instigar os primeiros passos formais sobre o tema, clamando pela edificação de uma sociedade inclusiva e acolhedora das diferenças, independente das condições físicas, intelectuais, sociais, emocionais ou linguísticas de cada indivíduo (BRASIL, 1994; SILVA, SEABRA JUNIOR; ARAÚJO, 2008).
Incluir é, sobretudo, reconhecer e efetivar os direitos constitucionais e humanos fundamentais, atendendo ao princípio da dignidade, da igualdade e da solidariedade, previstos na Constituição Brasileira (BRASIL, 1988). Esse reconhecimento e participação ativa devem ocorrer, portanto, em todos os contextos, estruturas e práticas sociais, os quais devem se adaptar para possibilitarem oportunidades de atuação às pessoas em suas estruturas e funções.
Dentre essas práticas, destaca-se a dança. A dança é uma linguagem que abrange uma diversidade cultural, fornecendo formas de aprendizado de consciência e domínio corporal, expressão corporal, ritmo, percepção espacial, reprodução e criação de movimentos (PACHECO, 1999).
Ao considerar-se a expressão fenomenológica da dança, pode-se entendê-la como uma conexão com o mundo da experiência vivida, pois o movimento humano expressado é intencional, assumindo ativamente o espaço, o tempo e tornando-se condição de toda percepção viva. A intencionalidade da consciência corpórea originado da experiência do sujeito com o mundo - que na dança ocorre tanto na ação da totalidade do movimento dançado, quanto na criação de uma nova expressão e fruição artística - se constrói entre quem dança e quem a aprecia, culminando em significações e sentidos para aqueles que dançam e aqueles que a percebem (MARQUES et al., 2013).
Para seu ensino, Pacheco (1999) destacou a necessidade de consideração dos seus variados conteúdos, dentre eles a consciência, domínio e expressão corporal (possibilidade de expressar sentimentos, pensamentos, ideias e críticas através de movimentos e ações corporais); o ritmo (cadências, andamentos e variedades de estruturas rítmicas); a exploração espacial (as variadas possibilidades de espaço, como o individual, o espaço do outro e o espaço coletivo, bem como as formas, volumes, trajetória, planos e eixos de movimentos em um determinado espaço), além da reprodução e da criação de movimentos (almejando a qualidade de execução do movimento, o qual pode ser relaxado, tenso, contínuo, segmentado ou por meio de percussão corporal).
Sabendo que a dança é historicamente utilizada para os mais diversos fins, presente desde o primórdio da humanidade, há muitas formas da mesma ser percebida e estruturada. Uma das possibilidades metodológicas de exploração da dança é por meio da Metodologia Contato Improvisação. A mesma foi criada pelo bailarino Steve Paxton, quando investigou como a improvisação em dança poderia facilitar a interação entre os corpos e as suas reações físicas, além de proporcionar uma participação igualitária das pessoas em um grupo, sem empregar arbitrariamente hierarquias sociais. Ele aceitava qualquer material como um veículo de arte, fazendo com que a prática dançante acontecesse por si mesma por qualquer corpo, independente do gênero ou aptidão física, considerando isso um valor social a ser integrado ao movimento e expresso nas performances (LEITE, 2005).
Nesta proposta, as principais características de exploração do movimento são as mudanças de pontos de contato entre corpos, a percepção por meio da pele, o foco na segmentação do corpo, a movimentação em diversas direções simultaneamente, a percepção interna do movimento, a ênfase no peso e no fluxo do movimento, o rolamento ao longo do corpo, o uso do espaço em 360 graus, a tácita inclusão da plateia, a informalidade intencional da apresentação exibida em uma prática, o entendimento do dançarino como uma pessoa comum, a improvisação despida de intenções dramáticas e a consciência de que todos são igualmente importantes. Esses valores igualitários possibilitam a participação de todos na mesma vivência (NOVACK, 1990).
Contudo, apesar da sociedade estar estabelecida legalmente enquanto inclusiva e das possibilidades de vivências práticas cada vez mais considerarem a participação das pessoas independente de suas diferenças, ainda são constantes os registros de uma tendência em rejeitar o diferente nas estruturas e funções sociais, quer seja devido às suas características pessoais, quer porque mantem-se o receio ao desconhecido abarcado por dúvidas sobre como lidar ou interagir com o mesmo (CORREIA, 1999).
A dificuldade de interação entre pessoas com e sem deficiência tem sido uma constante nos estudos concernentes à temática inclusiva, como explicitado por Pereira (2011), ao apontar que as crianças com deficiência são comumente rejeitadas por seus pares em atividades de companhias de dança devido à forma como os alunos sem deficiência percepcionam os seus pares com deficiência.
Sabendo que essa dificuldade de interação entre pessoas com e sem deficiência pode prejudicar a vivência dos plenos direitos pelas pessoas com essa condição e dificultar a efetivação de uma sociedade inclusiva, o objetivo deste estudo foi verificar a possibilidade de reconstrução da percepção pelas crianças sem deficiência sobre as potencialidades das pessoas com deficiência por meio da prática da dança.
MATERIAL E MÉTODOS
Esse estudo foi desenvolvido por meio de uma pesquisa de campo qualitativa, previamente submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (CEP/FCM/UNICAMP), aprovada com parecer número 2.050.058.
População e Amostra
A população selecionada para este estudo foi composta por crianças de ambos os gêneros, de 6 a 10 anos, matriculadas no curso Esporte Criança, do Serviço Social do Comércio (SESC), de Santana, em São Paulo/Brasil, que atendessem aos seguintes critérios:
Ter participado da roda de conversa ou do desenho pré-intervenção;
Ter frequentado ao menos 5 aulas da intervenção Contato Improvisação;
Ter participado e dançado no encontro com as pessoas com deficiência;
Ter participado do desenho pós-intervenção.
Sendo assim, dentre as 30 crianças inscritas no curso, a amostra foi constituída por 13 crianças as quais atenderam aos critérios acima delineados.
Local
O SESC é uma instituição privada sem fins lucrativos, mantido e administrado por empresários do comércio, voltado ao bem-estar, à saúde, ao lazer e ao aprimoramento cultural dos trabalhadores deste setor e sua família. Presente em todos os estados brasileiros, o SESC promove ações nos campos da educação, cultura, lazer, saúde e assistência social.
Dentre os seus programas esportivos, possui o Esporte Criança com o objetivo de apresentar às crianças de 6 a 10 anos o universo da cultura corporal do movimento e despertar o interesse pelo aprendizado do esporte e da atividade física para toda a vida. Por meio de vivências lúdicas das diversas modalidades esportivas, jogos, brincadeiras, atividades gímnicas e de expressão corporal, valoriza aspectos como a participação, a inclusão, o respeito às diferenças, a cooperação, a autonomia e a construção coletiva.
A dança, neste programa, faz parte do conteúdo de jogos de expressão, pensando o corpo como um processo de vivência de práticas corporais. Almejando a qualidade de vida no transcorrer de ações e interações do sujeito com o mundo, tem por objetivo proporcionar aos alunos uma nova forma de linguagem diferente da fala e da escrita, aumentar a sociabilidade do grupo, diminuir a timidez, estimular o desenvolvimento de consciência corporal e entender o relacionamento do corpo com o espaço.
Procedimentos
Inicialmente, foi contatado o responsável pelo curso Esporte Criança, do SESC Santana, solicitando-lhe autorização e espaço nas aulas para a intervenção a ser realizada. Com permissão concedida, foi requerido aos responsáveis de cada criança matriculada no curso autorização para participarem e para a divulgação de seus resultados, com sequente preenchimento do Termo de Conhecimento Livre e Esclarecido pelos mesmos.
Esse estudo foi estruturado de forma a ocorrer, inicialmente, uma roda de conversa coletiva e uma realização de desenho individual com as crianças acerca do tema da dança e de suas possibilidades de prática por pessoas com deficiência; seguido por um período de intervenção com a vivência da dança Contato Improvisação, o qual foi finalizado com uma aula na qual a dança foi realizada conjuntamente com dançarinos com deficiência. Por fim, os sujeitos do estudo prepararam um segundo desenho sobre o mesmo tema.
A roda de conversa é uma forma de possibilitar diálogos entre os sujeitos, os quais suscitam a produção e a reconstrução de saberes e significados para seus partícipes, de forma mediada por uma pessoa sensível às suas necessidades, cultura e percepções para favorecer a construção de conhecimentos (MOURA; LIMA, 2014).
Não é dizer-se descomprometidamente dialógico; é vivenciar o diálogo. Ser dialógico é não invadir, é não manipular, é não organizar. Ser dialógico é empenhar-se na transformação constante da realidade. Esta é a razão pela qual, sendo o diálogo o conteúdo da forma de ser própria à existência humana, está excluído de toda relação na qual alguns homens sejam transformados em “seres para outro” por homens que são falsos “seres para si” (FREIRE, 1983, p. 43).
Dessa forma, três fases foram delineadas:
• Fase 1
As crianças participaram da roda de conversa coletiva no local e horário em que participavam do curso Esporte Criança, no SESC Santana, em São Paulo.
Essa roda de conversa ocorreu uma semana antes do início da intervenção, sendo filmada e transcrita na íntegra. Neste procedimento, foi questionado: “O que é dança para vocês?”, “O que é pessoa com deficiência para vocês?” e “Vocês acreditam que pessoas com deficiência conseguem dançar?”.
Após, foi solicitado que elas preparassem, individualmente, um desenho, com os pesquisadores empregando a seguinte afirmativa: “Agora vamos fazer um desenho de uma pessoa dançando, vocês devem se lembrar de todas as vezes que assistiram alguém dançando, ou que vocês dançaram, tudo o que já viram ou vivenciaram de dança; devem resgatar da sua memória o que se lembram de dança e desenhar nesta folha. Quem quiser pode identificar por escrito o que está desenhando”.
• Fase 2
Na semana seguinte, as crianças foram apresentadas a uma prática de dança por meio da Metodologia Contato Improvisação, que prevê a interação entre os corpos e as suas reações físicas, buscando proporcionar a participação igualitária das pessoas em um grupo (LEITE, 2005). Assim, para trabalhar a inclusão, foi escolhida esta metodologia, oferecendo a oportunidade de participação plena a todas as crianças. Essa intervenção objetivou possibilitar um conhecimento inicial das crianças sobre essa prática de dança, acontecendo durante seis aulas, as quais ocorreram duas vezes por semana, com uma hora e trinta minutos (1h30min) de duração cada, no local e horário das aulas do curso Esporte Criança, do SESC Santana.
A metodologia Contato Improvisação se fundamenta em uma forma de dança espontânea, sensorial e física em que duas ou mais pessoas brincam com o movimento, sendo o toque corporal a base para um diálogo expressivo composto de contato, peso e pressão. Por meio dessa prática, um dançarino cria um movimento corporal espontaneamente tocando em uma parte do corpo de outro dançarino, o qual o sente e passa a ser próximo o criador de movimento devolvendo o toque o outro dançarino (KRISCHINKE, 2012).
Fundamentado nesta compreensão, para a execução das práticas desse estudo, os pesquisadores apresentaram a técnica do contato e improvisação, explicaram e demonstraram como realizar os movimentos improvisados em duplas ou trios. De princípio, as atividades foram simplificadas, podendo ser estabelecido o contato físico apenas por um toque no final de cada movimento realizado por um dos componentes da dupla/trio. Durante o prosseguimento das aulas, houve uma mediação da professora para que os movimentos inicialmente fossem produzidos de maneira suave e lenta, facilitando o sentir e a respiração e, na sequência, deslizando corpo a corpo dos parceiros durante toda a dança. Inserimos na nossa proposta músicas com cadências variadas, ao som de uma estória, poesia e no silêncio.
Ao final do período de apresentação e vivência dessa metodologia com as crianças participantes desse estudo, foi convidado um grupo de dançarinos com deficiência intelectual e física da Cia de Dança Humaniza, que praticavam dança na forma metodológica Contato Improvisação há pelo menos 3 anos para interagirem com as crianças da pesquisa. A Cia de Dança Humaniza é uma companhia de dança profissional composta de bailarinos com e sem deficiência intelectual e motora e suas mães que atuam em espetáculos de dança e performances. Neste momento, as crianças sem deficiência praticaram a metodologia Contato Improvisação, conhecida e vivenciada por meio das aulas anteriores, conjuntamente com os dançarinos com deficiência.
• Fase 3
Na aula seguinte ao término da intervenção, foi solicitada a realização de desenhos com a mesma afirmativa da Fase 1.
Análise de dados
Os dados foram ponderados por meio da análise de conteúdo, proposta por Bardin (2009), na qual há uma interpretação das mensagens e valores presente no relato e nos desenhos apresentados pelas crianças, traçando-se uma frequência das características que se repetiram no seu conteúdo.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
De princípio, uma caracterização da amostra foi realizada, contextualizando os sujeitos participantes desse estudo, conforme apresentado no Quadro 1:
Criança | Gênero | Idade | Tipo de Escola | Estado Civil dos Pais | Composição Familiar |
---|---|---|---|---|---|
C1 | Feminino | 8 anos | Privada | Separados | 1 irmão |
C2 | Feminino | 9 anos | Publica | Casados | 3 irmãos |
C3 | Masculino | 10 anos | Privada | Casados | 0 irmão |
C4 | Masculino | 8 anos | Privada | Separados | 1 irmão |
C5 | Masculino | 7 anos | Privada | Casados | 1 irmão |
C6 | Masculino | 7 anos | Publica | Casados | 0 irmão |
C7 | Feminino | 8 anos | Privada | Casados | 1 irmão |
C8 | Masculino | 6 anos | Privada | Casados | 1 irmão |
C9 | Masculino | 8 anos | Privada | Casados | 2 irmãos |
C10 | Masculino | 8 anos | Privada | Casados | 1 irmão |
C11 | Feminino | 10 anos | Privada | Solteiros | 2 irmãos |
C12 | Feminino | 8 anos | Privada | Casados | 1 irmão |
C13 | Masculino | 9 anos | Privada | Casados | 3 irmãos |
Das 13 crianças participantes, 5 eram meninas e 8 meninos, sendo que dentre as meninas, três tinham 8 anos, uma 9 anos e uma 10 anos; e dentre os meninos, um com 6 anos, dois com 7 anos, três com 8 anos, um com 9 e um com 10 anos.
Todas as crianças estavam matriculadas na rede regular de ensino, sendo 2 em escolas públicas e 11 em escolas privadas.
Concernente à estrutura familiar, 10 crianças possuíam pais casados e 3 separados ou solteiros. Ao analisarmos a composição familiar dessas crianças, 2 eram filhos únicos, 7 possuíam um irmão e 4 possuíam dois ou mais irmãos, nenhum deles apresentando uma condição de deficiência.
Averígua-se que o grupo em questão pertence a um estrato semelhante de classe social, no qual a maioria frequenta escolas particulares e situam-se em famílias de, em média 2 filhos, com pais casados. Tal estrutura facilita o contato inicial com a dança, uma vez que estudos como de Navas (2010) afirmaram que a dança tem sido acessada principalmente por meio de locais particulares, como mais um produto a ser consumido conforme as condições sociais possibilitam esse contato.
O acesso à dança reproduz, por conseguinte, um quadro de exclusão social que prejudica o acesso da maioria às atividades culturais. A dança, nesse contexto, apresenta uma característica elitista, com grande parte populacional sem condições financeiras para custear sua vivência por meio de uma orientação profissional (LIMA; FROTA, 2007).
O SESC surge, nessa conjuntura, como um oportunizador de acesso às pessoas a essa diversidade de práticas corporais, cumprindo sua função de aprimoramento cultural das famílias de comerciantes, as quais já fazem parte de um estrato social que possibilitaria um acesso, ainda que discreto, a tais práticas.
Neste contexto, por meio da roda de conversa foi possível identificar categorias nos discursos das crianças em cada pergunta delineada. Na questão inicial, “O que é dança para vocês?”, partindo dos indicadores das respostas das crianças, foi possível identificar 3 categorias principais, conforme exposto no Quadro 2:
Conhecimento de senso comum, associando dança a uma modalidade hegemonicamente difundida | Conhecimento associado ao movimento e à música | Conhecimento associado a uma experiência prévia com dança |
---|---|---|
Jazz, Sapateado, “Ó o gás”. | Mexer o corpo com a música. | Eu faço aulas de dança na minha escola, Eu não gosto de dança. |
Quando questionada sobre o que é dança, a criança C2 referiu-se às modalidades pré-determinadas de dança: “Tem Jazz, Sapateado”; “Ó o gás!”. Já as crianças C1 e C3 apontaram, em seus discursos, uma ligação de música, ritmo e movimento: “É um tipo de ritmo que as pessoas mexem” e “As pessoas se movem no ritmo da música”. As crianças C4 e C6 também relataram experiências prévias com essa prática, ao afirmarem: “Eu faço aula de dança na minha escola”; “Eu não gosto de dança porque não sei montar coreografia”; “Meu tio já fez a dança do zumbi do braço quebrado” e “Eu estava dançando, pulando, em cima da cama e quebrei o braço e até agora eu danço!”.
Ao serem analisados os discursos apresentados pelas crianças, pode-se perceber uma influência do senso hegemônico para o movimento com a música, incluindo modalidades de dança comumente praticadas, em especial, pelas meninas dessa faixa etária, como o Jazz. O estudo de Marques (2010) atestou tais resultados ao ressaltar que o contato das crianças com a dança tem sido feito, principalmente, por meio do ensino de técnicas específicas de modalidades mais presentes comumente na mídia social, como ballet e jazz.
Além disso, de forma geral, o contato com a dança por crianças desta faixa etária tem ocorrido quase que exclusivamente por meninas, uma vez que a cultura corporal sofre uma influência significativa da cultura sexista existente no país. Corroborando com essa afirmativa, Costa, Silva e Avila (2000) identificaram que os locais frequentados pelas crianças dessa faixa etária, como a instituição escolar, têm retratado o modelo masculino de sociedade, de forma que atividades corporais como a dança têm sido atribuídas ao gênero feminino, gerando resistência dos meninos em participar das mesmas, enquanto outras consideradas atividades masculinas, como o futebol, têm uma neutralidade da ação das meninas, que em alguns momentos atuam apenas como figurantes.
Ademais, em muitos locais de trabalho com a dança, esta tem sido explorada priorizando o ensino de técnicas corporais por meio de movimentos pré-codificados, classificando os alunos em níveis segundo o talento demonstrado pelos mesmos na execução de tais gestos (SCARPATO, 2001).
Com uma reprodução da cultura sexista e do trabalho mecânico, dificulta-se a construção de um significado individual pelas crianças referente ao movimento humano imbuído nesta prática, o que pode até mesmo afastá-las da dança, principalmente os meninos.
Já a outra categoria de discurso mostrou o conhecimento das crianças sobre a música e o ritmo, inferindo que essa prática acontece somente atrelada a uma música, e necessariamente, combinada com movimentos rítmicos.
Na terceira categoria, percebe-se que os discursos das crianças com experiências prévias demonstraram o cenário que a dança está inserida na escola atualmente, uma vez que fica sucumbida às festas temáticas nas quais as coreografias ficam a cargo do professor de Educação Física ou em atividades optativas extracurriculares por meio de projetos isolados (STRAZACAPPA, 2003).
Na pergunta seguinte, “O que é pessoa com deficiência para vocês”, foi possível identificar as seguintes categorias de respostas:
Referências com palavras pejorativas | Referências únicas às limitações | Referências às limitações e possibilidades | Referências às experiências prévias com deficiência |
---|---|---|---|
Retardado. | Não consegue, problema, esquece etc. | Não consegue algo, mas consegue outra coisa, etc. | Acharam que eu era deficiente, eu tenho um amigo que tem um problema etc. |
Neste momento da conversa, a criança C6 referiu-se aos termos pejorativos escutados em casa: “Minha mãe me disse que tem uma palavra que se chama ‘retardado’. ‘Retardado’ é deficiente.” As crianças C1 e C5 descreveram a pessoa com deficiência como alguém com uma limitação ou incapacidade: “É uma pessoa que não consegue fazer alguma coisa”, “Síndrome de Down é quem esquece as coisas”. A criança C7 ponderou entre o que as pessoas relatavam e o que ela acreditava ser verdadeiro: “É uma pessoa que nasce com um problema e todo mundo acha que ela não consegue fazer uma coisa, mas ela consegue”. E as crianças C4 e C9 contaram experiências prévias com pessoas com a dada condição: “Quando eu nasci achavam que eu era deficiente, mas eu não sou” e “Eu tenho um amigo que ele tinha as costas curvadas e um dia ele fez aniversário e eu cheguei na festa e dei um abraço nele e a mãe dele ficou muito feliz porque disse que eu fui a única criança que abraçou o filho dela e hoje ele anda retinho, normal”.
A definição de deficiência é complexa, estando envolta em significativa mudança de paradigmas sociais, mas o que chamou atenção nos discursos das crianças foram os termos pejorativos reflexos dos discursos familiares. Sabendo que, no pensamento merleau-pontyano, a criança é o eu no mundo, embaralhando aspectos biológicos, culturais e inter-relacionais, pode-se afirmar que a criança aprende mergulhada em uma dada cultura e em modos de imitação. O primeiro espelho para isso é a atitude familiar, refletindo os conceitos e pré-conceitos expressados pela criança (MALLMANN; BARRETO, 2007).
Estudos como o de Laws e Kelly (2005) têm discorrido que as atitudes das crianças face a uma pessoa com deficiência dependem igualmente do que sabem e percebem acerca da deficiência, sendo, também, influenciadas pela percepção que têm das atitudes dos seus pais e professores em relação às mesmas.
A segunda e a terceira categoria de respostas retrataram a manutenção de um entendimento das características individuais como objeto de desqualificação com base em uma análise superficial de suas potencialidades, mesmo em meio a um contexto no qual a diversidade se apresenta latente, presente em inúmeros fóruns de discussão, programas de televisão, desenhos infantis e no ensino formal (PESSANHA, 2010).
A quarta e última categoria referiu-se às experiências prévias das crianças com as pessoas com deficiência, mostrando que os participantes desse estudo ainda aludiram a essas experiências como algo incomum e não presente no seu cotidiano. Tais resultados são preocupantes uma vez que a construção legal brasileira foi reformulada nas últimas décadas instituindo promulgações que, garantindo direitos igualitários e participativos às pessoas com deficiência, buscou incluir essa população em todos os contextos sociais, como por meio da Declaração dos Direitos das Pessoas Portadoras de Deficiência (ONU, Resolução nº 3.084/75), da Convenção 159 da OIT (em vigor no Brasil desde 1991), da Convenção da Interamericana para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência (1999 - Convenção da Guatemala) e da própria Constituição Federal do Brasil (BRASIL, 1988; SILVA; SEABRA JUNIOR; ARAÚJO, 2008).
Contudo, nota-se que a imposição de normas legais pouco tem contribuído para o oferecimento de experiências de relações e convivência entre as pessoas com e sem deficiência (PESSANHA, 2010). Apenas a imposição legal não faz com que a inclusão aconteça e que as alterações de entendimentos e valores se sobressaiam. Torna-se necessária uma cultura de valorização da diversidade e de respeito às diferenças, rompendo com estereótipos passados para que essa permanente tendência de desvalorização do desconhecido possa ser substituído pela consideração e apreço às potencialidades de cada um.
Por sua vez, na questão final, “Vocês acreditam que pessoas com deficiência conseguem dançar?”, foram identificadas 4 categorias:
Referências às impossibilidades acerca das limitações físicas | Referências às possibilidades |
---|---|
Sem braço e perna não dá pra dançar. | Só se fizer a dança da minhoca. |
A maioria das crianças forneceu uma resposta negativa quanto às possibilidades de dança pelas pessoas com deficiência. As crianças C1, C3, C6 e C8 relataram a impossibilidade dessas pessoas dançarem e, em geral, pensaram na deficiência física exclusivamente, expondo: “Eu conheço um homem, ele não tem perna nem braço e acho que ele não consegue dançar”, “Cadeira de rodas não consegue dançar”, “Se a pessoa não tem perna ou braço, não tem como”, “Sem perna, como consegue dançar?”, “Só se fizer a dança da minhoca” (e imitou movimentos ondulatórios de tronco).
Entende-se que ambas as categorias refletiram os padrões de dança fundamentados na busca pela perfeição de movimentos e com estereótipos de um corpo pré-definido, um padrão de conhecimento de massa, sem um olhar crítico para o que é a dança.
Neste contexto, nenhum dos desenhos realizados previamente à intervenção apresentou referências às pessoas com deficiência dançando, conforme ilustração abaixo:
Os desenhos prévios à intervenção, assim como a maioria dos discursos apresentados na roda de conversa, vieram carregados de um conhecimento produzido pela mídia e pelas experiências culturais de cada criança com essa prática, com citações como “ballet”, “break”, referências às notas musicais ou às caixas de som. O estudo de Ramos (2002) confirmou que as músicas comumente expostas nos meios de comunicação de massa, como mídias televisivas e virtuais, influenciam o conhecimento musical de crianças de 9 e 10 anos. Pondera-se, por conseguinte, que o mesmo tem ocorrido com as práticas da dança.
Fundamentados por esse discurso midiático de valorização de padrões físicos funcionais pré-definidos como adequados, pode-se notar que nenhuma das representações pré-intervenção apresentaram qualquer referência a uma pessoa com deficiência na dança.
Esses resultados refletem a forma de percepção social das pessoas sem deficiência em direção às com essa condição, em um processo em que as pessoas com deficiência estão cada vez mais presentes fisicamente nos diversos ambientes, mas ainda com carência de entendimento dos demais sobre as suas possibilidades de atuação nas diversas funções e estruturas sociais.
Contudo, apresentando os dados do período pós-intervenção nesse momento, após a prática de dança de Contato Improvisação e da aula final conjunta com pessoas com deficiência, os desenhos passaram a retratá-las como protagonista desta prática:
Nos desenhos pós-intervenção surgiram retratos de pessoas com deficiência em situação de dança em 11 dos 13 desenhos realizados. Em relação às duas crianças que não as mencionaram, estas podem não ter sido sensibilizadas pelo processo de intervenção realizado. Contudo, tal processo mostrou ser contributivo com a construção de conhecimento pela maioria das crianças acerca das potencialidades da população com alguma condição de deficiência.
Esses resultados encontraram similitude aos discorridos por Antunes, Silva e Araújo (2013), os quais relataram a ocorrência de uma mudança positiva no olhar da sociedade para com as pessoas com deficiência que praticavam a dança, a qual passou a direcionar a sua atenção das limitações às competências dessas pessoas.
Retomando o pensamento merleau-pontyano, as crianças possuem uma imensa capacidade de aderência às coisas, sendo esta fase de desenvolvimento propício para a alteração de padrões de pensamentos coletivos e conceitos errôneos, como os aqui apresentados acerca da dança e também das potencialidades das pessoas com deficiência (MALLMANN; BARRETO, 2007).
Nesse contexto, a dança surgiu como um meio de comunicação e de transmissão de ideias, de falas e de expressões sobre as diferenças, como uma possibilidade de movimentos para além dos corpos, das formas ou das técnicas perfeitas. Barreto (2004) afirmou que na dança os corpos se expressam com prazer, valorizando sua essencialidade, quebrando ideias ultrapassadas, superando padrões de criações já estabelecidos e recriando novas realidades corpóreas. De forma a corroborar, Correa (2007) observou que na prática da dança por pessoas com deficiência, são instigadas reflexões sobre as potencialidades dessa população, rompendo com o modelo de corpo pré-definido como perfeito e reconstruindo a imagem das pessoas sobre esses dançarinos.
Substituindo o ensino de gestos técnicos padronizados a serem realizados copiosamente pelos alunos, por um trabalho de vivência e descoberta das possibilidades de desenvolvimento rítmico de cada corpo, foi propiciada uma exaltação das potencialidades de cada pessoa ao invés de classificá-las conforme um rendimento pré-estabelecido, contribuindo com o aprendizado, não apenas de gestos motores pelas crianças participantes desse estudo, mas de uma nova forma de interagir com o mundo, conforme sugerido como função da dança por Laban (1990) e reforçado por Bernabé (2001).
Cônscios de que, segundo Vygotsky (1995), a aprendizagem é uma experiência social, de interação do sujeito (aprendiz) com os outros sujeitos e o mundo, neste estudo, foi de extrema importância o contato das crianças sem deficiência com as pessoas com essa dada condição para a desconstrução dos estereótipos por meio da troca de saberes e experiências.
Dessa forma, com a análise dos diálogos estabelecidos por meio da roda de conversa e dos desenhos, pode-se verificar que as crianças apresentaram uma via aberta de recepção de informações, com disponibilidade para a transformação de conceitos pré-existentes. Sabendo que nesta fase ocorre a formação de caráter, a construção de pensamentos concretos e as opiniões pessoais, a dança mostrou ser contributiva em sensibilizar as crianças para a diferença, construindo conhecimentos sobre as potencialidades dessas pessoas e desconstruindo paradigmas de limitações incapacitantes.
Os resultados obtidos expressaram uma flexibilidade na forma de pensar e agir, bem como uma mudança de percepção frente à realidade, a qual é benéfica para a formação de um indivíduo e futuro cidadão mais respeitador e valorizador das diferenças.
A dança, além dos benefícios físicos e psíquicos referentes à saúde e à qualidade de vida, mostrou de fato ter a potencialidade de contribuir com a inclusão social na medida em que permitiu um repensar das possibilidades de comunicação e de expressão corporal, reconstruindo o entendimento social da deficiência e diminuindo preconceitos (ANTUNES; SILVA; ARAÚJO, 2013).
Sabendo que o preconceito é originário da falta de conhecimento (DUARTE; LIMA, 2003), a interação entre todos, como a proporcionada pela prática da dança, pode favorecer o entendimento sobre as capacidades de cada um e a construção de respeito e valorização às individualidades.
CONCLUSÃO
Um corpo que dança, portanto, não é apenas um corpo que vê. O corpo é o lugar onde a sociedade constrói sua simbolização, sua representação e seus significados; enfrenta barreiras, frustrações e alegrias; compartilha e compactua. Podemos recriar velhas normas e então entender que a Dança deve encontrar o sujeito que dança e não o objeto que dança. A relação do diálogo da arte com o corpo não é superficial, mas embebida de significados, de relações e recriações (FIGUEIREDO; TABARES; VENÂNCIO, 2002, p.70).
A sociedade tem continuamente se reconstruído e incorporado a temática inclusiva em todas as suas estruturas e funções.
Com a realização desse estudo, a dança mostrou ser benéfica para a superação da barreira do preconceito e do senso comum para a exclusão. De modo geral, essas crianças, carregadas de informações advindas da família, comunidade e escola, antes de refletir, já encaravam a deficiência como algo negativo, refletindo uma tendência para a rejeição à diferença. Após o conhecimento obtido sobre as potencialidades dessa população por meio do estabelecimento de um contato dançante entre elas, passaram a aceitá-las de modo não discriminatório, demonstrando que a exposição ao tema e a construção de conhecimentos foram contributivas com a compreensão e a valorização do diferente.
Entendemos que para construir uma sociedade mais atenta e menos desigual é necessário formar cidadãos que enxerguem as possibilidades, e não as limitações. Esse processo reflexivo parte da necessidade de se conhecer as diferenças e aprender a lidar com elas, dialogando com as potencialidades que existem para além das limitações.
Neste sentido, sugerimos novos estudos que aprofundem o entendimento das possibilidades de interações entre pessoas com e sem deficiência por meio da prática da dança, assim como orientações para que o estabelecimento das mesmas ocorra de forma a propiciar e contribuir com a consolidação de uma sociedade com ideais humanísticos e igualitários.